junho 10, 2018

O realismo cinematográfico que ainda nos surpreende

Mais um filme capaz de transpor a literatura, desta vez vem da Alemanha e pelas mãos da realizadora Maren Ade (1976), intitulado "Toni Erdmann" (2016). Ade já disse que não aceita fazer um remake do filme para Hollywood, e faz muito bem, porque se é verdade que levaria a sua história a muito mais pessoas, também sabemos que não seria possível chegar ao âmago deste filme, usando as metodologias de contar histórias de Hollywood. A história seria apresentada, e ficaríamos a conhecer uma relação de pai e filha destronada pela força da velocidade da sociedade moderna, mas o acesso ao sentir destes personagens seria impossível.




Estive a ver a lista de filmes que aqui tenho trazido e são muito poucos, tenho lido muito mais do que visto cinema, julgo que a razão para tal se joga no excesso de artificialismo do cinema atual, ora pelo espetáculo ora pela arte. E não é por acaso que mesmo na literatura tenho lido muito mais clássicos do que obras atuais. Julgo que isto está relacionado com a minha busca, algo ansiosa, por realismo, aquilo que defini numa lista do meu Letterboxd, como Harsh Realism, ou "filmes sobre situações de vida difíceis, ou relações humanas difíceis". Deste modo também não é por acaso todo o meu amor para com a chamada Nova Vaga do Cinema Romeno, e que me tem levado a questionar porque em Portugal o único autor que por aqui tem sido capaz de enveredar é o João Canijo.

Confesso que conhecia o título do filme desde que saiu, até porque gerou bastante alarido, mas as poucas imagens que dele conhecia, cartaz, imprensa e trailer arredavam-me sempre do filme, julgo que a principal razão era o tom de comédia. Foi só ao pesquisar o filme no FilmIn, e em especial olhando para as etiquetas do mesmo — "relações familiares", "relação pai-filho", "vergonha"...— que resolvi parar e tentar perceber o que tínhamos aqui, mesmo que o género do filme aparecesse como apenas "comédia". Tenho de dizer que fui brutalmente surpreendido, e aprendi algo novo, aprendi que é possível falar e questionar a vida e a sua imensa dureza por via da comédia, ainda que se trate de comédia-negra.

A síntese da história já a dei acima e resume-se apenas àquela frase, pouco mais se passa ao longo das duas horas e meia além do encontro, espécie de confronto, entre pai e filha, que nos obriga a questionar o mundo em que vivemos, as ânsias e irritações diárias que vamos sentindo na manutenção da sanidade do nosso trabalho e das vidas em família. Não estão em causa lições de moral, nem se abrem discussões apocalípticas sobre a pressão que se vive, antes pelo contrário, o filme serve inteligentemente o tema, levando-nos a refletir, proporcionando portas de esperança sem qualquer manipulação. Mas se o consegue é porque nos conduz ali por meio de um vínculo, quase sagrado, de pai e filha. Pode-se dizer que "Toni Erdmann" é um estudo da relação adulta entre pai e filha que coloca a lupa e amplifica ao máximo aquilo que os une, o passado e as experiências conjuntas, confrontando tudo com a necessidade de emancipação e das escolhas individuais. A relação aqui apresentada está longe daquela simplicidade que podemos encontrar nas obras que exploram o choque do início da afirmação adolescente e rejeição dos pais. Aqui tudo isso já foi ultrapassado, e no entanto parece que nunca se ultrapassa, o que nos instiga ainda mais a questionar o mundo e os objectivos financeiros que desejamos abraçar, aceitando sem questionar o impacto que tudo isso terá sobre aquilo que somos enquanto pessoas, a comunidade e os valores que nos criaram.

Olhando aos filmes em que mais tenho sentido a aproximação à literatura e buscando padrões, diria que o mais relevante, e ao mesmo intrigante por ser contrário ao que acontece na literatura, é o diminuto tempo dedicado à fala — narrada ou por diálogo. Como que se para nos dar acesso ao que sentem internamente aqueles personagens, restasse ao cinema apenas o não-verbal. O cinema é ágil a engendrar situações e a mostrar ação, mas dar conta do que vai no espírito dos personagens é complicado, e por isso talvez o melhor seja mesmo colocar os corpos dos atores dentro das situações, expô-los às realidades e mostrar como reagem: como se surpreendem, envergonham, coram, irritam, culpam, definham, lutam ou submetem.

