março 31, 2018

"O Que Fazer?" por Tchernichevski

Tenho aqui feito muitas resenhas de livros e algumas têm conseguido atingir níveis de profundidade com que não contava à partida. A literatura é um meio rico para compreender o mundo e a realidade, ainda assim nem sempre os temas se aproximam dos nossos interesses o suficiente para justificar um investimento grande no estudo e interpretação da mesma. Neste caso senti alguma ambivalência: por um lado queria compreender melhor a Rússia, nomeadamente a sua evolução política; por outro, não esperava retirar daqui conhecimento particularmente novo, uma vez que o sistema político ali implantado teve tempo para demonstrar a sua ineficácia, não querendo debater algo que empiricamente já foi demonstrado como utópico. Contudo, não deixava de me intrigar o como, ou seja, a História conducente à Revolução Russa, à criação da primeira nação governada segundo um regime comunista. Embora talvez o mais importante para mim tenha sido mesmo o tentar compreender como é que um simples livro, a simples literatura, contribuiu para tal. O problema é que ao tentar compreender apenas isto, vi-me enredado num mar de leituras sem fim, já que para compreender o impacto deste livro, tive de aprender mais sobre a realidade em que ele surgiu. Assim, tentarei nas próximas linhas dar conta do que li, compreendi e interpretei.


Diga-se que um livro apresentado com o seguinte epíteto — “O romance que inspirou o ímpeto revolucionário de Lenine. Fascinado, Marx aprendeu russo para o ler.” — impacta, tornando-se quase numa leitura obrigatória, exatamente pelo que disse no primeiro parágrafo. Daí que as expectativas fossem altas, a ponto de esperar de algum modo encontrar aqui a chave decifradora da governação comunista. Contudo esta frase é acompanhada de uma outra que deve servir para refrear o nosso anseio — “Editado pela primeira vez em Portugal, traduzido do russo, 155 anos depois”. Para uma obra, supostamente tão relevante, nunca antes ter sido traduzida deveria querer dizer-nos algo. Já para o grande historiador da Revolução Russa de 1917, Orlando Figes, este livro foi a bíblia da revolução, tendo conseguido muito mais do que os escritos de Marx ou Engels.

O Autor
Começando pelo autor, Nikolai Tchernichevski. Filho de padre, estudou num seminário onde aprendeu várias línguas e iniciou o seu interesse pela literatura. Ingressou na Universidade de São Petersburgo onde se licenciou com a tese sobre “As Relações Estéticas entre a Arte e a Realidade” (1853), o que apontava já um sentido muito claro do que pretendia fazer com o único romance que viria a escrever, e de que aqui falamos. Começou por dar aulas no ensino secundário, mas foi o seu trabalho enquanto editor da revista social e literária “O Contemporâneo” que o traria para a ribalta, e simultaneamente o conduziria à prisão, na Fortaleza de Pedro e Paulo, por crime político, ou seja por veicular ideias contrárias ao regime monárquico. Foi nos dois anos em que aí esteve preso que escreveu “O Que Fazer?” (1863). O que se sucedeu na sua vida é verdadeiramente rocambolesco, desde o modo como conseguiu publicar o livro furando a censura, ao facto de ter sido condenado a “execução civil” — uma execução pública mas como farsa! — tendo sido depois enviado para a Sibéria por mais 20 anos. Para saber mais, aconselho o capítulo quatro de “O Dom” de Nabokov (1938), no qual é apresentada uma biografia de Tchernichevski, embora num tom completamente satírico.

Nikolai Tchernichevski (1828-1889)


A Literatura e o Contar de Histórias
E porque já falei de Nabokov, começo a análise do livro enquanto literatura. Apesar da tese realizada como projeto de fim de curso, acima identificada, apesar do seu enorme interesse pela literatura, apesar de ter escrito, ao longo de anos, resenhas sobre literatura para a sua revista O Contemporâneo, nada disso parece ter servido de muito. A escrita de Tchernichevski é atroz, e por isso não admira o capítulo satírico que Nabokov lhe dedicou. Fica o aviso, a leitura é penosa porque o autor é incapaz de criar ritmo, incapaz de criar a teia do contar de histórias que nos mantém focados, já que tudo em “O que Fazer?” vai surgindo mais como descrição do que narração. Ou seja, Tchernichevski vai descrevendo o que acontece, onde, como e quando, mas é incapaz de estabelecer os porquês, as causas e os efeitos de modo a mover a nossa atenção, de modo a criar expressividade no texto escrito. No fundo, tudo na sua escrita é igualmente relevante, porque tudo assenta numa tentativa objetiva de descrição da realidade, faltando-lhe a essência da arte, que é o olhar pessoal, a perspectiva humana, sobre essa realidade.

Por outro lado, e dado o imenso conhecimento que Tchernichevski detinha sobre literatura, o livro acaba por apresentar uma estrutura coesa e progressiva. Ou seja, temos uma estrutura bastante concreta que se desenvolve em três atos, com personagens ainda que sem vida, perfeitamente identificados, e temos também muitos pequenos artifícios de escrita, que Tchernichevski aprendeu a usar de tanto desconstruir os textos dos outros, e que vão servindo para nos manter na leitura. Ainda assim não fosse o valor histórico e não seria suportável tal leitura. Apesar de as metáforas literárias serem muito básicas, e estarem bastante ausentes no livro, dada a sua tendência meramente descritiva, a meio do livro e para qualificar um outro livro, Tchernichevski apresenta o que devemos saber sobre a experiência da leitura deste livro — “qualquer outra pessoa consideraria esse livro tão saboroso quanto comer areia ou serragem” (p.255). Metaforizando bem o que sentimos lendo Tchernichevski, ainda assim não podemos desprezar a inteligência de ter optado por escrever um romance para fazer passar as suas ideias de dentro da prisão para a sociedade.

Não foi o primeiro, o que é a Bíblia se não o uso de histórias para condicionar e promover ideias. Temos muita dificuldade em lidar com números, estatísticas, conceitos e descrições e não deixamos de ter mesmo quando solidamente suportados por provas, factos e evidências. O nosso cérebro não racionaliza bem elementos soltos, o nosso cérebro exige histórias que agreguem todos esses elementos, oferecendo-lhes um sentido que una as partes num todo. Isto tem sido amplamente estudado e demonstrado através das mais recentes tecnologias promovidas pelas neurociências. Um artigo do mês passado, de Ella Saltmarshe para o Stanford Social Innovation Review, traz um excelente resumo das capacidades das histórias para transformar o social, apresentando os seus três grandes atributos: as histórias como luz; as histórias como cola, e as histórias como teia. Aconselho vivamente a sua leitura.

Disto isto, fica uma das principais lições de “O Que Fazer?”, que por mais fraca que seja a escrita, o simples uso da estrutura narrativa pode contribuir para catapultar as ideias presentes no texto, já que a narrativa é, tal como definido por Walter Fischer (1985), o meio de comunicação, por excelência, entre humanos. Se dúvidas houver, pense-se num trabalho realizado um século depois, “A Revolta de Atlas” (1957) de Ayn Rand, que baseada em ideias próximas de Tchernichevski daria origem ao movimento, aparentemente contrário, ao comunismo moderno, ou seja o neoliberalismo. Aliás, sobre a fraca qualidade de ambos os textos, as origens comuns das ideias, e a sua capacidade de ativação social vale a pena o livro “How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner, ou o seu texto-sumário “The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of” (2016) que o próprio Weiner escreveu para o Politico.

How Bad Writing Destroyed the World” (2016) de Adam Weiner


Génese e Teias Literárias
Para compreendermos o livro de Tchernichevski, temos de compreender a Rússia do século XIX e como se chega a uma revolução. A melhor forma de o fazer passa pela leitura dos seus clássicos, que se tornaram clássicos globais, nomeadamente “Guerra e Paz” (1867) e “Anna Karenina” (1877) de Lev Tolstói, assim como “Almas Mortas” (1842) de Nikolai Gógol e “Pais e Filhos” (1862) de Ivan Turgueniev, ou mais recentemente “Doutor Jivago” (1957) de Boris Pasternak para dar um pano de fundo aos efeitos da Revolução. A elevação de Tolstói a herói nacional não surge por acaso, os seus romances, ainda que anteriores à sua grande crise moral, dão bem conta da sociedade russa dividida em castas, em cidadãos de primeira, segunda, terceira, e até sem direito a qualquer classe. O chamado tempo dos Czares, um tempo no qual o pensar politicamente diferente já dava direito a estadias prolongadas na Sibéria, como viria acontecer com Dostoiévski, e com o próprio Tchernichevski. As condições criadas e que marcavam a diferença de vida entre a monarquia e o povo não eram muito diferentes daquelas que tinham despoletado cem anos antes a Revolução Francesa, com episódios como o de Marie Antoinette, que à afirmação de faltar pão ao povo terá dito: “Qu'ils mangent de la brioche”.

