dezembro 16, 2019
"Neo Cab" (2019)
"Neo Cab" é o jogo narrativo de 2019. O tema assenta num cyberpunk não muito distante, quase relacionável com os dias de hoje, no que toca a uso de redes sociais, Uber e IA, o que acaba por funcionar muito bem em termos de dramatização das ansiedades sociais atuais: o desemprego pela automatização, as diferenças humano-máquina, a vigilância e a perda de privacidade, o isolamento e o distanciamento da natureza. Em termos formais, temos uma narrativa multilinear com múltiplas escolhas, mais centradas no diálogo, mas com implicações no desenrolar dos eventos. O melhor de tudo acaba sendo a escrita, ou seja, a capacidade de introduzir os temas complexos no meio das discussões e de nos fazer pensar sobre eles.
O jogo usa jogabilidade da gestão de corridas de táxi/uber para nos envolver no universo. Temos várias noites de trabalho, estamos numa cidade nova, e temos de fazer 3 circuitos diários, cuidando das estrelas que nos atribuem, recarregar a energia do carro escolhendo os locais mais em conta, assim como arranjar hotel todas as noites para descansar. No meio de tudo isto a narrativa desenrola-se pela conversação que encetamos com todos aqueles que vamos apanhando na cidade. A progressão, tanto no jogo como na narrativa, está imensamente cuidada, garantido grandes níveis de engajamento. Não raras as noites, queremos continuar, porque queremos saber mais, queremos ajudar, queremos descobrir, queremos avançar.
A imersão é ainda conseguida pela interface muito assente em grandes planos das faces, mesmo que estas nem sempre se concertem com o que está a ser dito, aproximam-se. Mas garantem uma proximidade com alguém ali na nossa frente, sem que, contudo, isso tenha implicado um grande investimento da equipa, em termos de recursos gráficos e de produção (é um jogo indie, e custa menos de 20 euros). Sem dúvida que o que leva o jogo às costas é a história e a sua escrita, tanto a componente linear, como as nossas escolhas.
No campo das escolhas, o mais importante de uma narrativa interativa, houve o cuidado de trabalhar as mesmas em duas frentes — racional e emocional. Não podemos sempre escolher o que queremos, existem condicionantes emocionais que por vezes nos impedem de reagir. Podemos de algum modo sentir a nossa liberdade recortada, por outro lado, é desta forma que conseguem garantir personalidade à Lina, a nossa condutora Uber. Ela não é uma mera extensão de nós, tem vontade própria, tem ansiedades e desejos, e nós enquanto jogamos não estamos meramente a controlar um universo interativo por meio dela, mas estamos a aprender sobre ela e com ela. No fundo, é assim que os autores conseguem gerar empatia entre nós e a Lina, e ao mesmo tempo produzir a enorme sensação de engajamento que sentimos com o jogo. Estamos, na esfera narrativa, mais do que um jogo, isto é uma história, e o que “Neo Cab” faz é construir um acesso privilegiado que o recetor usa não apenas para sorver a história, mas por meio dela experienciar uma realidade distinta da sua, o que é conseguido através da reflexão e consequente tomada de decisões dentro do mundo-história.
dezembro 07, 2019
A criatividade fruto das ciências e humanidades
Edward O. Wilson é um célebre biólogo americano com uma extensíssima carreira. Académico em Harvarde de 1956 a 1996, continua ainda hoje a desenvolver trabalho, estudos e a escrever livros, depois de ter feito 90 anos em junho deste ano. Apesar da sua área ser as ciências naturais, Wilson é reconhecido pela sua enorme multidisciplinaridade, tendo defendido métodos para aproximar e conduzir à convergência, as ciências e humanidades, no seu livro “Consilience: The Unity of Knowledge” (1998). Este “The Origins of Creativity” (2017) é apenas um dos 16 livros que Wilson escreveu já neste século, depois de se ter reformado de Harvard.
Contextualizado o autor, perceber-se-á melhor a razão do interesse deste livro e simultaneamente a decepção. “The Origins of Creativity” não é, nem de perto, um livro sobre criatividade. É mais a soma de um conjunto de textos soltos, arrolados por interesses próximos e publicados no formato de livro. Deste modo, ao longo do livro encontramos ideias de grande relevância e impacto, contudo por não existir um trabalho cuidado de edição das ideias, estas acabam por nunca ser devidamente aprofundadas, e nalguns casos, algumas das questões levantadas nunca chegam sequer a ser respondidas. Por outro lado, o livro apresenta uma linguagem bastante acessível e Wilson é inexcedível em fornecer exemplos das mais variadas áreas, demonstrando a sua enorme erudição.
