Esta semana escrevi um artigo para o IGN Portugal a propósito da sociedade de abundância e velocidade, e seus efeitos na fruição de experiências, nomeadamente no que se perde em não repetir boas experiências, daí o título “Porquê Repetir Experiências?”. É um artigo que dá conta de uma visão das experiências estéticas, sustentado depois num estudo que fala sobre o que leva as pessoas a repetirem experiências, tais como: reler um livro, rever um filme ou rejogar um jogo.
Aproveito este apontamento para dar conta de algo que já começou há algum tempo neste blog, e que para quem me segue até já se terá dado conta, que é uma certa desaceleração na publicação. Esta desaceleração irá acelerar mais ainda nos próximos meses, mantendo-se ao longo do próximo ano. A razão para esta pausa prende-se com o novo livro que estou a desenvolver para uma editora nacional, e que em breve darei aqui conta.
Assim, entrarei agora em pausa, e publicarei aqui e no facebook apenas excepcionalmente. Continuarei a escrever a coluna quinzenal para o IGN Portugal, e deixarei um ou outro apontamento no Goodreads.
outubro 29, 2014
outubro 25, 2014
"The Last of Us" visto em bullet time
Parece uma mina infindável de material digno de análise. Já por várias vezes aqui falei de "The Last of Us", e do que trago hoje é feito por um fã do jogo, de quem já aqui falei também antes, a propósito da autonomia dos personagens. Grant Voegtle que tinha jogado quatro vezes o jogo, voltou a testar o mesmo na versão PS4, tendo descoberto a novidade incluída nesta versão, o Photo Mode, fez um vídeo através do mesmo absolutamente delicioso.
O que Voegtle fez, e que torna o seu trabalho tão interessante, foi pegar numa ferramenta que vem com o jogo, e que permite congelar momentos específicos da acção no ecrã, sem congelar a perspectiva da câmara. Ou seja, o Photo Mode pausa o motor de jogo, mas permite que a câmara continue a ser controlada pelo jogador, de modo a que este possa escolher o melhor ângulo. Ora Voegtle resolveu ir além dessa escolha e assim gravar sequências vídeo desses momentos de acção congelados, a fazer lembrar o efeito "bullet time" criado por Gaeta para "The Matrix" (1999).
Este filme, espécie de trailer, faz-me voltar a "The Last of Us" e remexer em toda a experiência que foi jogar o mesmo. Faz-me, e agora ligado ao texto que escrevi para publicar esta semana no IGN, pensar que vou voltar a jogar o mesmo muito em breve.
O que Voegtle fez, e que torna o seu trabalho tão interessante, foi pegar numa ferramenta que vem com o jogo, e que permite congelar momentos específicos da acção no ecrã, sem congelar a perspectiva da câmara. Ou seja, o Photo Mode pausa o motor de jogo, mas permite que a câmara continue a ser controlada pelo jogador, de modo a que este possa escolher o melhor ângulo. Ora Voegtle resolveu ir além dessa escolha e assim gravar sequências vídeo desses momentos de acção congelados, a fazer lembrar o efeito "bullet time" criado por Gaeta para "The Matrix" (1999).
"The Last of Us Remastered: 'Time' Trailer" (2014) de Grant Voegtle
Este filme, espécie de trailer, faz-me voltar a "The Last of Us" e remexer em toda a experiência que foi jogar o mesmo. Faz-me, e agora ligado ao texto que escrevi para publicar esta semana no IGN, pensar que vou voltar a jogar o mesmo muito em breve.
outubro 20, 2014
A inovação em "Half-Life"
Stuart Brown publicou ontem no YouTube um belíssimo documentário no qual dá conta da inovação estética produzida por "Half-Life" (HL) em 1998. Ao longo de cerca de 20 minutos Brown apresenta historicamente o surgimento de HL e compara os seus elementos mais marcantes com outros jogos anteriores e posteriores. O documentário acaba por resultar numa demonstração do quão marcante e relevante foi o surgimento de HL para o género First-Person Shooter.
Fiz questão de frisar que a maior relevância de HL diz respeito ao género FPS, já que apesar de este ter apresentado elementos extremamente relevantes no campo do storytelling, o facto de ter permanecido sempre colado à primeira-pessoa, impediu-o de elevar a fasquia neste domínio. Tenho-o dito várias vezes, e volto a dizer, não é possível gerar o nível de empatia requerido por uma história se o protagonista não estiver presente. Em HL2 isso foi muito atenuado com os personagens secundários, nomeadamente Alyx, mas continuou a ser insuficiente. Em termos puramente teóricos, posso até pedir ao jogador que "preencha" o espaço deixado vazio pelo protagonista, tal como o leitor faz quando falta alguma informação num livro que está a ler, mas não chega.
