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dezembro 22, 2018

Lógica no suporte da narrativa

"Return of the Obra Dinn" (2018) é o último jogo de Lucas Pope, mais conhecido pelo brilhante "Papers, Please" (2013), que volta a colocar-nos no lugar de um profissional que tem de executar um trabalho, neste caso somos um perito de uma agência de seguros que tem de fazer um relatório sobre o que se terá passado num barco perdido em alto-mar no século XIX, que entretanto deu à costa. O jogo assume o velho desenho das histórias de detetives, e nós assumimos o papel do detetive, só que desta vez não temos de descobrir uma morte mas sessenta.





Dividiria "Return of the Obra Dinn" em dois grandes momentos: a descoberta de todas as mortes ocorridas no barco, à medida que vamos descobrindo cadáveres, que por meio de uma bússola mágica nos permitem ver o momento, visualmente congelado, em que morreram, e assim vão dando estampa a todas as páginas do livro, que vamos utilizando para tomar notas para enviar à seguradora; e o segundo, o da decifração de quem são essas pessoas e como é que morreram. O primeiro momento tem a particularidade de acontecer em modo reverso, seguindo a abordagem narrativa de "Memento" (2000), o que contribui para aumentar a complexidade do segundo, na decifragem dos eventos. Estes dois momentos são responsáveis pela criação de um terceiro, apenas no nosso plano mental, que é a reconstrução da história de como tudo aconteceu e que acaba sendo a grande motivação para jogar até ao final.

O passar do decifrar de 1 morte para 60 não é mera quantidade para aumentar a duração do jogo, é antes responsável pela criação de uma teia vasta e profusa de elementos, automaticamente ligados por estarem todos num mesmo espaço, o barco, mas órfãos por pertencerem a pessoas que não conhecemos e já estão mortas. Cabe-nos a nós, enquanto investigadores, reconectar todos os elementos, conjecturar a partir das evidências, dar-lhes lógica e inseri-las na grande narrativa do que aconteceu ali. É isto o jogo, e por isso se a base poderia facilmente ser passada a outro formato não-digital, a dimensão do que está em jogo torna isso completamente impossível, ainda que nos vejamos obrigados a recorrer a caderno de notas e lápis reais para nos ajudar a reconstruir o que vamos experienciando no jogo.

Não se pode dizer que seja um jogo revolucionário, muito longe até de algumas resenhas que se viram nalguns sites de referência dizendo que pela primeira vez se sentiram verdadeiros detetives. Basta recuar ao brilhante "The Last Express" (1997) de Jordan Mechner, ou mais recentemente "LA Noire" (2011) ou "Sherlock Holmes: Crimes and Punishments" (2014). Mas e o que dizer da enorme quantidade de jogos de aventura gráfica dos anos 1990 que usavam e abusavam do mistério e do detetivismo para motivar o jogador na progressão narrativa, dos quais temos o grande expoente "Myst" (1993), mas também "7th Guest" (1993) ou "Phantasmagoria" (1995), e porque não falar dos seus sucessores, os walking-simulators, nomeadamente com "Dear Esther" (2012) e "Gone Home" (2013). Todos estes exemplos dão conta de uma vertente de excelência do jogo, o "storytelling ambiental", mas não se fica por aí. Numa outra vertente, um outro jogo em que pensei bastante, à medida que ia avançando, foi "Her Story" (2015), pelo modo intrincado do design de todo o sistema que interconecta as centenas de indícios. E por fim, no campo específico da forma, das sequências congeladas em 3d que nos permitem investigar o espaço em redor de cada momento e obter indícios, embora aqui não saiba dizer quem chegou primeiro, já que os jogos saíram ambos este ano, podemos olhar para "Detroit" (2018) de David Cage que explorou exatamente o mesmo conceito.

Ou seja, "Return of the Obra Dinn" não inova num sentido radical, mas também não tinha de o fazer. O que se pedia a Lucas Pope era uma experiência ludo-narrativa, e essa temo-la. Resta-nos avaliar se enquanto tal nos faz sentir, e se o faz, como o faz, se ocupa suficientemente a nossa mente e se se regista nas nossas memórias. Quanto a isto, não há dúvidas, a resposta é cabal: "Return of the Obra Dinn" é uma experiência de grande prazer e objetivamente inesquecível. O primeiro embate é de enorme estranheza, todo o universo visual cria distância, mas à medida que vamos investindo tempo no jogo e vamos assimilando as suas mecânicas, compreendendo as suas vontades e motivações, vamos sentindo-nos em casa, com o que vem o desejo de ali permanecer mais e mais tempo, ao que se seguem as descargas de adrenalina do suspense e mistério e da dopamina pela descoberta das evidências e conexões. "Return of the Obra Dinn" é um artefacto complexo, mas elaborado num detalhe imensamente cuidado, que vai da lógica do sistema à plástica audiovisual, incluindo a banda sonora, criando uma experiência única.

dezembro 20, 2018

Origens da Comunicação Humana

Michael Tomasello é psicólogo de desenvolvimento e diretor do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology, apesar da sua investigação não ser na área da Comunicação o seu trabalho, e em particular este livro, “Origins of Human Communication” (2008), é um contributo fundamental para a compreensão daquilo de que a Comunicação é feita. A pergunta de partida é muito simples: sendo os chimpanzés reconhecidamente tão inteligentes, porque é que eles não falam?


O livro inicia com uma discussão assente numa grande variedade de estudos à volta dos chimpanzés, focada no modo como estes comunicam usando a linguagem não-verbal, principalmente o ato de apontar. Tomasello conclui que estes não apontam uns para os outros, pelo menos de forma consciente ou de modo intencional, e apesar de poderem ser ensinados a apontar, quando aprendem fazem-no apenas para realizar pedidos (normalmente para pedir comida).


Prosseguindo a discussão no campo dos humanos, Tomasello demonstra por um largo conjunto de estudos, e exemplos, que nós utilizamos o ato, ou gesto, de apontar como forma de comunicar entre nós, dando conta da complexidade envolvida neste ato aparentemente tão simples, mas capaz de conduzir à produção de sentidos altamente elaborados, mas que isso só é possível graças a uma condição: o “common ground”. Ora vejamos:
“All the instances of pointing and pantomiming just recounted involve one person simply directing another’s attention or imagination to some referent. The recipient then looks to the indicated referent, or imagines it, and from this discerns what the communicator is attempting to communicate—anything from “Are you waiting for the bathroom?” to “I’d like my cheese grated.” How do we do it? Where does this communicative complexity come from, if it is not “in” the protruding or sprinkling fingers? The answer is of course “context,” but this only takes us so far. Thus, great apes often operate in complex social contexts without seeming to communicate so richly.” (p.74)
Então o que é que acontece com os humanos, porque é que o seu contexto é distinto?
“For humans the communicative context is not simply everything in the immediate environment, from the temperature of the room to the sounds of birds in the background, but rather the communicative context is what is “relevant” to the social interaction, that is, what each participant sees as relevant and knows that the other sees as relevant as well—and knows that the other knows this as well, and so on, potentially ad infinitum. This kind of shared, intersubjective context is what we may call, following Clark (1996), common ground or, sometimes (when we wish to emphasize the shared perceptual context), the joint attentional frame. Common ground includes everything we both know (and know that we both know, etc.), from facts about the world, to the way that rational people act in certain situations, to what people typically find salient and interesting (Levinson 1995).” (p.74) 
Deste modo, o nosso ato de apontar consegue funcionar com bastante maior elaboração, expandindo a comunicação, do simples “pedir” dos chimpanzés para três funções básicas: “solicitar (solicitando ajuda); informar (oferecendo ajuda na forma de informações úteis); e partilhar emoções e atitudes (unindo-se socialmente pela expansão do common ground)”. Tomasello defende assim que é o facto de termos desenvolvido a capacidade, e a necessidade, de comunicar que nos levou a desenvolver a linguagem, que acaba não sendo mais do que uma elaboração simbólica sobre estes três modos. No fundo, é a capacidade de estabelecer um “common ground” que potencia a complexificação do gesto e assim da comunicação e por sua vez do próprio tecido social humano, que é fundamentalmente baseado na nossa motivação para a cooperação.