O foco do livro está todo na evolução do Homo Sapiens, dirigido à questão que já tinha tentado responder em "Consilience": como é que podemos juntar as ciências e humanidades? Para Wilson é evidente que não existe criatividade sem ambos os lados, contudo os perfis mais criativos tendem a conviver melhor com a mescla e fusão de ambos os lados, o que não acontece quando se está demasiado colado a um dos perfis apenas. Wilson diz ter uma proposta para juntar esses lados ou perfis, mas nunca chega a concretizá-la. Existem partes no livro em que parece aproximar-se da proposta de Denis Dutton, de juntar as neurociências e psicologias cognitiva e social nos seus contornos evolucionistas ao interpretativismo das humanidades, algo com que concordo plenamente. Noutras partes, questiona a “obsessão” das humanidades pelo humano (!) frisando que estas deveriam ir além, tal como usar as tecnologias para ver o mundo a partir de outras perspetivas, como por exemplo as capacidades sensoriais de outras espécies (ex. navegação sonora dos morcegos). Wilson chega mesmo a evocar a Realidade Virtual para ajudar nesta senda, mas depois não concretiza, e a proposta é, para quem trabalha no domínio da RV, fruto de mero deslumbramento tecnológico. No último capítulo, “O Terceiro Iluminismo”, Wilson volta a perder-se, lançando supostas grandes questões filosóficas da união entre a ciência e humanidade, que não vão além das mesmas já colocadas por todos aqueles que antes ousaram questionar-se a si mesmos.
No meio de todos estes problemas, surge a superficialidade por meio muitos buracos e pontas soltas, existem contudo vários traços da genialidade de Wilson que aproveito para aqui registar e divulgar. Deixo os excertos em inglês, porque não tenho a versão digital do livro português:
A narração como instantâneo (p.50)
“Postmodern narrations and for that matter all fiction worth its mettle, does what science cannot: it provides an exact snapshot of a segment of culture in a particular place and time. The productions are like photographs that preserve for all time not just the people as they actually seemed, looked, or even truly were, including their dress and posture and facial expressions, but also the surroundings most important to them—their homes, their pets, their transportation, their trails and streets."
(..)
“Fine novels and antique photographs are pixels of history. Put together, they create an image of existence as people actually lived it, day by day, hour by hour, and in the case of literature, the emotions they felt. Finally, they trace some of the seemingly endless consequences that followed. ”
O poder da ciência e a míngua nas humanidades (p.81)
“Our most celebrated heroes are not poets or scientists; few Americans can name even a dozen of either living among us. Our heroes instead are billionaires, start-up innovators, nationally ranked entertainers, and champion athletes.”
(..)
“Science and technology have been supported massively by taxes from the American people for what is generally considered the public good. (..) The humanities, in contrast, are supported primarily by educational institutions (..) In the competition between science and the humanities for funds provided by the American people, the humanities rank consistently lower than science.”
(..)
“Americans are often reminded that research and development in basic science are good for the nation. That is obviously true. But it is equally true for the humanities, all across their domain from philosophy and jurisprudence to literature and history. They preserve our values. They turn us into patriots and not just cooperating citizens. They make clear why we abide by law built upon moral precepts and do not depend on inspired leadership by autocratic rulers. They remind us that in ancient times science itself was a dependent child of the humanities. It was called “natural philosophy.”
Why then are the humanities kept on starvation rations?
Partly because so much of our available resources are appropriated by organized religions.”
A importância das humanidades (p.177)
“The critic Helen Vendler broadens the key question as well as can be phrased: «If there did not exist, floating over us, all the symbolic representations that art and music, religion, philosophy, and history, have invented, and afterward all the interpretations and explanations of them that scholarly activity have passed on, what sort of people would we be?»
Neither the question nor the answer is rhetorical. ”
Contextualizado o autor, perceber-se-á melhor a razão do interesse deste livro e simultaneamente a decepção. “The Origins of Creativity” não é, nem de perto, um livro sobre criatividade. É mais a soma de um conjunto de textos soltos, arrolados por interesses próximos e publicados no formato de livro. Deste modo, ao longo do livro encontramos ideias de grande relevância e impacto, contudo por não existir um trabalho cuidado de edição das ideias, estas acabam por nunca ser devidamente aprofundadas, e nalguns casos, algumas das questões levantadas nunca chegam sequer a ser respondidas. Por outro lado, o livro apresenta uma linguagem bastante acessível e Wilson é inexcedível em fornecer exemplos das mais variadas áreas, demonstrando a sua enorme erudição.