As personagens são elementos-chave numa história, sem elas não existe ligação ao seu âmago emocional. Podemos ver isto acontecer num dos livros mais elogiados de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis (1972) um livro que procura obrigar o leitor a trabalhar na construção mental do personagens, já que o autor apenas fornece o esboço dos ambientes e espaços das cidades. Mas o que acontece é um distanciamento total, uma frieza, uma ausência de sentires capazes de me fazer respirar a história. A descrição é insuficiente, requer drama para se tornar narração.
Em HL, ou qualquer FPS o que temos é isso, uma tentativa de gerar história por via do ambiente, e aqui HL foi exímio, criando todo um mundo espacial altamente credível, sem quebras, sem níveis, sem cutscenes, literalmente sentimos que tínhamos entrado em Black Mesa. Mas tudo seria tão diferente se pudesse ter conhecido Gordon Freeman.
Desta vez gostei de ler os comentários no YouTube, porque se por vezes pareço estar sozinho a defender tudo isto, verifiquei que não é de todo o caso. O primeiro comentário que aí poderão ler, o mais votado, toca exactamente aqui. Muito interessante!
Fiz questão de frisar que a maior relevância de HL diz respeito ao género FPS, já que apesar de este ter apresentado elementos extremamente relevantes no campo do storytelling, o facto de ter permanecido sempre colado à primeira-pessoa, impediu-o de elevar a fasquia neste domínio. Tenho-o dito várias vezes, e volto a dizer, não é possível gerar o nível de empatia requerido por uma história se o protagonista não estiver presente. Em HL2 isso foi muito atenuado com os personagens secundários, nomeadamente Alyx, mas continuou a ser insuficiente. Em termos puramente teóricos, posso até pedir ao jogador que "preencha" o espaço deixado vazio pelo protagonista, tal como o leitor faz quando falta alguma informação num livro que está a ler, mas não chega.
As personagens são elementos-chave numa história, sem elas não existe ligação ao seu âmago emocional. Podemos ver isto acontecer num dos livros mais elogiados de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis (1972) um livro que procura obrigar o leitor a trabalhar na construção mental do personagens, já que o autor apenas fornece o esboço dos ambientes e espaços das cidades. Mas o que acontece é um distanciamento total, uma frieza, uma ausência de sentires capazes de me fazer respirar a história. A descrição é insuficiente, requer drama para se tornar narração.
"RetroAhoy: Half-Life" (2014) de Stuart Brown
Em HL, ou qualquer FPS o que temos é isso, uma tentativa de gerar história por via do ambiente, e aqui HL foi exímio, criando todo um mundo espacial altamente credível, sem quebras, sem níveis, sem cutscenes, literalmente sentimos que tínhamos entrado em Black Mesa. Mas tudo seria tão diferente se pudesse ter conhecido Gordon Freeman.
Desta vez gostei de ler os comentários no YouTube, porque se por vezes pareço estar sozinho a defender tudo isto, verifiquei que não é de todo o caso. O primeiro comentário que aí poderão ler, o mais votado, toca exactamente aqui. Muito interessante!
outubro 19, 2014
"1Q84" de Haruki Murakami
1400 páginas depois, sinto que conheço melhor Aomame e Tengo, assim como Murakami, sinto que estes se encontraram e para eles valeu a pena, mas sinto que me falta algo. "1Q84" é uma viagem longa mas que nunca nos entedia, porque progredindo sempre, ainda que a um ritmo calmo, embora dificilmente possamos dizer que nos marca, que se afunda em nós. Murakami desenha a partir do clássico motivo de enredo, “rapariga encontra rapaz”, uma viagem melancólica e indiferente, bem ao estilo daquele que considera ser o seu realizador de cinema preferido, Aki Kaurismäki.
No ano de 1Q84, (a sonoridade da letra Q em japonês pode confundir-se com o número 9), Aomame e Tengo que não se vêem há 20 anos, estão enamorados, porque quando tinham 10 anos, numa sala da sua escola primária, deram as mãos brevemente mas de forma sentida. Este motivo vai ganhado peso com o passar das páginas, e ao aproximar-se do final do livro torna-se central, criando um momento mágico potenciado pela vastidão de páginas já lidas, geradoras de expectativa e ânsia. Um momento que me fez sair do romance e vaguear dentro de mim, tendo ido parar ao universo de “ICO” (2001), o videojogo em que o rapaz e a rapariga passam quase todo o tempo de mãos dadas fugindo de um mundo hostil.