E debate existia na Rússia, não faltavam exemplos, desde logo os escritos da Revolução Francesa, como Rousseau, entre outros. Mas é muito mais fácil falar e escrever do que fazer, e a fazer “o que fazer”? Tchernichevski lança-se neste senda quase como resposta direta a Turgueniev e ao niilismo apresentado em “Pais e Filhos”, que tinha procurado tudo relativizar esvaziando o sentido de qualquer ação. Daí que o título não pudesse ser outro, objetiva claramente a responder à pergunta que todos faziam, sabendo que tudo estava mal, “o que fazer?”. O autor não inventará nada neste livro, tudo já tido sido escrito por ele anos antes em vários textos, nomeadamente em “The Anthropological Principle in Philosophy” (1860), com base em pensadores do campo da economia, como Charles Fourier e Adam Smith, e pelo lado da religião, Hegel e Ludwig Feuerbach.

O livro teve enorme impacto junto de Marx, precedendo a sua escrita do “O Capital” (1867), que dizia "de todos os economistas contemporâneos Tchernichévski é a única mente original; os outros são apenas compiladores comuns" (Lopatin, 1922). No caso de Lenine, quase meio-século depois iria dedicar-lhe um livro-panfleto, com uma designação próxima, “What Is To Be Done? Burning Questions of Our Movement” (1902). Mas nem por isso faltaram alertas à saída do livro, tendo Dostoiévski escrito a resposta mais direta com “Memórias do Subterrâneo” logo em 1864, e Tolstói, depois de ter assumido mais seriamente o seu ativismo, dedicado também um livro, mas de não-ficção, tal como Lenine — “What Then Must We Do?” (1886), e por fim a já mencionada biografia satírica de Nabokov em 1938. Assim, e se Marx tinha já escrito antes o seu "Manifesto Comunista" (1848), fazendo sentido o seu interesse académico pelo trabalho de Tchernichevski, o caso de Lenine é um pouco mais estranho, porque muito pouco académico, motivado mais por sede de vingança, repare-se o que leva Lenine a ler Tchernichevski:
O romance de Tchernichévski é demasiado complicado, muito cheio de ideias para ser entendido e avaliado numa idade precoce... Mas depois da execução do meu irmão, sabendo que o romance de Tchernichévski era um de seus livros favoritos, comecei a lê-lo de outra forma e fiquei a refletir sobre ele não apenas alguns dias, mas semanas inteiras. Foi só então que entendi a sua profundidade. É uma coisa que pode fazer disparar as energias duma pessoa para toda a vida. Vladimir Lenine, in The Russian Revolutionary Novel, (1985, p.24) 
Vladimir Lenine (1870-1924)

As Ideias
Para Tchernichevski fazer passar as suas ideias, através da natural censura que existia à saída de qualquer escrito da prisão, não bastou usar a forma do romance, teve de recorrer a vários artifícios, alguns bastante evidentes para nós hoje, outros apenas entendíveis à luz dos múltiplos estudos académicos que foram sendo produzidos ao longo dos anos. Assim, o artifício mais evidente usado por Tchernichevski joga-se na história que aparentemente parece fundear-se na emancipação da mulher, fazendo jus a alguns movimentos pré-feministas do século XIX. Ou seja, trabalhando a libertação da mulher, trabalhando a igualdade entre sexos, Tchernichevski estava no fundo a trabalhar a libertação das classes, e acima de tudo a promover um discurso de total igualdade de direitos entre todos. Visto a partir das concepções morais e científicas da altura, era facilmente categorizado como tonto, e logo inócuo.

Tendo então o problema das classes resolvido, faltava resolver o problema do como motivar as pessoas para a ação e ao mesmo tempo como convence-las de que o pós-revolução serita sustentável. Assim o discurso de Tchernichevski vai seguir uma abordagem paralela, por um lado explicando o que deveria ser feito à saída do estado atual, como se deveria organizar a sociedade e funcionar para subsistir economicamente, por outro lado lançando uma abordagem filosófica capaz de substituir a crença moral, e a chamada melancolia russa que promovia a apatia, para assim dar força e motivação suficientes às pessoas para se demoverem.

Assim, temos a componente de ciência económica, fundamental no discurso comunista moderno, e em que Tchernichevski constrói a base com dois grandes autores do século anterior — Fourier e Smith —, o primeiro para lançar estruturas económicas cooperativas — no livro, as empresas de costura de Vera — em que todos trabalham juntos para um mesmo fim, sendo recompensados igualmente pelos lucros obtidos enquanto partes vitais de um todo. Já seguindo Smith, e a ideia de um mercado auto-regulado, Tchernichevski apresenta a ideia de cooperativas a funcionar em autogestão, sem necessidade patrões ou chefes, em que todos são igualmente responsáveis, relevantes e merecedores. Sem a costureira, ou a contabilista, ou a gestora, não se venderiam o mesmo número de vestidos, cada uma na sua função foi vital para o sucesso, por isso todas deviam receber a mesma parte dos lucros.

Se isto parecia tudo fazer sentido, a verdade é que nunca tinha sido tentado antes na prática. Deste modo Tchernichevski apresenta no livro casos aplicados de como tudo funcionaria. Ainda assim, o livro sai em 1862, baseado em ideias do século XVIII, mas só em 1917 é que iríamos ver a Rússia a aplicar estas ideias, tornando-se assim na primeira nação a fazê-lo. Na verdade, e como já se disse acima, muito mais fácil era falar e escrever, do que fazer. Levar a prática algo deste calibre requeria não apenas a vontade de governos, grupos ou um povo, mas mais importante que isso, requeria aquilo que Tchernichevski define na edição russa em subtítulo — “Histórias sobre o Povo Novo” —, um “Povo Novo”. E é a esse povo novo que Tchernichevski dedica o livro, oferecendo-lhes uma nova moral, um conjunto de princípios capazes de sustentar a nova vida livre e igual. Essa nova moral, segundo Tchernichevski, que abandonava a religião e abraçava Feuerbach, revestia-se por um conjunto de princípios básicos mas fundamentais na sustentação desse novo mundo. Assim, Tchernichevski vai defender, por meio das ações e diálogos dos seus personagens, uma abordagem materialista e utilitarista do mundo. Para Tchernichevski, tudo o que é útil é bom, tudo que nos magoa é mau, logo as pessoas boas definem-se pela capacidade de fazer algo que lhes dê prazer mas ao mesmo tempo sejam úteis aos outros.

Para elucidar esta abordagem Tchernichevski cria um herói — Rakhmétov, uma espécie de santo excêntrico, herdeiro de fortuna que nunca revela, mantendo fachada humilde, capaz de tudo fazer pelos outros sem que estes o descubram, desprezador de luxos, preferindo dormir no chão a uma cama —, que tem uma participação fugaz mas de tal forma impactante que se torna no personagem que Lenine praticamente procura emular na sua vida, e muitos dos seguidores do romance. Mas Tchernichevski não se fica por esse personagem, cria uma situação concreta conhecida de todos os leitores para dar conta da conduta a seguir, uma triangulação amorosa, fazendo dessa o cerne da ação do livro, com os personagens a servir de prova, obrigando-os a ponderar o que é bom para si e mau para os outros, e como poderiam sair da situação tornando-se úteis aos outros, sentindo com essa ação ainda mais prazer. Podemos dizer, e não aferindo da qualidade da filosofia nem do romance, que isto é talvez o mais bem conseguido de todo o livro. O triângulo amoroso funciona como uma metáfora literária perfeita, sendo mesmo habilmente usada por Tchernichevski para abrir o livro in media res, com um suspense que agarra o leitor.