O foco do livro está todo na evolução do Homo Sapiens, dirigido à questão que já tinha tentado responder em "Consilience": como é que podemos juntar as ciências e humanidades? Para Wilson é evidente que não existe criatividade sem ambos os lados, contudo os perfis mais criativos tendem a conviver melhor com a mescla e fusão de ambos os lados, o que não acontece quando se está demasiado colado a um dos perfis apenas. Wilson diz ter uma proposta para juntar esses lados ou perfis, mas nunca chega a concretizá-la. Existem partes no livro em que parece aproximar-se da proposta de Denis Dutton, de juntar as neurociências e psicologias cognitiva e social nos seus contornos evolucionistas ao interpretativismo das humanidades, algo com que concordo plenamente. Noutras partes, questiona a “obsessão” das humanidades pelo humano (!) frisando que estas deveriam ir além, tal como usar as tecnologias para ver o mundo a partir de outras perspetivas, como por exemplo as capacidades sensoriais de outras espécies (ex. navegação sonora dos morcegos). Wilson chega mesmo a evocar a Realidade Virtual para ajudar nesta senda, mas depois não concretiza, e a proposta é, para quem trabalha no domínio da RV, fruto de mero deslumbramento tecnológico. No último capítulo, “O Terceiro Iluminismo”, Wilson volta a perder-se, lançando supostas grandes questões filosóficas da união entre a ciência e humanidade, que não vão além das mesmas já colocadas por todos aqueles que antes ousaram questionar-se a si mesmos.
No meio de todos estes problemas, surge a superficialidade por meio muitos buracos e pontas soltas, existem contudo vários traços da genialidade de Wilson que aproveito para aqui registar e divulgar. Deixo os excertos em inglês, porque não tenho a versão digital do livro português:
A narração como instantâneo (p.50)
“Postmodern narrations and for that matter all fiction worth its mettle, does what science cannot: it provides an exact snapshot of a segment of culture in a particular place and time. The productions are like photographs that preserve for all time not just the people as they actually seemed, looked, or even truly were, including their dress and posture and facial expressions, but also the surroundings most important to them—their homes, their pets, their transportation, their trails and streets."
(..)
“Fine novels and antique photographs are pixels of history. Put together, they create an image of existence as people actually lived it, day by day, hour by hour, and in the case of literature, the emotions they felt. Finally, they trace some of the seemingly endless consequences that followed. ”
O poder da ciência e a míngua nas humanidades (p.81)
“Our most celebrated heroes are not poets or scientists; few Americans can name even a dozen of either living among us. Our heroes instead are billionaires, start-up innovators, nationally ranked entertainers, and champion athletes.”
(..)
“Science and technology have been supported massively by taxes from the American people for what is generally considered the public good. (..) The humanities, in contrast, are supported primarily by educational institutions (..) In the competition between science and the humanities for funds provided by the American people, the humanities rank consistently lower than science.”
(..)
“Americans are often reminded that research and development in basic science are good for the nation. That is obviously true. But it is equally true for the humanities, all across their domain from philosophy and jurisprudence to literature and history. They preserve our values. They turn us into patriots and not just cooperating citizens. They make clear why we abide by law built upon moral precepts and do not depend on inspired leadership by autocratic rulers. They remind us that in ancient times science itself was a dependent child of the humanities. It was called “natural philosophy.”
Why then are the humanities kept on starvation rations?
Partly because so much of our available resources are appropriated by organized religions.”
A importância das humanidades (p.177)
“The critic Helen Vendler broadens the key question as well as can be phrased: «If there did not exist, floating over us, all the symbolic representations that art and music, religion, philosophy, and history, have invented, and afterward all the interpretations and explanations of them that scholarly activity have passed on, what sort of people would we be?»
Neither the question nor the answer is rhetorical. ”
dezembro 04, 2019
Entrevista com Neil Druckmann (The Art of Video Game Storytelling)
Mais um vídeo sobre o desenvolvimento de "The Last of Us" (2013) focado na narrativa, contando com uma excelente entrevista com Neil Druckmann, o co-diretor e principal responsável pelo argumento. Em pouco mais de 20 minutos Druckmann explica algumas das semelhanças entre a escrita para cinema e videojogos, destacando modos de representação, exposição e construção de arcos narrativos de personagens. Algumas coisas são já bem conhecidas, outras como a construção do argumento e o modo como ele é usado na encenação do jogo estão excelentes. Claro que ao longo da entrevista Druckmann vai sempre revelando pequenos detalhes sobre o design da narrativa que não só deliciam quem quer que tenha jogado, como dão conta do modo como tudo o que está no jogo foi pensado ao ínfimo detalhe.
"The Last of Us" continua sendo um dos melhores jogos de sempre do meio, apesar dos 6 anos passados, continua perfeitamente jogável e tão poderoso, em termos expressivos, como quando saiu.
"The Last of Us" continua sendo um dos melhores jogos de sempre do meio, apesar dos 6 anos passados, continua perfeitamente jogável e tão poderoso, em termos expressivos, como quando saiu.
O peso da existência
É um livro estranho. Não por ser exótico ou extemporâneo, mas por trabalhar um tema doloroso — a deficiência congénita — de forma muito direta, a partir de um olhar vulgar, que faz com que a leitura se torne numa experiência estranha, misto de dor, espanto e surpresa. Em parte, deve à abordagem pela comédia negra que nos oferece todo um universo em constante transição entre realidade e fantasia. O relato é depois agravado por uma escrita desconsertada que não percebo se por razão da tradução ou originária do texto base japonês. “Uma Questão Pessoal” foi publicado por Kenzaburo Oe em 1964, exatamente 30 anos antes de receber o Nobel.