O melhor advém das múltiplas histórias que enredam toda a linha narrativa central. Não que o livro tenha muitos personagens, aliás para a sua dimensão são poucos até, mas as histórias estendem as suas motivações muito além do esperado: desde o espiritual ao fantástico, do sexual ao familiar, do intelectual ao violento. Nem todas são boas, mas nenhuma se pode dizer que deveria ter ficado de fora. Algumas são absolutamente excelentes, fazendo o livro vibrar dentro de nós, nomeadamente a história do pai de Tengo e o encontro entre o líder espiritual e Aomame. Admito que me incomodou por vezes as descrições, ou melhor repetições um tanto obsessivas de carácter mais sexual e sensual (nomeadamente a mania com o tamanho dos seios), embora aceite que fazem parte da descrição de um universo que se quer dar a ver, mas quando enfatizadas parecem ganhar todo um outro conjunto de leituras.
Lendo Murakami facilmente se percebem as razões do seu sucesso, por um lado a escrita escorreita, muito simples, pouco dada a experimentalismos ou inovação, o que me faz sempre questionar de onde virão as constantes menções a Nobel, já que não se vislumbra como. Por outro, e talvez o mais importante, o trabalho temático que opera uma ligação promíscua e fácil entre a cultura japonesa e a cultura europeia/americana. Murakami usa o Japão como espaço geográfico, mas preenche-o de cultura ocidental, desde Chekhov a Dostoiévski, passando por Kubrick ou Orwell, ou ainda Proust, Shakespeare ou Carroll tudo isto envolvido por sinfonias e concertos de grandes mestres europeus.
Se juntarmos a este caldo cultural, as discussões existenciais com que os seus personagens amiúde se debatem, percebemos facilmente porque Murakami é tão querido junto das camadas mais jovens. Ao longo das páginas todos os personagens, sem excepção, parecem dotados de uma espécie de curiosidade intrínseca sobre o mundo, questionando continuamente o sentido do tempo, da mudança, do ser consciente e da realidade que os envolve. Se os adolescentes sentem aquelas palavras e questionamentos seus, muitos outros já não adolescentes, recolhidos sobre si, questionando-se sobre o seu lugar neste labirinto a que chamamos vida, sentem aqui também ecos do seu interior.
1Q84 apresenta provavelmente um número excessivo de páginas, não por prolongar o romance desnecessariamente, mas antes por se repetir em excesso. Não raras as vezes damos por nós a avançar linhas em diagonal porque já sabemos o que estará ali escrito. Murakami repete, não poucas vezes, as mesmas acções sem alteração, vistas por diferentes personagens. Mais, repete não raras vezes momentos chave do livro, como se tivesse necessidade de recordar o leitor, de garantir que este está alerta para o que ele quer dizer a seguir. A redundância é uma técnica necessária em seriado, mas, e ainda que o livro seja grande, não faz muito sentido a este nível. De certa forma é como se o autor menosprezasse as capacidades e o envolvimento do leitor.
Um último ponto, não me incomodou propriamente que Murakami deixasse muitas questões sem resposta - quem é o “povo pequeno”? quem andava a bater às portas a fazer-se passar por cobrador da NHK? que foi feito da “verdadeira” Fuka-Eri?, etc. etc. - já que o fechamento do romance entre Tengo e Aomame está tão bem conseguido que nos leva totalmente ao esquecimento desses nós narrativos. Mas a verdade é que ficam suspensos no ar, como que se mais uma vez Murakami desprezasse os seus leitores, achando-se acima dos domínios narrativos da causalidade. Podemos até tentar justificar esta opção como um motivo estético pós-moderno, mas dificilmente se enquadra no resto da estética que se serve da clássica progressão causal para envolver e manter o leitor interessado até à última página.
Posto tudo isto, não é de estranhar as análises mistas que se podem ver a "1Q84", com muitos a questionarem-se sobre o que dizer sobre tudo o que acabaram de ler. O esforço pedido por Murakami, em termo de páginas, é grande, e em certa medida parece que as pessoas querem atribuir um sentido válido a esse esforço, pelo respeito que o autor lhes merece, mas as dificuldades em fazê-lo são mais que muitas.
Versão: 3 volumes, editado pela Casa das Letras, com tradução de Maria João Lourenço e Maria João da Rocha Afonso.