Esta abordagem filosófica ficaria conhecida como “Egoísmo Racional”, e esteve na base do que moveu Lenine para a Revolução de 1917, transformando assim a Rússia num país inteiramente Comunista. Tchernichevski vende bem a ideia, nomeadamente com um outro conceito que ficaria conhecido como o “Palácio de Cristal”, apresentado como sonho futurista de Vera, o qual parece conseguir dar a sociedade uma nova forma de estar na vida, em que todos sentem prazer com o trabalho que fazem, trabalhando apenas o necessário mas retirando imenso prazer dessa vida com todos os outros, numa nova comunidade movida por padrões ocidentais (a ideia do edifício em vidro e alumínio provinha dos edifícios arrojados construídos para as exposições de Londres).
“Diga a todos: eis o futuro e ele é radioso e lindo. Ame-o. Esforce-se por alcançá-lo. Trabalhe para ele. Faça-o ficar mais próximo. Transforme-o em presente tanto quanto possa. A sua vida será tão radiosa e boa, rica de alegrias e deleite, quanto você conseguir trazer-lhe o futuro." in "O Que Fazer" (p.363)
Se a Rússia se transformaria numa ditadura pesada, gerida por um dos mais vis chefes-de-estado de sempre — Estaline — a abordagem acabaria por saltar fronteiras e entrar, como um cavalo de Tróia, no ocidente por meio de Ayn Rand, nascida em São Petersburgo. Um século depois, esta apresentava o seu objetivismo — o indivíduo como o fim em si mesmo —,  que sustentaria a criação da grande ideologia económica — o Neoliberalismo —profundamente promovida pelo seu discípulo, Alan Greenspan, o arquiteto da recente crise financeira mundial de 2008. É impressionante descobrir que Alan Greenspan, o potenciador do capitalismo selvagem internacional, levou para a sua cerimónia de juramento na sala oval apenas duas pessoas, a sua mãe e Ayn Rand. Não admira que se designasse o séquito de Rand como seita.

Ayn Rand (1905-1982)

Existe ainda um detalhe em todo esta abordagem que muito me tocou, e que tem que ver com o facto de todas estas ideologias serem professadas de um modo distinto daquilo a que nos acostumámos a ver nestes grupos, ou seitas, já que não se trabalha baseado na lavagem cerebral. Tchernichevski coloca todos os seus personagens como licenciados, ou prontos a estudar para poderem elevar o pensamento crítico. E se olharmos aos regimes comunistas, não raros são os que promoveram sociedades com bastantes estudos. Ou seja, existe aqui uma espécie de crença no fator conhecimento como salvador de todos os problemas da humanidade, que é algo em que tendemos todos a crer, daí que todos estejamos de acordo com o enorme investimento que os estados fazem em Educação. Quanto mais sabemos sobre aquilo que somos, quanto mais sabemos sobre o mundo que nos rodeia, maior será a nossa consciência de nós e do outro, consequentemente maior seria a nossa capacidade para agir egoisticamente pela razão. Mais uma vez tudo parece fazer sentido, mas como a realidade insiste em demonstrar, não chega, porque o ser-humano não é mera plasticina moldável.

Fiódor Dostoiévski (1821-1881)

Ou seja, é bastante doloroso viajar no tempo e ler alertas como os de Dostoiévski, de que as ideias de Tchernichevski eram demasiado simplistas no que toca à caracterização do ser humano. E se havia algo em que Dostoiévski era mestre, era exatamente na psicologia humana, sendo que algo que fica bem claro no livro de Tchernichevski é a sua limitação, e desconhecimento, na caracterização psicológica. A sua base objetiva era uma filosofia capaz de sustentar o bem da espécie humana, mas não percebeu que entre o ideal e a prática existia todo um mundo real, e esse não se regula apenas por morais escritas ou convencionadas, regula-se também por experiências e emoções. Mas diga-se, em abono da sua causa, que não estava sozinho, passados mais de 150 anos continuamos a sentir os efeitos destas visões, com crises financeiras capazes de ceifar tudo o que apanham.

Apesar da enorme quantidade de estudos no campo da psicologia e neurociências a demonstrar que a emoção é tão responsável pelo que fazemos como a razão. Apesar de se ter criado uma nova ciência — Economia Comportamental — que já nos deu vários prémios Nobel — Daniel Kahneman em 2002, e ainda no ano passado, um seu colaborador, Richard Thaler — os economistas continuam a acreditar que os seres humanos são apenas movidos pela razão, pela maximização do seu proveito, esquecendo que somos uma espécie mamífera, incapazes de viver sozinhos, sem a companhia, presença e entre-ajuda do outro, e que como tal detemos vários mecanismos cognitivos que alteram a nossa percepção racional da realidade. Por mais educados que sejamos, por mais níveis elevados de razão que possamos atingir, nunca seremos Vulcanos, um Spock, e ainda bem.


Sobre a edição portuguesa pela Guerra & Paz, trata-se de uma tradução original do russo para português do Brasil pelo professor de História da Universidade de São Paulo, Angelo Segrillo, e adaptado para o português europeu por Ana Salgado. Não sendo uma edição perfeita, tendo em conta a qualidade da escrita original, e tendo eu lido também uma parte da tradução inglesa por Michael B. Katz, parece-me ainda assim bastante capaz.


Referências

Weiner, Adam, (2016), The Most Politically Dangerous Book You’ve Never Heard Of, in Politico, December 11, 2016
Turta, E. (2014). Socialist paradise or tower of total surveillance? Metamorphoses of the Crystal Palace in Chernyshevsky and Dostoevsky (Doctoral dissertation, The University of North Carolina at Chapel Hill)
Saltmarshe, Ella, (2018), Using Story to Change Systems, in Stanford Social Innovation Review, Feb. 20, 2018
Chernyshevsky, NG, (1853) “The Aesthetic Relations of Art to Reality”, Tese de Licenciatura na Universidade de São Petersburgo
Freeborn, R. (1985). The Russian Revolutionary Novel: Turgenev to Pasternak. Cambridge University Press.
Andrew, J. (1988). Women in Russian Literature 1780-1863. Springer.
Murr, (2010), 'What Is To Be Done?' Nikolai Chernyshevsky, in The Lectern,
Kahneman, D., (2011), Thinking, Fast And Slow, Penguin Books
Nabokov, (1938) O Dom, Relógio d'Água
Lev Tolstói, (1867), Guerra e Paz, Ed. Presença
Lev Tolstói, (1867), Anna Karenina, Ed. Presença
Nikolai Gógol (1842), Almas Mortas, Circulo de Leitores
Ivan Turgueniev (1862), Pais e Filhos, Relógio d'Água
Boris Pasternak (1957), Doutor Jivago, Público
Chernyshevsky, NG, (1863). What is to be Done?. Cornell University Press. (1989)
Chernyshevsky, NG, (1860). “The Anthropological Principle in Philosophy”, Sovrernennik, no. 4; in: Selected Philosophical Essays (pgs. 49-135), Moscow, 1953.
Lopatin, GA, (1922), Avtobiografia, Petrograd (1845-1918)
Rand, A. (1957). Atlas shrugged. Penguin.

março 28, 2018

Ao cinema não basta querer emular os videojogos

King Arthur: Legend of the Sword” (2017) é um filme de Guy Ritchie o que se evidencia desde as primeiras sequências dada a sua tendência para colocar a forma na frente do conteúdo, nomeadamente em termos de montagem, composição visual e ritmo. Contudo julgo que desta vez se excedeu ao tentar descaradamente fundir discursos contemporâneos da moda — as séries de tv, mas principalmente os videojogos — para agradar em particular ao público mais jovem, dominante no consumo dos conteúdos audiovisuais, mas a julgar pelo desastre em bilheteira nem a esses conseguiu agradar.




Temos o mito, da espada na pedra, carregado com fantasia à lá “Lord of the Rings” e “Game of Thrones”, mas ao contrário destes, não temos história nem personagens. Artur não sabe quem é, não quer saber, nem tem razões para querer, assim como não parece munido de qualquer motivação, vontade ou desejo, simplesmente existe para que o filme tenha um foco humano. Os restantes são adereços, igualmente desprovidos de vida, nem Jude Law consegue salvar algo que não tem pés nem cabeça. Sim, nos videojogos blockbusters os personagens também são pouco desenvolvidos, mas quem disse que um videojogo era um filme?


Por outro lado temos uma banda sonora, por Daniel Pemberton, de excelência que tudo vai colando por meio de bons leitmotivs sonoros que adocicam o nosso interesse, ao que se juntam momentos altos de grande impacto visual, por meio de sequências de cinema virtual em que o cinema dá lugar à animação de VFx. Contudo tudo isto acaba por criar um conjunto de sequências que poderíamos desfrutar em qualquer âmbito sem necessitar do filme, simplesmente para apreciar a beleza do virtuosismo técnico e criativo. São sequências em que o cinema deixa de o ser para assumir mero caráter de cinemático, a cola à estética dos videojogos é muito alta, tanto que em vários momentos pensei estar num videojogo e não num filme.




