outubro 19, 2012

jogar com a Montagem

Loop Raccord foi finalista Nuovo Awards no Independent Festival Games de 2011. Como facilmente se percebe pela categoria em que foi seleccionado, não é um jogo convencional mas antes experimental. O jogador é colocado no lugar de um editor de vídeo e são atribuídos pontos à montagem executada por este.


Loop Raccord funciona segundo uma parametrização de match-cut que categoriza a qualidade das edições realizadas pelo jogador segundo os princípios da montagem invisível. Para um jogo experimental é estranho que procure o lado mais convencional da linguagem cinematográfica. Por outro lado objectivos mais experimentalistas neste campo obrigariam à criação de todo um outro sistema de feedback no jogo. Aliás isso parece-me mesmo a componente mais fraquinha do jogo, o feedback. Tanto na interface como às nossas acções, se melhor trabalhado enriqueceria muito mais toda a experiência.

"Loop Raccord" is an experimental video-editing game for the iPad, which consists in synchronizing a chain of video clips in order to create an illusion of continuous movement.

Por outro lado o jogo tem uma componente muito interessante para todos aqueles que se interessam por cinema e imagem em movimento, porque é uma forma de aprender e treinar as competências de edição mas não só, também de compreensão e percepção do movimento. Ainda assim julgo que este jogo teria ganho imenso no campo pedagógico e até na recompensa psicológica ao esforço do jogador, se no final de cada ronda, pegasse nos clips editados e os montasse todos num filme, cortando as partes irrelevantes. Acredito que isso lhe retiraria algum do charme experimentalista que possui por seguir uma forma muito menos linearizada da apresentação tanto na apresentação dos clips como na finalização de cada segmento de imagens.

Se estiverem interessados em saber mais sobre o modo como surgiu Loop Raccord aconselho ouvirem o autor Nicolai Troshinsky no vídeo que ele próprio criou com excertos de filmes que estão na base de dados do jogo ou ler a entrevista dada ao IndieGames.com. Gostei da referência inspiracional ao Peter Greenaway, um claro inovador no campo da linguagem fílmica.



Pode ser adquirido ainda hoje no iTunes para iPad por 0.79 euros, está a comemorar um ano, o preço normal é 2.39 euros. Podem também experimentar primeiro uma versão beta grátis para PC.

tecnologias criativas do audiovisual, GoPro

Foi ontem anunciada a câmara digital GoPro Hero 3. É o último modelo da série de enorme sucesso Hero da marca GoPro, e as razões para o sucesso não podiam deixar de ser mais claras e directas:


Preço = abaixo dos 300 dólares,
Peso = abaixo das 100 gramas,
Resolução = 4Kp a 15fps ou Full HD a 60fps
Robustez = resistente ao choque e água

Com estas características o limite só pode ser a massa cinzenta de cada um. Não é mais possível alguém queixar-se de falta de material para criar imagens, sejam complexas, duras ou simplesmente "do outro mundo". É absolutamente impressionante aquilo que foi feito aqui em termos de tecnologia audiovisual. Quanto à qualidade das imagens captadas ficam as provas em dois vídeos, o primeiro para a Hero 2 no ano passado e que atingiu os 15 milhões de visualizações. O segundo, para a Hero 3, saiu apenas ontem e conta neste momento já com 2 milhões de visualizações.

Go Pro Hero 2 (24.10.2011)

Dado o reduzidíssimo tamanho e a enorme robustez da câmara é possível com um sistema muito simples e acessível montar a câmara sobre o próprio corpo ou sobre qualquer sistema e captar momentos que até agora eram simplesmente impossíveis com esta qualidade. Ambos estes vídeos levam-nos através de imagens dessas, impossíveis de tão belas.

Go Pro Hero 3 (17.10.2012)

Isto é apenas o início da revolução das tecnologias do audiovisual, porque nada impedirá qualquer pessoa de sonhar, pensar, desenhar, produzir e criar o seu filme com resolução para cinema. É esta a base das tecnologias criativas, derrubar barreiras, levar as tecnologias expressivas a todos. A inovação faz-se na mente de cada um, e não dependerá mais da tecnologia a que cada um tem acesso.

outubro 18, 2012

esvaziando a perspectiva

Depois de há poucos dias deixar aqui um video experimental que apresentava ruas de São Francisco sem carros, agora é a vez de obras de arte famosas do renascimento. Bence Hajdu um estudante de Belas Artes húngaro resolveu "limpar" várias pinturas renascentistas para assim poder vislumbrar melhor a técnica de perspectiva.