No ano de 1Q84, (a sonoridade da letra Q em japonês pode confundir-se com o número 9), Aomame e Tengo que não se vêem há 20 anos, estão enamorados, porque quando tinham 10 anos, numa sala da sua escola primária, deram as mãos brevemente mas de forma sentida. Este motivo vai ganhado peso com o passar das páginas, e ao aproximar-se do final do livro torna-se central, criando um momento mágico potenciado pela vastidão de páginas já lidas, geradoras de expectativa e ânsia. Um momento que me fez sair do romance e vaguear dentro de mim, tendo ido parar ao universo de “ICO” (2001), o videojogo em que o rapaz e a rapariga passam quase todo o tempo de mãos dadas fugindo de um mundo hostil.
O melhor advém das múltiplas histórias que enredam toda a linha narrativa central. Não que o livro tenha muitos personagens, aliás para a sua dimensão são poucos até, mas as histórias estendem as suas motivações muito além do esperado: desde o espiritual ao fantástico, do sexual ao familiar, do intelectual ao violento. Nem todas são boas, mas nenhuma se pode dizer que deveria ter ficado de fora. Algumas são absolutamente excelentes, fazendo o livro vibrar dentro de nós, nomeadamente a história do pai de Tengo e o encontro entre o líder espiritual e Aomame. Admito que me incomodou por vezes as descrições, ou melhor repetições um tanto obsessivas de carácter mais sexual e sensual (nomeadamente a mania com o tamanho dos seios), embora aceite que fazem parte da descrição de um universo que se quer dar a ver, mas quando enfatizadas parecem ganhar todo um outro conjunto de leituras.
Lendo Murakami facilmente se percebem as razões do seu sucesso, por um lado a escrita escorreita, muito simples, pouco dada a experimentalismos ou inovação, o que me faz sempre questionar de onde virão as constantes menções a Nobel, já que não se vislumbra como. Por outro, e talvez o mais importante, o trabalho temático que opera uma ligação promíscua e fácil entre a cultura japonesa e a cultura europeia/americana. Murakami usa o Japão como espaço geográfico, mas preenche-o de cultura ocidental, desde Chekhov a Dostoiévski, passando por Kubrick ou Orwell, ou ainda Proust, Shakespeare ou Carroll tudo isto envolvido por sinfonias e concertos de grandes mestres europeus.
Se juntarmos a este caldo cultural, as discussões existenciais com que os seus personagens amiúde se debatem, percebemos facilmente porque Murakami é tão querido junto das camadas mais jovens. Ao longo das páginas todos os personagens, sem excepção, parecem dotados de uma espécie de curiosidade intrínseca sobre o mundo, questionando continuamente o sentido do tempo, da mudança, do ser consciente e da realidade que os envolve. Se os adolescentes sentem aquelas palavras e questionamentos seus, muitos outros já não adolescentes, recolhidos sobre si, questionando-se sobre o seu lugar neste labirinto a que chamamos vida, sentem aqui também ecos do seu interior.
1Q84 apresenta provavelmente um número excessivo de páginas, não por prolongar o romance desnecessariamente, mas antes por se repetir em excesso. Não raras as vezes damos por nós a avançar linhas em diagonal porque já sabemos o que estará ali escrito. Murakami repete, não poucas vezes, as mesmas acções sem alteração, vistas por diferentes personagens. Mais, repete não raras vezes momentos chave do livro, como se tivesse necessidade de recordar o leitor, de garantir que este está alerta para o que ele quer dizer a seguir. A redundância é uma técnica necessária em seriado, mas, e ainda que o livro seja grande, não faz muito sentido a este nível. De certa forma é como se o autor menosprezasse as capacidades e o envolvimento do leitor.
Um último ponto, não me incomodou propriamente que Murakami deixasse muitas questões sem resposta - quem é o “povo pequeno”? quem andava a bater às portas a fazer-se passar por cobrador da NHK? que foi feito da “verdadeira” Fuka-Eri?, etc. etc. - já que o fechamento do romance entre Tengo e Aomame está tão bem conseguido que nos leva totalmente ao esquecimento desses nós narrativos. Mas a verdade é que ficam suspensos no ar, como que se mais uma vez Murakami desprezasse os seus leitores, achando-se acima dos domínios narrativos da causalidade. Podemos até tentar justificar esta opção como um motivo estético pós-moderno, mas dificilmente se enquadra no resto da estética que se serve da clássica progressão causal para envolver e manter o leitor interessado até à última página.