junho 08, 2018

"Mal de pierres" (2016) de Nicole Garcia

Não sendo um grande filme, acaba sendo uma grande experiência, muito graças a três ingredientes: atores, cinematografia e música. Em primeiro, temos a sempre deslumbrante Marion Cotillard que arrasta consigo todo o filme, que juntamente com a música de Daniel Pemberton (All the Money in the World, 2017; King Arthur: Legend of the Sword, 2017) conseguem desenvolver vários momentos de enorme atmosfera, sendo depois fusionados com a beleza da fotografia de Christophe Beaucarne (Mr. Nobody, 2009; The City of Lost Children, 1995) para criar uma experiência estética de grande fulgor. Nada mais direi, deixo apenas três capturas do filme que dão conta do alcance visual da obra.



junho 06, 2018

The Arts and the Creation of Mind (2002)

O meu interesse neste livro estava relacionado com o tentar descobrir mais sobre modo como as artes moldam o nosso pensar e contribuem para a nossa experiência do mundo. Se é verdade que fala disso, fala muito mais das artes no percurso escolar, e a partir do meio do livro foca-se claramente na importância das artes nas escolas básicas e secundárias o que acabou por afastar o meu entusiasmo. Não advém daqui qualquer problema, e é mesmo um assunto que precisa de ser discutido, até porque em Portugal temos imensa falta de artes nas nossas escolas, mas não era o que esperava do livro, menos ainda com este título.



Por outro lado, e como várias vezes citado ao longo do livro, este acaba devendo bastante a John Dewey, por isso talvez eu tivesse tirado mais do livro se não tivesse lido antes as duas principais obras aqui citadas, “Experience and Education” (1938) e “Art as Experience” (1934). E no entanto, agora ao reler as minhas análises de ambas as obras, acabo a compreender o que se passou, já que não é diferente do que se passou aquando da leitura dos dois livros de Dewey. Ou seja, a parte relacionada com a experiência da arte e o pensar da arte enquanto atividade e experiência humanas, apresentadas na obra “Art as Experience”, e que neste livro de Eisner surgem nos primeiros três capítulos, são bastante interessantes, abrem-nos os horizontes, ajudam-nos a compreender mais e melhor os universos e domínios da arte e da estética, assim como o que está em jogo nos processos criativos. Já a segunda parte do livro, mais focada na educação, acaba por se aproximar do livro “Experience and Education”, que já aquando da sua leitura me tinha queixado pela falta de metodologia, falta de suporte empírico, tudo demasiado assente em evidências anedóticas e pessoais, o que não deve ter lugar num livro académico.


Neste sentido, tenho de apontar um dos mais problemáticos pontos defendidos pelo livro, em termos científicos, e que tem que ver com a transferência de conhecimento. Existe uma certa ideia, nomeadamente no campo das artes, mas em quase todas as disciplinas, de que o conhecimento que se apreende ali serve muitas outras áreas. Isto no fundo é uma forma de fazer valer as nossas áreas, de as tornar mais relevantes do que a miríade de outras áreas que existem e que não têm espaço para ser introduzidas nas escolas. Aliás, em redor dos videojogos têm sido imensos os estudos a tentar defender esta ideia da transferência de competências. O problema é que tal não acontece (saber mais). Aquilo que eu aprendo como pintor pode servir-me para qualquer outra atividade de construção de imagem gráfica, mas não vai servir para qualquer outra atividade fora desse domínio. Não é por se ser pintor que a pessoa é melhor a detetar padrões de xadrez, de radiografias ou mesmo dos tipos de movimento em animações, o conhecimento é aplicado em cada área e requer muitos anos de investimento pessoal.

Por outro lado, a abordagem apresentada peca por se fechar sobre a forma do processo criativo, e ainda que discuta esse processo como motivado por razões expressivas e de comunicação, nunca se fala da produção de conteúdo. Ou seja, a arte não cria no vazio, ela é antes o método para trabalhar e digerir a realidade, mas para isso requer que o criador conheça essa realidade. Ora um dos grandes problemas que pode acontecer na arte é o de criar virtuosos que nada têm para dizer. Por isso, do meu ponto de vista, faltou focar o domínio da cultura, da sua relevância e ferramentas críticas para ajudar os artistas a desconstruir a realidade e a potenciar o seu pensamento crítico.