Isto não é propriamente revolucionário para quem trabalha em comunicação, já que a sua definição essencial é exatamente “colocar em comum”, e o contexto elaborado de que aqui se fala não é mais do que a Pragmática da Comunicação. O que é aqui mais relevante é este ato de colocar em comum, ou seja, a comunicação, ser responsável pela criação da linguagem humana e ao mesmo tempo por definir o fino fio que separa o humano das restantes espécies. Ou seja, a capacidade de informar e partilhar, a “intencionalidade partilhada” que é providenciada pela “leitura mental recursiva”, potencia a produção de pontes entre os indivíduos, acabando por fomentar a linguagem que por sua vez não acontece em mais nenhuma espécie.

novembro 17, 2018

A deceção com Ishiguro

Vi a versão homónima — "Never let me go" — cinematográfica quando saiu, em 2010, e lembro-me de não compreender a razão de tanto entusiasmo por parte da crítica. Recordo-me de ter gostado do ritmo e ambiente, da clara antítese para com outros filmes de ficção-científica pela ausência de futurismos tecnológicos, mas ao mesmo tempo nada da história, dos seus personagens, fez muito sentido para mim. Pensei na altura que o facto de não ter lido o livro me tinha deixado à porta do significado e por isso condescendi. Acabado agora o livro, sinto exatamente o mesmo que senti quando vi o filme, gostei do suspense, gostei da fragilidade e abandono, mas a mensagem continua distante. Li, entretanto, várias análises, incluindo a de James Wood e mais algumas académicas, mas não fiquei convencido com os argumentos apresentados em defesa da obra.


********** SPOILERS *************

O texto trata de um tempo igual ao nosso, mas numa realidade paralela em que a clonagem existe para servir as necessidades de transplantes de órgãos. Crianças clonadas, sem pais, são criadas e educadas em escolas até aos 16 anos, para depois seguirem, primeiro um processo de ajuda aos colegas mais velhos em pós-operatórios e períodos de convalescência entre extrações de órgãos, e depois passarem também a ser dadores, processo que pode chegar até à quarta ronda de extração, altura em que por norma, "completam o ciclo", morrem.

Olhando para esta síntese, temos uma premissa regular de ficção-científica, que trabalha um tópico quente do início deste milénio, a clonagem, e procura realizar alguma crítica. Contudo o tratamento do tópico por parte de Kazuo Ishiguro deixou-me completamente incrédulo sobre todo o cenário apresentado. É interessante que Ishiguro, apesar de trabalhar a mesma premissa do filme "The Island" de Michael Bay, que saiu exatamente no mesmo ano do livro, tenha seguido uma abordagem completamente distinta. O filme de Bay segue uma história-conceito de Caspian Tredwell-Owen, que não foi desenvolvida para além do filme, no entanto a premissa é muito próxima de "Never Let Me Go". Não interessa o tradicional "quem copiou quem" até porque tendo saído no mesmo ano, os tempos de produção não permitiriam cópias, mas interessa, mais ainda a esta distância no tempo, verificar como o tema mexia com a sociedade desse tempo, a ponto de dois objetos culturais terem sido criados e terem conseguido gerar grande impacto. Em 2003 a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado (1996), morria gerando grande comoção e discussão internacional em redor da clonagem, tornando os tempos propícios à criação de alegorias.

Indo agora ao cerne das minhas objeções. “Nunca me deixes” apresenta-se como uma alegoria, o que serve a todo o tipo de interpretações, desde os que defendem que Ishiguro usa a clonagem como mero pretexto para dissertar sobre a nossa própria mortalidade, aos que consideram que funciona como crítica ao processo e seus impactos. Muito honestamente, considero a alegoria completamente falhada, por falta de sustentação do cenário apresentado. Clones ou não, refletiam, questionavam-se, tinham curiosidade pelo pensar do outro, mas eram incapazes de questionar o seu desígnio? A única explicação é que sendo clones, eram apenas em parte humanos, com genes transformados para se comportar como animais domesticados, mas assim sendo então qual o valor da alegoria?

Por várias vezes parei para comparar com outras alegorias, um dos processos muito usado por Saramago, mas a conclusão era sempre a mesma, não se podem criar alegorias para servir de espelhos conceptuais, que na base comparativa estejam adulteradas. A alegoria deve partir das mesmas condições do conceito que se pretende discutir, e depois então transformar as propriedades ou condições contextuais para apresentar os impactos possíveis. Ora neste caso temos um grupo de crianças impossíveis. Mesmo assumindo a ideia de órfão, são apresentadas como humanos ausentes de curiosidade, ausentes de ímpeto do ser — quem sou eu? porquê? como? Mesmo a busca pelos “possíveis” que seria algo fundamental num humano regular, querer conhecer a sua origem, clonado ou não existe sempre uma origem, é apresentado como mero fait-divers, pouco relevante!

Claro que poderia existir um conjunto de personagens mais acomodados, mais resignados, menos despertos, mas todos! Não existe um único personagem que questione! E no entanto eles não são mantidos fechados num mundo à parte, eles leem literatura, clássicos instigadores, eles veem cinema, seguindo os comportamentais clássicos de Hollywood. Não lhes faltam modelos para despertar a imaginação, para questionar a diferença entre eles e os outros, e essencialmente o porquê dessa diferença. Ao mesmo tempo, a escola em que são educados e vivem, assim como a partir dos 16 anos, a herdade em que aguardam serem chamados para cumprir os seus supostos papéis, não são guardadas, não existe qualquer sistema de repressão ou controlo. Eles estão ali porque para ali foram levados, e nada mais.

A alegoria é um total falhanço em termos de compreensão do que sustenta a existência humana. Erra completamente ao retirar aos personagens qualquer motivação, qualquer sentimento de auto-determinação, como se fossem meros envelopes de carne, vacas e porcos, à espera de seguir para o matadouro. Como é que se podiam apaixonar se não se sentiam como indivíduos? Isto é tanto mais ridículo quando o desígnio de Hailsham, um colégio especial como ficamos a saber no final através da personagem Madame, tinha por objetivo demonstrar que eles eram tão humanos como os outros. Chegado aqui, poderia até questionar se não teria sido essa a ideia de Ishiguro. Ou seja, partir de um processo de clonagem direcionado apenas para a produção de envelopes de orgãos, mas ausentes das essências do sentir humano. Mas nada disso é abordado, quando se fala nesta escola com boas condições para os clones, o contraponto não é que eles são desprovidos de sentir, mas antes que a sociedade prefere ignorar a sua existência, e por isso não existe como oferecer-lhes melhores condições. Por outro lado, se Ishiguro tivesse ido ao ponto do design da consciência dos clones, seria no mínimo estranho que o único elemento extirpado fosse a auto-determinação. Para quê manter toda a complexidade passional e desejo sexual quando não existia capacidade de reprodução. Ver o sexo como um prazer que se lhe permitia é tão primário, completamente incapaz de compreender o reverso totalmente masoquista. Contudo, nada disto está em discussão nesta obra, por isso não adianta estar aqui a realizar interpretações sobre algo que o autor não se dignou a pensar, ou se o fez, foi incapaz de colocar no texto.