O protagonista, Bird de quase 30 anos, descobre que o seu filho, acabado de nascer, apresenta uma hérnia cerebral, o que representa baixas expectativas de sobrevivência sem uma operação que pode ditar o resto da vida num estado vegetal. A reação é visceral, mas colada às banalidades da vida quotidiana. Bird não se fecha na introspeção para puxar do seu existencialismo, não produz qualquer grito mudo ou pensa em qualquer haraquíri, antes desata em busca de interação com a realidade, repescando antigos colegas, não para deles sorver ânimo, mas para poder por meio da interação com eles fugir do problema.
O texto que ao terminar-se deixa um trago agridoce, pode, se assim o desejarmos, levar-nos a questionar os fundamentos da moral civilizacional. Se por um lado compreendemos a reação negativa do protagonista ao que o espera, não deixa de nos impactar a sua recusa do seu próprio filho, algo que Oe não deixa por mão alheia já que oferece todo um contorno algo negativo do protagonista. Temos muito álcool e sexo à mistura com muita indolência e displicência. Não que Oe pinte um diabo, a linha é mantida sempre coerente, com a honestidade e frontalidade do protagonista a garantir elevação, e por isso mesmo provocando em certos momentos alguma admiração. Li algures, sobre uma potencial proximidade entre este Bird de Oe e Meursault de Camus que aceito, embora e à distância sinta Meursault como alguém mais coerente e elaborado, talvez por neste caso termos uma abordagem cómica que nos impede de compreender o alcance concreto dos pensamentos do personagem, se são sentidos ou meramente sarcásticos.
O protagonista, Bird de quase 30 anos, descobre que o seu filho, acabado de nascer, apresenta uma hérnia cerebral, o que representa baixas expectativas de sobrevivência sem uma operação que pode ditar o resto da vida num estado vegetal. A reação é visceral, mas colada às banalidades da vida quotidiana. Bird não se fecha na introspeção para puxar do seu existencialismo, não produz qualquer grito mudo ou pensa em qualquer haraquíri, antes desata em busca de interação com a realidade, repescando antigos colegas, não para deles sorver ânimo, mas para poder por meio da interação com eles fugir do problema.
O texto que ao terminar-se deixa um trago agridoce, pode, se assim o desejarmos, levar-nos a questionar os fundamentos da moral civilizacional. Se por um lado compreendemos a reação negativa do protagonista ao que o espera, não deixa de nos impactar a sua recusa do seu próprio filho, algo que Oe não deixa por mão alheia já que oferece todo um contorno algo negativo do protagonista. Temos muito álcool e sexo à mistura com muita indolência e displicência. Não que Oe pinte um diabo, a linha é mantida sempre coerente, com a honestidade e frontalidade do protagonista a garantir elevação, e por isso mesmo provocando em certos momentos alguma admiração. Li algures, sobre uma potencial proximidade entre este Bird de Oe e Meursault de Camus que aceito, embora e à distância sinta Meursault como alguém mais coerente e elaborado, talvez por neste caso termos uma abordagem cómica que nos impede de compreender o alcance concreto dos pensamentos do personagem, se são sentidos ou meramente sarcásticos.
Nota: A edição lida foi publicada na coleção da revista Sábado, mas existe em Portugal outra edição, pela Livros do Brasil, com outro título: "Não matem o bebé".
novembro 30, 2019
O ridículo da casta britânica
O caso raro da série de televisão que além de conseguir ser melhor que o filme é também melhor do que o livro. “Brideshead Revisited” (1945) tornou-se uma referência clássica e popular da literatura com a série homónima criada pela BBC em 1981, a mesma que nos deu a conhecer Jeremy Irons. A série recorre ao cenário apresentado no livro, mas injeta nele a vida e o mundo que faltava. Os cenários bucólicos e a música de sentimento intensamente nostálgico de Geoffrey Burgon criam um mundo idílico, que de certa forma Waugh parece querer apresentar no livro, mas sem sucesso. Pode-se dizer que o texto no inglês original é bastante mais poético do que a tradução portuguesa, e que a forma serviria esse ideal, mas se senti que Italo Svevo não era Proust, Waugh está ainda mais distante desse virtuosismo para nos poder oferecer esse mundo meramente pela forma.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Quase todas as resenhas falam da questão religiosa como cerne evocativo da profundidade do romance, talvez porque a religião seja a única parte em que se sente o escritor a ser verdadeiramente jocoso. Ainda assim, é um tema que surge menos de meia-dúzia de vezes, e sempre com pouca ou nenhuma profundidade. Acredito que existe quem queira ali ver muito mais, mas parece-me estarmos no reino da mera ultra-interpretação. Aliás, quando terminei o livro as únicas palavras que me vieram à cabeça foi: superficialidade da profundidade.
Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.
Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.