Ritchie impressiona com o calibre explosivo da forma, a velocidade da montagem e a composição constante in-your-face, tudo no filme parece gritar pela nossa atenção, ao mesmo tempo que nada parece realmente valer essa atenção. Os personagens parecem ter sido retirados de um "Lock, Stock and Two Smoking Barrels" (1998) ou "Snatch" (2000) e enfiados à pressão num mundo medieval, não se conseguindo nunca vislumbrar qualquer Cavaleiro da Távola Redonda e menos ainda um Rei Artur. A demonstrar que não chega produzir obras de impacto audiovisual forte, que por mais intenso que o labor seja, e mesmo que consiga manter o nosso olhar e ouvidos presos à tela, continuamos a precisar de personagens humanos para nos fazer sonhar, para conseguirmos criar fábulas que perdurem. O cinema é acima de tudo drama, narrativa encenada, já um videojogo conta com outros atributos, nomeadamente jogabilidade e interatividade, que não têm lugar num filme.

março 26, 2018

Livro: “O Dom” (1938)

Não é um livro fácil e as razões para tal são várias — a estrutura é multilinear e descontínua; a forma é poética e de vocabulário rico mas escrito como torrente descritiva; e o contexto exigido é não só enorme como distante da maioria dos leitores contemporâneos. Não acontece muito, ou quase nada, em “O Dom”, muita nostalgia relatada por emigrantes russos fixados num espaço que é a cidade de Berlim e que tal como o espaço de Dublin, em “Ulisses” (1922) de Joyce, serve a Nabokov para agregar a estrutura fragmentada. Tudo parece sustentar-se num processo de regressão afetiva e na sua descrição por recurso a uma estilística de embelezamento máximo, completamente colada a Proust. Digamos que Nabokov, dotado de enorme virtuosismo, resolveu criar uma obra capaz de homenagear dois dos seus autores favoritos, mas a homenagem não se fica por aqui já que o tema do livro é nada menos que a Literatura Russa do século XIX, ou seja, a homenagem estende-se a Puchkin, Gogol, Tchékhov, Turgeniev, Tchernichevski entre muitos outros. Deste modo, para se poder iniciar algum envolvimento com a leitura desta obra convém conhecer algo destes autores, assim como deter algum conhecimento sobre o antes e o depois da Revolução Russa de 1917. No caso do antes, alguns livros destes autores já dão muitas pistas mas recomendo sobretudo "Guerra e Paz" de Tolstói.


Não conhecia todos os enunciados, faltava-me Puchkin e Tchernichevski, e por isso são os livros que se seguem, embora sejam dois autores em pólos opostos, ou seja, se Puchkin é o grande pai das letras russas, Tchernichevski é não só desconhecido fora da Rússia, como é aqui totalmente ridicularizado. Mas deixarei o meu comentário sobre o capítulo inteiro que se lhe dedica para quando acabar de ler o livro de Tchernichevski, que entretanto já comecei e em poucas páginas deu para quase compreender Nabokov. Digo quase porque tenho de confessar que me custou ler Nabokov, um dos meus autores de referência, num discurso de crítica ad hominem. Aliás, não é por acaso que o capítulo não foi publicado aquando da primeira edição da obra em 1938. Ainda que perceba a qualidade muito fraca de Tchernichevski, só consigo compreender esta reação de Nabokov pelo caráter político que o livro de Tchernichevski adquiriu, ou porque o próprio Nabokov exerce uma crítica constante mesmo a si próprio, como podemos ver no seguinte diálogo (Nabokov não gostava de Dostoievski e era admirador de Flaubert):
“eu tenho gostos diferentes, hábitos diferentes; o seu Fet, por exemplo, não posso suportá-lo, e por outro lado sou um ardente admirador do autor de O Duplo e de Os Possessos, a quem você parece disposto a faltar ao… Há muito em si que não gosto, o seu estilo de São Petersburgo, a sua tara gaulesa, o seu neo-voltaireanismo e o fraco por Flaubert…” (p.342)
As fotografias de Nabokov recordam-me sempre Hitchcock mas também a personalidade que ambos pareciam possuir — de estarem sempre prontos a pregar uma partida a alguém!

Existe um enredo amoroso no livro a que Nabokov faz referência no prefácio, diga-se semi-explicativo da obra, mas é um romance imensamente subtil, ainda que venha dar, em parte, resposta ao título. A essência do livro assenta no processo descritivo do mundo aos olhos de um jovem autor russo, recentemente emigrado para Berlim, à procura de se afirmar enquanto escritor, e nesse sentido, apesar de Nabokov dizer nesse prefácio que não é Fyodor, é ele quem ali vemos representado. Mais uma aproximação a Proust, que descreve o mundo através dos olhos de Marcel sem nunca dar conta de qualquer ligação com este. Aliás, na primeira parte o tom é bastante próximo do livro autobiográfico de Nabokov, “Fala Memória”, que só viria a escrever anos mais tarde. E já agora, a meio do livro acontece algo no mínimo estranho, ou talvez não, que é uma descrição breve do enredo de “Lolita” (1955), seguida de uma referência do protagonista que me obrigou a parar e ir verificar datas, dizendo “É estranho, pareço lembrar-me dos meus trabalhos futuros”. Ou seja, o romance existia muitos anos antes na cabeça de Nabokov.

Para se poder entender este texto, já disse que conhecer os autores acima é relevante mas é também relevante lerem mais sobre a obra — a sua data de criação, a vida de Nabokov, a sua fuga da Rússia, a política do país — e para tal recomendo vivamente o livro de Yuri Leving “Keys to the Gift: A Guide to Vladimir Nabokov's Novel”. Leving criou um compêndio das múltiplas abordagens possíveis à interpretação mas não é preciso lerem tudo, basta que leiam as entradas que mais vos interessarem. As chaves apresentadas por Leving vão desde a criação e publicação da obra ao contexto histórico do país e da literatura, passando pela análise da estrutura — altamente detalhada nos seus constituintes de título, enredo, narrativa, cenário, personagens, tema — ou do estilo, forma e método, ou ainda da receção crítica nas diferentes épocas, e muito mais. Digo que não é preciso ler tudo, porque o texto de Nabokov está tão carregado de símbolos e subtextos que tentar compreender tudo está apenas ao alcance de um labor intenso, fazendo deste uma boa obra para a realização de trabalhos académicos no campo da literatura.

Deixo uma breve explicação estrutural. O livro começa com um capítulo de contextualização da vida de Fyodor em Berlim, que aos poucos nos vai dando conta da sua vida passada em São Petersburgo, dos amigos deixados e dos novos entretanto criados. Nesta primeira fase Fyodor só escreve poemas. No segundo capítulo Fyodor recorda o pai, que tal como o pai de Nabokov morreu quando este tinha cerca de 25 anos, o capítulo é intenso e belo, e segundo os críticos segue o estilo de Pushkin. No terceiro capítulo temos uma mudança de espaço e o encontro com a amada, a escrita é menos embelezada mas mais escorreita, o estilo mudou novamente porque agora é Gogol que Nabokov nos dá. O quarto é o tal capítulo banido, não segue propriamente Tchernichevski, já que a abordagem é profundamente satírica, mas é completamente diferente de tudo o que veio antes e virá no último. Por fim, voltamos ao nosso heróis Fyodor e a Zina, com o mundo a desejar recompor-se e a querer criar espaço para que o espírito do artista possa florescer.

O livro termina mais uma vez homenageando Proust, já que é dado a entender que o livro que lemos será o que Fyodor escreveu, e tal como em Proust cria-se uma urgência por voltar ao início e reiniciar a leitura, reler tudo com um novo olhar capaz de ler mais dentro das múltiplas camadas que protegem o sentir de Nabokov em “O Dom”, já que é inevitável sentirmos ao longo de toda a leitura que muito do que vamos lendo é-nos vedado, não só por falta de referências, mas também porque o próprio texto trabalha num modo auto-referencial muito joyciano.

Sobre a profundidade da análise da psicologia humana, algo caro a Nabokov, um estudioso da psicologia e muito crítico da fantochada de Freud, veja-se o seguinte descrito do que responde Fyodor a um potencial crítico do seu livro:
“Ao princípio queria escrever-lhe uma carta a agradecer, sabe, com uma referência comovente ao meu pouco mérito e assim por diante, mas depois pensei que dessa forma iria introduzir um odor humano intolerável no domínio da liberdade de opinião. E além disso, se escrevi um bom livro, era a mim que devia agradecer e não a si, tal como você deve agradecer a si próprio e não a mim por compreender o que é bom, não é verdade? Se nos pomos com vénias um ao outro, então, logo que um pare, o outro sentir-se-á magoado e ir-se-á embora vexado.” (p.339)
No final questiono-me se o título português é o melhor, mas por mais que procure, as interpretações são tantas que não é possível dizer muito, a não ser talvez que o título em inglês dá-se melhor às múltiplas leituras. No inglês (“The Gift”) pode significar Dom mas pode significar também Prenda, e se o nosso título atira imediatamente ao virtuosismo do escritor, o inglês permite ainda apontar para a homenagem à Literatura Russa, funcionando este livro como uma prenda de Nabokov em modo de despedida, já que este seria o seu último livro escrito em russo.

março 22, 2018

Livro, 'Wonderland' (2016)

"Wonderland" segue a fórmula criada por Steven Johnson nos seus livros anteriores, nomeadamente os mais recentes, dedicados ao historiar da ciência e criatividade — "The Invention of Air" (2008), "Where Good Ideas Come From" (2010) ou "How We Got to Now" (2014). Se retira o encanto de se ser surpreendido, não deixa de funcionar bem, as competências de Johnson enquanto contador de histórias são de grande excelência, ao que se acrescenta a quantidade de investigação e trabalho que coloca na feitura de cada livro que nos permite retirar muito da sua leitura. Neste novo livro Johnson deteve-se à volta de uma componente da atividade humana — o brincar — que continua a ser olhada como menor, procurando compreender o que nos conduz para essa atividade a partir de uma análise substancialmente rica sobre eventos imensamente relevantes da nossa história que não teriam acontecido sem a nossa vontade, desejo ou necessidade de brincar.