Subliminar, mas pouco

não é a primeira vez que aqui trago o trabalho de Leonard Mlodinow, que se tem vindo a assumir como um dos mais influentes comunicadores de ciência da atualidade, contudo o modo como desta vez procedeu ao levantamento do tema acabou por revelar-se, em minha opinião, bastante superficial, desde logo porque não existe qualquer menção ao trabalho mais relevante da área, o de Daniel Kahneman e Amos Tversky.  Ou seja, Mlodinow fala de experiências similares, mas ao não reconhecer o trabalho prévio, acaba por não recorrer a todo um manancial de conhecimento criado nas últimas décadas no domínio da Behavioural Economics, que desde logo fica evidente num título assente num conceito que foi popular há mais de 30 anos mas entretanto caiu em desuso: "Subliminal: How Your Unconscious Mind Rules Your Behavior" (2011).


Mlodinow trata o modo como o cérebro opera a realidade, nomeadamente a relação entre consciente e não-consciente, e como essa constante passagem entre os dois modos produz desvios ou erros nos processos de racionalização. Ou seja, Mlodinow analisa o impacto desses erros de leitura a partir das capacidades dos processos cognitivos de percepção, memória e atenção sobre as relações humanas, ou processos de socialização. Fala-nos assim do modo como lemos e julgamos os outros por meio de generalizações que o nosso cérebro opera para conseguir lidar com a complexidade da realidade. Deixo um excerto que resume os processos descritos:
“We like to think we judge people as individuals, and at times we consciously try very hard to evaluate others on the basis of their unique characteristics. We often succeed. But if we don’t know a person well, our minds can turn to his or her social category for the answers. Earlier we saw how the brain fills in gaps in visual data — for instance, compensating for the blind spot where the optic nerve attaches to the retina. We also saw how our hearing fills gaps, such as when a cough obliterated a syllable or two in the sentence “The state governors met with their respective legislatures convening in the capital city.” And we saw how our memory will add the details of a scene we remember only in broad strokes and provide a vivid and complete picture of a face even though our brains retained only its general features. In each of these cases our subliminal minds take incomplete data, use context or other cues to complete the picture, make educated guesses, and produce a result that is sometimes accurate, sometimes not, but always convincing. Our minds also fill in the blanks when we judge people, and a person’s category membership is part of the data we use to do that.”

junho 03, 2018

Quem matou Roland Barthes?

Arthur Conan Doyle criou a base, Umberto Eco criou o modelo, Dan Brown aperfeiçoou a trama com uma fórmula, Laurent Binet usou a base e o modelo e abusou da fórmula por meio da sátira, e assim criou o thriller intelectual da década, em "A Sétima Função da Linguagem" (2015). Temos crime e mistério com direito a conspirações internacionais criadas a partir de académicos tornados celebridades com teorias de crítica literária transformadas em Santo Graal. Se gostarem de qualquer destes elementos, estarão em casa, já que Binet criou a obra por meio de régua e esquadro, ou seja, tudo está no sítio certo, da estrutura às centenas de referências.

Roland Barthes

Michel Foucault

Diria que é uma obra que apelará a quem investiga as Ciências da Comunicação, nomeadamente a Semiótica e áreas afins como Estudos Culturais e Literários (com os seus pós-estruturalismo e pós-modernismo) dado o contexto que contribui para a criação de infindáveis private jokes das áreas. Claramente que a obra também fala para quem está fora destes domínios, existe uma constante preocupação em generalizar os papéis dos académicos, estereotipando-os para funcionarem como académicos de qualquer área. Por outro lado, as teorias intrincadas dos domínios são sempre apresentadas de modo bastante simplificado por forma a garantir um conhecimento mínimo sobre o que está em jogo. O facto de se laborar por meio da fórmula de thriller e usar uma teoria filosófica como mote, acaba gerando per se uma obra de grande entretenimento, com a vantagem de se poder aprender enquanto nos divertimos, mesmo que a experiência de leitura dos dois tipos de públicos seja bastante diferente.