The last supper (1495-1498) de Leonardo da Vinci
I am a student at the University of Fine Arts in Hungary. at one of the descriptive geometry classes we had a task to find and draw the perspective and horizon lines of renaissance and other pictures with significant perspective space. I thought it is not that interesting to just draw lines, so I decided to erase all the characters from them and examine how the painter really created the perspective space and how it actually looks.

I saw this could be something exciting and continued thinking and working on it. after a while I found myself interested in the new atmosphere and the new thoughts the retouched pieces generated without their main subjects. [Link]

Oath of the Horatii (1784) de Jacques-Louis David



Annunciation (1489-1490) de Sandro Botticelli



 Seaport with the Embarkation of St. Ursula (1641) Claude Lorrain



The Annunciation (1450) Fra Angelico



[via Gizmodo]

outubro 17, 2012

A Janela de São Mateus por Caravaggio

Já não é a primeira vez que utilizo o quadro A Invocação de São Mateus (The Calling of St. Matthew) de Caravaggio para demonstrar o uso da luz na pintura, e em certa medida acabo por o utilizar para falar da composição e do modo como conta uma história baseada num outro meio (neste caso o livro da Bíblia). Esta semana numa aula acabei sendo um pouco mais provocador dizendo que a janela que aparece nesta composição, e de forma tão proeminente, não era relevante para a composição. Claro que dizer coisas destas tem um enorme potencial para despoletar discordâncias, e foi isso que aconteceu.

A Invocação de São Mateus (1599) Caravaggio
"Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: “Segue-me!”. Ele levantou-se e seguiu-o"[São Mateus 9, 9]
Uma aluna defendeu que a presença da janela na composição se deveria à composição do triângulo renascentista, a origem matemática do belo, entretanto também ligada à ideia da Santíssima Trindade. Assim a janela seria o topo do triângulo, o São Mateus e amigos a ponta inferior esquerda, e Jesus a ponta inferior direita. Tenho de confessar que senti alguma perplexidade, porque apesar de nunca ter realizado esta leitura, ela fazia algum sentido, mas não me convenceu totalmente. Mas como a imagem não me saía da cabeça, e o triângulo me parecia demasiado forçado em termos interpretativos, voltei a análise do quadro e da janela.

Re-encenação para criação fotográfica de Diver & Aguilar (2011). Sem fundo, nem janela.

Fui rever alguns livros que tinha cá por casa sobre o Barroco e do Gombrich mas nada, procurei algumas fontes na net mas também não fiquei muito satisfeito. A leitura da triangulação que tínhamos discutido na aula não aparecia referenciada em lado algum. A composição deste quadro é sugerida apenas como criada a partir de dois blocos, um vertical (Jesus em pé) e um horizontal (São Mateus sentado). Encontrei uma descrição única que lia um triângulo na mesa, nada mais. Foi então que encontrei uma outra abordagem à leitura da janela, feita por historiadores de arte mais ligados à religião. Para estes a janela é um elemento religioso da obra e não matemático. Eles veem na Janela o símbolo da Cruz.
“There is also a symbol foreshadowing the death of Christ, the cross.  If at first you don’t see it then look again at the window panes, there is the cross in the center.  This would have been more apparent to the contemporary viewer; such large window panes are everywhere today but would have been rare at the time.” [link
Mas se o triângulo me parecia forçado, a cruz parece ainda mais interpretativo, uma clara projeção inferencial de quem está a ler e quer ler determinados sentidos. E foi aí que me lembrei da série da BBC, The Power of Art (2006) [1] do Simon Schama que tem um episódio inteiramente dedicado a Caravaggio. Fui rever o trecho da análise do quadro que podem ver aqui abaixo, a partir dos 35s.

Trecho de análise de "The Calling of St Matthew" por Simon Schama no documentário Power of Art (2006).
“So instead of setting the calling in some fantasy Holy Land, Caravaggio beams Jesus down to a dim room in Rome. It's a dive, really. Torn paper shades on the windows and characters from the cardsharps and other low lives gather to witness the big moment.” [1]
Para Simon Schama a janela é simplesmente uma fonte de luz de preenchimento, para criação de luz difusa. Ou seja a janela estaria ali "coberta de papel" para criar uma entrada de luz mais suave no local. Isto é também referido por outros autores, em várias enciclopédias de arte.
“The light has been no less carefully manipulated: the visible window covered with oilskin, very likely to provide diffused light in the painter's studio”
Ou seja aquela seria uma janela real no estúdio no qual Caravaggio terá encenado a cena e pintado o que estava a ver. E depois de ler o artigo "Inferring Caravaggio's studio lighting and praxis in The calling of St. Matthew by computer graphics modeling" [3] restam-me poucas dúvidas sobre o facto de a cena ter sido mesmo encenada num lugar real, nomeadamente para se conseguir ter uma leitura mais fidedigna do desenho da luz.