A edição em capa dura é muito boa, com bastantes ilustrações e papel de excelente qualidade.

Para abrir o livro Johnson apresenta a sua primeira grande história na qual demonstra a relevância do livro "The Book of Knowledge of Ingenious Mechanical Devices" escrito em 1206, e que serviu muitos anos depois na criação de tecnologias de suporte aos motores de combustão e barragens, e que não passava de um livro descritivo de brinquedos e sistemas de diversão para elite de Bagdade. A partir daqui, Johnson apresenta seis capítulos, cada um dedicado a uma área distinta — moda, música, paladar, ilusões, jogos, e espaços públicos — nos quais vai usar a mesma técnica de repescar eventos da nossa história para demonstrar o impacto e a relevância do brincar e do entretenimento na evolução e progresso da nossa civilização.

Páginas do livro "The Book of Knowledge of Ingenious Mechanical Devices" de 1206. Mais info.

Os tópicos e os eventos vão-se sucedendo, funcionando como pequenas aulas de história bem ilustradas que nos surpreendem e agarram o interesse do início ao fim. Desde o surgimento da cor púrpura, rara e apenas acessível à elite; ao surgimento e particularidade do cultivo da baunilha (necessitava de uma região particular onde cresciam um grupo particular de abelhas) ao impacto do algodão na moda e na criação das rotas de escravos; às especiarias que Vasco da Gama trouxe para adoçar o paladar da elite europeia, criando um tempo em que o seu peso valia mais do que o mesmo em ouro; passando pelo surgimento dos mercados aos centros comerciais; dos parques temáticos aos grandes parques naturais; das tavernas aos bares; dos teclados de música aos teclados dos nossos computadores; do Panorama ao Imax; do surgimento dos jogos com bolas de borracha na América do Sul à indústria mundial de borracha; e ainda do primeiro videojogo ao IBM Watson, ou ainda sobre o impacto do café nas nossas vidas:
“Caffeine likely played some role in the great expansion of intellectual and industrial activity that Europe witnessed in the eighteenth century, at the exact moment that coffee and tea became staples of the European diet, particularly in England and France. (The Europeans effectively swapped out a depressant — the default daytime beverage of alcohol — for a stimulant en masse, with predictable results.) Certainly caffeine was a crucial ingredient in easing the workforce of the first industrial towns into the regimented schedules of factory time.” (p.248)
Os exemplos são fortes e servem bem a causa de Johnson, o que não invalida que possamos levantar algumas questões. Nomeadamente porque aquilo que Johnson faz é pegar em casos específicos e conduzi-los para a teorização que pretende demonstrar. Cada um destes casos serviria outras justificações, já que são todos dotados de grande multivariância nas suas variáveis dependentes. nesse sentido, talvez o mais interessante surja mesmo no final do livro, quando Johnson se apresta a explicar porque partiu para todo este levantamento, porque diga-se não era preciso um livro inteiro para o fazer, um artigo científico daria conta do que ele pretendia dizer, e que era:
“The surge of dopamine that accompanies a novel event sends out a kind of internal alarm in your mind that says: Pay attention. Something interesting is happening here. Bone flutes, coffee, pepper, the Panorama, calico, Babbage’s dancer, dice games, the Bon Marché—beneath all the surface differences between these objects, one common characteristic unites them all: they were surprising when they first appeared. We were drawn to them compulsively because they offered novel experiences, tastes, textures, sounds. Illusions took our visual predictions about the spatial arrangement of objects in the world and confounded those expectations in startling ways. Spices offered exotic new flavors that our tongues had never experienced before. One of the defining characteristics of games—as opposed to, say, narrative—is precisely the fact that they turn out differently every time we play them; games are novelty machines. That’s what makes them fun (and sometimes addictive). All these forms of escape and amusement provided a “novelty bonus” to the brains that first experienced them.” (p.282)
Não colocando em dúvida esta conclusão, aliás defendendo-a de certo modo no meu trabalho à volta do brincar e jogar, tenho de dizer que o método seguido é muito pouco científico, e que existem outras abordagens que podiam servir melhor o objetivo. Por exemplo Dutton em "The Art Instinct" (2009) traça objetivos muito próximos, no caso aplicados à arte, mas fá-lo partindo da seleção sexual de Darwin construindo toda uma lógica dedutiva capaz de sustentar as suas conclusões. E repare-se que a interrogação de Johnson não é assim tão diferente, no sentido em que tanto a arte como o brincar adulto, não oferecem nada de útil ao ser-humano, ou seja são praticamente injustificáveis do ponto de vista evolucionário. E Johnson até apresenta uma explicação plausível — a necessidade assenta na curiosidade humana, na nossa infinita sede de novo — o problema é que Johnson limita-se a atribuir isso à produção de dopamina no nosso cérebro. Ora isso não chega, porque desde logo o facto da dopamina ser descarregada em cada um destes momentos só pode acontecer por razões evolucionárias. Ou seja, algo ocorreu que conduziu a que aqueles de nós que brincavam e sentiam prazer com isso (tinham descargas de dopamina) foram mais bem sucedidos que os outros que não o faziam. E se isso é fácil de ver nos dias de hoje num mundo industrializado a alta velocidade, que retribui mais e melhor aqueles que são mais criativos, nem sempre assim terá sido nas eras passadas. Ou talvez não, teremos nós sempre recompensado melhor quem era mais imaginativo e criativo?

março 18, 2018

Servidão Humana (1915)

“Servidão humana” foi publicado em 1915, sendo muito bem recebido pelo público e crítica, algo que se manteve até aos dias de hoje. Não raros são os leitores que lhe atribuem nota máxima, figurando mesmo em algumas listas de melhores obras ou de cânones clássicos. Aceitando a relevância e compreendendo o efeito que o livro produz, tenho no entanto algumas objeções a apontar, nada que faça desmerecer o destaque da obra, são mais questões que o texto evocou em mim e partilho para reflexão.  (Estas minhas objeções acabariam por, no decorrer da produção desta resenha, transformar-se em reconhecimento pela obra de Maugham.)

Acabei por ter de comprar a versão eBook da Asa, já que a edição em papel que tinha — coleção Mil Folhas do Público — apresenta um tamanho de letra completamente ilegível. Estamos a falar de uma edição que consegue colocar em 540 páginas o que as edições normais colocam em 700.

Começo pelo tom, já que ele é talvez um dos maiores catalisadores do impacto no sentimento dos leitores. Maugham, aqui o personagem Philip, apresenta-se na primeira pessoa, relatando a sua vida desde criança até à idade adulta, abrindo o seu coração a nós com total franqueza, mas acima de tudo explanando toda a sua vida por meio de um filtro de grande humildade. E se os eventos e as personagens são vistas pelos olhos humildes de Philip, que só vê pelo lado certo da moral, sem julgamento dos outros, apelando à razão para desculpar o erro e a maldade, a escrita de Maugham, simples, sem floreados ou recursos estilísticos, ainda que notando-se o labor de depuração da mesma, contribui em muito para que esse sentimento de franqueza e humildade impregne toda a nossa experiência de leitura.

Este tom não é alheio ao facto de “Servidão humana” ser um romance autobiográfico, ainda que nem tudo corresponda exatamente à realidade, mas na generalidade é um relato de uma vida. Maugham não tinha um pé boto mas gaguejava, e mais importante, os seus pais morreram quando ele era criança, tendo ido viver com o seu tio, tal como Philip. Maugham não foi para Paris para se tornar artista da pintura como Philip, mas tornou-se artista da escrita, o que ajuda a explicar as dúvidas que pairam sobre Philip durante todas as suas tentativas de se tornar um artista de primeira, e não um mero pintor mediano. Quanto à França, nasceu na embaixada inglesa em Paris, esteve na primeira grande guerra mundial em França ao serviço da Cruz Vermelha, e voltaria inúmeras vezes a França onde acabaria por morrer. Por outro lado, antes dessa viagem para Paris, Philip passa um ano na Alemanha, tal como Maugham passou na realidade.