Falei em centenas, e por isso não posso aqui listar todos os que nesta aventura intervêm, deixo, no entanto, alguns indicadores para compreendermos o mundo-história que se nos apresenta. Do lado dos académicos: Roman Jakobson, Roland Barthes, Michel Foucault, Louis Althusser, Umberto Eco, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Tzvetan Todorov, Julia Kristeva, Jacques Derrida, John Searle, Bernard-Henri Lévy, Noam Chomsky, Paul de Man, Richard Rorty, Camille Paglia, Judith Buttler e Jacques Lacan. Do lado dos políticos, Valéry Giscard d'Estaing e François Mitterrand, e em fundo Ronald Reagan, Margaret Thatcher, Jacques Chirac e João Paulo II. Das artes temos Philippe Sollers, muito presente pela sua relação com Kristeva, Michelangelo Antonioni e Monica Vitti. Por outro lado, são inúmeros os eventos reais chamados para constituir o palco da ação: desde a efetiva morte de Roland Barthes em 1980, motivada por um ridículo atropelamento, às eleições para a presidência da república francesa em 1981, ao assassinato da mulher de Althusser pelo próprio, ao atentado à bomba na estação de Bolonha que matou 75 pessoas em 1980,  até à excelente querela entre Derrida e Searle, ou ainda aos distintos universos homossexuais de Barthes e Foucault.

Binet usa todo este manancial de personagens, espaços e eventos reais para criar uma trama de mistério, partindo do seu ovo de Colombo: “Quem matou Roland Barthes?” Nada melhor do que lançar o mistério sobre algo que aconteceu da forma mais banal possível, e a partir daí dar largas à imaginação, arquitetar, montar e ligar as pontas reais com as imaginárias, criar sentidos, dos velhos fazer novos. No fundo é exatamente disso que fala a Semiótica, a ciência que estuda o modo como damos sentido ao mundo, ou o modo como a comunicação se torna eficaz. Barthes não criou a semiótica, mas foi, e continua a ser, uma das suas grandes referências académicas, juntamente com os fundadores Saussurre e Peirce, e o seu contemporâneo Umberto Eco. Gostei particularmente do trabalho realizado por Binet sobre a teorização das Funções da Linguagem da Jakobson que vai servir de suporte a toda a trama, desde os combates de discursos do Logos Club (segundo o próprio Binet, baseados no "Fight Club" de Palahniuk) à comunicação política das presidenciais francesas de 1981. E ainda no campo político, dizer que foi verdadeiramente premonitório o trabalho de Binet, ao colocar Kristeva como espécie de espiã búlgara, o que viria ser confirmado pela polícia da Bulgária em 2018.

A obra apresenta-se como um simples thriller satírico, que gera diversão, mas pode facilmente contribuir para abrir portas de interesse para quem está fora do domínio, ou renovar o interesse a quem entretanto as fechou. Binet contextualiza, embora não possa condensar anos de estudo num livro, mas as teorias essenciais e suas metodologias são aqui dissecadas e sempre de forma a garantir a compreensão mais alargada possível. Para muitos do público que trabalham na área, o riso é uma constante, só imaginar cada um destes intelectuais que passámos horas e horas a estudar nas bibliotecas das universidades, agindo como meros mortais, cometendo gaffes, dando-se ao ridículo, cria todo um mundo alternativo ao imaginário por nós fabricado. Por outro lado, é tudo isso que nos instiga a questionar intelectualmente as teorias e o modo como elas vão sendo profusamente aplicadas na construção do texto literário que temos na nossa frente, já que Binet nunca se coíbe de usar na forma muito daquilo que vai discutindo no conteúdo.

Ou seja, se senti ao longo de todo o livro uma leveza, ou superficialidade, na descrição das grandes teorizações, não foi por incapacidade do autor, mas porque a isso este objectivou. Talvez mais do que isso me tenha incomodado uma certa artificialidade discursiva, ou seja, compreender os truques próprios de cada género de romance — policial, histórico, aventura, coming of age — e a necessidade de ir embebendo nestes os diferentes personagens reais, os diferentes eventos ocorridos, criando novas leituras, novos imaginários. É tudo bastante estereotipado, sente-se um certo receio do autor de não ser compreendido, provavelmente pelo facto de estar a falar para dois tipos de público muito distintos, como mencionado acima. No entanto, se todas as peças parecem artificialmente montadas, como que seguindo um manual de Lego criado pelo autor, o manual não deixa de impressionar, não só pelo lastro imensamente largo, mas também pela sua profundidade e complexidade.

