fevereiro 10, 2019

A particularidade de Agustina Bessa-Luís

As primeiras páginas, de "A Sibila" (1954), desanimam a leitura, não parece um livro escrito em pleno século XX, recorda a escrita entrelaçada do início do século XIX que colada à ruralidade nacional apela inevitavelmente a Almeida Garrett. Cada frase surge trabalhada num detalhe e labor minuciosos, que provocam uma quebra na leitura, não apenas porque exigem foco e atenção, mas porque clamam sobre si importância e isolamento do todo. Eduardo Lourenço falou em neo-romantismo [1], tendi a concordar, já que se socorre da forma romântica de sobrecarregar as descrições com detalhe, impedindo o acesso imediato ao que se conta, mas fá-lo numa dimensão de atualidade, ainda que sobre uma realidade rural. Por isso senti que existia aqui algo distinto, não se tratava de mero romantismo, nem neo-romantismo, daí a dificuldade que a crítica tem tido no rotular da obra [2]. Repare-se como em oposição, Vitorino Nemésio com “Mau tempo no Canal” (1944), apenas uma década antes e também colado ao romantismo do século anterior, não se consegue desprender dos seus “tiques”, deslumbrando-se com a sua poética, da qual Agustina claramente se afasta. Não que me surpreenda, Nemésio foi um académico que escreveu um único romance, experimentou o modelo que tanto estudou, já Agustina é uma escritora que escreveria mais de cinquenta, em busca do definir da sua própria voz.


Agustina quebra propositadamente a fluidez do contar de histórias, obrigando a uma leitura racional em vez de emocional. Agustina nunca embeleza o texto, nem o ritmo, nunca procura a emoção do leitor, que é aquilo que Nemésio tanto objetiva, a marca impressiva de todo o Romantismo, no entanto tendo em conta o virtuosismo da escrita da autora, isso estava claramente ao seu alcance. Por outro lado, essa quebra criada não almeja à mera subversão narrativa, Agustina não destrói sentido, não fragmenta o fio narrativo nem nodifica os seus personagens, apesar de buscar a racionalidade tão cara ao modernismo. No entanto, os seus personagens são psicologicamente povoados, o realismo está presente com todo o seu savoir faire. Ou seja, Agustina constrói uma mescla entre romantismo, usando os largos caudais de detalhe, o modernismo, afastando o sentimento de cena, e o realismo, por via da ciência do sentir humano.
Sinopse:“No norte de Portugal, em finais do século xix, na propriedade da Vessada, há já muito tempo que são as mulheres que, perante a indolência e os sonhos de evasão que os homens alimentam, asseguram como podem a gestão da propriedade. Quina era uma adolescente franzina e inculta, que desde cedo participava nos trabalhos do campo ao lado dos trabalhadores. Com a morte do pai, com a propriedade quase em abandono, Quina passa a ter que ter uma ainda maior responsabilidade na administração da mesma. Graças ao seu esforço a todos os níveis, começa a acumular de novo a riqueza que seu pai desperdiçara, o que lhe vale a admiração da sociedade. Quina era uma pessoa lúcida, astuta e sempre em demandas, o que faz com que esta se torne conhecida por Sibila…”
 Temos então uma obra distinta, não admira o reconhecimento imediato por parte da comunidade de escritores e críticos portugueses. Contudo, nada disto torna o texto mais fácil. É uma leitura que requer atenção e dedicação. Sendo um livro pequeno, 250 páginas, acaba consumindo-nos tanto como um livro com o dobro das páginas. Acredito que se avisado, o leitor consiga dele extrair tudo o que tem para dar. Nesse sentido, é um excelente livro para trabalhar na escola, ainda que apenas nos anos finais do liceu, ou primeiros anos universitários, dada a exigência. Para os que defendem que a leitura deve ser apenas prazerosa, e que estes livros afastam os alunos da escola e da leitura, recordo que no caso de quem segue ciências — foi o meu caso — "ninguém" defende que o cálculo da derivada de uma função matemática ou da energia cinética na Física, devam ser prazerosas. A escrita é um processo, é um labor, e como tal deve ser estudada e compreendida nas suas diversas possibilidades, nomeadamente naquelas que o estudante sozinho tenderia a desconsiderar.


Para os mais impacientes, posso dizer que a primeira parte é mais descritiva, típica do início do realismo, quase naturalismo, com Agustina a contextualizar todo o porvir da protagonista, Quina, o seu ecossistema — espacial, familiar e condições psicológicas. Muitas personagens são introduzidas, cada uma com os seus detalhes, o que provoca algum desespero, e quase me fez desistir do livro, por o considerar arcaico. No entanto, a meio do livro Quina, a Sibilia de Agustina, assume o centro da narrativa e o grande conflito apresenta-se, conduzindo daí em diante o enredo até à moral final da obra. Se na primeira parte o arcaísmo era mais aparente, na segunda parte compreendemos que esta não é uma obra qualquer, a densidade do que se apresenta é fruto da forma de escrever única [3]. O que se conta não é extraordinário, mas o modo como se conta é singular, e por isso Agustina Bessa-Luís será sempre uma das grandes vozes das letras nacionais.


Referências
[1] Eduardo Lourenço (1963) “Agustina Bessa-Luís ou o neo-romantismo”, Colóquio. Revista de Artes e Letras , nº 26, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Dezembro de 1963, pp. 43-52 (CS), http://coloquio.gulbenkian.pt/al/sirius.exe/artigo?740
[2] A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, in PasseiWeb, https://www.passeiweb.com/estudos/livros/a_sibila
[3] A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, in RTP Ensina, http://ensina.rtp.pt/artigo/a-sibila-de-agustina-bessa-luis/

fevereiro 07, 2019

A Criação do Mundo de Torga

Confesso que por vezes me custava largar as páginas de "A Criação do Mundo" (1937-1981), abandonar as descrições dos espaços e histórias, porque dava por mim transportado para uma realidade alternativa, feita de paisagens de Torga mescladas com as nostalgias de um mundo vivido e já esquecido por mim. Elevava-se uma melancolia interior, um sentir de realidade passada, plasmada, estanque e inalterável e por isso mais saborosa do que a que se vai vivendo dia após dia, na incerteza do amanhã. Queria dizer apenas estas palavras e calar-me, mas não posso, Torga merece que nos detenhamos, que sobre ele falemos, que não deixemos calar o seu legado, porque é uma das melhores ilustrações escritas do Portugal do século XX.


Torga era médico e poeta, mas o sentido da sua vida foram as letras, sempre o seu primeiro amor, desde que na escola entrou até que no túmulo nos disse adeus. Dedicou-se de corpo e alma à poesia, mas o seu maior legado é diarista, tendo publicado entre 1941 e 1993 nada menos que 16 volumes, à média de um por cada três anos. São milhares de páginas com registos sobre tudo o que lhe ia na alma, o seu modo de ver que sofregamente passava para o papel. A este juntam-se algumas novelas em prosa, muitos contos e centenas de poemas publicados em revistas e livros que foi editando.


Torga foi sempre o seu próprio editor, criou várias revistas de poesia e editou praticamente todos os seus livros como "Edições de Autor", o que nos diz muito sobre a pessoa e o seu círculo próximo. A honra e a dignidade acima de tudo, valores provindos da força telúrica de se seu pai, mas que elevou a pontos de total obstinação que o foram afastando de tudo e todos enquanto viveu. Passou 4 meses na prisão, metade dos quais em isolamento por não ceder nunca à ideologia política, incapaz do agachamento intelectual a que praticamente todo o país se votou, incluindo a Universidade portuguesa. Lendo Torga, senti por várias vezes que se em Portugal alguém lançasse mãos à obra para construir uma Auschwitz, teria acontecido cá como lá (a verdade é que tínhamos já expulso praticamente toda a comunidade judia em 1496 sob as ordens de Dom Manuel I e Isabel de Espanha).