Aliás, esta primeira parte até aos 20 anos é o melhor do livro para mim, não só porque nos dá a ver a criança que cresce sozinha, sem pais e num seminário, mas porque chegado à idade de tomar decisões verificamos que temos uma pessoa que mesmo não sabendo o que queria sabia o que não queria. Foi Philip (e Maugham) quem disse ao tio que não queria continua a estudar para padre e saiu do seminário por sua própria vontade, apesar de não haver muito dinheiro para outras carreiras alternativas. Foi Philip (e Maugham) quem foi um ano para Alemanha estudar literatura, e depois se cansou e regressou a casa. Depois foi (e Maugham) estudar para contabilista em Londres, e no final de um ano voltou a cansar-se e a retornar para casa. Seguido por mais 2 anos em Paris, a estudar pintura, desistindo também, e retornando a casa praticamente sem dinheiro. Voltando então por fim para Londres para se dedicar à escola de medicina, tendo-se formado já perto dos 30 anos. Se para alguns isto pode parecer um desperdício, para mim foi o melhor do relato, já que deu conta de alguém que incessantemente se procurou a si mesmo. Não existe nada mais difícil do que nos encontrarmos, tanto que considero essa a maior função da escola. E por falar nela, Maugham destrói completamente a mesma ao longo de todo o livro, não de modo frontal, mas subtilmente, basta ler nas entrelinhas, e analisar o seu percurso. Para fechar a comparação, Maugham não terminou o curso de medicina aos 30, mas aos 23, contudo depois do curso passou por várias profissões até decidir aceitar-se como escritor.

Passada esta primeira parte chegamos ao miolo do livro no qual me desliguei de Philip. Mas para entrar nessa discussão preciso de trazer um novo dado sobre Maugham que talvez introduza mais ambiguidade do que esclarecimento, mas é inevitável, e é o facto deste ser homossexual. Tal como Proust, viveram numa época em que não o poderiam assumir, e os seus escritos acabam por funcionar como trapaça dos seus verdadeiros sentires, nomeadamente nos romances que descrevem entre os seus alter-egos e as raparigas. Contudo julgo que Maugham sofreu mais com esta questão, pelo menos a julgar pelo modo como tudo isso surge aqui representado. Aliás, a ponto de alguns críticos lerem no pé boto de Philip, não a gaguez de Maugham mas a sua homossexualidade.

Assim o problema com que me defrontei a meio do livro surgiu na relação entre Philip e Mildred. Philip desenvolve uma paixão doentia por Mildred que não mais o largará para o resto da vida. Diga-se que é esta paixão que acaba dando força ao título da obra, e isso afastou-me também. A certa altura pensei mesmo que o livro não passava de mais um romance de cordel, relatos de paixões assolapadas, que se transformam no fim último das vidas dos seus personagens. E por isso cheguei a dizer no Goodreads que me apeteceu jogar o livro pela janela. Mas mantive a leitura e é verdade que o livro avança não estagna aí e é mesmo capaz de tornar-se ainda mais amargo que a parte inicial, ainda que termine classicamente bem.

Detenho-me um pouco mais em Mildred para explicar que o caso me ocupou algum tempo. A descrição da relação é de total masoquismo, já que Mildred não gosta de Philip, enquanto este se transforma no cãozinho que tudo faz para agradar à dona, mesmo após abandono crasso, volta uivando de felicidade. E vai mesmo ao ponto de magoar outras pessoas, foi aí que desliguei da personagem, por sentir que tinha ultrapassado a linha. No entanto, agora enquanto escrevo, parece-me ver outra realidade por detrás daquelas linhas. Atente-se na descrição corporal que Maugham nos faz de Mildred:
“O corpo dela era tão magro que era quase possível ver-lhe o esqueleto. O peito era liso como o de um rapaz. A boca, de lábios finos e sem cor, era feia e a pele tinha um leve tom esverdeado.”
Ou seja, Maugham não pode estar aqui a falar de uma mulher, ele está a falar de um homem. Por outro lado, atente-se numa outra declaração de Maugham ao seu sobrinho:
“Eu tentei persuadir-me a mim mesmo que era três quartos normal e apenas um quarto homossexual, quando afinal era exactamente o contrário.” W. Somerset Maugham, (Maugham, Robin 1970)
Ou seja, não será Mildred em vez da sua grande paixão (que não se reconhece na vida de Maugham) antes uma representação dos homens da sua vida, aqueles por quem se apaixonou, acreditando que não devia? É que existe um problema claro na descrição de Mildred que não vi ainda ser discutido que o facto de ela não apresentar um único traço positivo. Mesmo o severo tio, acaba por mostrar o seu lado positivo. Em Mildred tudo é mau, desde a aparência ao comportamento, pela mentira, engano e traição constantes, ao desprezo pela tia e até ao desprezo pela filha. Tudo é tão terrível e no entanto Philip não consegue deixar de olhar para ela como algo que deseja. Ou seja, até que ponto Midlred representa a sua angústia por preferir homens a mulheres, tendo sido educado para ver nessa preferência o pecado, o mal?

Como tudo está representado de modo a dar sentido aos sentires do autor mas também de modo a ser aceite pela sociedade, mascarando para o efeito os seus mais verdadeiros desejos, torna-se difícil saber o que exatamente queria dizer Maugham. Por outro lado, permite que cada pessoa veja nos eventos e conflitos aquilo que mais se pareça com a sua própria vida. Aliás, é isso que muitos dos leitores referem, o facto do livro passar muito rente aos seus quotidianos. Repare-se como o título é, segundo Maugham, baseado na seguinte frase de Espinosa — “Chamo servidão à impotência do ser humano para governar ou restringir (as suas) emoções”, e como ela pode dar conta de tantos dos problemas que assolam cada um de nós.


[*** Spoilers ***]

Confesso que na leitura procurei compreender o masoquismo de Philip/Maugham na base da falta do afeto dos pais que partiram antes do tempo, do tio austero incapaz da menor emoção, da deficiência do pé/gaguez, mas nada disso me pareceu suficiente, e menos ainda oferecer o direito de magoar outras pessoas. No entanto, agora que leio o texto e as personagens de um modo distinto, tudo se encaixa diferentemente. A personagem Norah, que se tinha apaixonado por Philip sendo largada sem mais, apenas porque Mildred, abandonada por um outro com uma gravidez indesejada, resolve voltar para Philip, foi um baque enorme para mim, algo completamente inaceitável na personagem. Uma pessoa dotada de razão, e Philip é alguém profundamente racional, nunca cederia, não esqueçamos que toda a sua humildade e incapacidade de magoar quem quer que fosse. Contudo, agora o que leio é que Norah aceitou a natureza de Philip/Maugham, e não era para outra mulher que ele voltava, ele era reclamado pela sua natureza homossexual, e contra essa, Norah uma personagem de grande elevação, sabia que não adiantaria lutar, e por isso sai de cena sem mais.

Estranho como não consegui compreender isto na leitura, e como isto não surge nas discussões mais genéricas sobre o livro (acredito que existam recensões académicas a aprofundar tudo isto). Vi tantas pessoas identificarem-se com algo com o qual não me conseguia propriamente identificar, a paixão avassaladora que tudo leva na sua frente, quando afinal não era a paixão, era algo mais profundo, ainda que isto não nos distancie do velho problema da luta entre a emoção e a razão. Porque diga-se Maugham terá passado grande parte da vida nas lutas desse dualismo. Não nos esqueçamos que casou com uma mulher e teve uma filha. Ele acreditou que a homosexualidade era algo que podia controlar, e graças à sua humildade deve ter conseguido sujeitar-se a levar a vida que todos à sua volta levavam. Mas a natureza humana não é mera paixão, o fogo que arde sem se ver é efémero, mas a natureza da homossexualidade não é paixão, mera emoção, como Maugham tentou definir a partir de Espinosa, é algo muito mais profundo, e este livro acaba a mostrar isso mesmo.

Terminando, “Servidão Humana” não é aquilo que muitos nos venderam, de ser um livro sobre a razão de viver, nem sequer é sobre aquilo que Maugham disse, de ser um compêndio das filosofias que tinha construído até aí, ou talvez seja, mas agora vejo que é muito mais do que isso, é um grito a partir do seu sentir mais íntimo. Repare-se como até mesmo a citação constante do evolucionismo de Darwin que serve para definir a tal ausência de fundamento da vida, deve ser lido antes como a refutação do cristianismo que penaliza o desejo e criminaliza a homossexualidade. E mais ainda, como o Darwinismo retira das costas de Maugham a culpa de ter nascido assim, justificando a sua incapacidade de torcer a sua natureza para se fazer entrar dentro dos preceitos morais da religião.