Fechando, o livro lê-se muito bem, leva-nos até à última página sempre com a ânsia por saber mais, por compreender melhor quem são aqueles indivíduos, porque vivem ali e como, mas se nós leitores nos preocupamos, eles não. Se sentimos empatia, percebemos no final que isso é algo ausente no desenho dos personagens. Por outro lado, a escrita está longe de ser de um nível Nobel, já que é pouco estruturada e repetitiva, mais ao nível de um romance Young Adult. Mesmo admitindo que objetiva a mostrar o mundo pelos olhos da personagem, ela já é adulta quando fala e recorda, e não é propriamente uma personagem desconhecedora de cultura literária.

novembro 15, 2018

Uma Educação (2018)

Para alguns, o passado de Tara Westover não é tão negro como o pintam as badanas e os blurbs no livro, porque em sua casa havia televisão e telefone, ou havia dinheiro para ela ir para a Universidade, e até para fazer estadias fora dos EUA numa universidade inglesa (ignorando as bolsas a que recorreu). Contudo esses comentários passam ao lado daquilo que este livro verdadeiramente nos conta. Não é o tamanho do buraco de onde a Tara saiu que importa, é a sua jornada e o seu efeito transformador, é a luta contra as crenças da sua família em nome de uma Educação. Porque o livro não se chama "Educated" porque a Tara fez um doutoramento, o título vai ao âmago do livro, tal como a ilustração da capa americana, a Tara foi obrigada a atraiçoar os seus valores essenciais enquanto pessoa, definidos pelos seus criadores e cuidadores, para obter a sua Educação. Porque a sua Educação não foi mera montanha de esforço, foi um caminho de não-retorno.

"Tara Westover tinha 17 anos quando pela primeira vez entrou numa sala de aulas. Nascida numa família de sobrevivencialistas nas montanhas de Idaho, preparou-se para o fim do mundo armazenando pêssegos enlatados em casa e dormindo sempre com a sua "bolsa-pronta-para-o-pior". No verão, ensopava ervas para a mãe, uma parteira e curandeira, e no inverno recuperava ferro-velho para o pai. O pai proibia os hospitais, por isso nunca chegou a ver qualquer médico ou enfermeira (..) Um dia, sem qualquer educação formal, Tara começou a educar-se a si mesma."
Talvez o discurso ao longo do livro, com Tara a apresentar tudo com a maior das normalidades, mesmo quando de pura violência se tratava, ou de lavagem cerebral ou ainda de coação, não tenha facilitado a perceção do que estava em causa. Talvez a excecionalidade das suas capacidades e de alguns dos seus irmãos nos surpreenda e faça levantar o sobrolho. Mas o que me parece ter maior efeito nesta leitura é a dificuldade que temos em compreender o quanto o ser-humano é moldável, e o quanto os pais têm capacidade para modelar e condicionar o erguer das pessoas que são os seus filhos. E que por mais mal tratados que sejam, um filho não renegado, não tem nenhum outro lugar do mundo para onde voltar, para onde se dirigir, a quem seguir. Mais ainda, quando convencido de que o mal-trato é para seu bem, para o proteger e dar-lhe o melhor que o mundo tem para lhe oferecer. Neste sentido, não é por mero acaso que Tara se dedique a John Stuart Mill e cite os conceitos de liberdade positiva e negativa de Isaiah Berlin no livro.

O pai de Tara sofria de claras psicopatias, era uma pessoa que acreditava no fim do mundo e fazia toda a sua família trabalhar para armazenar viveres e recursos para o dia em que o mundo terminasse. O pai de Tara acreditava que a Escola servia apenas para endrominar os cidadãos com ideologia do governo, assim como os hospitais não tratavam, antes envenenavam as pessoas. Os seus filhos foram treinados para acreditar nisso, e acreditar nele. Quando a Tara chegou à Universidade, sem nunca ter andado na escola, nem ter aprendido em casa nada além das escrituras Mormons, ela não sabia o que era o Holocausto ou que a Europa era um continente. O mundo de Tara era a pequena aldeia no interior dos EUA, e em essência o mundo que o seu pai para ela tinha construído. Quando confrontada com outras versões do mundo, tudo aquilo que assumia como realidade colapsou.

Isto levanta a questão complexa do que devemos fazer enquanto comunidades e estado. Aceitar que pais, apenas porque deram à luz, tenham o direito de distorcer as mentes de crianças e destroçar os seus futuros, ou agir previamente para que sejam dadas as mesmas oportunidades a todos os cidadãos? Por outro lado, a intromissão a este nível social é de tal modo intrusiva que coloca em causa a base da liberdade das pessoas, a liberdade de ser diferente, de acreditar em ideais distintos, de não ter de obedecer a padrões económico-financeiros iguais para todos. E acreditando eu tão profundamente nesta liberdade, não consegui deixar de sentir a mágoa do sofrimento de Tara e dos seus irmãos. Porque se os pais têm todo o direito de ser como quiserem, também deveriam ser responsáveis por oferecer a oportunidade aos seus filhos de serem um dia o que quiserem.
"A minha vida era-me narrada por outros. As suas vozes eram categóricas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorrera que a minha voz pudesse ser tão forte como a deles (..) É estranho como damos às pessoas que amamos tanto poder sobre nós." (Pág. 229 - 232)
Por outro lado, esta história é poderosa por demonstrar como a escola básica e secundária não é tudo nas nossas vidas. Porque alguém que apenas tinha lido livros bíblicos e mal sabia fazer contas aos 17 anos, conseguiu trabalhar afincadamente, recuperar 12 anos de "atraso", e em 10 anos não só licenciar-se mas também se doutorar em História (um outro seu irmão, com um pouco de educação formal, seguiu o mesmo caminho que Tara e acabaria a doutorar-se em Engenharia Mecânica). Ou seja, este exemplo vem também colocar o dedo numa ferida que temos discutido vezes sem conta, o valor efetivo da escola. Até que ponto esta não é mesmo o tal resquício da revolução industrial, desenhada para nos manter ocupados e aprender a respeitar a autoridade. Ou seja, até que ponto metade da escola e das disciplinas que oferecemos às crianças e adolescentes, não seriam mais do que suficiente para um dia poderem vingar nas suas áreas. Bem sei que parece mais fácil do que é. Tara nunca teria toda esta motivação e capacidade de esforço e sofrimento, não tivesse passado por uma vida tão dolorosa, e da qual poderia apenas escapar se se esforçasse pela Educação, ao que se junta ainda a filosofia de vida do seu pai, que defendia que cada pessoa é capaz de aprender tudo o que quiser sozinho, melhor do que sendo ensinado por outra pessoa. Num quadro normal, uma criança sem esta estrutura de habituação à negação das suas necessidades e ao esforço, só muito dificilmente aceitaria mais tarde realizar o esforço enorme que seria necessário para realizar um curso universitário.

Quanto à escrita, sendo este um primeiro livro de uma pessoa apenas habituada a escrever em termos académicos, é bastante boa. Rica e diversa, capaz de imprimir ritmo e envolver. A estrutura assente em episódios por capítulos funciona também muito bem, já que muitos dos episódios acabam por ser bastante tensos, plenos de conflito e por isso agarram a nossa atenção. Contudo não é um livro perfeito. Como já disse acima o discurso está de algum modo atenuado, como que se por vezes fosse apresentado por alguém à distância. Por outro lado, existe uma sensação de repetição no que vai acontecendo, e isso deve-se ao facto de se repetir na vida real, mas existem formas de trabalhar a repetição, nomeadamente pela estrutura e aglomeração ou eliminação de eventos, o que nem sempre é realizado aqui, criando em partes alguns ciclos de situações que nos enfadam e até, em certa medida, nos afastam do universo do livro e da autora. Contudo, é um excelente primeiro livro.