Ler XVI volumes de um diário não é tarefa que me atraia. Gosto de conhecer autores e criadores por dentro, mas não considero necessário perscrutar todo o seu mundo para deles me aproximar, respeitar e até amar. Por isso considero este livro, "A Criação do Mundo", tão importante, porque em certa medida funciona como síntese de todos esses diários. O registo aqui não é diarista nem sequer confessional, ainda que o texto transpire autenticidade, mas mais pela personalidade e ser do autor. O que temos nestas páginas é romance puro, com laivos de realidade, mas contado a partir de um olhar com sentido idealizante do mundo. Nomes e lugares são por vezes alterados, mas o sentido está lá, como histórias que se contam, e produzem em nós o efeito esperado. É o próprio Torga que define o sentido da obra, no modo como vivemos, dia após dia, o modo como criamos o nosso real, e criamos o nosso mundo, um mundo que é diferente de indivíduo para indivíduo, e daí a enorme riqueza da espécie humana.
Todos nós criamos o mundo à nossa medida. O mundo longo dos Longevos e curto dos que partem prematuramente. O mundo simples dos simples e o complexo dos complicados. Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afectiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é que há tantos mundos como criaturas. Luminosos uns, brumosos outros, e todos singulares. O meu tinha de ser como é, uma torrente de emoções, volições, paixões e intelecções a correr desde a infância à velhice no chão duro de uma realidade proteica, convulsionada por guerras, catástrofes, tiranias e abominações, e também rica de mil potencialidades, que ficará na História como paradigma do mais infausto e nefasto que a humanidade conheceu, a par do mais promissor.” In Prefácio "A Criação do Mundo"
Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era”. in "Diário I", Data de entrada: 3.12.1935
Ler esta obra é entrar por Portugal adentro, um Portugal rural, telúrico, pleno de sentimento, ligação à terra e à natureza, um Portugal pequeno mas ligado ao mundo, pela lusofonia, pela arte e filosofia, posicionado ideologicamente nos acontecimentos ocorridos ao longo da maior parte do século XX, sempre em total ligação com a História de uma nação mas com o povo e as gentes como principais atores. Claro que tudo isto se torna apenas tão interessante, e verdadeiramente absorvente, por graça da majestosa fluidez lírica de Torga, que por vezes parece querer puxar os nossos olhos a ler mais rápido do que a mente consegue absorver. Não que não tenha momentos menos conseguidos, sentindo-se pequenas faltas — excesso de embelezamento ou abstração excessiva — que uma edição feita a partir de um olhar de fora teria, com certeza, ajudado. Ajuda à leitura conhecer a história de Portugal, conhecer o país do século XX, nomeadamente Trás-os-Montes e a região centro — Coimbra —, assim como conhecer um pouco sobre as principais datas da vida de Torga, e claro sobre os acontecimentos políticos a acontecer em Portugal, no Brasil, mas também em Espanha e Itália, e claro Alemanha, assim como Angola, Cabo Verde, e Moçambique. Mas talvez ajude mais o gosto pela poética, o gosto pela literatura, mas acima de tudo o amor ao conhecimento de si e da espécie humana.
“— Não os prendam. Só quando de todo não puder deixar de ser... Façam-lhes a vida difícil... Façam-lhes a vida difícil... E faziam. Quem não acertava o passo pelo chouto do rebanho, ou apodrecia num calabouço ou morria de fome. A nação inteira era agora uma tumba de silêncio e abulia. Nos campos, nas fábricas, nas escolas e nas repartições, o perfil duro do ditador [Salazar] parecia escutar a voz das próprias consciências. E as consciências calavam-se no mais fundo das funduras, temerosas de qualquer expressão reveladora. Nenhum lugar, do mais alto ao mais rasteiro, era preenchido sem o aval da polícia política. Cada ministro, cada funcionário, cada varredor, tinha de ter a sua ficha em dia, limpa de qualquer mácula discordante. Se um caso ou outro passava pelas malhas apertadas dessa vigilância aturada, que não deixava recanto de cada vida por vasculhar, no dia seguinte, como acontecera agora comigo, o lapso era corrigido.", in “A Criação do Mundo (O Sexto Dia)", 1981
A obra está dividida em seis grandes capítulos que representam os volumes que foram sendo publicados no tempo. O livro a que hoje temos acesso é uma coletânea de todos esses volumes. Ou seja, esta não é uma obra escrita com sentido retrospectivo, mas antes escrita em quase-tempo-real, entre 1937 e 1981 (1ª edição conjunta de 1991). Os sentires são-no dos momentos em que foram acontecendo, e por isso talvez, se sintam com tanta mais força, realidade e autenticidade.

Capítulo 1º Dia - Publicado em 1937
Escola primária até aos 13 anos. Natureza e inocência.

Capítulo 2º Dia - Publicado em 1937
Dos 13 aos 17 anos. Ida para o Brasil e o choque com a realidade.

Capítulo 3º Dia - Publicado em 1938
Dos 17 aos 30 anos. Vinda para Coimbra, onde completa os três ciclos do liceu em três anos, estuda medicina para ser formar em 1933.

Capítulo 4º Dia - Publicado em 1939.
Dezembro de 1937 a Janeiro de 1938. Viagem pela Europa, sendo preso pela PIDE no regresso por causa do livro que sobre essa viagem escreve, e o livro apreendido.

Capítulo 5º Dia - Publicado em 1974
Só se publica em 1974, porque tal como o 4º, foi censurado. Fala-nos da prisão, em 1939, e do Portugal sob regime ditatorial.

Capítulo 6º Dia - Publicado em 1981
É o derradeiro capítulo, com vários momentos de reflexão sobre si, os seus e o mundo, e o que resta ou restará de si: “Nada há de permanente debaixo do sol..."


Miguel Torga morreu a 17 Janeiro 1995, com 87 anos, um ano antes tinha escrito:


REQUIEM POR MIM


Aproxima-se o fim. 
E tenho pena de acabar assim, 
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana. 
Inválido de corpo 
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos. 
Longo foi o caminho e desmedidos 
Os sonhos que nele tive. 
Mas ninguém vive 
Contra as leis do destino. 
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio. 
Rio feliz a ir de encontro ao mar 
Desaguar, 
E, em largo oceano, eternizar 
O seu esplendor torrencial de rio.
 
Coimbra, 10 de Dezembro de 1993


Sinto-me agradecido por ter lido esta Criação do Mundo.

fevereiro 04, 2019

Logoterapia por Viktor Frankl

Viktor Frankl nasceu em Viena, 1905, de uma família de judeus. Com apenas 16 anos escreveu um ensaio sobre Freud, que lhe enviou, e este considerou digno de publicação no Journal of Psychoanalysis. Tendo estudado com Freud e Adler, deixaria de os seguir mais tarde. De 1933 a 1937 fez a sua residência em neurologia e psiquiatria, centrado nos tópicos da depressão e suicídio, tendo sido responsável pelo "Selbstmörderpavillon", o "pavilhão dos suicidas" onde tratou milhares de pacientes com tendências suicidas. Em 1942 foi deportado para o gueto de Theresienstadt na antiga Checoslováquia, uma espécie de ante-câmara dos campos de exterminação e ao mesmo tempo fachada modelo para enganar as autoridades internacionais do tratamento que estava a ser dado aos judeus. Chega a Auschwitz em Outubro 1944, levando consigo a sua única posse, um manuscrito em que traçava os primeiros princípios de uma teoria por si desenvolvida, a Logoterapia. É transportado para o campo de Türkheim em Março 1945, e é libertado em Abril 1945. Esposa, pai, mãe e irmão morrem nos campos, sobrevive a sua irmã.


Frankl tornou-se piscoterapeuta, tendo para o seu trabalho desenvolvido a teorização que denominou de Logoterapia, como tal considerada a "Terceira Escola Vienesa de Psicoterapia", sendo as outras duas, a psicanálise de Freud, e a psicologia de Adler. Como explica Frankl, enquanto a psicanálise se centra na avaliação do passado, no questionamento das razões traumáticas, a logoterapia centra-se no futuro, na busca de razões para continuar a viver. A denominação surge pelo "logos", razão em grego, já que Frankl definia como cerne da sua teoria a busca da razão, ou seja, de "um sentido para a vida". O "sentido da vida" de Frankl diz respeito a cada sujeito individual, não se defendendo qualquer sentido generalizável a todos os sujeitos. A teorização surge agregada a um conceito de Nietzsche, "Will to Power" (vontade de poder), e à máxima "Aquele que tem um motivo para viver pode suportar quase tudo." Este conceito de Nietszche que era usado por Adler, foi transformado por Freud como "Will to Pleasure" (vontade de prazer), e por Frankl "Will to Mean" (vontade de sentido).