Posto tudo isto, não é de estranhar as análises mistas que se podem ver a "1Q84", com muitos a questionarem-se sobre o que dizer sobre tudo o que acabaram de ler. O esforço pedido por Murakami, em termo de páginas, é grande, e em certa medida parece que as pessoas querem atribuir um sentido válido a esse esforço, pelo respeito que o autor lhes merece, mas as dificuldades em fazê-lo são mais que muitas.
Versão: 3 volumes, editado pela Casa das Letras, com tradução de Maria João Lourenço e Maria João da Rocha Afonso.
outubro 12, 2014
Quando o social não chega
“Fish Tank” (2009) é uma estrela resplandecente no topo da corrente estética do realismo social britânico popularizada por Mike Leigh e Ken Loach, entre outros. Somos mais uma vez levados por entre muros de um bairro social britânico, desta vez para conhecer as filhas de uma mãe solteira e alcoólica. Com 15 anos a revolta é mais que muita, sem rede familiar, desconhecendo os significados do afecto e da amizade, todos parecem estar contra nós, tal qual répteis temos apenas a raiva para oferecer.
A realizadora Andrea Arnold tinha ganho o Oscar para melhor curta em 2003 com “Wasp”, um filme marcado pelo mesmo traço temático. “Fish Tank” é a sua longa, e é um trabalho de soberba acuidade. Uma análise mais apurada do filme permite-nos encontrar detalhes dignos de literatura. O modo como cada cenário se apresenta, decoração e composição, funciona como espelho de alma de cada um destes personagens. Cada divisão da casa poderia facilmente resvalar para várias páginas de descrição do que se vê, pelo quanto isso nos ajuda a compreender as personagens, os seus mundos, sonhos e limitações. Nomeadamente o contraste entre os ecrãs de televisão e a arrumação e colorido da casa é fundamental.
A fraca qualidade dos aparelhos, espalhados por toda a casa, continuamente sintonizados em fracos conteúdos, com mau sinal, como que alimentam espaços arrumados, aparentemente calmos e civilizados de distorções do real. Um contraste que se reforça nos personagens: limpos, arrumados e bonitos por fora mas com tão pouco mundo por dentro. Sente-se a fachada, a necessidade de criar uma imagem para garantir a manutenção dos apoios sociais. Percebe-se que existe ali espaço para muito mais, que o facto de se viver numa sociedade de primeiro-mundo, dotada de uma rede social pública, abre caminhos e oportunidades incomensuráveis.
Mas no fundo, e é aqui que o filme mais brilha, na sua sub-reptícia mensagem: não basta dinheiro, comida e um lar arrumado. Sem uma família sólida capaz de alicerçar o amor-próprio, a educação não se constrói, a formação é cortada antes de poder dar fruto, limitando o mundo, assim como o desejo.
Uma nota final sobre o realismo por detrás daquilo que nos é dado a ver. Katie Jarvis que protagoniza a adolescente Mia, foi descoberta em Essex pela realizadora. Vivia também numa casa social, e fora mãe aos 16 anos. A força do que vemos nestas imagens levou-a ganhar vários prémios em festivais internacionais em 2009, mas passados 5 anos, a sua carreira resume-se a um parco episódio de televisão, e mais alguns episódios de séries de televisão em pré-produção...
A realizadora Andrea Arnold tinha ganho o Oscar para melhor curta em 2003 com “Wasp”, um filme marcado pelo mesmo traço temático. “Fish Tank” é a sua longa, e é um trabalho de soberba acuidade. Uma análise mais apurada do filme permite-nos encontrar detalhes dignos de literatura. O modo como cada cenário se apresenta, decoração e composição, funciona como espelho de alma de cada um destes personagens. Cada divisão da casa poderia facilmente resvalar para várias páginas de descrição do que se vê, pelo quanto isso nos ajuda a compreender as personagens, os seus mundos, sonhos e limitações. Nomeadamente o contraste entre os ecrãs de televisão e a arrumação e colorido da casa é fundamental.
A fraca qualidade dos aparelhos, espalhados por toda a casa, continuamente sintonizados em fracos conteúdos, com mau sinal, como que alimentam espaços arrumados, aparentemente calmos e civilizados de distorções do real. Um contraste que se reforça nos personagens: limpos, arrumados e bonitos por fora mas com tão pouco mundo por dentro. Sente-se a fachada, a necessidade de criar uma imagem para garantir a manutenção dos apoios sociais. Percebe-se que existe ali espaço para muito mais, que o facto de se viver numa sociedade de primeiro-mundo, dotada de uma rede social pública, abre caminhos e oportunidades incomensuráveis.