"Inferring Caravaggio's studio lighting and praxis in The calling of St. Matthew by computer graphics modeling" [3]

Assim o que Schama nos diz é que esta janela é parte de um enquadramento que sugere realidade a quem vê. Aquela janela não é parte de uma composição, ela é antes parte integrante daquele lugar, sala ou estúdio.
"What Caravaggio wanted was for people to come into the darkness, in this space, and suddenly find themselves in the presence, not of a painting at all, but a real event. Seeing is believing." [1]
Igreja de San Luigi dei Francesi onde se encontram, à esquerda A Invocação de São Mateus, ao centro São Mateus, e à direita Martírio de São Mateus (1599-1600).

Mas John Berger nem sequer se questiona sobre isso mesmo. Para ele não há dúvida que aquela janela pretende apenas conferir realismo ao local em que a cena, o momento histórico, acontece,
"And behind the drama of this moment of decision is a window, giving onto the outside world. In painting, up to then, windows were treated either as sources of light, or as frames framing nature or an exemplary event outside. Not so this window. No light enters. The window is opaque. We see nothing. Mercifully we see nothing because what is outside is threatening. It is a window through which only the worst news can come; distance and solitude." [2]
Recorte do elemento janela da A Invocação de São Mateus (1599) Caravaggio

O que fica é que Caravaggio era um inovador e quebrou com muitos tabus. As suas cenas não eram iluminadas totalmente, deixavam muito na escuridão que obrigava o espectador indagar-se. Por outro lado os seus personagens não eram baseados em aristocratas, religiosos ou santos, mas eram antes feitos de corpos comuns, com músculos, pêlos e sujidade. Caravaggio era um contador de histórias e um criador de Experiências. Não lhe interessava os meros símbolos, o que ele procurava era a realidade bruta, para através dela chegar bem dentro das cabeças das pessoas. Nesse sentido o seu maior legado continua a ser ainda hoje a introdução da luz fortemente contrastada, o chamado chiaroescuro na pintura, pois foi através dele que este conseguiu gerir o drama das experiências criadas em cada tela.


[1] BBC, Caravaggio, in Simon Schama's The Power of Art (2006), min. 15:20
[2] John Berger,  "And Our Faces, My Heart, Brief as Photos", Pantheon Books, 1984, p. 81-82.
[3] Stork, D., Nagy, G., (2010), "Inferring Caravaggio's studio lighting and praxis in The calling of St. Matthew by computer graphics modeling", in Proc. SPIE 7531, Computer Vision and Image Analysis of Art, 753105 (February 16, 2010); doi:10.1117/12.840569

esvaziando imagens

Ross Ching partiu do conceito criado por Matt League na área da fotografia Empty LA para criar o seu conceito Empty America que consiste em retirar carros de estradas normalmente muito movimentadas. O trabalho de Ching distingue-se por passar da imagem estática à imagem em movimento. Ching é licenciado em Cinema pela Universidade do Estado de San Diego.


Apesar de tecnicamente ser o mesmo efeito de League o impacto é distinto. O trabalho de League é gerador de uma atmosfera mais inquietante que o de Chin e isso naturalmente prende-se com a menor quantidade de informação que temos numa imagem única versus várias imagens. Ambos os trabalhos nos interrogam, mas o facto de continuar a existir movimento natural do vento, das nuvens, dos semáforos cria uma espécie de esperança. Esperança de que uma centelha de vida ainda exista por ali. Já em League sendo estático essa esperança não surge, e por isso estranha-se mais, incomoda-nos mais. Depois o adicionar da música com um carácter ligeiro, ambiente, e sem grande expressividade acalma-nos e relaxa-nos face ao que estamos a ver.