Quando entramos na história, no livro, os personagens surgem todos como patéticos, sem sequer cómicos chegarem a ser. São de um vazio ostracizante, desde o narrador supostamente distinto da família aristocrática que tanto admira, a todos os personagens dessa família que vivem no mundo das nuvens, sem qualquer sentido de responsabilidade, tendo como único orientador social a religião, ainda que de forma completamente ligeira. A série acaba por resolver muito melhor a questão porque a dupla protagonista, Charles e Sebastian, sendo representada por Jeremy Irons e Anthony Andrews, ganha uma densidade bastante impressiva. Irons segue a estrutura do personagem criado por Waugh mas impregna-o de forma, linguagem corporal, que nos permite aproximar do mesmo, compreende-lo, aceitá-lo e até com ele empatizar, enquanto no livro os personagens nunca vão além de caricaturas, de vazios pomposos, absolutos de arrogância.
Jeremy Irons e Anthony Andrews como Charles e Sebastian na série homónima da BBC, 1981
Do mesmo modo o tema da homossexualidade me parece mais uma enfatização interpretativa de algo que não está no texto. Aqueles personagens vivem numa realidade distante dos problemas dos comuns mortais, olhar para as suas superficialidades e veleidades como traços de homossexualidade serve apenas para menosprezar essa homossexualidade. Quantos de nós tivemos amigos homens a sério na faculdade, com quem partilharíamos este mundo e o outro, sem que isso apresentasse o menor traço de sexualidade. Tal como a religião, vejo aqui identificações forçadas por parte dos recetores. Isto acontece, simplesmente porque os personagens, as suas intenções e fundações, são apresentados de forma minimal, deixando muito espaço à imaginação do leitor. Por outro lado, a série sim enfatiza essa proximidade, com trejeitos e abordagens corporais que obrigam a essas leituras.
Na imagem a "casa" em que vivia a família protagonista, tal como representada na série, com a música encantatória de Geoffrey Burgon
Claro que fico a questionar-me o quanto tudo neste livro nada me diz por retratar uma realidade tão distante e tão pouco apreciada. Os protagonistas frequentam Oxford, não porque querem aprender, mas apenas porque frequentar um colégio como Eton faz parte do seu status, é o lugar para onde a elite inglesa vai. Isso diga-se não mudou desde que o livro foi escrito, o atual primeiro-ministro de Inglaterra é um ex-aluno do Eton, como foram 20 anteriores primeiro-ministros e isso diz muito do tipo de mentalidade e mundo que estamos aqui a falar. O Der Spiegel, a propósito de Boris Johnson, fez todo um artigo definindo o tipo de pessoas — "pseudo-adultos" — que saem desta escola, que produz "um sistema no qual a elite permanece entre si e deixa de ver os problemas dos outros", criando pessoas que "valorizam mais o poder do que a compaixão" diz o The Guardian.
novembro 26, 2019
Mona Lisa como há 500 anos
Pascal Cotte criou em 1989 uma empresa especializada em análise fotográfica por meio de luz multiespectral e ao longo dos anos especializou-se na análise de pinturas tendo trabalhado especialmente a obra de Da Vinci. Foi o responsável pelas descobertas de desenhos de um outro modelo por debaixo da Mona Lisa ou da ausência do Arminho na primeira versão da "Dama com Arminho". Na sua descoberta mais recente, Cotte vai mais longe, recorrendo não apenas à luz, mas a todo um trabalho de reconstituição dos pigmentos existentes na época de Leonardo, para nos dar a ver o quadro que Leonardo viu antes de morrer. O resultado pode ser visto aqui, e o processo no excerto de vídeo abaixo.
O vídeo do trabalho realizado por Cotte, para chegar à proposta final, é um excerto do documentário —"Decoding Da Vinci" (2019)— de uma hora da PBS que não está acessível na Europa ainda e que fica aqui abaixo.
À esquerda: o original presente no Louvre. Ao centro: o original com a luz retocada em Photoshop: À direita, a nova versão, que segundo Cotte se aproxima da criada por Da Vinci há 500 anos.
Esta proposta de Cotte faz sentido, não apenas pela justificação histórica que é suportada por um dos maiores especialistas em Da Vinci, Martin Kemp que diz no vídeo isto: "Suddenly she doesn’t look like a submarine goddess. She looks as if she’s in the fresh air, which is just terrific". Mas esta visão é também suportada pela recente descoberta no Museu do Prado de uma cópia de Mona Lisa feita no atelier de Da Vinci, e enquanto este era ainda vivo.
À esquerda, a cópia que existia no Prado até 2012. À direita, a mesma cópia restaurada em 2012, tendo sido retirada toda a tinta preta que cobria o fundo, que nos permite ver a aproximação à proposta de Cotte.
O vídeo do trabalho realizado por Cotte, para chegar à proposta final, é um excerto do documentário —"Decoding Da Vinci" (2019)— de uma hora da PBS que não está acessível na Europa ainda e que fica aqui abaixo.
novembro 24, 2019
Como se vive sem reconhecer rostos?