Mas no fundo, e é aqui que o filme mais brilha, na sua sub-reptícia mensagem: não basta dinheiro, comida e um lar arrumado. Sem uma família sólida capaz de alicerçar o amor-próprio, a educação não se constrói, a formação é cortada antes de poder dar fruto, limitando o mundo, assim como o desejo.
Uma nota final sobre o realismo por detrás daquilo que nos é dado a ver. Katie Jarvis que protagoniza a adolescente Mia, foi descoberta em Essex pela realizadora. Vivia também numa casa social, e fora mãe aos 16 anos. A força do que vemos nestas imagens levou-a ganhar vários prémios em festivais internacionais em 2009, mas passados 5 anos, a sua carreira resume-se a um parco episódio de televisão, e mais alguns episódios de séries de televisão em pré-produção...
outubro 08, 2014
Fronteiras entre séries tv e cinema
A ideia de que as séries de televisão se transformaram no novo cinema não é de todo nova, tem pelo menos dez anos, mas durante todo este tempo sempre as vi ainda distantes no que toca à linguagem audiovisual. O facto de se ter de filmar, entre 10 a 60 horas, impossibilita que se invista o mesmo tempo que se investe num filme, que tem entre 1 a 2 horas, na construção de cenas e planos. Mas o que vi, no episódio 4 da primeira temporada de "True Detective", deixou-me boquiaberto, tendo assim, para mim, quebrado-se uma das últimas fronteiras que separavam as séries do cinema. Estou a falar de um plano sequência (long shots ou oners) com cerca de 6 minutos realizado por Cary Fukunaga.
A construção deste plano levou apenas 2 dias, muito pouco para cinema, imenso para televisão. Num dos dias foram feitos os vários ensaios, no outro dia foi gravada toda a cena. Encontrei alguma informação, dada por um dos técnicos envolvido na cena, no No Film School, e que aqui transcrevo.
Coloquei a sequência completa no YouTube mas este não me permite realizar o embed por isso terão de ver directamente no YouTube (deixo link de outra versão em HD).
A construção deste plano levou apenas 2 dias, muito pouco para cinema, imenso para televisão. Num dos dias foram feitos os vários ensaios, no outro dia foi gravada toda a cena. Encontrei alguma informação, dada por um dos técnicos envolvido na cena, no No Film School, e que aqui transcrevo.
"Stunts and actors rehearsed on a mock up of the 1st house for probably a week. The entire run through, we had two days: one to rehearse, one to shoot. It was very well coordinated so there wasn’t much room for improv as far as the course of the shot. I cant speak for actor nuances though. We shot the entire show on film: Millennium XLs, excluding this shot. We went with an Alexa just because the length of the scene was longer than a 400′ mag. We stripped the weight of the camera to a minimum so no cinetape or matte box. The focus puller did an incredible job. I believe it was a 28mm at a 2.8."A forma como está filmada a sequência é algo que Fukunaga gosta particularmente, tendo explicado à MTV que para si estes planos sequência, "are the most first-person experience you can get in a film". Concordo, e é interessante que diga isto porque foi exactamente por esta razão que o André Valentim Almeida me deu conta deste plano sequência quando o viu. Na altura falámos sobre o facto de se notar aqui alguma influência da estética dos videojogos FPS, o que vem de encontro às intenções concretas de Fukunaga. A mescla de discursos é inevitável, uma vez que dizem respeito a artefactos provenientes do mesmo caldo cultural, fazendo com que os discursos se moldem à semelhança uns dos outros e assim evoluam mutuamente.
Coloquei a sequência completa no YouTube mas este não me permite realizar o embed por isso terão de ver directamente no YouTube (deixo link de outra versão em HD).
outubro 07, 2014
Aprender com Soderbergh e Spielberg
Steven Soderbergh resolveu dar uma masterclass brilhante sobre encenação (“staging”) no seu blog. Como ele diz, a encenação como arte de colocar em cena provém do teatro, e se no cinema também se pode assim chamar, esta representa mais do que colocar em cena. Nesse sentido temos de perceber que aquilo que Soderbergh aqui acaba por definir como encenação, é no fundo a direcção cinematográfica. Ou seja, a composição da cena, a escolha dos planos e os padrões de edição fazem tudo parte do trabalho de plastificação da ideia em imagem.