San Francisco Time Lapse é o seu segundo trabalho com esta técnica. O primeiro tinha sido exactamente sobre LA, Running on Empty (2010). Desta vez Ching foi pedagógico e criou um vídeo explicativo sobre o modo como o fez. Como poderão ver abaixo a técnica é extremamente simples, mas com efeitos poderosos. O trabalho é fundamentalmente desenvolvido no Photoshop e After Effects. O Photoshop serve para criar as áreas vazias, e o After Effects para garantir a mistura com os efeitos de time-lapse. O essencial aqui é a base de qualquer processo de animação, muita paciência e muita atenção ao detalhe.




Making of

outubro 15, 2012

a arte de Lois

Depois de ontem deixar aqui uma reflexão à volta do talento surgiram algumas conversas no Facebook a propósito do talento não inato para o desenho. Nesse sentido trago aqui o trabalho da ilustradora holandesa Lois van Baarle (1985). A minha grande questão não é saber se o talento é inato, mas é antes dar conta da motivação intrínseca, da necessidade de encontrarmos a nossa predisposição para o mundo porque acredito que é ela que leva o criador a ir muito além dos demais. Interessou-me a arte de Lois mas interessou-me também as suas palavras sobre si e sobre o seu trabalho que conferem o que eu penso. Deixo abaixo essas palavras por entre alguns dos seus melhores trabalhos de ilustração.

Este é um dos últimos trabalhos e demonstra um domínio da luz impressionante.

Alguns de vocês conhecerão Lois van Baarle da animação de fim de curso na Utrecht School of the Arts, Trichrome Blue (2009), mas é na ilustração que ela brilha, e é interessante ver como ela conseguiu criar uma marca própria. Se virem os vários trabalhos da artista no DeviantArt poderão perceber a sua identidade a evoluir no tempo. Quando vemos os seus desenhos actuais sente-se imediatamente a forma dos rostos e olhos e os temas sempre muito ligados à água e às formas enroladas. As cores são outro ponto importante, muito saturadas e a atirar para o excesso de vermelho e laranjas. Por outro lado ela controla muito bem os altos níveis de saturação através da luz, criando zonas de sombra muito expressivas o que contribui para uma dramatização das cenas e demonstra também o amadurecimento da sua arte. É ainda muito interessante analisar o modo como ela desenha a forma feminina, muito mais próxima da forma feminina natural, em forma de pêra invertida. Ancas largas e peito mais delgado em contra-ciclo com o que alguns artistas masculinos nos costumam presentear.



Motivação Intrínseca: [link]
I’ve been drawing my entire life, ever since I was a tiny little kid. It was always something I enjoyed doing and put a lot of time into, which helped me to develop my skills gradually. I started drawing digitally with a mouse when I was 15 and got my first tablet when I was 16, after which I spent a sizeable portion of my free time drawing digitally. All of this was self-taught. When I was 18 I decided to study animation in college, which taught me how to animate, but didn’t teach me a great deal about drawing (besides the influence that animating naturally has on how someone draws). So in short, I taught myself how to draw by spending a lot of time doing it.


Manter-se Motivada: [link]
A few people have approached me with the question of how I stay creative and motivated when I'm in an artblock (which is a phase where you feel unable to draw). Personally, since creating artwork and animation is my profession, I have no choice but to keep creating things, so it's impossible for me to stop drawing entirely even if I don't feel like it. I think it's important to always keep drawing and stay productive even if you are not happy with the results. Usually you'll look back on what you've made later on and be proud of it; at the very least it's important to keep moving forward and strive for improvement. It also helps to find a starting concept for your artwork, such as drawing from life, doing a commission, or participating in forums that choose random subjects for people to sketch. I've always found that making rough sketches (usually based on reference photos) helps me to overcome feelings of artblock and keeps my creativity flowing.



Julgo que para ajudar a criar um ambiente propício à envolvência que estas imagens da Lois merecem, deixo a sua curta de animação, Trichrome Blue, para verem ou reverem, vale sempre a pena rever.

Trichrome Blue (2009) de Lois van Baarle

outubro 14, 2012

"O Talento é Sobrestimado"

Talent is Overrated. What really separates world-class performers from everybody else é um livro de Geoff Colvin que me obrigou a imensa reflexão. Essencialmente porque numa primeira parte me obrigou a analisar concepções contrárias às que defendo sobre a aprendizagem e a criatividade, e numa segunda parte volta a aproximar-se das minhas ideias de origem. O livro de Colvin foi baseado num artigo inicialmente escrito para a revista Fortune, da qual é editor chefe.