A logoterapia assenta em três grandes princípios: a) existe sempre um sentido para a vida, mesmo a mais miserável; b) a motivação principal assenta na vontade de descobrir o sentido da vida; c) nós temos liberdade de encontrar sentido naquilo que fazemos e experienciamos,  mesmo aquando duma situação de enorme sofrimento. Deste modo, Frankl defende na Logoterapia, três métodos para podermos encontrar o sentido das nossas vidas:

(1) criar uma obra ou realizar uma ação;
(2) experimentar algo ou encontrar alguém;
(3) atitude face ao sofrimento inevitável, em que mesmo tudo nos sendo retirado, continuamos a ter a última liberdade humana: a escolha da atitude em cada momento.

Frankl seguiu estes princípios enquanto preso nos campos de concentração, que acabariam por o salvar em momentos de encruzilhada e dilema. Muitos pereceram e ele sairia vivo dos campos, embora como diz, por sorte do acaso. Ainda assim, se as decisões que tomou o levaram a ter sorte, o mais importante não é ter tido essa sorte, mas antes ter decidido por si como fazer, e não se ter deixado condicionar pelas pressões e aparências em cada momento. O livro divide-se numa primeira parte que relata a sua passagem pelos campos, e uma segunda que dá conta destes princípios. Na primeira parte, Frankl não nos dá nada de muito novo, o que ele próprio admite, e se refreia mesmo de detalhar, mas reflete sobre alguns dos comportamentos no campo, que acabam dirigindo-se ao âmago desta teorização, e de que deixo aqui algumas passagens:
“On entering camp a change took place in the minds of the men. With the end of uncertainty there came the uncertainty of the end. It was impossible to foresee whether or when, if at all, this form of existence would end.”
“Former prisoners, when writing or relating their experiences, agree that the most depressing influence of all was that a prisoner could not know how long his term of imprisonment would be (..) A well-known research psychologist has pointed out that life in a concentration camp could be called a “provisional existence.”
“A man who could not see the end of his “provisional existence” was not able to aim at an ultimate goal in life. He ceased living for the future, in contrast to a man in normal life. Therefore the whole structure of his inner life changed; signs of decay set in which we know from other areas of life. The unemployed worker, for example, is in a similar position. His existence has become provisional and in a certain sense he cannot live for the future or aim at a goal. Research work done on unemployed miners has shown that they suffer from a peculiar sort of deformed time—inner time—which is a result of their unemployed state. Prisoners, too, suffered from this strange “time-experience.” In camp, a small time unit, a day, for example, filled with hourly tortures and fatigue, appeared endless.”
“In this connection we are reminded of Thomas Mann’s The Magic Mountain, which contains some very pointed psychological remarks. Mann studies the spiritual development of people who are in an analogous psychological position, i.e., tuberculosis patients in a sanatorium who also know no date for their release. They experience a similar existence—without a future and without a goal.”
“One of the prisoners, who on his arrival marched with a long column of new inmates from the station to the camp, told me later that he had felt as though he were marching at his own funeral. His life had seemed to him absolutely without future. He regarded it as over and done, as if he had already died. This feeling of lifelessness was intensified by other causes: in time, it was the limitlessness of the term of imprisonment which was most acutely felt; in space, the narrow limits of the prison. Anything outside the barbed wire became remote—out of reach and, in a way, unreal. The events and the people outside, all the normal life there, had a ghostly aspect for the prisoner.”
“The prisoner who had lost faith in the future—his future—was doomed. With his loss of belief in the future, he also lost his spiritual hold; he let himself decline and became subject to mental and physical decay.”
Um último ponto sobre a logoterapia, e diferença face aos sistemas de auto-ajuda, é que esta se afasta completamente da ideia de se objetivar à felicidade. Na logoterapia, o sofrimento é visto como algo inevitável no ato de estar vivo, e a felicidade deve ser vista apenas como consequência do encontrar de um sentido ou significado da vida, não devendo ser procurada per se, já que o simples ato de a procurar implica a infelicidade de a não conseguir atingir. Encontrar uma razão, conduz a uma felicidade que logo termina para se iniciar nova busca de sentido. O significado não existe como absoluto, mas como etapas. O que verdadeiramente importa é o caminho, o processo, a busca pelo sentido, a tentativa de definir o sentido, e não o fim. Frankl definiu o significado da sua vida como, "ajudar os outros a encontrarem o sentido das suas vidas".

O livro é bastante curto, o relato de memórias rápido ainda que bastante atmosférico. A segunda parte mais teórica é ainda mais curta. Fica alguma sensação de falta, de aprofundamento, mas o contacto com o livro e a logoterapia é per se suficienente para justificar o contacto com o livro e a vida de Frankl.

fevereiro 01, 2019

Mann, Adorno e Schoenberg: holocausto e modernismo

"Doutor Fausto" (1947) pode ser lido como romance, e foi assim que o li, mas requer todo um enquadramento que deveria preceder qualquer edição do mesmo, para que não se torne em algo completamente incompreensível. Ainda que as obras se devam valer per se, obras com a densidade de "Doutor Fausto" requerem contexto, não apenas sobre o autor, mas especialmente sobre a sua génese. Sem isso, corremos o risco de nos colocar na posição de Italo Calvino aquando da sua leitura: "Eu passo as tardes aqui deitado nas pedras, de barriga ao sol, a ler Thomas Mann, que escreve muito bem sobre muitas coisas que são completamente incompreensíveis para mim” (1950).


Mann tinha 72 anos, tendo iniciado a sua carreira 50 anos antes, com a publicação de uma obra que para muitos escritores seria o derradeiro pináculo do virtuosismo de escrita, "Os Buddenbrook" (1901) (é a esta sua primeira obra que o Nobel faz referência, e não à "A Montanha Mágica" (1924), como esperaríamos). 50 anos depois, sempre a escrever livros, crónicas, cartas, peças, manifestos e discursos políticos, não transformariam o virtuosismo dessa escrita,  mas transformariam completamente o seu intelecto, a sua capacidade para ler e descrever as entrelinhas do real. "A Montanha Mágica" tinha sido um demonstrativo disto mesmo, um partir da descrição das relações humanas dos seus personagens para a discussão dos motivos filosóficos subjacentes. "Fausto" vai muito para lá da "Montanha", já que deixa para trás completamente o foco dos elementos base do romance, os personagens e suas intrigas, para se entregar totalmente à discussão de conceitos e fundamentos teóricos de suporte à constituição da realidade.

Para compreender "Doutor Fausto", não basta enquadrar Mann como exilado na Califórnia pelo nazismo, e toda a destruição humana de um povo que grassava na Europa Central. É preciso situar nesse lugar de exílio duas outras pessoas, alemães também exilados, Theodor Adorno, crítico e filósofo de estética, e Arnold Schoenberg, compositor e teórico musical. Os três homens representam, nas suas áreas, pináculos da arte e cultura germânica, o que de certo modo pode explicar a sua relação, pois se se aproximaram no exílio, logo acabariam por se separar, desavindos os três. E no entanto, na exata mesma altura, em 1947, produziram os três, obras maiores das suas carreiras:

Thomas Mann (1875), "Doutor Fausto" (1947)
Theodor Adorno (1903), "Dialética do Iluminismo" (1947) (co-escrito com Max Horkheimer)
Arnold Schoenberg (1874), "Sobrevivente de Varsóvia" (1947)

Se destaco aqui estas três obras não é por terem apenas sido criadas por artistas alemães no exílio americano, e no mesmo ano, ou ainda porque as três obras são respostas à emergência, impacto e efeitos do Nacional Socialismo de Adolf Hitler na Europa, mas também porque as três estão ligadas na sua criação, relação dialógica estabelecida entre os três criadores, antes e depois da publicação das obras. E por isso para compreender qualquer uma destas obras em toda a sua extensão, é necessário compreender o que subjaz a cada uma delas individualmente.