Um pequeno, mas intenso, filme de animação põe em evidência um conjunto imensamente relevante de temas que vão do bullying e discriminação à tomada de consciência de patologias neurológicas como a prosopagnosia (não reconhecimento de rostos), passando pela importância da comunicação de ciência, da comunicação audiovisual e animação, assim como dos efeitos da arte na auto-estima. Tudo isto está contido nos 5 minutos da animação "Carlotta's Face" (2018), criada por Valentin Riedl, um neurocientista alemão com interesse em cinema, com a ajuda do animador Frédéric Schuld.
O filme é curto e simples, socorre-se essencialmente do relato na primeira-pessoa de alguém que padece da doença, centrado nos problemas experienciados ao longo da vida, com particular destaque para os tempos da escola. Contudo, a ilustração é soberba, sendo capaz de ilustrar por meio de diferentes metáforas o que sente alguém incapaz de reconhecer rostos, mesmo o seu próprio.
Tendo em conta a particularidade da doença, fica imenso por dizer, muito sobre o que podemos especular, surgindo para mim a maior questão de todas: como sente alguém empatia sem conseguir reconhecer rostos?
Filme acedido via Short.
Mais informação no site do filme.
O filme é curto e simples, socorre-se essencialmente do relato na primeira-pessoa de alguém que padece da doença, centrado nos problemas experienciados ao longo da vida, com particular destaque para os tempos da escola. Contudo, a ilustração é soberba, sendo capaz de ilustrar por meio de diferentes metáforas o que sente alguém incapaz de reconhecer rostos, mesmo o seu próprio.
Tendo em conta a particularidade da doença, fica imenso por dizer, muito sobre o que podemos especular, surgindo para mim a maior questão de todas: como sente alguém empatia sem conseguir reconhecer rostos?
Filme acedido via Short.
Mais informação no site do filme.
novembro 21, 2019
Travessia da Carnificina
John Williams é um fenómeno da literatura por ter as suas obras redescobertas com sucesso pela crítica e público 50 anos depois do seu lançamento e quase 25 anos após a sua morte (1994), é algo raro e só por si digno da nossa atenção. Dos quatro livros que nos deixou, o mais conhecido é “Stoner” (1965), um trabalho de enorme simplicidade narrativa mas enorme profundidade psicológica. Confesso que demorei a aproximar-me deste “Butcher's Crossing” (1960), já que depois de ter vivido uma experiência de êxtase com “Stoner”, via muito difícil o mesmo autor conseguir repetir o feito. Para agravar o meu receio, este livro era definido como livro de género, e logo como western. Surpreendeu e superou, mesmo sabendo que vinha da pena de Williams, conseguindo mais uma vez subjugar-me.
O género, o western, acaba na verdade por não o ser. Williams segue a mesma lógica que mais tarde Cormac McCarthy seguiria, apesar de situarem a ação no coração do western, não prestam vassalagem ao género, importa-lhes apenas o local e seus personagens para dar forma ao drama. No caso, mais uma vez temos um personagem particularmente pouco expansivo que procura, pela experiência do mundo e cultura western, encontrar-se, compreender-se. Neste sentido, “Butcher's Crossing” é uma espécie de “coming of age”. Para mim, o momento mais alto dá-se quando o protagonista se confronta com o desmanche de um bisonte, morto pelos homens que acompanha, para dele retirar carne e alimentar-se:
O enfoque do livro não está todo aqui, este antes serve de preâmbulo ao que Williams quer mostrar, o humano, como elemento deste planeta totalmente incapaz de qualquer harmonia com a natureza, muito contra a tão apregoada relação com a natureza por Ralph Waldo Emerson e a pseudo-experiência naturalista de Henry David Thoreau. Porque toda a experiência de inverno passada, à força e com enorme sofrimento individual, nas montanhas não é ali colocada porque Williams quisesse castigar aqueles homens por aquelas mortes. Do mesmo modo o que acontece depois ao carregamento, por força da natureza do rio, não é castigo, mas também não é acaso. Williams está claramente obcecado pela relação humano-natureza, e pelo modo como o humano é uma variável perturbadora. Repare-se no que acontece quando chegam à cidade e tudo se alterou. Reparem como a natureza, as peles, todo o seu impacto brutal pela dizimação dos animais, é engolida como mero fétiche económico. O homem ignora e despreza totalmente a natureza, vive apenas em função de si, do seu próprio proveito.
Como se não bastasse, junta-se a esta crítica dura e certeira, a escrita elaborada de Williams, logo desde o primeiro capítulo podemos deslumbrar-nos com o modo como ele trabalha a descrição, tornando-a ação e história. Veja-se no exemplo seguinte como a descrição ganha corpo, movimento e som, e como toda esta capacidade técnica vai evoluindo e servindo na criação de cenário que submerge totalmente o nosso imaginário.
Se depois disto tiverem curiosidade em saber mais sobre John Williams, aconselho a leitura da recente entrevista com sua esposa pela Paris Review, "Mrs. Stoner Speaks: An Interview with Nancy Gardner Williams".