Assim o que Colvin começa por dizer neste livro é que o talento é uma espécie de desculpa que nós encontrámos para deixar de desenvolver determinadas competências. E que qualquer um de nós pode desenvolver as competências que quiser, desde que lhe dedique um esforço considerável (as tais 10 mil horas de Andrew Ericsson). Baseia todo este discurso na análise da performance do ser humano. Um simples demonstrador da performance da técnica face ao talento inato sobressai quando olhamos para a constante quebra de recordes mundiais desportivos. Ainda este ano o NYTimes realizou um excelente trabalho de infografia em que demonstrava a diferença entre o recorde dos 100 metros natação, de 2008 para 1896 com uma distância de quase 50%.

Um corrida (imaginária) com todos os medalhados de sempre (NYT)

Colvin continua com os exemplos de Mozart e Tiger Woods, demonstrando que ambos não eram nenhum talento especial em crianças, mas que a grande diferença entre eles e os demais esteve no facto de terem ambos em casa professores da profissão. Pais que não só os fizeram treinar, como os orientaram na melhor forma de o fazer desde muito pequenos, no fundo foram os seus primeiros professores. Nenhum deles terá inovado muito antes dos 20 anos, mas chegados a essa idade a quantidade de horas acumuladas de trabalho prático de qualidade desenvolvido por ambos terá feito com que estes se distinguissem dos demais.


Para suportar ainda mais esta ideia vai buscar nada menos que Laszlo Polgar, um defensor extremista da genialidade fabricada. Polgar teve três filhas com o simples intuito de as tornar campeãs mundiais de xadrez, tendo começado a treinar todas elas desde bebés, e dedicando-se ele e a mulher apenas e só à educação delas. As três irmãs são hoje heroínas da Hungria, conseguiram chegar as três a grandmasters, conseguiram abrir a prática às mulheres, ultrapassaram muitos homens, foram modelos, e conseguiram grandes feitos. Mas no FIDE Top 100 a filha mais nova, Judit Polgar, foi a que chegou mais alto e nunca passou do 8º lugar, em 2005. E aqui começam as minhas dúvidas sobre todo este discurso.

As três irmãs Polgar

Ainda assim uma das conclusões que Colvin retira de tudo isto parece-me a reter, e que tem que ver com o conceito de Prática Deliberada ou intencional já definida antes por Andrew Ericsson. Para compreender este tipo de prática Colvin define-a em 5 passos,
  1. A prática intencional deve ter como objectivo melhorar a qualidade do trabalho.
  2. Múltiplas repetições. Primeiro definir o que é preciso melhorar, e depois ver se as acções levam a melhorar, e depois trabalhar intensivamente para melhorar.
  3. É preciso ter feedback dos resultados do trabalho. Se não é impossível saber como continuar a melhorar.
  4. O trabalho deliberado requer esforço mental. A intensa busca por melhorar só se consegue com focagem em profundidade.
  5. A prática deliberada não cabe em descrições românticas. É dura porque não é o momento em que treinamos aquilo em que já somos bons, mas antes aquilo em que ainda não somos.
Para suportar tudo isto dá ainda um exemplo, para mim muito mais interessante do que o de Lazlo Polgar, e que já explicarei porquê. O exemplo é de Benjamim Franklin (1706-1788) um dos fundadores dos EUA, apelidado de homem da renascença dadas as suas reconhecidas polivalências: escritor, político, cientista, inventor, activista, satirista, diplomata, entre outras coisas. O exemplo que Colvin nos traz é sobre o modo como Franklin aprendeu a escrever. Um dia o seu pai disse-lhe que os seus textos eram superiores aos dos seus colegas em conteúdo mas falhavam na forma e por isso acabavam por não conseguir fazer passar as suas ideias. Franklin resolveu então começar a trabalhar a sua escrita. Transcrevo agora parte directa da autobiografia de Benjamim Franklin,