Por fim, e agora numa leitura mais distanciada, foi uma surpresa a abordagem escolhida para este livro por Binet. Ao longo do último século fomo-nos habituando a ler e a ver histórias de aventuras que quando se focam na busca de objetos de grande poder, perdidos ou secretos, apresentam invariavelmente duas vertentes: místicos/religiosos — Santo Grall, Pergaminhos, Cidades de Ouro, etc.; e quando se viram para a ciência, seguem atrás do poder transformador das ciências naturais — fórmulas matemáticas, moléculas, radiações, realidades quânticas. Ora esta foi provavelmente a primeira obra, de grande destaque popular, a construir-se sob as teorizações das ciências humanas e sociais. Depois desta, já vimos Hollywood fazer o mesmo com “Arrival” em 2016, com toda a parafernália tecnológica a ser subjugada a uma simples teoria da linguagem, a Hipótese de Sapir-Whorf. Em certa medida, acalento a esperança de ser um indicador do reconhecimento da importância das diferentes ciências. Não existem ciências mais importantes que outras, não podemos compreender o mundo sem a multidisciplinaridade que sempre caracterizou a humildade científica.

junho 02, 2018

Sonhos de Hollywood

O trabalho de Victor Castillo ganhou nova vida através de um pequeno documentário, criado pela Loica, que resolveu animar várias das icónicas obras dele. O filme intitulado "Hollywood Dreams" é muito curto, mas dá conta das influências e objetivos do autor assim como levanta um pouco o véu sobre o quanto as suas criações têm influenciado a paisagem cultural, mas o melhor de tudo são mesmo os pequenos filmes de animação das diferentes telas que nos permitem navegar por entre os universos criados por Castillo.

"Let's Get Out of Here" (2017)

"Pure Pleasure" (2013)

Castillo nasceu no Chile (1973), em 2004 emigrou para Barcelona, tendo começado a expor e a chamar a atenção, e depois em 2010 acabou por se mudar para LA. O seu trabalho tem surgido em murais, revistas e museus um pouco por todo o mundo.

"Hollywood Dreams" (2018) de Loica

Epistemologia pela análise histórica

"A Ordem do Discurso" é um discurso escrito, apresentado por Michel Foucault a 2 de Dezembro de 1970, na sua aula inaugural no Collège de France, entretanto posto a circular na forma de livro pela editora Éditions Gallimard em 1971. A relevância do discurso centra-se na apresentação, de modo sintético, do método de chegada à verdade eleito por Foucault, apresentando as razões e raízes para o mesmo. Foucault apresenta-se como devedor de Jean Hyppolite no que ao método concerne, sendo que a sua chegada ao Collège de France acontece pela morte de próprio Hyppolite, no ano anterior, tendo Foucault sido eleito para ocupar a sua cátedra, Histoire de Pensée Philosophique, com a nova designação de Histoire des Systèmes de Pensée.


O texto é de difícil leitura, não porque use muito jargão, mas porque Foucault, como tantos outros filósofos, opera o seu discurso sempre em níveis de análise macro, ou seja grandes categorias do real, que para quem não está por dentro de um enorme manancial de contexto, torna difícil compreender em concreto o que é dito, ou seja, estabelecer a ligação entre as categorias gerais e as especificidades diversas que a realidade apresenta. No entanto, e também como sempre nestes discursos, à medida que vamos forçando a nossa entrada na teia, vamos assimilando o comprimento de onda, sendo capazes de nos colocar ao lado do autor e seguir pelo meio da abstração o que está a ser dito. É preciso dizer ainda que o texto, por ter sido pensado para um discurso falado, não poderia, ao contrário do livro, tomar a liberdade de evocar muito do contexto necessário à sua compreensão. Por outro lado, o tipo de audiência esperado para o discurso supostamente estaria na posse de muito desse contexto.

Não me interessa aqui debater em concreto as estruturas do Poder que Foucault encontra estarem a operar na construção dos Discursos, desde logo porque existem pessoas muito mais especializadas na temática que eu, que já fizeram essa desmontagem, apresentando-a de modos muito mais pragmáticos e até visuais. O texto tem sido amplamente usado pelos colegas de Direito e da Medicina para compreender exatamente o poder do discurso em si.