"Educated" já foi editado em Portugal, pela Bertrand, como "Uma Educação", numa tradução de Cláudia Brito.

novembro 04, 2018

A importância das escolhas nos jogos narrativos

“Detroit: Become Human” (2018) vai muito para além do mero entretenimento, por baixo dessa capa aparente de filme de Hollywood de ficção científica, lança-nos num mar de reflexões sobre a inteligência artificial e a robótica, que vão desde a motivação para a singularidade na IA (autonomização do ser) às necessidades e vontades associadas pela robótica (existência física) terminando na relação com o humano. À superfície parece oferecer pouco mais do que aquilo que já nos foi oferecido em filmes como “Bicentennial Man” (1999), baseado no conto homónimo de Asimov, “A.I. Artificial Intelligence” (2001) de Spielberg e Kubrick, “I, Robot” (2004) de Alex Proyas ou “Ex Machina” (2014) de Alex Garland, e no entanto, o facto de se tratar de um videojogo baseado em narrativa interativa, coloca-nos face a uma experiência completamente distinta, simplesmente porque somos obrigados a tomar partido.


Detroit apresenta um universo ficcional futurista, no qual os andróides convivem com os humanos em todo o lado, do mesmo modo que muitas outras tecnologias — dos carros aos sistemas de apoio ao humano — com a diferença de terem a mesma fisionomia que um humano, porque lhes facilita o apoio a essas tarefas mais humanas. Contudo, essa forma humanoide associada a capacidades sociais, afetivas e cognitivas torna-os excessivamente humanos a ponto de serem apenas permitidos nos EUA, enquanto o Canada e outros países mantém a sua proibição.


Ainda sobre o universo, e tendo em conta que se trata de narrativa interativa, reportar que Cage levou as suas possibilidades muito para além daquilo que nos tinha dado nos seus jogos anteriores —  “Fahrenheit” (2005), “Heavy Rain” (2010) ou “Beyond: Two Souls” (2013) —, aqui praticamente todas as nossas escolhas e decisões têm consequências, e essas conseguem aparentar ser ilimitadas. O melhor exemplo disso é que o cerne narrativo, constituído de três personagens andróides que devem carregar toda a história aos ombros do início ao final, na minha primeira passagem completa pelo jogo, morrem os três, nenhum chega ao fim, algo que pelas estatísticas apresentadas acontece muito pouco, mas demonstra a enorme elasticidade da ficção interativa apresentada. Note-se que podemos rejogar cada capítulo e alterar as consequências, contudo somos aconselhados, no jogo, a fazer um primeiro playthrough completo sem rejogar qualquer decisão, que foi o que fiz, mesmo quando em algumas decisões, por me sentir demasiado pressionado para decidir, decidi coisas com que não me identificava totalmente. Aconselho vivamente a que façam o mesmo, pois é dessa primeira experiência completa sem rejogar que poderão extrair os maiores impactos da experiência da narrativa interativa proposta.



Do ponto de vista tecnológico e empático, é interessante verificar como apesar de muitos arautos da tecnologia defenderem a proximidade do momento de singularidade, ou da possibilidade de substituir professores por robôs, num videojogo criado em 2017, em que ironicamente os três principais personagens são andróides, ainda estamos completamente dependentes de humanos, não só para lhes dar forma mas para garantir as performances de corpo e voz.

Porque jogar é experienciar, é viver de forma simulada e virtual. Ou seja, colocados dentro daquele universo de possibilidades, somos questionados e interrogados, somos colocados face a questões que ainda não existem no mundo atual, e para lhes responder só nos resta procurar dentro de nós as respostas. Puxar pelas nossas convicções, princípios e morais, mas também todo o conhecimento que detemos sobre as matérias (neste caso o meu conhecimento sobre o design e implementação de máquinas e formação dos seus sistemas de IA), confrontando argumentos para responder às situações, ainda que hipotéticas e ficcionais, colocadas pelo jogo. Sentimos que “Detroit” nos coloca contra a parede, no que à relação futura entre humanos e andróides dotados de consciência IA concerne, porque atira sobre nós toda a responsabilidade sobre como lidar com eles, obrigando-nos a decidir e a reagir. E se durante o jogo, um pouco pelo que considero excessivo design de pressão sobre o jogador ainda que sirva bem a dramatização necessária ao contar de uma história, senti as decisões por vezes mais distantes, no final do jogo elas caíram-me todas em cima.

Marcha de andróides lutando pelos seus direitos

Por exemplo, ter deixado morrer os três personagens não foi algo simples, impactou a minha experiência, criou frustração mas foi além, porque o jogo não se fica, não se resume a um mero “game over”, algo que Cage detesta nos videojogos. As ausências dos personagens tornaram-se parte do meu universo jogado, e a minha culpa pela sua perda foi transposta para os eventos que continuaram a suceder-se, o que se foi agravando quanto mais as suas ausências se foram tornando consumadas em mim. Mas isto também levanta enorme peso na discussão da autoria, do que tem para dizer um autor, e aqui Cage luta claramente nessa fina linha entre o quanto está disposto a oferecer-nos de controlo sobre os eventos e aquilo que nos quer dizer com a sua obra. Li em algumas resenhas, caracterizações de inconsistência narrativa, ou seja, que Cage não saberia ou não teria conseguido construir uma mensagem completa. Contudo, por muito que me custe dizer, mais ainda tão habituado a defender a intenção autoral no cinema e na literatura, aqui a intenção autoral não pode prevalecer sempre, correndo o risco da interatividade não passar de ilusão. Por isso se o jogo parece mover-se entre barricadas ideológicas ao longo da experiência, deve-se mais àquilo que vamos decidindo fazer, porque o jogo permite que façamos, e menos a uma vontade ou falta de determinação do autor e do jogo em passar uma ideia redonda. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a determinação do autor bastaria recuar a 2012, "ver a demo/curta "Kara" e perceber como "Detroit" não surgiu de um simples desejo de fazer mais um jogo, mas vem carregado de intenções (entrevista com Cage).

"Kara" (2012) de David Cage

Posto isto, o jogo consegue algo que nem o livro nem o filme conseguem, levando-me a considerar que retirei desta experiência, algo que é notável para um videojogo, uma melhorada compreensão da minha relação com a tecnologia e sua hipotética singularidade futura. O jogo puxa imenso pela nossa ambivalência, usa truques para confundir o nosso sentir para com os andróides, que servem também para que possamos ir traçando o nosso caminho. Já estamos habituados, no cinema, ao desenho de situações de pura empatia para com os andróides, mas aqui somos também brindados com situações completamente contrárias, e somos conduzidos a passar pelos dois sentimentos, o que consegue mexer com algumas das nossas convicções. Existem algumas questões apresentadas de modo muito simplista, nomeadamente o modo como a generalidade dos humanos vai reagindo, algo que como já se disse, não é alheio ao modo como vamos jogando, ou seja, à medida que vamos jogando a narrativa vai-se ajustando e naturalmente partes dessa vão sendo secundarizadas. Contudo, pelo que vi de possibilidades jogadas por outros, é possível aceder a maior elaboração dessas partes, dita mais simplistas, rejogando partes mais decisivas que alteram o rumo dos eventos finais.

A primeira sequência do jogo, de resposta a um rapto, abre muitíssimo bem o tom do jogo, e nem queria acreditar quando vi na net que podia ter 6 finais completamente distintos.