Imitating the Style of the Spectator, (1789), Benjamim Franklin
About this time I met with an odd volume of the Spectator. I had never before seen any of them. I bought it, read it over and over, and was much delighted with it. I thought the writing excellent, and wished, if possible, to imitate it. With that view, I took some of the papers, and making short hints of the sentiment in each sentence, laid them by for a few days, and then, without looking at the book, tried to complete the papers again, by expressing each hinted sentiment at length and as fully as it had been expressed before, in any suitable words that should come to hand. I then compared my Spectator with the original, discovered some of my faults and corrected them. But I found I wanted a stock of words, or a readiness in recollecting and using them, which I thought I should have acquired before that time if I had gone on making verses; since the continual occasion for words of the same import, but of different length, to suit the measure, or of different sound for the rhyme, would have laid me under a constant necessity of searching for variety, and also have tended to fix that variety in my mind, and make me master of it. Therefore I took some of the tales and turned them into verse; and, after a time, when I had pretty well forgotten the prose, turned them back again. I also sometimes jumbled my collections of hints into confusion, and after some weeks endeavored to reduce them into the best order, before I began to form the full sentences and compleat the paper. This was to teach me method in the arrangement of thoughts. By comparing my work afterwards with the original, I discovered many faults and amended them; but I sometimes had the pleasure of fancying that, in certain particulars of small import, I had been lucky enough to improve the method or the language, and this encouraged me to think I might possibly in time come to be a tolerable English writer, of which I was extremely ambitious.
O que podemos ver neste texto, é exatamente aquilo que Andrew Ericsson disse, e Colvin aqui repete, como Prática Deliberada. Trabalhar repetidamente em busca da melhoria, constante, sem parar nunca. Ora isto levanta um problema claro, e que ficou já bem evidenciado no exemplo das filhas de Lazlo Polgar. Estas chegaram aos 20 anos e desistiram de competir no xadrez de alto-nível. A explicação é dada por elas. Queriam ter filhos, queriam conhecer mundo, queriam mais do mundo em que viviam, e o xadrez não as preenchia. Porque aliás num outro exemplo que Colvin dá a respeito de grandes músicos, através de inquéritos realizados, aquilo que custava mais a estes músicos, era a parte em que treinavam sozinhos além dos períodos de treino normal na orquestra. Mas eram exatamente estes músicos aqueles que se destacavam dos demais, porque treinavam muito além dos outros. Aliás aqui não posso deixar de citar um exemplo popular português, Cristiano Ronaldo.

A incansável busca pela perfeição é dolorosa e este é para mim o elemento central de tudo. É o ponto que deita por terra esta conceptualização totalmente errada do ser humano nascido tal uma tábua rasa à espera de ser moldada através de práticas radicais behavioristas. É possível criar grandes profissionais, Polgar demonstrou-o, mas não é possível criar génios. Não é possível fazer mentes brilhantes com as nossas mãos apenas. E porquê? Bem a resposta é muito simples, e a resposta está num livro de Ken Robinson, The Element que nos fala de descobrirmos o elemento no qual nos sentimos bem, no qual sentimos que podemos contribuir para a sociedade, no qual os outros que nos rodeiam também acreditam que podemos retribuir. Colvin dá exemplos de grandes mentes que vieram de pequenas cidades, e diz que isso pode ter sido um bom estímulo, porque num meio pequeno é mais fácil destacarmo-nos, sermos elogiados pelo que fazemos bem, o tal feedback não é apenas no sentido de explicar o que devemos melhorar, mas é também para nos levar a continuar, a enfrentar o doloroso esforço da prática deliberada.

Os seres humanos não são tábuas rasas

Ora o que falamos aqui vem de encontro ao que ainda esta semana defendi na conferência COIED e que é o factor de sermos todos diferentes, termos todos talentos únicos. Como poderíamos ser todos diferentes e únicos por fora, e por dentro sermos totalmente iguais e moldáveis como nos é dito aqui?! Agora não podemos sobrestimar os talentos, e aqui em total acordo com Colvin. Precisamos verdadeiramente é de encontrar em nós o mais cedo possível aquilo que nos move, que nos faz correr incansavelmente. E é por isso que considero o exemplo de Benjamim Franklin totalmente diferente de Lazlo Polgar, porque o que Franklin fez partiu totalmente da sua motivação intrínseca (Drive). A força de querer fazer, impeliu-o para o seu elemento e deu-lhe força para continuar a tentar, a desenvolver a escrita e a verbalização de ideias.