“In the moment before sleep came upon him, he made a tenuous connection between his turning away from Francine that night in Butcher’s Crossing, and his turning away from the gutted buffalo earlier in the day, here in the Rocky Mountains of Colorado. It came to him that he had turned away from the buffalo not because of a womanish nausea at blood and stench and spilling gut; it came to him that he had sickened and turned away because of his shock at seeing the buffalo, a few moments before proud and noble and full of the dignity of life, now stark and helpless, a length of inert meat, divested of itself, or his notion of its self, swinging grotesquely, mockingly, before him. It was not itself; or it was not that self that he had imagined it to be. That self was murdered; and in that murder he had felt the destruction of something within him, and he had not been able to face it. So he had turned away.” (p.168)Se este momento é de tomada de consciência, antes deste dá-se o massacre dos bisontes, algo sobre o que já tinha alguns factos, mas nunca me tinha dado conta do tamanho da brutalidade. E só me dei conta pelo modo como Williams vai pondo os personagens a falar, surgindo os caçadores a falar na morte de 1000 bisontes, em nome dos dólares conseguidos pela sua pele, como algo banal. Na chacina apresentada, meros 4 homens eliminam nada menos do que 4600 bisontes. É aterrador, só conseguia pensar no vírus em que nos tornámos neste planeta. Não admira que em poucos anos, na segunda metade do século XIX, o bisonte tivesse passado de 20 a 30 milhões para 100 cabeças, e tivesse sido quase extinto. Só de imaginar uma pradaria carregada de corpos enormes de milhares e milhares de bisontes deitados por terra, inertes, mutilados e sem pele, dá vontade de gritar... e todo o impacto no ecossistema produzido.
O enfoque do livro não está todo aqui, este antes serve de preâmbulo ao que Williams quer mostrar, o humano, como elemento deste planeta totalmente incapaz de qualquer harmonia com a natureza, muito contra a tão apregoada relação com a natureza por Ralph Waldo Emerson e a pseudo-experiência naturalista de Henry David Thoreau. Porque toda a experiência de inverno passada, à força e com enorme sofrimento individual, nas montanhas não é ali colocada porque Williams quisesse castigar aqueles homens por aquelas mortes. Do mesmo modo o que acontece depois ao carregamento, por força da natureza do rio, não é castigo, mas também não é acaso. Williams está claramente obcecado pela relação humano-natureza, e pelo modo como o humano é uma variável perturbadora. Repare-se no que acontece quando chegam à cidade e tudo se alterou. Reparem como a natureza, as peles, todo o seu impacto brutal pela dizimação dos animais, é engolida como mero fétiche económico. O homem ignora e despreza totalmente a natureza, vive apenas em função de si, do seu próprio proveito.
Como se não bastasse, junta-se a esta crítica dura e certeira, a escrita elaborada de Williams, logo desde o primeiro capítulo podemos deslumbrar-nos com o modo como ele trabalha a descrição, tornando-a ação e história. Veja-se no exemplo seguinte como a descrição ganha corpo, movimento e som, e como toda esta capacidade técnica vai evoluindo e servindo na criação de cenário que submerge totalmente o nosso imaginário.
"À medida que se aproximavam da vila, a estrada tornava-se plana e a carruagem avançava com maior rapidez, oscilando levemente de um lado para outro, de forma que o jovem pôde aliviar a pressão com que se agarrava ao montante de madeira e deixar-se descair mais descontraidamente para diante no banco rijo. O toque-toque das patas das mulas tornou-se mais regular e abafado; à volta da carruagem ergueu-se uma nuvem de fumo amarelo, que se encapelou à sua retaguarda."
Se depois disto tiverem curiosidade em saber mais sobre John Williams, aconselho a leitura da recente entrevista com sua esposa pela Paris Review, "Mrs. Stoner Speaks: An Interview with Nancy Gardner Williams".
novembro 12, 2019
O Diabo, Pôncio e o Gato
Adoro clássicos russos, são um dos marcos do estado corrente civilizacional, responsáveis não apenas pelo avanço da arte mas também por vários avanços societais pelo modo como os seus autores foram expondo e criticando a sociedade e seus avanços. Bulgakov não pertence à primeira geração, séc. XIX — Tolstói, Dostoiévski, Pushkin, Turgueniev, Tchékov, Gogol — mas antes a uma segunda, séc. XX — junto com Nabokov ou Soljenítsin — marcada pela ditadura soviética. Se Nabokov optou por virar as costas à Rússia, outros como Bulgakov e Soljenítsin nunca desistiram de tentar fazer-se ouvir dentro do seu próprio país. Bulgakov não foi perseguido, nem preso como Soljenítsin, teve a sorte de cair na graça do ditador que lhe permitiu sobreviver com um mero emprego de assistente num teatro da capital, contudo raramente viu aprovadas as suas obras pela censura do estado, e passou os últimos anos de vida sem nada publicar, relegando esse trabalho à sua mulher, que viria a acontecer apenas duas décadas depois da sua morte. “A Margarita e o Mestre” (1967) é uma espécie de viagem ao mundo de um criador impedido de criar, é uma espécie de portal para uma realidade alternativa criada pela mente de alguém a quem foi dito que tinha de se manter calado. O livro ganha assim, desde logo, uma aura tremenda, impossível de classificar, porque não é mero livro, mas antes documento, um legado expressivo que nos explica como vive um ser sensível e criativo num mundo em que não é livre de externalizar as suas ideias.