Interessa-me antes focar no método epistemológico que serve de base a essa busca, e que assenta na arqueologia do saber, que no fundo dá conta de uma construção do conhecimento por meio da análise histórica e construtivista dos acontecimentos na realidade, recorrendo a múltiplos processos de operação dos elementos desses acontecimentos na história, pondo em jogo não apenas os eventos mas todo seu contexto social, usando a comparação e a correlação em busca de padrões e categorias de suporte a uma verdade por detrás das ideias. Isto é apresentado e trabalhado por Foucault como base metodológica para a busca da compreensão do poder do discurso.
"As descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar, apoiar-se umas nas outras e completar­ se. A parte crítica da análise prende-se com os sistemas de envolvimento do discurso ; ela visa assinalar e distinguir esses princípios de prescrição, de exclusão, de raridade do discurso. Digamos, jogando com as palavras, que ela põe em prática uma aplicada desenvoltura. A parte genealógica da análise prende-se, pelo contrário, com as séries da formação efectiva do discurso : visa captá-lo no seu poder de afirmação, e não entendo com isso um poder que estaria em oposição ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objectos, em relação aos quais se poderá afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos positividades a esses domínios de objectos ; e digamos, jogando segunda vez com as palavras, que se o estilo crítico era o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz."  Foucault, O Poder do Discruso (1971)
Concordando totalmente com a epistemologia, sinto no entanto que fica a faltar algo neste método, e não vou fazer uma crítica sobre o estruturalismo ou formalismo do método, mas mais sobre aquilo que me parece ser algo que faltaria aqui para podermos fechar o circuito completo da construção de verdade. Falo em concreto da Interpretação, a mãe da escola de análise crítica, que em face de todos os achados — repetições e diferenças — precisa de dar um sentido aos mesmos. É aqui que tudo se complica, é aqui que a ideologia de cada um acaba por operar inevitáveis distorções da verdade. Repare-se como as categorias definidas por Foucault para a compreensão do Poder do discurso assumem desde logo um posicionamento ideológico — exclusão, controlo ou apropriação. É certo que é de poder que se fala, mas também não é menos certo que Foucault tende aqui para buscar apenas um certo veio de tendências — da opressão e limitação — deixando de fora possibilidades contrárias como a expansão ou até o empoderamento, entre muitas outras perspectivas possíveis.
"Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é usual — literatura, filosofia, ciência — vemos que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel ; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Considerava-se que o valor científico de uma proposição estava em poder do seu próprio autor. Desde o século XVIII que esta função se tem vindo a atenuar no discurso científico : já não funciona senão para dar um nome a um teorema, a um efeito, a um exemplo, a um síndroma. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor tem vindo a reforçar-se : a todas essas narrativas, a todos esses poemas, a todos esses dramas ou comédias que circulavam na Idade Média num anonimato mais ou menos relativo, a todos eles é-lhes agora perguntado (e exige-se-lhes que o digam) donde vêm, quem os escreveu ; pretende-se que o autor dê conta da unidade do texto que se coloca sob o seu nome ; pede-se-lhe que revele, ou que pelo menos traga no seu íntimo, o sentido escondido que os atravessa ; pede-se-lhe que os articule, com a sua vida pessoal e com as suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é o que dá à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real." Foucault, O Poder do Discruso (1971), análise histórica do papel do Autor
Já agora, e mais próximo do meu trabalho, esta tem sido a abordagem seguida por David Bordwell ao longo dos anos na sua análise do discurso cinematográfico, a que ele deu o nome de "historical poetics". Ou seja, a busca-se compreender o sentido no cinema por meio da análise da variação estética no tempo. Como dizia acima, não se trata de uma abordagem meramente formalista, porque não se limita a estudar o filme enquanto objeto plástico, a análise procura quantificar e realizar amostragem histórica, mas procura compreender como essa funciona em termos cognitivos junto dos espectadores.

Temos método, temos uma base de evidência que suporta a verdade apresentada, mas nem por isso podemos relaxar, esquecer que o emissor de verdade, ainda que a partir de evidência, não contaminará ele próprio fortemente essa evidência.

O Malick de 2017

O cartaz não me disse nada, o título nada disse ("Song to Song"), e a sinopse deixou-me com a certeza de que este filme não era para mim. E no entanto, ao fim de cinco minutos no filme já não consegui mais desligar, nem as pausas que costumo fazer, tão habituais quando vejo cinema em casa, consegui fazer, fiquei ali colado até ao último plano se fechar. Malick sugou totalmente a minha atenção, e se aos quinze minutos só pensava que era mais um filme dele, bom mas apenas mais daquilo a que nos vem habituando, o deslumbrar nunca parou de se elevar com o sentir emanado das imagens, dos atores e dos textos. Intenso, pura emoção cinematográfica, ou simplesmente, uma alegria melancólica.