Slides da minha comunicação na COIED

Nada devia ser mais importante na Escola do que ajudar os alunos a encontrarem-se, a descobrirem aquilo que mais gostam de fazer e em que são verdadeiramente dotados. É claro que o caminho de lhes dar a conhecer o mundo é necessário, mas depois é preciso ir além disso, é preciso trabalhar individualmente com cada criança, e ajuda-la a encontrar-se. Não é possível ajudar crianças a serem geniais em turmas de 20 ou 30 alunos. Serão apenas medianos se não tiverem alguém ou pais que se dediquem de amor e alma à educação destes. Porque o talento, até pode estar lá, mas se não for ajudado a estruturar-se nunca florirá em força. E para isso temos de ser capazes de lhes proporcionar um ambiente próprio para tal. E aqui Colvin vai buscar os estudos de Mihaly Csikszentmihalyi da Universidade de Chicago, um dos mais importantes investigadores no campo da criatividade para nos dizer, a partir da sua investigação,
“why it's easier for some adolescents than others to sustain concentrated, effortful study, the core of deliberate practice and high achievement. The research focused on the students’ family environments, evaluating them on two dimensions, stimulation and support. A stimulating environment was one with lots of opportunities to learn and high academic expectations. A supportive environment was one with well-defined rules and jobs, without much arguing over who had to do what, and in which family members could rely on one another. The researchers classified family environments as stimulating or not and supportive or not, creating four possible combinations. Adolescents living in three of those combinations reported the typical low-interest, low-energy experience of studying. But in the fourth combination, the environment that was both stimulating and supportive, students were much more engaged, attentive and alert in their studying.” (p.174)
Ou seja, o talento tem de estar lá, mas precisa de ser explorado. É preciso ajudar a pessoa a conseguir chegar a ele. Assim como temos de ajudar uma criança a aprender a comer com o garfo, a aprender a andar de bicicleta, e isso requer tempo e atenção, também temos de a ajudar a aprender a encontrar-se. Para isso não basta estimular a curiosidade, é preciso garantir apoio, muito apoio. Só o feedback constante, mas verdadeiro, pode levar a que uma mente jovem se consiga encontrar.

outubro 13, 2012

almas fixadas a óleo

Karien Deroo é mais uma artista belga que aqui trago depois de ter falado de Johan Van Mullen há poucas semanas. Deroo licenciou-se em Design Gráfico na Escola de Arte St. Lucas, Gent e trabalhou alguns anos como designer e ilustradora até se cansar e começar a dedicar à pintura. As suas grandes influências são Rembrandt, Velasquez, Van Dyck, Caravaggio, John Singer Sargent e William Bouguereau. O que mais gosto em Deroo é o trabalho na pele, as cores difusas e pastelizadas, e os fundos atmosféricos que aliados à mudaneidade dos personagens lhe confere uma leveza angelical configurando o seu trabalho dentro da corrente denominada de realismo/realismo mágico.

Shiver
Auto-didatismo:
"I am self-taught, and find pleasure in discovering those techniques myself. Social contact in a school is nice but you should not be distracted from the real thing. I do not think that you can learn the techniques in a school around here. I learned a lot from certain blogs and websites on the Internet." Karien Deroo
Hallo II

The Unexpected
A Técnica:
"In my view technique is a way to express something, not an end in itself. I can spend hours in books and on websites to find out about how the painters of previous centuries worked, what colors and what binder, for instance, they used. The effect you achieve with a technique is the most important. You can learn from the old masters how human skin can sparkle with life, how you should paint the folds of a dress or how metal can shine on canvas." Karien Deroo 
Before it's all dark (the promenade)

fight (the boxer)
A mensagem:
"When I look at people and when I talk and listen to them, I want to reach their souls, to leave the surface behind and go deeper to find their inner beauty. Since I usually paint portraits, I always search for images of people who have a very silent expression on their faces and in their attitudes. They are in their inner world, looking out with direct stares, or looking away, dreamily captured in their own world. You don’t know what they’re thinking and it’s in this moment, I believe, that you can see their soul and make a connection with your own soul. I want people to have a connection with my paintings, through their soul." Karien Deroo
Our father

The Neighbours

Study of an Angel

[via The Curious Brain]

outubro 12, 2012

ficção científica na rede

Nos últimos tempos as curtas de ficção científica não param de chegar à rede, e cada uma com mais qualidade que a precedente. Algumas mais no campo estrito dos VFx - World Builder (2008), Gift (2010) ou  Tears of Steel (2012) - outras conseguindo surpreender em termos de argumento - Sight (2012), Grounded (2012), Gamma (2012), Lost Memories (2012) ou Blind (2011) - de forma mesmo mais interessante do que muito do que se tem feito recentemente no cinema tradicional.