Ao contrário dos jogos anteriores de Cage, e talvez motivado pelo facto de termos as árvores de nós narrativos a serem apresentadas no final de cada capítulo, mas especialmente porque as variações narrativas são tão acentuadas, sinto o desejo de voltar e rejogar, de voltar a experienciar, de decidir de outras formas para confrontar as minhas decisões naquele universo.

outubro 20, 2018

Algoritmo Mestre

Confesso que parti para "The Master Algorithm" (2015) com várias reservas: a primeira prendia-se com a dificuldade de trazer um assunto desta complexidade para uma discussão leiga; a segunda tinha que ver com a minha desconfiança sobre a possibilidade efetiva de se criar um algoritmo único, de tudo capaz. No final do livro tenho de dizer que Pedro Domingos, professor na Universidade de Washington, fez um belíssimo trabalho, não só o livro é acessível como nos abre o apetite para o tema. O que mais gostei, e acaba sendo o cerne do livro, foi da descrição das metodologias que estão a ser seguidas para que a máquina possa aprender, não por serem exóticas mas antes pelo contrário, por responderem por métodos que nós próprios, humanos, também temos vindo a utilizar para construir conhecimento.


Domingos abre o livro com uma constatação que por mais óbvia que seja nos continua a surpreender, o Machine Learning (ML) já faz parte das nossas vidas, e muito daquilo que fazemos no nosso dia-a-dia já é controlado por ele. Desde o modo como pesquisamos e encontramos livros na Amazon e filmes no Netflix, às informações e notícias que vão surgindo no feed do nosso Facebook ou Instagram, aos sites e links que o Google nos indica em cada pesquisa. Onde existirem bases de dados  grandes, o ML estará lá a trabalhar para nós. Enquanto espécie animal somos a espécie mais inteligente no planeta, contudo no que toca a processar dados, em volume e rapidez, temos poucas ou nenhumas hipóteses com os algoritmos processados por máquinas.

Domingos começa por discutir as diferentes fases do processamento do conhecimento no nosso planeta — "Evolução", "Experiência" e a "Cultura". A evolução deu-nos o DNA, o primeiro modo de construção de conhecimento no planeta, capaz de codificar vida. Seguiram-se os neurónios que codificavam toda a experiência percetiva em conhecimento que podia ser re-utilizado para navegar no planeta. Na terceira fase surge então a cultura, ou seja, a produção de conhecimento pelo ser humano. Domingos refere que cada uma destas fases foi sempre muito mais rápida que a anterior, apresentando de seguida, aquilo que considera ser uma 4ª fase, a do conhecimento produzido pelos computadores. Esta última fase levantou-me algumas dúvidas. Ou seja, considero que só poderemos colocar na equação de produtores de conhecimento os computadores, no momento em que eles nos começarem a dar conhecimento original. É verdade que os últimos sistemas desenvolvidos para jogar Go ou Xadrez, têm apresentado jogadas completamente novas, e momentos de criatividade em nada semelhantes ao que conhecíamos no humano, contudo parece-me que ainda é cedo para considerarmos estes resultados como inovação própria, ou externa ao humano. Ou seja, o que temos para já, do meu ponto de vista, ainda é conhecimento produzido por meio de ferramentas que são parte da Cultura. Veremos como evolui depois tudo.

Domingos diz-nos que cada nível destes representou sempre aumento de velocidade na produção de novo conhecimento.

Domingos prossegue a discussão apresentando então as 5 grandes metodologias para descobrir o conhecimento que hoje estão a ser utilizadas pelos criadores de ML: "Symbolists, Connectionists, Evolutionaires, Bayesians, Analogizers". O livro dedica uma secção completa a cada área, e aqui tenho de dizer que nem sempre foi fácil seguir Domingos, mas também porque não quis dedicar o tempo suficiente que cada uma das secções requereria se eu estivesse verdadeiramente motivado para aprofundar o estudo do ML. Se a motivação e a necessidade estiverem presente, o livro com mais algumas pequenas pesquisas na web poderá ser fundamental para ajudar quem deseje entrar no domínio. Aproveito para deixar aqui a abordagem proposta por cada uma das 5 variantes:

1. Symbolists - Logic - Inverse Deduction
Busca por preencher as falhas no conhecimento existente. Começa-se por um conjunto de premissas e conclusões e faz-se dedução invertida para tentar descobrir o que falta.

2. Connectionists - Neuroscience - Backpropagation
Emulação do cérebro, também conhecido por "deep learning", em que se criam redes artificiais de neurónios que desencadeiam relações a partir das conexões.

3. Evolutionaires - Evoluationary Biology - Genetic Programming
Simulação da evolução, busca-se emular o funcionamento e lógicas do DNA.

4. Bayesians - Statistics - Probabilistic inference
Redução Sistemática de Incerteza, utilizando a probabilística.

5. Analogizers - Psychology - Kernel machines
A busca de semelhanças entre anterior e atual, com vários modelos para encontrar as semelhanças.

Esquema retirado da rede.

Como podemos ver, estes são alguns dos métodos que temos utilizado para produzir conhecimento sobre a realidade e que estão agora ao serviço das máquinas. O desejo dos investigadores da área, de construir um algoritmo mestre que possa de algum modo construir os seus próprios métodos de aprendizagem, não é mais do que a singularidade discutida por Ray Kurweil, correspondente a um dos maiores medos da nossa espécie. O momento em que as máquinas se tornem conscientes e passem a ser como nós, ou pior ainda, nos ultrapassem, seguindo o "Homo Deus" de Harari. Domingos é bastante otimista neste sentido, e diz ter dúvidas sobre essa possibilidade. O principal argumento que apresenta é a "falta de vontade" da máquina. Diria que há alguns anos teria concordado, hoje não. A vontade não é algo não implementável, menos ainda num sistema autónomo com capacidade para aprender. Se existe algo que não vai faltar às máquinas é a vontade, porque implementadas as necessárias rotinas para continuar a aprender, elas tenderão a incutir vontade. E não faltam notícias (1, 2) nos últimos anos sobre situações destas, em que os sistemas de ML desatam a realizar coisas inesperadas, seguindo aquilo que a sua aprendizagem os vai motivando a fazer.

Para quem quiser entrar desde já nesta discussão sem ter de esperar pelo livro, o Pedro Domingos fez uma comunicação na Google muito boa, na qual resume todo o livro em 50 minutos. Aconselho vivamente e deixo-a aqui abaixo.

Pedro Domingos "The Master Algorithm" (2015) na Google

outubro 14, 2018

Design de comportamento

"Hooked" (2014) é mais um livro que procura o santo Graal do design de experiência: um modelo capaz de criar engajamento ótimo com qualquer aplicação, processo, serviço ou produto. O livro é interessante, dando conta de muito do que se vai fazendo na área, embora não aprofunde nada de novo (mesmo tendo em conta o ano de publicação, 2014), para quem já esteja dentro do UX ou IxD e tenha lido as referências da área. Recupera um conjunto de teorias e modelos, e tenta o seu mix. É mais uma proposta modelo, e como tal merece a nossa atenção, pois pode servir a determinados grupos ou para determinadas situações.


O modelo proposto por Eyal é designado de "Hook Model" (Modelo do Gancho, que agarra os utilizadores), e de uma forma genérica bebe nas mais elementares teorias da psicologia e persuasão, desde os condicionadores de B.F. Skinner aos princípios de influência de Cialdini, passando pelos vieses cognitivos de Daniel Kahneman ou Ariely. O modelo proposto é circular e procura induzir hábito, ou seja, não se limita ao engajamento, quer criar hábitos nos consumidores, para o que propõe 4 elementos em sucessão: Estímulo, Ação, Recompensa Variada e Investimento.

"Hook Model" de Nir Eyal

Funcionamento: O utilizador recebe um estímulo (trigger) que o conduz até ao produto. O produto sendo de fácil compreensão leva a que o utilizador o utilize (action). O utilizador recebe uma recompensa por o ter usado, de preferência não esperada (variable reward). O utilizador acaba por investir no produto, realizando tarefas (investment). Tudo junto cria um ciclo que acaba por trazer o utilizador de volta. O livro centra-se em desmontar os 4 elementos.