"Doutor Fausto" apresenta-nos um personagem, Adrian Leverkühn, como um prodígio à nascença, sempre na frente dos seus pares e professores, que acabaria por desembocar tarde na música, e que por isso não poderia tornar-se um virtuoso do instrumento, mas tornar-se-ia num virtuoso da composição e por isso mesmo ansioso por inovar e transcender o status quo musical. Mann leva Adrian a conhecer o Diabo e a estabelecer o pacto faustiano, a partir do que então Adrian acaba a produzir a sua grande inovação musical (a que é dedicado todo o capítulo 22), na forma do sistema atonal ou dodecafonismo (invenção real de Schoenberg). Esta síntese é o núcleo de todo o livro, e ao mesmo tempo o que une Mann, Adorno e Schoenberg, e também o que os separará.

Para Mann, Adrian, personagem decalcado de Nietszche, é o representante do super homem: puro, inteligente e perfeito. Para quem os demais existem apenas para o seguir. Os seus ideais estão acima das necessidades e prazeres mundanos, interessa-lhe apenas atingir o zénite da perfeição, da eleição supra-humana. O mal estaria na Natureza que tudo corrói com a sua organicidade, incerteza, e imperfeição. Cabe ao Homem desenhar, delinear e construir a perfeição. Mann dá assim corpo ao mundo professado pelo Nacional Socialismo de Hitler.

Adorno, vinha trabalhando ideias relacionando o Iluminismo e a catástrofe alemã, tendo uma primeira versão de "Dialética do Iluminismo" surgido em 1944. Para Adorno (e Max Horkheimer com quem co-escreve a obra), a intervenção do Estado, tanto na forma do comunismo que grassava na URSS, como na forma do nacional socialismo que abraçava a Alemanha, ditava o fim Iluminista, apesar de paradoxalmente defenderem uma racionalização da produção artística, como se vê em Adrian. Segundo Adorno, a modernidade com toda a sua racionalidade e  avanços científicos, não tinha sido capaz de libertar a sociedade, antes estava a fazer o seu contrário, daí o ataque à razão, por ter chegado ao estado de irracionalidade. O problema apresentava-se pela imposição do modelo de massas dessas ideologias, que levavam ao desaparecimento da individualidade e a liberdade humanas. Como Mann diz em "Doutor Fausto", “a liberdade é apenas outro termo para designar a subjetividade”, ou seja, é a partir da subjectividade que se pode elevar a inovação e transcendência artística e estética. Para Adorno, a produção cultural massificada pelo estado, base do seu conceito "indústrias culturais", não ofereceria "a revolução social" professada por Marx, mas antes o totalitarismo, capaz de pela homogeneização cultural adormecer a individuação e tornar as massas passivas. (Diga-se em abono da realidade de hoje, que o capitalismo não se diferencia muito destes modelos culturais, podendo nós ver essa mesma homogeneização a grassar nas playlists das rádios, nas tabelas de livros mais vendidos e nos filmes mais vistos, todos de Hollywood. A grande diferença é que a liberdade permitida pelo capitalismo abre espaço a nichos e franjas, acabando por paradoxalmente serem estas as responsáveis pelos avanços na estética da cultura dita de massas).

Assim, e se Mann e Adorno parecem sintonizar-se na crítica, o terceiro elemento da equação, Arnold Schoenberg, parece ter surgido nas mãos destes como ovelha a levar ao altar do sacrifício. Repare-se que Mann, ao seguir esta linha, apresenta o dodecafonismo, a invenção da vida de Schoenberg, não apenas como fruto de um pacto com o Diabo, mas como a encarnação do ideal Nazi. Nem Mann nem Adorno eram entusiastas do modernismo que para eles era apenas um sinal da racionalização na busca de uma suposta perfeição contra a imperfeição oferecida pela natureza.

Para entrar dentro da discussão e não apenas compreender mas sentir, já que de arte se trata, é necessário parar e voltar à produção artística do modernismo. Colocar como música de fundo, "Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, o exemplo maior das suas composições atonais, fugindo ao sistema tonal, o modo mais harmónico e natural como ouvimos a música. Enquanto ouvimos, podemos pousar o nosso olhar sobre "Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso, em que o primeiro exemplar do cubismo, transfigura o modo como vemos e concebemos a representação tridimensional do real. E por fim, abrir "Ulisses" (1924), no seu capítulo final, e seguir o fluxo de consciência de James Joyce que foge a todo e qualquer modelo narrativo.


"Erwartung" (1909) de Arnold Schoenberg, Audio e Partitura

"Les demoiselles d'Avignon" (1907) de Picasso
"(...) I love flowers Id love to have the whole place swimming in roses God of heaven theres nothing like nature the wild mountains then the sea and the waves rushing then the beautiful country with the fields of oats and wheat and all kinds of things and all the fine cattle going about that would do your heart good to see rivers and lakes and flowers all sorts of shapes and smells and colours springing up even out of the ditches primroses and violets nature it is as for them saying theres no God I wouldnt give a snap of my two fingers for all their learning why dont they go and create something I often asked him atheists or whatever they call themselves go and wash the cobbles off themselves first then they go howling for the priest and they dying and why why because theyre afraid of hell on account of their bad conscience ah yes I know them well who was the first person in the universe before there was anybody that made it all who ah that they dont know neither do I so there you are they might as well try to stop the sun from rising tomorrow the sun shines for you he said the day we were lying among the rhododendrons on Howth head in the grey tweed suit and his straw hat the day I got him to propose to me yes first I gave him the bit of seedcake out of my mouth and it was leapyear like now yes 16 years ago my God after that long kiss I near lost my breath yes he said I was a flower of the mountain yes so we are flowers all a womans body yes that was one true thing he said in his life and the sun shines for you today yes that was why I liked him because I saw he understood or felt what a woman is and I knew I could always get round him and I gave him all the pleasure I could leading him on till he asked me to say yes and I wouldnt answer first only looked out over the sea and the sky I was thinking of so many things he didnt know of Mulvey and Mr Stanhope and Hester and father and old captain Groves and the sailors playing all birds fly and I say stoop and washing up dishes they called it on the pier and the sentry in front of the governors house with the thing round his white helmet poor devil half roasted and the Spanish girls laughing in their shawls and their tall combs and the auctions in the morning the Greeks and the jews and the Arabs and the devil knows who else from all the ends of Europe and Duke street and the fowl market all clucking outside Larby Sharons and the poor donkeys slipping half asleep and the vague fellows in the cloaks asleep in the shade on the steps and the big wheels of the carts of the bulls and the old castle thousands of years old yes and those handsome Moors all in white and turbans like kings asking you to sit down in their little bit of a shop and Ronda with the old windows of the posadas 2 glancing eyes a lattice hid for her lover to kiss the iron and the wineshops half open at night and the castanets and the night we missed the boat at Algeciras the watchman going about serene with his lamp and O that awful deepdown torrent O and the sea the sea crimson sometimes like fire and the glorious sunsets and the figtrees in the Alameda gardens yes and all the queer little streets and the pink and blue and yellow houses and the rosegardens and the jessamine and geraniums and cactuses and Gibraltar as a girl where I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes."
Excerto final do Monólogo de Molly Bloom, in "Ulysses" (1924), James Joyce

Podemos questionar porque Mann atacou a música e não as letras, o seu domínio artístico. Aliás, Mann não era músico, daí que todas as discussões sobre composição musical tenham sido completamente trabalhadas pelo próprio Adorno no livro. Mas a meio de "Doutor Fausto", Mann explica que a literatura era a arte dos franceses, sendo a música a verdadeira arte de tradição alemã, evocando-se continuamente os seus grandes representantes Bach e Beethoven. Temos assim o classicismo, o belo rítmico e tonal, contra o modernismo, niilista e atonal. Mann vê neste modernismo, tal qual professado por Adorno, todos os traços que definiriam a emergência do barbarismo na Alemanha. O racionalismo do humano voltando-se contra si próprio.

O primeiro problema surge pelo facto de Mann ter utilizado a invenção dos doze-tons de Arnold Schoenberg, como fundamento do seu personagem, usando de toda a retórica de Adorno para a explicitar aos comuns leitores, sem nunca, em parte alguma do texto admitir que a invenção pertencia a Schoenberg (problema colmatado mais tarde com uma nota no final do livro). Mas vai mais longe, já que Schoenberg era ele próprio judeu, e exilado na Califórnia, onde convivia com Mann e Adorno. Schoenberg, talvez por ser judeu e ter sentido na pele a força do anti-semitismo, tentou por meio da sua influência defender a separação e criação do Estado-judeu. Schoenberg temia o Holocausto, bastante antes deste ter acontecido. Contudo Mann recusou-se a aceitar tal, para Mann isso seria a aceitação dos princípios do fascismo, e daí a sua desavinda com Schoenberg.