Assim a particularidade desta aula assenta nas ferramentas escolhidas por Soderbergh para explicar a encenação. Soderbergh pegou numa cópia de “Raiders of the Lost Ark” (1981), o primeiro filme da série Indiana Jones, e retirou-lhe o som e a cor, e colocou-o online. Pode parecer algo simples, básico e banal, mas longe disso. O resultado desta operação, diga-se original, é o de permitir aos interessados na arte, o focar-se sobre a sua essência. No caso do som, Soderbergh acabou por lhe adicionar uma banda sonora ambiente, mas posso dizer que das várias cenas que estive a analisar, acabei por preferir retirar o som completamente, já que por vezes me sentia a ser levado pela música. Ficam as instruções para visionamento, muito simples e claras:
Um outro apontamento muito relevante deste exercício acaba por surgir mais por acaso, do efeito de retirada da cor, que nos permite assim ganhar uma noção muito mais cristalina da qualidade da fotografia de Douglas Slocombe.
O filme completo só pode ser visto na página do Soderbergh, o seu embebimento noutros sites está bloqueado por razões de copyright.
Assim a particularidade desta aula assenta nas ferramentas escolhidas por Soderbergh para explicar a encenação. Soderbergh pegou numa cópia de “Raiders of the Lost Ark” (1981), o primeiro filme da série Indiana Jones, e retirou-lhe o som e a cor, e colocou-o online. Pode parecer algo simples, básico e banal, mas longe disso. O resultado desta operação, diga-se original, é o de permitir aos interessados na arte, o focar-se sobre a sua essência. No caso do som, Soderbergh acabou por lhe adicionar uma banda sonora ambiente, mas posso dizer que das várias cenas que estive a analisar, acabei por preferir retirar o som completamente, já que por vezes me sentia a ser levado pela música. Ficam as instruções para visionamento, muito simples e claras:
“So I want you to watch this movie and think only about staging, how the shots are built and laid out, what the rules of movement are, what the cutting patterns are. See if you can reproduce the thought process that resulted in these choices by asking yourself: why was each shot—whether short or long—held for that exact length of time and placed in that order?”Claro que se Soderbergh escolheu este filme, não foi ao acaso. Spielberg não é um mero realizador de Hollywood, foi durante muitos anos considerado um mago de hollywood, e a razão para tal não se prende com a capacidade para fazer dinheiro, embora também, mas essencialmente com a sua capacidade para plasmar na perfeição, ideias na tela. Como refere Soderbergh, o trabalho de encenação de Spielberg neste filme é "matemática visual de alto-nível". Contudo não deixa de referir que Spielberg, com o tempo, foi perdendo parte destas capacidades.
Um outro apontamento muito relevante deste exercício acaba por surgir mais por acaso, do efeito de retirada da cor, que nos permite assim ganhar uma noção muito mais cristalina da qualidade da fotografia de Douglas Slocombe.
O filme completo só pode ser visto na página do Soderbergh, o seu embebimento noutros sites está bloqueado por razões de copyright.
outubro 06, 2014
Revistas científicas relevantes
Estive a preencher o inquérito da FCT relativo às revistas científicas que devem ser utilizadas como referência nos futuros critérios de avaliação nacional e achei muito relevante. É um trabalho que já deveria ter sido feito há mais tempo, já que muito daquilo que fazemos nem sempre se revê nos interesses de grandes editoras - Elsevier, Sage, etc. - ou de grandes interesses de indexação - ISI, SCOPUS, etc. - ou das revistas científicas mais populares - Science, Nature, etc. -.
Foi muito interessante analisar a lista pré-registada apresentada pela FCT, baseada numa lista dos investigadores do sistema nacional de investigação da Noruega, porque encontrei revistas de que há muito não ouvia falar, e que nem sequer estão indexadas. E por isso mesmo senti-me motivado a rever as listas de journals que tenho feito ao longo da última década. Só que desta vez, e ao contrário do que costumava fazer até aqui, não segui o critério - ISI, SCIELO ou outro - mas apenas 3 simples critérios: qualidade dos artigos que aí tenho lido; existência de revisão por pares; e alguns anos de permanência online que assegurem o futuro das publicações. Assim deixo aqui a lista, por ordem alfabética, para quem estiver interessado nestas áreas de investigação (a lista está sempre presente na lateral direita deste blog).
Revistas Científicas (Journals)
Foi muito interessante analisar a lista pré-registada apresentada pela FCT, baseada numa lista dos investigadores do sistema nacional de investigação da Noruega, porque encontrei revistas de que há muito não ouvia falar, e que nem sequer estão indexadas. E por isso mesmo senti-me motivado a rever as listas de journals que tenho feito ao longo da última década. Só que desta vez, e ao contrário do que costumava fazer até aqui, não segui o critério - ISI, SCIELO ou outro - mas apenas 3 simples critérios: qualidade dos artigos que aí tenho lido; existência de revisão por pares; e alguns anos de permanência online que assegurem o futuro das publicações. Assim deixo aqui a lista, por ordem alfabética, para quem estiver interessado nestas áreas de investigação (a lista está sempre presente na lateral direita deste blog).