"Song to Song" (2017) de Terence Malick

Mais do que em qualquer outro filme de Malick a câmara vagueia, sempre sem parar, mas não ilustra, antes nos abre uma espécie de acesso ao fluxo de consciência polifónico criado pelos diferentes personagens que nos permite aceder às suas vidas, passado e presente, alternativas desses e desejos futuros. A câmara está literalmente colada sobre os atores, estamos em constante confronto com os seus olhares, os seus braços e mãos, os seus cabelos, o seus sentires e pensamentos. Malick leva-nos para dentro do interior do humano, e apesar das centenas de locais magníficos mostrados — arquitectura, natureza, muita beleza deste planeta — é no ser humano que acabamos a focar-nos, como se tudo o resto não passasse de cenário, adereço. É o nós, seres como nós, que pensam como nós, sentem o que nós também sentimos, que duvidam de quem são, como nós, e querem descobrir o que são, querem descobrir porque são e o que podem vir a ser. O humano é a constante deste filme, mas talvez possa dizer mais que isso, é a dúvida, a dúvida do que somos. Um fôlego de tristeza perpassa todo o filme, tristeza sem tragédia, uma tristeza tranquila.

maio 24, 2018

Criança Queimada (1948)

A escrita é simples, direta, sem floreados, limita-se a descrever o que acontece, sem perder tempo com explicações, interrogações ou deambulações. Se o que se descreve contém raiva latente, pronta a explodir no virar de cada página, o como se escreve parece emergir de uma amargura autoral não menos enraivecida, explicando porque se  não "perde" tempo e se ataca sempre o contar e descrever de forma tão direta, com muita ânsia de dizer, de pôr cá fora os mundos e realidades experienciadas, prontamente re-imaginadas. Sobre Dagerman, nada direi uma vez que já disse tudo a propósito do seu "A Nossa Necessidade de Consolo é Insaciável" (1955).

Título original: "Bränt Barn" em sueco. Traduzido para português seria "Criança Queimada".

Lendo sobre Stagerman são muitas as pontas que se tocam com aquilo que se vai descrevendo em "O Vestido Vermelho / Criança Queimada", desde logo se o protagonista tem cerca de 20 anos, o autor tinha na altura 24. E se impressionam imenso as competências literárias com esta idade, explicando o rótulo de génio que na altura lhe foi colado, não deixa de se sentir a imaturidade à flor do que se vai descrevendo, dos sentires ainda em modo eruptivo. Daí que o texto se sinta perturbador com a experimentação dos limiares da moral e do ser, algo a que também não é alheio a escrita escandinava, ou talvez melhor, do frio do Norte, já que por várias vezes Stagerman me recorda David Vann.

O livro, como dito acima, descreve continuamente ação, foca a nossa atenção no desfiar do enredo, e desse modo mantém-nos continuamente interessados e com desejo de regressar à leitura, desde a primeira à última página. Não que se chegue verdadeiramente a passar algo significativo, mas a tal raiva latente é suficiente para continuamente manter a expetativa acesa, e a necessidade de conhecer o que vai acontecer na página seguinte. Dagerman acaba assim trabalhando a sua narrativa num modelo mais cinematográfico, de dar a ver, investindo muito pouco na desconstrução do que se vê. Por outro lado, o facto de tudo se nos ser apresentado de forma lacónica de modo muito claro, mas sem espaços de reflexão, acaba por tornar aquela realidade tão objetiva em algo profundamente abstrato.

Fica-me a dúvida sobre a tradução que é dos anos 1950, e que além de apresentar algumas palavras mais estranhas, como as dezenas de menções a "bulha" de cada vez com significado distinto, me incomodou particularmente pela adulteração do título, algo que é defendido pela tradutora em prefácio, apesar de não apresentar qualquer argumento para o efeito.  Não posso consentir que um tradutor se arvore em autor, que é aquilo que faz quando muda literalmente o título, contribuindo para a re-significação da obra. Em sueco o livro chama-se "Bränt Barn", o seja "Criança Queimada", um título muito mais duro que "Vestido Vermelho", mas também, por isso mesmo, muito mais consentâneo com a forma e ideias discutidas no livro. Por outro lado, o título é mais do que o seu sentido literal, já que ele configura em si mesmo uma metáfora, a "criança queimada" terá receio de se voltar a envolver em experiências próximas das anteriores em que se "queimou", já o vestido vermelho convoca todo um imaginário que só tangencialmente se aproxima do mundo de Dagerman, ainda que pelo meio da história um vestido vermelho surja.