"A Survivor from Warsaw, Op. 46" (1947) de Arnold Schoenberg

Mas talvez o maior questionamento de toda a obra, não só de Mann mas também de Adorno, e que começa com Schoenberg, mas se estende a todo o modernismo, sejam os fundamentos das suas interpretações. Olhar para o modernismo como mera racionalidade da forma, como objeto formal incapaz de produção de sentido é de um reducionismo extremo. Se podemos dizer que "Les demoiselles d'Avignon" são mais forma, poderemos dizer o mesmo de "Guernica"? E se podemos atacar o formalismo da atonalidade de Schoenberg, o que podemos dizer do dodecafónico "Survivor from Warsaw" de Schoenberg? No fundo, Mann deixou-se seduzir por uma excelente narrativa criada por Adorno, que não era mais do que uma interpretação, uma das muitas teorias explicativas da arte e realidade, e no caso concreto do Holocausto não têm faltado grandes teorias sobre o sucedido.

Quanto à experiência de leitura de "Doutor Fausto", não posso dizer que se compare com o trabalho apresentado em "Os BuddenBrook" nem em "A Montanha Mágica". A escrita continua magnificente, o tema como visto acima é poderoso e altamente instigante, mas Mann falha na construção de um romance. O que temos é um livro de não-ficção disfarçado de romance, Mann fala num trabalho de "montagem" em que foi cosendo "dados factuais, históricos, pessoais e literários" [1], que acaba por fazer dos personagens do romance meros peões ao serviço de tudo aquilo de que se quer verdadeiramente falar. É uma leitura que se alonga, porque não se percebe para onde nos quer levar, criando por vezes enfado, perdendo amiúde a atenção do leitor, mantendo no entanto a chama acesa por graça da elevação e beleza da escrita assim como pelo mundo de ideias que envolvem o romance.



Referências

1 - "Mephistopheles in Hollywood: Adorno, Mann, and Schoenberg" January 2004, James Schmidt

2 - Ursula Mahlendorf (1978) "Aesthetics, Psychology and Politics in Thomas Mann's "Doctor Faustus",  Mosaic: An Interdisciplinary Critical Journal, Vol. 11, No. 4, pp. 1-18

3 - "What Was Theodor Adorno Doing in Thomas Mann’s Garden? — A Hollywood Story",
Posted on July 9, 2013

4 - "Books of the Times", de Orville Prescott, New York Times, October 29, 1948,

5 - "The Devil as Advocate in the Last Novels of Thomas Mann and Dostoevsky" Adrian Del Caro, Orbis Litterarum 1988, 43, 129-152

6 - Adorno, T. W., with Max Horkheimer (1947) Dialectic of Enlightenment. Trans. Edmund Jephcott. Stanford: Stanford University Press

7 - Artigos na Wikipedia: Dialectic_of_Enlightenment, A_Survivor_from_Warsaw e Arnold_Schoenberg.

janeiro 25, 2019

“David Copperfield” (1850)

“David Copperfield” foi a minha segunda incursão pelo universo de Dickens, depois de “Grandes Esperanças” (1861). Dickens é um ícone das letras britânicas, elemento fundamental dessa engrenagem literária, o Eça inglês, continuamente idolatrado pelos seus concidadãos que pela força da imposição da cultura anglo-saxónica no mundo tem feito de Dickens um ícone da cultura mundial. A sua escrita tem a vantagem de cruzar uma enorme eloquência com personagens e tramas simples, completamente liberto dos complexos e obscuros traços do romantismo, imensamente fluída e conhecedora das necessidades do enredo, o que faz com que facilmente consiga chegar a um grande público.


Quando li “Grandes Esperanças” deixei-me levar pelas interpretações aduzidas por muitos dos estudiosos da sua obra, e acabei aceitando algumas fragilidades como qualidades. Contudo desta vez furtei-me a aceitar outras interpretações, desde logo porque experimentei enfado durante 2/3 da leitura. Dickens escreve de forma belíssima, mas alonga-se, estende-se, dilata desnecessariamente as tramas que vai urdindo. Podemos pensar que o facto de estarmos a ler uma obra com mais de 150 anos torna inevitável o choque de velocidades a que se vive e por consequência pensa e sente. Ainda assim e descontando esse fator, não chega, nomeadamente se comparado com outras obras desta época, considero existir algo mais por detrás desta forma de escrever.

Dickens iniciou-se na escrita como jornalista, e o seu primeiro livro “The Pickwick Papers” (1837) surge a partir de um conjunto de textos publicados mensalmente num jornal como crónica ficcional seriada, a partir do que depois se compilou o seu primeiro livro, tal como hoje conhecemos. Todos os seus restantes livros seguiram o mesmo modelo, o que volvidos mais de 10 anos, e mais de 10 obras, terá contribuído para a construção de um modo perfeitamente rotinado de criação e escrita. “David Copperfield” acusa terrivelmente o impacto dessas rotinas, transformadas em artifícios e expedientes para manter a chama do leitor acesa. Neste sentido, temos imensos capítulos que podemos rotular de “enchimento", em que nada acontece, em que o autor se detém em particularidades completamente irrelevantes para a trama central, ou até mesmo para os protagonistas da obra. Não sendo Dickens um esteta nem um filósofo, estes momentos sentem-se com demasiado impacto, porque não acrescentam nada a trama, mas também não acrescentam nada ao romance em si, à sua cosmovisão.

Por outro lado, este modo rotinado de escrever tende a perder-se nos mecanismos narrativos de manutenção do sistema de relações causais, numa lógica de construção de consistência à superfície, mas que secundariza o aprofundamento de nós narrativos e nomeadamente de personagens, já que exigem toda uma outra postura investigativa e de dedicação de quem escreve. Assim, e apesar do romance ter mais de mil páginas (nas edições clássicas), e de ser inteiramente dedicado a um único personagem, David Copperfield, conseguimos chegar ao final da viagem sem conhecer completamente David, ou melhor, conhecendo apenas o David bondoso, generoso e caridoso, podemos quase dizer, David o santo que caminha sempre em frente e no caminho certo. Nada ficamos a saber sobre o David que não gosta, que detesta, que se revolta contra as injustiças, que se quer vingar, como se esse David não existisse, fosse homem pronto a ser canonizado, apesar de todas as maldades, algumas autênticas desumanidades, que lhe vão sendo impostas tanto pelos mais próximos, como pelos mais distantes e indiferentes.

Dickens escreve de forma belíssima, merece com certeza todo o lugar de destaque nas letras britânicas, até porque li apenas dois livros e o homem fez tanto mais para além dos livros que escreveu. Mas não nos deixemos seduzir pelo endeusamento do ícone para em tudo ver apenas qualidades e excecionalidades.

janeiro 21, 2019

Regresso a "Choose Your Own Adventure"

Voltei a este formato de livros apenas para poder analisar melhor as técnicas e o design por detrás das escolhas oferecidas ao leitor. Para quem não conhece, "Mystery of the Maya" pertence a uma série que dá pelo nome de "Escolha a Sua Própria Aventura" criada por Edward Packard, que consiste em fazer desenrolar uma aventura base que se diversifica por meio de escolhas conducentes a uma miríade de diferentes desenlaces. O leitor é personagem da própria história e as decisões do personagem são as suas.


A nostalgia que tinha destes livros era fraca. As vezes em que lhes peguei nunca me convenceram. Sempre que chegava ao final da página e surgiam as escolhas desistia. Durante anos convenci-me que este modo de gerar interação com histórias era ridículo. Quando vi os primeiros filmes — "I'm Your Man" (1992) — com este sistema de escolhas, fiquei ainda mais certo disso. As escolhas pareciam ser mais dirigidas a quem escreve o livro ou realiza o filme, e menos a quem vive uma história. É verdade que as histórias se alteravam com grande impacto, mas eu não sentia as escolhas como algo pessoal, mas antes como algo distante, fora de mim. Ou seja, escolhia apenas para ver no que dava, eram escolhas de lógica e não emocionais. Por mais emotivo que o enredo fosse, as escolhas pareciam surgir como meros nós de definição do desenrolar dos eventos, e não como uma verdadeira ação minha. As consequências eram enormes, mas não eram motivadas por mim, apesar de supostamente ter sido eu a escolher. Era como se eu estivesse apenas a tentar aceder às diferentes opções que o autor me dava, nada mais.