Revistas Científicas (Journals)
- Animation
- Computers in Entertainment
- Comunicar
- Comunicação e Sociedade
- Convergence
- Digital Creativity
- Entertainment Computing
- Game Studies
- Games and Culture
- Interacting with Computers
- Interaction Studies
- Journal of Interaction Science
- Journal of Interactive Advertising
- Journal of Virtual Worlds Research
- Media Psychology
- Observatorio (OBS*)
- Poetics
- The Visual Computer
- Visual Communication
outubro 05, 2014
O mundo maravilhoso de Shaun Tan
Acabo de ler "The Arrival" (2006) de Shaun Tan que me deixou num estado de total maravilhamento. De tan Conhecia apenas a magnífica animação, "The Lost Thing" (ver abaixo), vencedora do Oscar para curta de animação em 2011. Se tinha gostado da estilística visual de "The Lost Thing" agora amei aquilo que me pareceu ser um trabalho mais apurado dessa estilística. Parece-me que o facto de "The Arrival" ser dirigido a um público mais adulto deu permissão a Tan para elaborar e detalhar mais a particularidade deste seu universo visual. Apesar disso parece-me que ambos estes seus dois trabalhos foram fulcrais na atribuição em 2011 do Astrid Lindgren Memorial Award, o nobel dos livros para criança. Tan é um artista imensamente completo.
"The Arrival" é particularmente feliz porque faz da forma visual o enunciado do sentir dos personagens, fundindo assim mensagem e forma num todo que se exponencia. A estilística muito sui generis de Tan não podia ter encontrado melhor texto para se dar. Tratando a emigração, o livro dá conta de um mundo estranho a que se chega (arrival), mundo esse que segue formas próximas daquilo que conhecemos mas com variações muito particulares, por vezes bizarras ou insólitas. Não se ficando apenas pelo redesenho da representação da realidade, a própria linguagem de composição de vinhetas é renovada seguindo uma lógica de álbum de fotografias antigo, com os elementos de papel texturado e rasgado, transportando assim o leitor para todo um universo que tem apenas como objectivo dar a sentir. O leitor entra na pele de um verdadeiro emigrante e cruza dentro de si as emoções deste, estranheza e saudade.
Estive a ver algumas imagens do seu mais recente trabalho, que ainda não li, "Rules of Summer" (2013), lançado em livro e app para iPad, que para além de seguir regras deste seu mundo visual, promete mais um mundo maravilhoso, desta vez sobre óleo em tela.
Todo este trabalho, visual e narrativo, não será alheio ao facto de Tan Shaun se ter licenciado em Belas Artes e Literatura Inglesa. Como ele diz em entrevista recente, teve momentos da sua vida em que se dedicava apenas a escrever, e outros momentos em que se dedicava apenas a desenhar. Os artistas não podem, nem devem ser iguais, mas o que podemos percepcionar aqui é que ser capaz de criar o seu mundo de intenções, organizá-lo e enquadrá-lo enquanto história, e depois conseguir ainda dar-lhe uma forma, outra que não textual, não só enriquece profundamente o trabalho como dá maior liberdade e alcance à visão de um artista.
Capa e páginas de The Arrival
"The Lost Thing" (2010) de Shaun Tan
Estive a ver algumas imagens do seu mais recente trabalho, que ainda não li, "Rules of Summer" (2013), lançado em livro e app para iPad, que para além de seguir regras deste seu mundo visual, promete mais um mundo maravilhoso, desta vez sobre óleo em tela.
"Rules of Summer" (2013) de Shaun Tan
Todo este trabalho, visual e narrativo, não será alheio ao facto de Tan Shaun se ter licenciado em Belas Artes e Literatura Inglesa. Como ele diz em entrevista recente, teve momentos da sua vida em que se dedicava apenas a escrever, e outros momentos em que se dedicava apenas a desenhar. Os artistas não podem, nem devem ser iguais, mas o que podemos percepcionar aqui é que ser capaz de criar o seu mundo de intenções, organizá-lo e enquadrá-lo enquanto história, e depois conseguir ainda dar-lhe uma forma, outra que não textual, não só enriquece profundamente o trabalho como dá maior liberdade e alcance à visão de um artista.
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