"Laocoön" (1604-1614) de El Greco. Greco coloca Laocoon, o troiano que tentou avisar Tróia daquilo que se escondia no Cavalo dos gregos, com Toledo no fundo. 

Claro que tudo isto acaba passando e Maugham porque não podia ser frontal, se o tivesse sido provavelmente este livro não teria sido um romance, e certamente não um romance de enorme sucesso, e acaba criando uma fachada de vitória e júbilo no final, com direito a casal satisfeito com o mundo “tal como ele devia ser”. Julgo que este final que no livro serve para dar conta de um Philip que triunfou na vida e conseguiu atingir o equilíbrio esperado dele, acaba por servir para dar conta do ambíguo sentimento de Maugham sobre si próprio. Atentemos em dois detalhes: Sally, a namorada final, não reage de forma muito natural, parecendo mais uma personagem de cera, dotada de todas as qualidades morais que a sociedade prezava, mas estranhamente distante de todos e mesmo de Philip; e segundo, Philip faz uma escolha final, resolve ficar com Sally por receio de a ter engravidado, já que a sua vontade era viajar para Toledo para conhecer as pegadas de El Greco, um dos artistas mais individuais de sempre, e que alguns historiadores etiquetam como homosexual. No fundo, Maugham está aqui a dar conta da sua ambiguidade, já que numa fase inicial da sua vida namorou com raparigas, e depois casou com uma mulher, e só a partir do meio da sua vida passou então a partilhar, abertamente, a intimidade exclusivamente com homens.

[*** Fim de Spoilers ***]


Cheguei a pensar retirar uma estrela pelo que Philip tinha feito, mas depois de ter escrito este texto, não consigo. A escrita de Maugham é boa, não deslumbra com virtuosismo, mas mantêm-nos presos ao livro todo o tempo ao longo da enorme quantidade de páginas que perfazem o mesmo, o que dá bem conta da sua qualidade. Por outro lado, é um relato que marca a nossa história, vai ao fundo do âmago daquilo que sente quem tem de passar todo o tempo escondido por detrás de uma fachada a ponto de já não conseguir distinguir essa fachada de si mesmo.

março 10, 2018

Conhecimento: abstraído, individualizado e emocionalizado

A Danah Boyd esteve no 2018 SXSW Edu para fazer mais uma keynote brilhante, "You Think You Want Media Literacy… Do You?" (2018). Boyd tem sido incansável na defesa de perspetivas mais abertas para com os usos que os adolescentes fazem dos media, propondo reflexões mais incisivas sobre aquilo que conduz as pessoas a fazerem o que fazem, evitando os julgamentos rápidos, muitas vezes meramente assentes no preconceito. Nesta palestra, Boyd discute o estado atual da sociedade na sua relação com as Fake News, com os Media e com a Produção de Conhecimento.


Boyd vem colocar o dedo na ferida e relembrar que as visões do mundo que cada um de nós carrega consigo não são produzidas por um governo, uma escola, ou um conjunto de autoridades, servem-se também das próprias experiências de cada um, que por sua vez ganharam agora novos canais distribuídos de amplificação oferecidos pela internet.
“For better and worse, by connecting the world through social media and allowing anyone to be amplified, information can spread at record speed. There is no true curation or editorial control. The onus is on the public to interpret what they see. To self-investigate. Since we live in a neoliberal society that prioritizes individual agency, we double down on media literacy as the “solution” to misinformation. It’s up to each of us as individuals to decide for ourselves whether or not what we’re getting is true.”
“I get that many progressive communities are panicked about conservative media, but we live in a polarized society and I worry about how people judge those they don’t understand or respect. It also seems to me that the narrow version of media literacy that I hear as the “solution” is supposed to magically solve our political divide. It won’t. More importantly, as I’m watching social media and news media get weaponized, I’m deeply concerned that the well-intended interventions I hear people propose will backfire, because I’m fairly certain that the crass versions of critical thinking already have.” 
Não existem soluções simples, menos ainda os chavões do passado nos poderão indicar o caminho, já que ele se tornou bastante mais complexo. A Literacia dos Media pode ajudar, o Pensamento Crítico também, mas não chega, temos de admitir que não passa de uma gota no oceano da produção de imaginário que cada ser individualmente desenvolve e que tenta inculcar nos que o rodeiam.
“In some online communities, taking the red pill refers to the idea of waking up to how education and media are designed to deceive you into progressive propaganda. In these environments, visitors are asked to question more. They’re invited to rid themselves of their politically correct shackles. There’s an entire online university designed to undo accepted ideas about diversity, climate, and history. Some communities are even more extreme in their agenda. These are all meant to fill in the gaps for those who are opening to questioning what they’ve been taught.”
“Trained on critically interrogating biblical texts, evangelical conservative communities were not taking Trump’s messages as literal text. They were interpreting their meanings using the same epistemological framework as they approached the bible. Metaphors and constructs matter more than the precision of words.” 
“If you don’t start from a place where you’re confident that climate change is real, this sounds quite reasonable. Why wouldn’t you want more information? Why shouldn’t you be engaged in critical thinking? Isn’t this what you’re encouraged to do at school? So why is asking this so taboo?”

Quero acreditar que maior conhecimento da História e do Método Científico nos pode ajudar, mas temos de ser humildes para perceber que não chegará a todos do mesmo modo. Temos de aceitar que quanto mais distribuída for a capacidade humana para produzir abstração mental, mais individualizada esta se irá tornar, polarizando muito daquilo que tendemos a ver como não polarizável. Mais ainda, porque a nossa capacidade para racionalizar a realidade é reduzida, dependemos fortemente da emoção para compreender essa realidade, precisamos de âncoras seguras, sei as quais vamos ao fundo. Repare-se neste comentário de Boyd sobre a empatia:
“Empathy is a powerful emotion, one that most educators want to encourage. But when you start to empathize with worldviews that are toxic, it’s very hard to stay grounded. It requires deep cognitive strength. Scholars who spend a lot of time trying to understand dangerous worldviews work hard to keep their emotional distance.“
Na verdade esta foi a grande justificação para a existência de uma Comunicação Social, do desenvolvimento do Jornalismo enquanto 4º poder: conseguir criar um espaço comum no qual todos se reviam, para o qual todos nós podíamos contribuir com a educação que íamos construindo nas escolas comuns. Contudo, a partir do momento em que o espaço comum deixa de existir, em que as fontes são individuais, e com cada um a acreditar apenas em si próprio, os problemas emergem. Sem um fio de conhecimento comum, a realidade do conhecimento e informação, que é abstrata torna-se ainda mais abstracta, deixando-nos à mercê da teoria que mais força emocional tiver.


A realidade física é complexa, mas bastante mais acessível que a "realidade" que todos os dias cada um de nós cria nas suas próprias cabeças. E as mensagens que cada um de nós produz, estão longe de ser inócuas, por mais força mental que se detenha. Para fechar, e recomendando a leitura do texto completo, ou o visionamento da palestra, deixo algo porque me bati nas redes sociais, contra muitas pessoas, que não faziam parte de qualquer seita, informadas e algumas até com créditos científicos, mas simplesmente acreditavam nos seus próprios ideais de sociedade, descurando a realidade de muitos que vivem mais fragilizados ou na ausência das tais âncoras:
“In 2017, Netflix released a show called “13 Reasons Why” (…) But I’m on the board of Crisis Text Line, an amazing service where people around this country talk with trained counselors via text message when they’re in a crisis. Before the news media even began talking about the show, we started to see the impact. (..) At Crisis Text Line, we do active rescues every night. This means that we send emergency personnel to the homes of someone who is in the middle of a suicide attempt in an effort to save their lives. Sometimes, we succeed. Sometimes, we don’t. It’s heartbreaking work. As word of “13 Reasons Why” got out and people started watching the show, our numbers went through the roof. We were drowning in young people referencing the show, signaling how it had given them a framework for ending their lives. We panicked. All hands on deck. As we got things under control, I got angry. What the hell was Netflix thinking?”

março 03, 2018

Journal of Digital Media & Interaction

Não faltam revistas científicas no mundo, por isso de todas as vezes que pensei criar uma nova, particularmente ao longo dos últimos cinco anos, questionei-me sempre se valeria a pena, se era mesmo necessária, se não existiriam já espaços suficientes onde publicar toda a investigação que se vai fazendo nas áreas em que tenho trabalhado. Porém, desta vez esse projeto avançou, motivado pelo facto de ter mudado de instituição no final do ano passado, e pelo facto do grupo que vim encontrar, apresentar uma especificidade a nível nacional que mesmo no campo internacional encontra ainda poucos espelhos. Claro que para que um projeto destes avançasse no terreno, dada a sua exigência, seria preciso existirem mais pessoas com a mesma vontade, um centro de investigação interessado no mesmo — Digimedia — mas em particular uma colega, a Lídia Oliveira, que desde a primeira hora se mostrou totalmente disponível para levarmos este projeto por diante. Assim, a nova revista científica internacional que agora torno pública — Journal of Digital Media & Interaction — não acaba aqui, antes começa. Não faltam ideias a mim e à Lídia para o futuro da mesma, veremos até onde nos conduz, ou até onde a conseguiremos nós conduzir.