Isto mudou com os videojogos, mas apenas neste milénio, já que nos anos 1980 e 1990 tivemos muitos que se socorriam do mesmo paradigma de escolhas e sem sucesso. Foi com videojogos como "Heavy Rain" (2010), "Mass Effect" (2007), "Life is Strange" (2015) ou ainda "The Walking Dead" (2012) que pela primeira vez experimentámos escolhas emocionais. O personagem existe, tem vida própria na história, mas em certos momentos somos chamados a decidir por ele, e desse modo, as escolhas acabam por estranhamente tornar-se pessoais. Ou seja, constrói-se um modelo empático entre o leitor e o personagem, e depois então inserem-se as escolhas, deste modo, vemo-nos numa relação de obrigação para com o personagem. Por meio da empatia gerada, sentimos como ele e por ele, e por isso as escolhas que fizermos fazem-nos sentir aquilo que acontece ao personagem no desenrolar da narrativa.


Ao ler este pequeno livro, “Mystery of the Maya” (1981), voltei a viajar no tempo das técnicas de escolhas. A série tem cerca de 60 livros, mas este é um dos 4 ou 5 mais citados, nomeadamente por ter bastantes finais, 39, alguns bastante alucinantes. Mas como disse, as nossas escolhas não impactam o sentimento narrativo, elas são como nós lógicos que nos permitem ver variantes de um universo, como se fossem máquinas do tempo que nos permitem aceder a: “e se fosse assim”. Claramente que isto pode ser atrativo para um público juvenil, até aos 10 anos, nomeadamente aquele público mais dedicado à experimentação e a sistemas, que gosta de perceber como funcionam as coisas e o mundo. Estes livros dão-se muito bem a esse público porque lhes permite visualizar todo o sistema narrativo como mapa de nós, e perscrutar assim todos os caminhos possíveis. Já para o público que tenha adquirido o gosto pelo contar de histórias, que tenha encontrado o acesso aos sentires dos personagens e suas interdependências com os mundos-história, estes livros dirão muito pouco.


Artigos de interesse sobre a série:
These Maps Reveal the Hidden Structures of ‘Choose Your Own Adventure’ Books, Atlas Obscura
One Book, Many Readings, Christian Swinehart
A Brief History of Choose Your Own Adventure, Edward Packard
A Brief History of "Choose Your Own Adventure", Jack Rossen

janeiro 18, 2019

Melancolia sim, misantropia não

Talvez se tivesse lido "O Náufrago" (1983), de Thomas Bernhard, com 20 anos o tivesse admirado diferentemente. Num tempo em que almejava tornar-me cineasta, sonhava realizar os meus filmes e acreditava que a culpa por isso não acontecer era de todos os outros que não compreendiam tal. O artista estava acima do mundo, via mais longe, via diferente porque era diferente, e fazia questão de ser diferente, era melhor do que todos. Mas o crescimento, o amadurecimento e a aprendizagem daquilo que constitui o mundo e o real leva-nos a compreender que diferentes somos todos. E por isso, se a escrita de Thomas Bernhard é muito boa, a história que tem para contar neste pequeno livro é demasiado imberbe, apesar dos seus 52 anos à data de escrita.


O narrador conta-nos a sua história, focando-se sobre o período em que conheceu e estudou com Wertheimer e Glenn Gould (o pianista real) no curso superior de música em Salzburgo. Dá conta do antes e do depois, de quem ele e Wertheimer eram e foram depois de conhecer o génio do piano. Assim, o narrador desiste de um dia para o outro do piano, e Wertheimer simplesmente termina com a sua vida. Ao longo das 150 páginas, Thomas Bernhard dedica-se a desconstruir, em repetição e com amplas contradições, numa espécie de fluxo de consciência mas perfeitamente linearizada, o porquê do sucedido. Fá-lo seguindo uma lógica de culpa, todos desde a escola de música, aos professores, à família, pais e irmã, amigos, a Áustria, Salzburgo, Viena e seus cidadãos, todos tiveram culpa. Tanto Wertheimer como o narrador, são apresentados como puros misantropos, que acreditam que o mundo conspirou contra eles.

Chegados ao final, podemos questionar: que é feito da suposta alta sensibilidade do artista, como é que essa não lhe permitiu ver através da mediocridade da culpa? Essa sensibilidade serve apenas para sentir o seu próprio umbigo? Afinal que sensibilidade artística é essa? Diga-se que não me surpreende, olhando para muitas comunidades de artistas jovens, e outras menos jovens, ainda hoje, é exatamente este discurso de Bernhard que continuo a ver, e por isso não admira que ao resto da sociedade não reste outra opção que seja ignorar.

Porque melancolia é muito diferente de misantropia, e é preciso aprender a lidar com a diferença. Desse modo deixo excertos do discurso inaugural proferido por David Foster Wallace, para os alunos de artes do Kenyon College, EUA, a 21 de maio de 2005, entretanto publicado como “This Is Water: Some Thoughts, Delivered on a Significant Occasion, about Living a Compassionate Life” (texto completo inglês e português),  que ilustra bem o caminho de aprendizagem do Ser.


This is Water, David Foster Wallace, 21 maio de 2005
"Here is just one example of the total wrongness of something I tend to be automatically sure of: everything in my own immediate experience supports my deep belief that I am the absolute centre of the universe; the realest, most vivid and important person in existence. We rarely think about this sort of natural, basic self-centredness because it's so socially repulsive. But it's pretty much the same for all of us. It is our default setting, hard-wired into our boards at birth. Think about it: there is no experience you have had that you are not the absolute centre of.
(..)
it is extremely difficult to stay alert and attentive, instead of getting hypnotised by the constant monologue inside your own head (may be happening right now). Twenty years after my own graduation, I have come gradually to understand that the liberal arts cliché about teaching you how to think is actually shorthand for a much deeper, more serious idea: learning how to think really means learning how to exercise some control over how and what you think. It means being conscious and aware enough to choose what you pay attention to and to choose how you construct meaning from experience. Because if you cannot exercise this kind of choice in adult life, you will be totally hosed. Think of the old cliché about "the mind being an excellent servant but a terrible master".
This, like many clichés, so lame and unexciting on the surface, actually expresses a great and terrible truth. It is not the least bit coincidental that adults who commit suicide with firearms almost always shoot themselves in: the head. They shoot the terrible master. And the truth is that most of these suicides are actually dead long before they pull the trigger.
(..)
By way of example, let's say it's an average adult day, and you get up in the morning, go to your challenging, white-collar, college-graduate job, and you work hard for eight or ten hours, and at the end of the day you're tired and somewhat stressed and all you want is to go home (..) remember there's no food at home (..) of course it's the time of day when all the other people with jobs also try to squeeze in some grocery shopping. And the store is hideously lit and infused with soul-killing muzak or corporate pop and it's pretty much the last place you want to be but you can't just get in and quickly out; you have to wander all over the huge, over-lit store's confusing aisles to find the stuff you want and you have to manoeuvre your junky cart (..) now it turns out there aren't enough check-out lanes open even though it's the end-of-the-day rush. So the checkout line is incredibly long, which is stupid and infuriating. But you can't take your frustration out on the frantic lady working the register, who is overworked at a job whose daily tedium and meaninglessness surpasses the imagination of any of us here at a prestigious college.
(..)
The point is that petty, frustrating crap like this is exactly where the work of choosing is gonna come in. Because the traffic jams and crowded aisles and long checkout lines give me time to think, and if I don't make a conscious decision about how to think and what to pay attention to, I'm gonna be pissed and miserable every time I have to shop. Because my natural default setting is the certainty that situations like this are really all about me. About MY hungriness and MY fatigue and MY desire to just get home, and it's going to seem for all the world like everybody else is just in my way. And who are all these people in my way? And look at how repulsive most of them are, and how stupid and cow-like and dead-eyed and nonhuman they seem in the checkout line, or at how annoying and rude it is that people are talking loudly on cell phones in the middle of the line. And look at how deeply and personally unfair this is.
(..)
But most days, if you're aware enough to give yourself a choice, you can choose to look differently at this fat, dead-eyed, over-made-up lady who just screamed at her kid in the checkout line. Maybe she's not usually like this. Maybe she's been up three straight nights holding the hand of a husband who is dying of bone cancer. Or maybe this very lady is the low-wage clerk at the motor vehicle department, who just yesterday helped your spouse resolve a horrific, infuriating, red-tape problem through some small act of bureaucratic kindness. Of course, none of this is likely, but it's also not impossible. (..) If you're automatically sure that you know what reality is, and you are operating on your default setting, then you, like me, probably won't consider possibilities that aren't annoying and miserable. (..) The only thing that's capital-T True is that you get to decide how you're gonna try to see it.
(..)
This, I submit, is the freedom of a real education, of learning how to be well-adjusted. You get to consciously decide what has meaning and what doesn't."