A história é simples, apesar do enredo duplo — o Diabo chega a Moscovo e desencadeia uma série de eventos loucos, enquanto noutro tempo, Pôncio Pilatos enfrenta o encontro e a crucificação de Jesus. Os personagens oferecem-se imediatamente às mais mirabolantes interpretações dada a sua força simbólica. Contudo, do que me foi dado a ler, e da minha experiência de leitura, a importância da obra assenta mais no contraste entre o deslumbrante mundo criativo do romance e o desmoralizante mundo cinzento da realidade soviética da época. O mundo criativo é trabalhado por meio da sátira, que é um género que pouco me cativa. Ainda assim posso dizer que a primeira parte é deliciosa, dado que o non sense surge como a resposta mais aceitável à insanidade do regime político de Estaline. Os problemas para mim surgem na segunda-parte, porque esperava que o non sense fosse dando lugar a cada vez mais sentido, mas tal nunca chega a acontecer. O livro é non sense do início ao final. Bulgakov dá rédea livre à criatividade, divaga e deambula sem fim. Pode-se ler, ou interpretar, aqui e ali, partes conectadas com a sua realidade, com o tratamento dado pelos colegas de profissão, pelo estado, pela sociedade russa, mas dificilmente se pode dizer que Bulgakov estava interessado na crítica contundente ou na produção de ataques contra os opressores da liberdade. Talvez Bulgakov tenha optado por limar excessivamente o seu trabalho, realizando auto-censura, mas não creio, dado o imenso non sense que prospera ao longo de toda a obra.
Se aqui e ali se lê que o Diabo seria Estaline, tal não tem qualquer sustentabilidade, e em parte esse foi um dos meus erros na experiência de leitura, o tentar ler ou forçar a identificação de significados. Por isso no final senti um certo amargar da experiência, porque não consegui chegar a uma chave descodificadora do universo apresentado. E não adianta ler muito mais à volta da obra na sua senda, porque essa chave não existe. “A Margarita e o Mestre” mais do que uma sátira, é um universo de fantasia e acima de tudo o resultado de um processo de externalização da força de uma imaginação oprimida.
O trio louco, protagonistas do “A Margarita e o Mestre”
A história é simples, apesar do enredo duplo — o Diabo chega a Moscovo e desencadeia uma série de eventos loucos, enquanto noutro tempo, Pôncio Pilatos enfrenta o encontro e a crucificação de Jesus. Os personagens oferecem-se imediatamente às mais mirabolantes interpretações dada a sua força simbólica. Contudo, do que me foi dado a ler, e da minha experiência de leitura, a importância da obra assenta mais no contraste entre o deslumbrante mundo criativo do romance e o desmoralizante mundo cinzento da realidade soviética da época. O mundo criativo é trabalhado por meio da sátira, que é um género que pouco me cativa. Ainda assim posso dizer que a primeira parte é deliciosa, dado que o non sense surge como a resposta mais aceitável à insanidade do regime político de Estaline. Os problemas para mim surgem na segunda-parte, porque esperava que o non sense fosse dando lugar a cada vez mais sentido, mas tal nunca chega a acontecer. O livro é non sense do início ao final. Bulgakov dá rédea livre à criatividade, divaga e deambula sem fim. Pode-se ler, ou interpretar, aqui e ali, partes conectadas com a sua realidade, com o tratamento dado pelos colegas de profissão, pelo estado, pela sociedade russa, mas dificilmente se pode dizer que Bulgakov estava interessado na crítica contundente ou na produção de ataques contra os opressores da liberdade. Talvez Bulgakov tenha optado por limar excessivamente o seu trabalho, realizando auto-censura, mas não creio, dado o imenso non sense que prospera ao longo de toda a obra.
Um bom resumo visual do livro feito pelo TED.Ed
Se aqui e ali se lê que o Diabo seria Estaline, tal não tem qualquer sustentabilidade, e em parte esse foi um dos meus erros na experiência de leitura, o tentar ler ou forçar a identificação de significados. Por isso no final senti um certo amargar da experiência, porque não consegui chegar a uma chave descodificadora do universo apresentado. E não adianta ler muito mais à volta da obra na sua senda, porque essa chave não existe. “A Margarita e o Mestre” mais do que uma sátira, é um universo de fantasia e acima de tudo o resultado de um processo de externalização da força de uma imaginação oprimida.
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