Triggers (estímulos)
São aquilo que fazem despontar o produto do meio dos outros. Podem ser Externos ou Internos. Os primeiros respondem pela normal publicidade ou presença em locais de grande ou fácil acesso, ou pela pressão de grupo de amigos ou familiar, ou ainda status. Os segundos, vão diretos às emoções e necessidades da pessoas. O Google responde à nossa necessidade de informação, o facebook à necessidade de mexerico, o telemóvel à necessidade de estar em contacto com os outros em qualquer lugar, etc. Estes acabam por ser mais desenvolvidas no elemento seguinte, por via da "motivação".

Actions (ações)
Respondem por um dos aspetos centrais do design de interação, que é aquilo que leva alguém a agir, já que sem ação do utilizador não existe interação. Para este ponto Eyal vai buscar  Deci, Fogg e Kahneman, embora com pena minha praticamente não use Deci, apesar de ser um dos maiores especialistas em motivação, ainda assim usa uma citação dele que não posso deixar de colar aqui: "motivation (is) the energy for action". Baseia depois todo a sua proposta no Modelo de Comportamento de Fogg que defende a ação como desencadeada a partir da correta correlação entre dois elementos: Motivação e Capacidade. Ou seja, para que o utilizador aja é necessário estar munido de motivação para a ação, mas é ainda necessário possuir as capacidades requeridas pela ação. A correlação permite então fazer variar a presença de distintos níveis de motivação e capacidades, uma em função da outra.

Modelo de Comportamento de BJ Fogg. Fogg foi um dos primeiros investigadores a estudar a persuasão pelas tecnologias da comunicação, tendo começado nos anos 1990 em Stanford, sob orientação de investigadores de relevo, tais como Clifford Nass, Philip Zimbardo, Terry Winograd e Byron Reeves.

Assim para o eixo da Motivação, Fogg dá-nos o que chama de "core motivators": "seeking pleasure and avoiding pain"; "seeking hope and avoiding fear"; "seeking social acceptance while avoiding social rejection”. Mas estes se analisados em detalhe e profundidade acabam por não ser mais do que aquilo que Deci propõe na sua teoria da auto-determinação em 3 vectores: autonomia, competência e relacionamento. Para o eixo da Capacidade, Fogg propõe 6 Elementos da Simplicidade. A ideia desta abordagem passa por tentar identificar nos utilizadores, por parte do designer, qual é o elemento que está a criar dificuldade à ação do utilizador:
Time — how long it takes to complete an action.
Money — the fiscal cost of taking an action.
Physical effort — the amount of labor involved in taking the action.
Brain cycles — the level of mental effort and focus required to take an action.
Social deviance — how accepted the behavior is by others.
Non-routine — How much the action matches or disrupts existing routines.
No fundo se atentarmos no trabalho de Fogg, vemos como segue Deci em toda a linha, acabando por eleger para o seu conceito de "design persuasivo" o segundo elemento, "competência", como o mais relevante. No entanto, Eyal não se fica por Fogg, porque aponta os seus elementos como racionais, juntando-lhes então os vieses cognitivos de Daniel Kahneman, por, segundo ele, oferecerem uma dimensão emocional. Não concordando com esta divisão, e referindo que alguns destes princípios surgem como fundamentais no trabalho de Roberto Cialdini, não posso deixar de referir que são imensamente válidos e claramente contribuem para ação: "The Scarcity Effect",  "The Framing Effect", "The Anchoring Effect", "The Endowed Progress Effect". Para saber mais sobre estes efeitos e desvios cognitivos recomendo, quase com sentido de obrigatoriedade para designers, a leitura do livro "Thinking, Fast and Slow" de Kahneman.

Variable Reward (Recompensa Variada)
Se o utilizador executa a ação pretendida, o sistema tem de oferecer feedback, e para Eyal, o melhor feedback é uma recompensa, que pode ser ainda melhor se for variável, ou seja, não for esperada nem for sempre igual. Aqui entramos na fase do Cão de Pavlov (condicionamento clássico) e dos Ratos e Pombos de Skinner (Condicionamento operante), que daria origem à primeira grande corrente da psicologia, o Behaviorismo, mais tarde posto em causa pela sua excessiva simplificação do comportamento humano. Basicamente, o que todos estes experimentos nos dizem é que a recompensa de comportamento ativa o neurotransmissor de dopamina que desencadeia o prazer e nos faz sentir imensamente satisfeitos. Eyal agarra-se aos experimentos de recompensa variável por estes demonstrarem maior efeito no tempo, já que a recompensa igual ou previsível rapidamente satura fazendo cair o nível de dopamina, o que é um problema na criação de hábito que requer tempo. 


Neste campo Eyal não cita qualquer trabalho, mas trabalha claramente ao nível da Hierarquia das Necessidades de Maslow, ao propor uma abordagem de recompensas com 3 vectores: "the hunt", "the tribe" e "the self". A necessidade coletora como fundamental para saciar as necessidades fisiológicas; a necessidade do outro, para saciar a gregariedade inerente ao humano; e o Eu, para saciar as necessidade de auto-realização. Os exemplos que Eyal retira da paisagem tecnológica atual são imensamente ilustrativos. Para a caça e coleção, apresenta o conhecido efeito de "infinite scroll" usado pelo Facebook, Instagram, Twitter etc. que colam os utilizadores ao produto quase de forma hipnótica, na ânsia por querer saber que imagem ou notícia vai vir a seguir. No caso da tribo, Eyal cita Bandura, e a sua teoria de aprendizagem social, para explicar o "Like" do Facebook e todos os mecanismos desenvolvidos por este para criar teia social e assim ganhar em engajamento . Por fim, para o Eu, Eyal vai buscar os videojogos e todo o seu design de progresso e reconhecimento de competências pela experiência, que em muitos jogos é mesmo definido por "experience points".

Investment (Investimento)
Este é o último nível do modelo Hook e é um dos menos referenciados noutros modelos, embora seja um dos mais populares em termos do design atual, e um dos mais antigos no que toca à persuasão embora com designações distintas. Basicamente falamos do envolvimento do utilizador ao ponto deste começar a investir tempo ou esforço (Exemplos: começar a fazer uma lista de filmes de que gosta numa App; começar a fazer lista de amigos; começar a jogar um jogo, etc.) que o leva para um nível engajamento com a aplicação do qual ele depois dificilmente se consegue desligar. Este modo funciona tanto do ponto de vista do esforço per se, como pelo efeito de grupo que nos questiona se mudamos de opinião. Cialdini define isto como coerência e comprometimento, quando estabelecido a pessoa tem dificuldade em sair do mesmo. Já Dan Ariely fala do "Efeito Ikea", em que o contributo do nosso trabalho para a construção final do produto o torna mais nosso, e nos dá mais prazer. E Chris Anderson fala do "freemium", que nos anos recentes ficou conhecido no mundo dos jogos como "free-to-play", e que terá nascido no início do século XX com a oferta de livros de receitas que exigiam Jell-O, gelatina em pó, e levavam as pessoas a comprar a mesma para poderem experimentar a receita. Eyal defende assim que esta etapa final no ciclo do Hook, permite gerar a cola necessária — tanto interna pelo esforço, como externa pelo que os outros pensam de nós — para que o hábito se instale e permaneça.

Uma nova proposta visual do modelo por Antedote

Isto é a essência do livro resumida e sem exemplos, o resto do livro são casos e exemplos, um dos quais tem um capítulo dedicado com imenso detalhe, e que diferencia a experiência da Bíblia em papel da experiência via app. O mais interessante deste caso são as interpretações dos comportamentos que podem ser lidos via app que debita dados em tempo real daquilo que os utilizadores fazem com a mesma. Eyal usa toda essas leituras para colocar em evidência o modo como o seu modelo Hook surge na base do engajamento produzido pela app.