Não é a primeira vez que cito este texto de DFW, em 2013 trouxe-o aqui porque tinha sido alvo de um belíssimo trabalho de ilustração audiovisual.

janeiro 12, 2019

Quem fala inglês na Europa e porquê

A partir de uma visualização do mapa europeu, com percentagens de população capaz de manter uma conversa em inglês, poderíamos rapidamente inferir que afinal o impacto do cinema e música, que a esmagadora maioria de portugueses consome em inglês e legendado, não surte grande efeito nas nossas capacidades linguísticas. Diferencia-nos muito pouco dos colegas de península que só vêem cinema na sua língua, e ouvem muito mais música própria. Depois começamos a olhar para o resto do mapa, e parece surgir um padrão, a Europa do Norte fala muito mais inglês que a Europa do Sul. Porquê?


Uma primeira resposta que surge de imediato é o facto da Europa do Sul ser mais pobre, e ter menores níveis educativos. Com este indicador poderíamos atacar o nosso país mais uma vez, pelo seu problema crónico de falta Educação, dizendo que tudo se resolveria com maior investimento no ensino da língua inglesa. Isto é suportado pela correlação entre o GDP dos países europeus e o seu domínio do inglês, o mais baixo tem menor domínio do inglês. No entanto, se olharmos melhor para o mapa, nem a Europa do Sul nem o baixo GDP, encaixam no mesmo padrão. A Grécia apresenta uma percentagem tão alta como a Alemanha.

O criador do mapa original, Jakub Marian, resolveu então olhar para os dados e estratificar as diferenças de falantes de inglês em função dos idioma de origem — Românicas, Germânicas, Helénicas, Bálticas, Eslavas e Fino-úgricas. — e então um padrão novo emerge. O inglês é uma língua germânica, já o português, espanhol, francês, italiano e romenos são línguas românicas. As variáveis de GDP e de vizinhança, entre outras, terão o seu peso nesta distribuição, ainda assim é inevitável reconhecer o peso da herança cultural. Talvez por isso mesmo, devíamos pensar em não desprezar a nossa língua como desprezamos, menos ainda aqueles que produzem cultura todos os dias nas nossas línguas. Claro que podemos sempre optar por esquecer quem somos.



janeiro 08, 2019

Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável

“Red Dead Redemption 2” (RDR2) fica como sinónimo do mais completo e irrepreensível mundo-história criado até hoje nos videojogos, o que é diferente de dizer que é um videojogo perfeito. A experiência criada pela obra, ao longo de mais de 60 horas, vai para além daquilo a que o cinema nos habituou, aproximando-se, amiúde, da experiência literária, mantendo, no entanto, sempre a sua marca como videojogo. O que impede a obra de ser perfeita é talvez também aquilo que a torna tão singular, a teimosia da visão pessoal, autoral, do seu diretor criativo Dan Houser (44), nomeadamente no design de jogo e de narrativa.



Parte I
Começando pelo melhor, e mais impactante, o mundo-história. É uma vitória da multidisciplinaridade entre a arte e a tecnologia, contando para o efeito com todo um trabalho de qualidade elevada em quase todos os domínios das artes narrativas — mundos, personagens e eventos — das artes visuais — modelação (elementos estáticos: arquitetura e geografia; e dinâmicos: pessoas e animais), texturas, iluminação (atmosfera e clima), animação, cinematografia ¬— das artes sonoras — design de som e música — assim como artes cénicas — performances, guarda-roupa e palcos (interiores e exteriores). Mas este trabalho artístico, de altíssimo nível, só se dá à criação desse mundo-história admirável porque conjuntamente com este se estenderam até ao limite as possibilidades tecnológicas que garantem a vivacidade do mundo, assentes numa variedade de sistemas computacionais, nomeadamente inteligência artificial de suporte ao movimento, a animação de todo o mundo, tanto nos campos áudio e visual como sistemicamente, com a rede de eventos e micro-eventos, por via das uniões, interseções e interdependências, a garantir níveis impressionantes de organicidade.



A entrada no mundo aberto pleno, na primeira visita que fazemos a uma vila, logo após a fase introdutória do jogo, é de total estupefação, os nossos olhos nem querem acreditar no que estão a presenciar, a navegação pelo universo é quase surreal, ultrapassando tudo o que o cinema ou os parques temáticos já nos tinham oferecido. Não é questão de interatividade, é acima de tudo um trabalho de direção de arte, que ao contrário do que acontecia no cinema, em que se construíam maquetes para filmar e se procuravam geografias alusivas, pode aqui controlar tudo desde o primeiro ao último pixel. Temos paredes, portas, janelas, carroças e palanques de madeira que transpiram texturas de madeira, lama no chão que brilha com chuva e levanta em pó com o sol, tal como as roupas, os cabelos e as peles, todas as formas nunca perfeitas, nunca iguais, nunca simétricas. Ao que se juntam miríades de objetos —cordas, laços, roupas, candeeiros, caixas, cartazes, quadros, fotografias, armas, guitarras, cachimbos, etc. etc. — pendurados nas paredes, nas portas, nas carroças, nas pessoas. Mas se o mundo estático impacta, é o seu movimento, a miríade de animações que suportam as pessoas, nas suas formas de andar particulares de cada personagem, os animais — cães, cavalos, galinhas, pássaros, esquilos — que correm e saltam, as carroças que atascam na lama, que andam mais rápido em descidas do que em subidas, as suas rodas que ficam carregadas de lama e sobem quando pisam pequenas pedras, é a luz do sol e as sombras das nuvens carregadas que nos fazem sentir cada momento, como um momento vivo.

Claro que se fosse isto, uma representação em movimento, era uma animação excecional mas não diferente de outras maravilhas que o cinema de animação já nos ofereceu, a diferença é que este mundo descrito não surge apenas em pequenos quadros e durante breves segundos, este mundo está ali pronto a ser experimentado pelo tempo que nós quisermos e em 360º. Por isso, não basta animá-lo é preciso garantir a sua interatividade, e aí a Rockstar vai aonde nenhum jogo foi, com centenas de pessoas singulares — com traços extraídos de mais de 1200 atores — em movimento contínuo nas vilas, tratando das suas vidas, com quem podemos falar, que sempre têm uma palavra para nos dizer ou uma expressão para fazer. Ao que se juntam quase duas centenas de animais, cada um com o seu comportamento, e capaz de se relacionar com humanos assim como com outros animais, em função do seu lugar na cadeia alimentar. E ainda, meios de transporte — carroças, diligências, comboios, trolleys, barcos, barcos a motor — dezenas de armas e equipamentos — lanternas, máquina fotográficas, laços, binóculos, canas de pesca, sacolas e peles.

Todo este manancial de elementos em movimento é gerido por um sistema complexo que fornece vários níveis de autonomia a cada camada do universo, conseguindo criar a ilusão de um mundo onde penetramos, tal Alice, e sentimos como realidade, vivo. Esta componente orgânica acaba por ser responsável pelo nosso deslumbre, não apenas pela beleza e complexidade, mas também pela capacidade de nos surpreender graças ao que vai emergindo da junção de tantos elementos e das suas interações, tal como nos surpreendemos todos os dias com o mundo em que vivemos.