Neste post deixo dois novos filmes, True Skin de Stephan Zlotescu e Plurality de Dennis Liu. Interessante que ambos os filmes se apresentem mais como introduções a histórias maiores, o que indicia aqui uma nova corrente a surgir na net. Parece assim que neste momento quem pretende entrar no domínio da grande produção de longas parece querer fazê-lo apresentando-se com um trabalho curto mas de grande envergadura, que atraia as atenções de produtores e investidores através da viralidade na net. Para mim é sem dúvida o mais correcto. O mais importante num CV de um artista, não são as linhas nem os cursos ou workshops, mas o seu portefólio.


Assim o primeiro filme, True Skin, é um caso clássico de bom uso dos VFx. Zlotescu consegue produzir uma curta com níveis de produção praticamente ao nível dos grandes estúdios, com pequenas falhas aqui e ali, mas ainda assim criando um resultado muito interessante. Tem a particularidade de ter sido filmado em Bangkok o que contribui para o tom Blade Runneresco do filme. A história se desenvolvida pode tornar-se muito interessante também.

True Skin (2012)

Plurality pelo seu lado consegue ambos, num trabalho que demorou dois anos a concluir consegue VFx totalmente credíveis e profissionais. Por outro lado engendra um bom enredo, não inovador, mas que nos surpreende. Claro que termina sem dar grandes respostas, a piscar o olho à viralidade e assim conseguir que chovam pedidos para que a curta seja transformada numa longa. Plurality entra pelo 1984 adentro passa pelo Minority Report e deixa-nos a reflectir sobre a privacidade, a segurança, e o futuro das tecnologias de comunicação.

Plurality (2012)

outubro 11, 2012

ARART, Arte via AR

Não é nada de novo, mas de tão bem feito que está, parece. ARART é uma aplicação de realidade aumentada desenvolvida por três artistas japoneses Kei Shiratori, Takeshi Mukai e Younghyo Bak que procura injectar vida em obras de arte, tendo-se apresentado para já com com um leque de quadros famosos como Mona Lisa de Leonardo da Vinci, Rapariga com Brinco de Pérola de Johannes Vermeer, A Grande Onda de Katsushika Hokusai, ou os Doze Girassóis numa Jarra de  Van Gogh.


Porque é que ARART é importante? Porque pela primeira vez podemos ver AR a ser utilizada com robustez suficiente para acreditar que será possível seguir por este caminho. Apontar o iPhone/iPad para a tela seja numa revista ou no ecrã do computador e ter um reconhecimento imediato da obra, não se perdendo a animação ao mais leve movimento é muito importante. Além disso tecnicamente foi inserida ainda uma camada de interactividade, no caso da música. Podemos interagir com os discos de vinyl ou CDs, parar, rodar, por a tocar.


Porque é para mim importante? Porque o resultado é francamente refrescante e enriquecedor. Ou seja, os criadores não procuraram ir pelo lado tradicional de adicionar novas camadas de informação aos objectos, limitaram-se a brincar, a jogar com a matéria que está a nossa frente. Nesse sentido limitaram-se a gerar pequenas animações, dentro do género que nos temos vindo habituar no quadro dos novos gif's animados. Mas é na introdução dessa camada de animação ligeira, subtil e que se repete, que está o ganho em termos estéticos para a aplicação e para a obra. Sentimos que nos aproximamos mais da obra, sem contudo romper o seu mistério, o seu valor. Sentimos que de certo modo nos foi dado acesso a um pouco mais, como se pudéssemos espreitar através de um buraco de uma fechadura que esteve fechado por muitos anos.

Parte da animação que se pode ver no iPhone/iPad, aqui em gif animado

É a magia do movimento da imagem, a magia da animação que se reflecte numa espécie de novo fulgor, nova vida para estas obras. Mas claramente que é também a beleza da execução do trabalho em AR. Porque sem a perfeição da animação que aqui temos, toda a experiência se poderia ter gorado. Vendo isto torna-se inevitável pensar que os museus irão deixar de ser o que são. Que os museus do futuro terão muito mais para nos oferecer em termos de experiência. Também tem o potencial de ajudar os livros de papel a sobreviver mais algum tempo, mas nesse caso acredito que mais cedo ou mais tarde será o próprio livro a migrar para o formato digital.

A Grande Onda de de Kanagawa (1829-32) de Katsushika Hokusai

Gostei particularmente de Rapariga com Brinco de Pérola porque a animação está totalmente enquadrada no espírito do quadro, assim como gostei de A Grande Onda de Katsushika Hokusai pelo modo como me surpreendeu. Vale a pena experimentar, até porque a App é grátis.

Filme promocional da aplicação