Nota: Todas estas teorizações apontam para aquilo que na gíria se define como "dark side" das ciências de comunicação, como tal devem ser utilizadas tendo por base os mais elementares princípios éticos. Mais, a não observação desses princípios, que tem acontecido quando nas mãos dos menos escrupulosos, acaba por não trazer grandes benefícios por todo o efeito negativo que acaba por gerar no médio-prazo para a instituição ou marca.


Referências relevantes:

Deci, E. L., & Flaste, R. (1995). Why we do what we do: The dynamics of personal autonomy. GP Putnam's Sons.

Fogg, B. J. (2009, April). A behavior model for persuasive design. In Proceedings of the 4th international Conference on Persuasive Technology (p. 40). ACM.


Kahneman, D., & Egan, P. (2011). Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux.

Cialdini, R. B. (1987). Influence. Port Harcourt: A. Michel.

setembro 10, 2018

Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia

Em 1992 os The Disposable Heroes of Hiphoprisy lançavam um álbum de rap intitulado "Hypocrisy Is the Greatest Luxury" no qual atacavam as hipocrisias da sociedade desse tempo. A banda punha o dedo na arte, na política, no emprego, no consumismo, no racismo, no sistema financeiro e na recessão, no bullying e no suicídio. A música homónima do álbum abria com os versos abaixo, que poderiam ter sido facilmente escritos em 2018, mas foi a faixa 3 que ficou desse álbum e porque deles me lembrei, e que se intitulava: "Television, the Drug of the Nation".

"Life these days can be so complex
We don't make the time to stop and reflect" (1992)


Repare-se que em 1992 a complexidade gerada pela sociedade de informação ainda vinha longe. A internet só existia nos departamentos de informática das Universidades, era a Televisão que regulava as nossas vidas, dizia-nos o que vestir, o que ouvir, ver, ou ler. Como se dizia nesta faixa 3:

“One nation 
Under God 
Has turned into 
One nation under the influence 
Of one drug [television](ouvir)

Vem tudo isto a propósito de um longo texto publicado no The Quillette, na semana passada por Theodore P. Hill, um matemático formado por Stanford e Berkeley e professor até se reformar no Georgia Tech, em que dava conta de uma saga com mais de ano e meio para a publicação de um artigo científico. Essa saga envolveu um artigo que foi Aceite para Publicação, depois de todo o processo de revisão por pares, na Mathematical Intelligencer, revista científica respeitada e publicada pela Springer desde 1979, mas que à última hora a editora-chefe da revista, Marjorie Senechal, decidiu retirar e não aceitar para publicação. Depois disso, os colegas de Hill retiraram-se de co-autores do artigo, e ele por ser reformado e não ter nada a perder partilhou o artigo na rede. Pouco depois o editor do New York Journal of Mathematics, uma revista aberta sem pressões editoriais nem de indexação, convidou Hill para submeter uma versão revista do artigo. Hill submeteu, o artigo foi revisto pelos pares, aceite e publicado. Mas não terminou a saga, porque três dias depois de publicado, o artigo simplesmente desaparecia da página da revista, e passados mais alguns dias, surgia outro no seu lugar, como se nunca tivesse existido tal artigo. Leiam o texto no Quillette para compreender toda a extensão e esferas envolvidas no silenciamento da ciência. Estamos a falar de forças subterrâneas com motivação muito forte para fazer dobrar tanta gente, nomeadamente gente que foi treinada para seguir a máxima da Liberdade de Pensamento Científico. Impedir a publicação tinha sido forte, mas retirar um artigo já publicado, e fazer de conta que nunca aconteceu, implica viver numa realidade de poder indiscriminado e desgovernado, um simulacro.

A Mathematical Intelligencer depois de aceitar o artigo, deu a aceitação como recusa. O NYJM depois de publicar o artigo, apagou-o sem qualquer explicação ou justificação, e substitui-o por outro artigo, fazendo com que  a publicação anterior nunca tivesse existido.

O apagamento de um artigo de uma revista científica, sem qualquer explicação, é em termos de simulacra comparável aos apagamentos políticos protagonizados pelo aparelho de Estaline.

Mas o que defendia o artigo de Hill? É um estudo na área da Matemática que demonstra a existência de maior variabilidade no género masculino — de forma simples, tendem a existir mais mentes brilhantes (ex. podem dar mais prémios Nobel), mas também tendem a existir mais mentes broncas (ex. existem mais homens presos). Esta variabilidade, mais acentuada no machos que nas fêmeas, parece existir de forma quase universal nas várias espécies. Aquilo que Hill faz é trabalhar dados probabilísticos, a sua área de expertise, e demonstrar o que está a acontecer. Steven Pinker foi um dos cientistas que veio defender o artigo no Twitter ontem, dizendo:
"Egregious: A math paper that tries to explain a fascinating fact (greater male variability) is censored. Again the academic left loses its mind: Ties equality to sameness, erodes credibility of academia, & vindicates right-wing paranoia." [@sapinker]
Falamos de puro tráfico de influência, de batalhas ideológicas de submissão do outro. Tudo isto esquecendo a Ciência, esquecendo que por mais benéfica que uma ideia nos possa parecer, ela não se transforma em realidade por simplesmente o desejarmos. E que nem sempre aquilo que o colega nos diz que lhe parece ser, o é verdadeiramente. O Facebook vem sendo um palco cada vez maior para todo este tipo de comportamentos, em que vamos assistindo a colegas da academia que deveriam ser isentos, imparciais, defensores do pensamento científico aberto e livre, mas que se deixam embalar pelas inflamações do momento, que aceitam partilhar notícias falsas apenas para promover a guerrilha ideológica. Contudo, e ao contrário de Pinker, não vejo isto como um problema de um dos lados, isto é um problema de ambos — Esquerda e Direita — que se polarizaram tremendamente, não por causa direta do Facebook, mas não se pode dizer que este não tenha vindo a servir de catalisador emocional de toda essa polarização.

Não é de Esquerda nem de Direita porque ainda esta semana se passou outro caso, em território nacional, seguindo um modelo muito próximo de atuação. Falo da Conferência sobre as alterações climáticas decorrida na Universidade do Porto este fim-de-semana. Durante toda a semana anterior vimos os mais respeitados colegas nacionais a atacar por todos os meios os colegas que “ousaram” fazer tal conferência. Houve direito a abaixo-assinado com dezenas de reputados nomes, e milhares de ataques no Facebook e na imprensa nacional. Muitos dos que realizaram ataques, nem sequer sabiam do que tratava a conferência, não perderam um minuto a ler os textos dos colegas, afiaram as machetes e avançaram na defesa de um ideal.

Analisado o livro de abstracts da conferência o que temos ali verdadeiramente? Uma conferência sobre alterações climáticas que não contestam, em que os intervenientes pretendem apresentar potenciais outras visões sobre o que pode estar a motivar essas alterações, para além da ação humana. Na verdade, o que temos neste momento são dados de correlação, e dados de 200 anos num planeta com milhões de anos. Sim, os dados levam em conta todas as variáveis conhecidas que potencialmente poderiam gerar o efeito, atenuando o impacto de mera correlação, e deixam muito poucas dúvidas sobre o facto de sermos nós o agente que está a fazer a diferença (ver infografia explicativa dos dados que possuímos sobre as alterações).