Parte II
Passando agora àquilo que impossibilita RDR2 de ser perfeito, e que tem servido para impedir o mesmo de ganhar os maiores galardões dos festivais de videojogos — o Design de Jogo — tenho de dizer que até ao final, antes de entrar nos dois epílogos, considerei que eram meras opções estéticas da Rockstar e Dan Houser, mas quando começaram a subir os créditos, e vi como tinha sido tratado o Design de Narrativa, fui obrigado a redimir-me e aceitar as críticas que vêm sendo feitas. Aquilo que foi feito com estes dois epílogos, juntamente com o design de jogo das missões, mostra uma teimosia artística incapaz de aceitar o conhecimento e savoir faire do design. Começo pelo jogo e depois falarei da narrativa.

A Rockstar tem fama pela incoerência do design entre o mundo aberto e as missões. Nos mundos, os jogadores podem fazer quase tudo o quiserem, mas nas missões não podem fazer nada que não esteja pré-estabelecido, algo que as discussões recentes têm gostado de confrontar com uma suposta superioridade do mundo aberto e agência de "The Legend of Zelda: Breath of the Wild" (ver Mark Brown e Discussão sobre agência em RDR2). Discordo desta visão, desde logo porque muito daquilo que Zelda faz é a custa de uma narrativa vazia, mas porque o problema da Rockstar não é esse, esse é antes uma consequência de uma opção estética, ou obsessão, e que tem que ver com o facto da Rockstar se manter agarrada a um ideal que foi ultrapassado pelas necessidades do meio, a imitação cinematográfica. Assim, procura diminuir ao mínimo possível os sistema de informação de suporte ao jogo (UI ou HUD), mantendo a interação quase toda a um nível diegético, impedindo que se utilizem sistemas de feedback de competências e experiência (Skill Trees) ou de progresso (analíticas e métricas de mundo e equipamento), como fazem hoje todos os jogos em mundo-aberto, de "Assassin’s Creed" a "Witcher 3" (2015) ou "Horizon Zero Dawn" (2017). Ora sem estes sistemas, que organizam todo o mundo virtual, e oferecem feedback ao jogador, torna-se complicado, se não impossível, fazer passar aquilo que vamos fazendo no mundo aberto para as missões da história. Nas entrevistas Rob Nelson, um dos produtores de RDR2, fala muito do sistema de Honra, que vai ficando mais negativo ou positivo, consoante o modo como nos vamos comportando, mas na verdade isso nunca afeta o desenrolar das missões. Do mesmo modo, temos de comer, porque ficamos magros ou gordos, mas isso não impacta nada no resto do jogo, porque o jogo não tem um sistema de feedback que alerte o jogador. O jogador não pode estar a meio de uma missão e cair para o lado com fome ou sono, se ele não sabe a percentagem de fome ou sono que ainda lhe resta quando decide entrar na missão. Ou seja, o jogo “fala” com o jogador apenas por meio diegético (mostra que estamos magros ou que temos olheiras, mas para determinar o impacto desse feedback, seria preciso todo um manual de nuances e tempo de aprendizagem para ler esses sinais) mas esse não é suficiente para criar sistemas com a complexidade do que se espera de um mundo-aberto. Pode funcionar, em jogos lineares e bem delimitados, como “The Last Guardian” (2016), mas é impossível de realizar num jogo abrangente como RDR2.

Por fim, o design de narrativa, mas aqui tenho de avisar que entrarei com spoilers, mas avisando. Antes de atacar os epílogos, dizer que existe muito de genial neste jogo, no campo do design de narrativa, sendo o melhor, o início de cada missão. Todas, sem exceção começam com Arthur a seguir para a missão com um ou vários companheiros, a cavalo ou a pé, durante o que se dão breves conversas, que estão magistralmente bem escritas, não apenas porque realizam toda a exposição necessária, sem precisarmos de qualquer cutscene, como pela performance desse guião se consegue criar o sentimento de cada um dos 23 indivíduos que constituem o gangue de Dutch, Arthur e Marston. Mas se isto é o melhor, acaba sendo também responsável pela separação forte, em termos narrativos, que se sente entre o mundo-aberto e as missões, porque apesar de a Rockstar dizer que todos os personagens reagem a nós, e são dotados de imensas linhas de diálogo e expressões, a verdade é que nenhuma dessas capacidades dos NPC se compara nunca a nenhuma das performances que “vivenciamos” com cada um dos elementos em cada missão. São esses momentos, em que nos preparamos para avançar para a “quest”, que nos fazem entrar no espírito daquele gangue, compreender quem são aquelas pessoas, o que as uniu e mantém unidas, o que as singulariza e acaba dando toda a vida de que RDR2 é feito.  Nestes momentos respira-se forte inspiração literária, e por mero acaso andava a ler "David Copperfield", sentindo a momentos algo no tom que aproximava imenso RDR2 de Dickens. Parecia-me estranho até que li uma entrevista com Dan Houser, em que este dizia que se tinha servido de centenas de referências, "mas nada contemporâneo para não o virem a acusar de roubar ideias", dando conta de Henry James, Keats, Émile Zola, Arthur Conan Doyle, frisando esta pérola — "Mas não há maior personagem na história da literatura do que Uriah Heep" — uma personagem de "David Copperfield" de Dickens, explicando o que senti, e tanto daquilo que temos por detrás daqueles personagens do gangue.


*** Spoilers *********************************

Epílogos. RDR2 termina verdadeiramente quando Arthur Morgan morre. Basta procurar as resenhas, as leituras e tributos feitos na net ao jogo, e veremos que Arthur é o personagem que agarrou o imaginário dos jogadores (https://www.youtube.com/watch?v=ES1Td5Pm2IE ). O personagem está imensamente bem escrito, e é suportado por uma performance e curva dramática soberbas. O jogo é sobre Arthur, não sobre John Marston. Sim, antes de RDR2 a audiência vivia fascinada por Marston, ele seria o ego da série, e talvez isso também tenha pesado na decisão de criar dois epílogos de 3 horas cada um, para nos colocar a jogar como Marston, mas foi um erro colossal como podemos ver em vários textos na rede (Forbes, VGR, Collider). Quando Arthur morre, senti o zénite de RDR2, senti a perfeição de uma história, a sua mensagem total ali plasmada e fechada. Os dois epílogos oferecem nada, mesmo a parte final, da morte de Micah, é completamente irrelevante, se era para matar alguém, era Dutch quem queria morto, desde que ele abandonou Arthur à sua sorte. Ainda assim, se os epílogos fossem uma ou duas missões na quinta, para fecharem em modo espiritual, agora horas a fio de tarefas inconsequentes, com mais gangues sanguinárias, e apenas Marston e três amigos para encher. Quando cheguei ao final dos epílogos já nem queria ouvir a música da banda sonora, só queria desligar, fechar, de tão aborrecido que estava. Para mim, não se tratou de nenhum epílogo, mas antes de dois DLC enxertados no final do jogo, um dedicado a Abigail e outro dedicado aos três amigos — Tio, Charles e Sadie e à Quinta. O design de narrativa falha completamente na gestão emocional do jogador, não aproveita a relação criada com a personagem, que deixou marca, para fazer o jogador passar por dois epílogos distantes, sem qualquer relação emocional com as 50 horas que tinha acabado de jogar.

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Dito tudo isto, quero fechar apenas dizendo que RDR2 é uma das maiores conquistas desta geração de videojogos. Tecnicamente será superado pela próxima geração, mas o Gangue de Dutch e Arthur Morgan ficarão na memória dos videojogos, nomeadamente na de todos aqueles que jogaram esta maravilha do entretenimento, arte e design.


Referências
Red Dead Redemption 2: A deep dive into Rockstar’s game design, VentureBeat
Red Dead Redemption 2 – how advanced AI and physics create the most believable open world yet,  VG247
The Story Behind the Story of ‘Red Dead Redemption 2’, Variety
How the West Was Digitized The making of Rockstar Games’ Red Dead Redemption 2, Vulture
Red Dead Redemption 2: The inside story of the most lifelike video game ever, Entrevista Dan Houser pela GQ
Rockstar Games Reveals New Plot Details for 'Red Dead Redemption 2', Entrevista com os diretores de arte, Hollywood Reporter
Red Dead Redemption 2 Is True Art, NYT
Avec Red Dear Redemption Interview Rob Nelson, JeuxActu