A esmagadora maioria dos estudos demonstram que a variável que mais afectou o aquecimento foi a humana. Mas isso é razão para não se discutirem outras hipóteses? Para não mantermos a mente aberta? [fonte da imagem]

Não restam muitas dúvidas sobre a responsabilidade da nossa espécie sobre o clima, o que é diferente de dizer que não resta espaço para podermos exercer a dúvida. A constatação que temos não é verdade absoluta, em ciência a verdade só existe até provada a sua falsidade. Por isso ter pessoas a discutir análises de factos, a contestar posturas, pode parecer arrogante, mas não deixa de ser legítimo. Mais ainda porque estamos a falar de uma conferência no domínio das ciências sociais e humanas, lugar em que se fazem conferências sobre Post-it e as irmãs Kardashians, que não refiro como menosprezo pelo que se investiga mas refiro para defender que aquilo que está aqui em causa é distinto de uma conferência no domínio da Física. Não perceber isto é querer forçar uma visão monolítica do conhecimento e da ciência, sem qualquer benefício.


Estes dois casos não são isolados, e são claramente sintoma de muito do que se passa à nossa volta. mas aceitarmos o calar de cientistas com o argumento de perigo de contaminação da opinião pública com ideias erradas é algo extremamente preocupante. Isto equivaleria a dizer que os cientistas não devem agir enquanto investigadores da realidade, não devem pensar livremente, mas devem subjugar-se às necessidades de controlo e manipulação da opinião pública e defesa das grandes narrativas. Ou que a liberdade de pensamento científico é apenas uma utopia para oferecer credibilidade aparente à ciência. O que temos aqui não é mais do que o modelo social criado e imposto pelo Facebook a moldar o pensamento da sociedade, a toldar os parâmetros dos diferentes grupos, incluindo os próprios cientistas. Todos se sentem escrutinados, e por isso todos acreditam que precisam de trabalhar para a construção de uma realidade paralela na qual tudo é melhor do que na realidade em que vivemos. Nem que para isso tenhamos de transformar as nossas vidas naquilo em que durante tantos anos contestámos à televisão, que está expressa nestes versos dos Disposable Heroes:

“Television [Facebook], the drug of the Nation 
Breeding ignorance and feeding radiation”

O Facebook roubou as grandes audiências à televisão, nomeadamente a partir da introdução e massificação dos smartphones. Com este, os estudos começaram a mostrar padrões nos quais as pessoas parecem preferir ver informação que vá de encontro ao seu próprio modelo do mundo. Aquilo que não se enquadra nessa visão, Esquerda ou Direita, chega a ser doloroso, porque obriga a mudança de opinião, saída da zona de conforto. Por isso as pessoas desataram a eliminar, a barrar ou a deixar de seguir todos aqueles que não se exprimem no mesmo comprimento de onda. Criaram bolhas, câmaras de eco, confirmações de viés, enormes silos com grandes divisórias. Contudo em vez de ficarem felizes nos seus redutos, começarem a surgir de cada lado "guerreiros" na defesa de visões e ideias. A Primavera Árabe foi um prenúncio do que viria a seguir, depois disso tivemos o Obama, o Brexit, Trump, e a cada nova história, cada novo conflito, as hostes, fechadas em cada silo, agitam-se e lançam as suas farpas. Deixaram de existir terrenos neutros, espaços onde as diferenças se podiam debater. A Universidade que devia ter permanecido esse espaço, parece votada a deixar de o ser. No Facebook, se acedemos a conversar com uma ala, não podemos conversar com a outra. Chegámos a um ponto em que apenas conta: "Ou estás connosco, ou estás contra nós".


Se aceitarmos colocar a ciência em segundo plano, se aceitarmos partilhar o rumor, se aceitarmos exigir a censura, a imposição e a submissão da ciência e dos cientistas na defesa de ideologias, esqueçam o progresso, não haverá literacia que nos proteja de uma sociedade enclausurada num simulacro.

setembro 06, 2018

Avicii: Necessidades e Realização Pessoal

Acabei de ver o documentário "Avicii: True Stories" (2017) que recomendo vivamente a quem tiver interesse nas indústrias criativas, e claro no mundo da música. O melhor do filme é conseguir traçar toda a curva evolutiva do criativo, enquadrando a sua proveniência, valores e mundo, enquanto coloca a nu o desenlace quase natural que viria a acontecer apenas um ano depois do filme lançado. Aliás, em vários momentos, alguns dos entrevistados quase parecem falar como prenúncio. Existem algumas notas sobre o filme e Avicii que quero aqui deixar, ainda que não sejam nada de muito novo, são mais assunções sobre o processo criativo, o seu progresso, e potencial embate assim como algumas alternativas a esse embate.




Não existirá, em 2018,  quem não tenha ouvido uma melodia do músico, e isso dá conta do modo como ele impactou o planeta à sua passagem. Se isso se deve à excelente equipa de promoção e divulgação do seu trabalho, deve-se ainda mais à sua total obsessão com a arte. Existem vários momentos no filme em que Avicii me recorda Cristiano Ronaldo (entre tantos outros, mas também imensamente mediático e contemporâneo). 16 ou mais horas em cima da criação, sempre a aperfeiçoar, sempre à procura do seu melhor. Se Ronaldo anda sempre com a bola, Avicii andava sempre com o Mac (nem poucas horas depois de uma operação como se vê nesta imagem).


A necessidade criativa é algo absolutamente intrínseco e que salta à vista nos exemplos de maior sucesso, com pessoas que vivem e respiram aquilo que fazem. Conseguem amar mais o trabalho que qualquer outra pessoa, mesmo mais do que a si próprios. Deste modo acabam transcendendo-se, e em consequência transcendendo os seus frutos, criando o novo, o nunca visto, o original. Começam pela cópia e pelo remix, mas em pouco tempo, de tanto obsessivamente criar, acabam a inventar, a inovar.

O diagrama em pirâmide surgiu da teoria psicológica de Abraham Maslow sobre a Hierarquia das Necessidades, publicada em 1943

Avicii fez, entre 2008 e 2016, mais de 800 espetáculos.

O documentário é bom porque mostra também o outro lado da criatividade desenfreada, em busca da constante ultrapassagem de si, até ao embate na parede. Avicii bateu na parede quando percebeu que não tinha mais nada para ultrapassar. Os concertos deixaram de o fazer feliz, e tudo passou a ser stress e ansiedade. Avicii já não tocava porque interiormente assim o desejava, mas apenas porque era essa a vontade de outros, o que acabou a destruir a sua força motivacional (cf. com a "teoria da auto-determinação" de Deci e Ryan). Por outro lado, e seguindo Maslow e a sua Pirâmide das Necessidades Humanas (ver diagrama acima), Avicii cumpriu todas as necessidades, não havia mais nada na pirâmide para ele. A realização pessoal foi total, estando todas as outras necessidades também plenamente garantidas, o que fazer quando nos realizámos plenamente até ao topo?

Provavelmente a única maneira de lidar com tal passa por desenhar novos sonhos, de preferência impossíveis. O Cristiano Ronaldo tem um Mundial para ganhar, Avicii precisava de algo que lhe garantisse curiosidade e desejo, e desse modo "necessidade". Não existindo tal dentro da arte, é preciso abrir as palas da realidade, ver para além do nicho de realidade a que nos deixámos sucumbir. Avicii terá cometido o erro de se fechar no mundo da música, ou de se rodear de pessoas que limitaram o seu mundo e universo. Viajava e visitava lugares belos, paradisíacos e em parte inacessíveis, mas nada disso serviria a motivação, isso não passavam de recompensas extrínsecas, totalmente incapazes de puxar pelo seu interior. Avicii precisava de ter encontrado outro objeto em que pudesse descarregar toda a sua energia criativa, que o desafiasse a ir além de si próprio, que lhe colocasse obstáculos reais. Tinha demasiada energia, tinha necessidade de se realizar em algo que o estimulasse, mas isso só poderia ter chegado por via da dificuldade, da impossibilidade. Pensemos em Arthur Rimbaud.

Tim Bergling, aka Avicii, [1989 - 2018]