Falei da especificidade científica e por isso devo aqui explicitar a mesma, ainda que esta se encontre há muito inscrita na matriz científica da Universidade de Aveiro como área de "Ciências e Tecnologias da Comunicação", designação académica daquilo que foi em tempos a Multimédia, depois os Novos Media, seguido dos Media Interativos e que hoje tende para a designação de Media Digitais. O Scope da revista contribui para elucidar essa especificidade, definindo a abordagem como transdisciplinar, dadas as exigências que o campo apresenta. Não se trata apenas de trazer para o seio da discussão diferentes colegas, munidos de diferentes abordagens científicas, mas de cada um de nós laborar a construção de conhecimento baseado em teoria e empiria proveniente de diferentes áreas. No caso, o foco nasce da junção de duas áreas por força da evolução tecnológica: de um lado os Media, enquanto mediadores de comunicação e informação; e do outro o Design, enquanto construtor da interação entre os media e os utilizadores. Para o efeito precisamos assim de convocar para além dos Estudos dos Media e do Design de Interação, a Comunicação, a Interação Humano-Computador, os Estudos Culturais, o Design, a Psicologia, a Sociologia e as Ciências da Informação. Como facilmente se poderá entender, uma abordagem deste tipo abre um território infindável de domínios, que pode ir desde os videojogos às aplicações nos campos da saúde e educação, passando pela televisão interativa, a cibercultura, a computação física, ou o design inclusivo. Neste sentido, as áreas de interesse listadas na revista, representam apenas a ponta do icebergue daquilo que esperamos poder vir a discutir nas páginas desta nova revista.

Como uma revista não existe per se, menos ainda uma revista científica, interessa aqui dar conta do mais importante deste anúncio, e que é a nossa primeira Chamada de Artigos estar aberta até ao dia 30 de Abril de 2018. Quem submeter agora, habilita-se a publicar naquele que servirá de nº1 a esta revista. Para já ainda não temos ISSN, porque este só é atribuído depois de publicado um primeiro número, por se tratar de uma publicação periódica. Relativamente à indexação, todos os que sintam alguma reticência, posso assegurar-vos que o nosso objetivo, tanto meu como da Lídia, é indexar a revista nos principais serviços internacionais no mais curto espaço de tempo, tendo perfeita noção do trabalho que isso implica. Aliás, nesse mesmo sentido elegemos o Inglês como língua principal de trabalho da revista, mantendo no entanto aberta a possibilidade de publicar artigos em português, francês e espanhol.

Peço-vos então que partilhem o CFP e deem a conhecer o Journal of Digital Media & Interaction, e claro, submetam os vossos artigos.

fevereiro 28, 2018

A Educação Sentimental (1869)

Tinha ficado algo apreensivo aquando da minha resenha de “Madame Bovary” (1856), mas aceitei que o problema fosse meu. Assumi que a obra tinha surgido numa fase embrionária do realismo na literatura, que tinha obrigado Flaubert a inovar e a abrir caminhos sem pauta para se orientar, e que por isso teria de ser condescendente por estar a quase dois séculos de distância. Mas ao chegar ao final de “A Educação Sentimental”, esta minha abordagem já não serve, porque passados 15 anos, Flaubert não alterou em nada os problemas que eu tinha sentido face a "Madame Bovary".


Só em parte consigo entender que Proust e Kafka se tenham deliciado com Flaubert. Sim a escrita tem momentos muito bons, existe uma organização frásica muito boa, capaz de gerar bom ritmo, de adocicar a leitura, a ponto de fazer toda a experiência fluir muito naturalmente. Por outro lado, e agora, no final destes dois livros, percebo que Flaubert terá sido um indivíduo com problemas obsessivos, centrado sobre si e sobre a sua arte, incapaz de lidar com o social. E é por isso que apesar de eu não ver proximidade temática, entre Proust e Kafka com Flaubert, eles por sentirem problemas ao nível dos de Flaubert, terão lido nas entrelinhas. Mas fosse apenas este o meu problema com a obra, e aceitaria Flaubert sem problemas, o problema é que ao contrário deles, Flaubert não foi capaz de criar uma obra autónoma.

Ou seja, “Madame Bovary” e “Educação Sentimental”, seguem ambos a mesma formula, com uma variação apenas, num temos uma mulher, no outro um homem. Isto parece ridículo, mas foi exatamente isto que senti no final dos dois livros. **** SPOILER **** Temos dois personagens, Emma e Frederic, ambos apenas centrados sobre si, nos seus amores, totalmente insensíveis à restante sociedade, desde a própria família, aos amigos, até mesmo aos próprios filhos. E se já me tinha chocado com o desenho da relação entre Emma e a sua filha Berthe, Frederic vai muito mais longe, roçando o desumano. Ter um filho e não querer saber, podemos até aceitar que se trata de alguém apenas focado em si, mas ver o filho morrer nos braços, e estar apenas preocupado com o facto da amada ir partir para outra cidade, é tão aberrante que não tenho palavras para descrever **** FIM ***.

Acabei por ter de ir confirmar que Flaubert nunca casou, nem nunca teve filhos, e para além disso, afirmava ser "antinatalista", já que considerava não querer "transmitir a ninguém os agravos e as desgraças da existência”. Lido assim, parece profundo, apesar de ser aquilo que quase todas as pessoas que conheço, e que não querem ter filhos, dizem. O problema, é que para alguém supostamente tão reflexivo sobre a existência humana, escreveu dois livros, os que li, de uma superficialidade atroz. Tanto Emma como Fréderic vivem as suas vidas sem pensar em absolutamente mais nada nem ninguém, a não ser nos seus amores, nos seus desejos, na sua própria felicidade. Como se para viver bastasse apenas amar alguém, isto claro desde que caísse na conta uma renda mensal para não ter que trabalhar e poder viver apenas a pensar no tal amor.

Flaubert criticou "Os Miseráveis" (1862) de Victor Hugo por ser um romance condescendente para com todas as classes da sociedade, pois fez bem, já que acabou a fazer o seu oposto. Aliás, quem tinha razão era mesmo Henry James, a quem Flaubert não conseguiu enganar:
"Aqui, a forma e o método são os mesmos que em "Madame Bovary"; a competência estudada, a ciência, e a acumulação de material, são ainda mais impressionantes; mas o livro, esse numa única palavra, está morto." (Henry James)
Como se isto não bastasse, o livro apresenta vários problemas de organização da ação e dos personagens, que fazem com que não poucas vezes as cenas não apresentem ligação entre si, ou não seja possível compreender totalmente o que o autor pretende ao colocar os personagens a dizerem certas coisas. Isto é mais um problema de edição, mas acredito que Flaubert com todas as suas idiossincrasias, tenha impedido que esse trabalho fosse feito sem o seu total controlo, e por isso o livro que temos é o que ele terá permitido que tivéssemos.

Dito tudo isto. Não dou por perdido o tempo que gastei a ler “Madame Bovary”, já “A Educação Sentimental” dispensava.

fevereiro 24, 2018

Sobre o ensino da Arte

Elkins, muito provavelmente, sofria do chamado "síndrome do impostor" quando escreveu o livro "Why Art Cannot Be Taught" (2001), diagnóstico meu. Ou seja, sentia-se incapaz de interiorizar os seus feitos enquanto professor, incapaz de dar conta dos resultados do seu trabalho com os seus alunos, daí que a frustração tenha resultado neste livro. E digo isto no passado, porque passando pelo seu site, percebemos que, em parte, mudou depois de opinião. Talvez o facto de o livro não ter sido muito bem recebido na altura, por exemplo a sua própria Universidade (a School of the Art Institute of Chicago) recusou-se a publicar o manuscrito, o tenha levado a refletir sobre o que queria realmente dizer quando o escreveu, já que o livro espremido, não diz nada.


Não posso dizer que o livro não vale sequer o seu custo, vale, os dois primeiros capítulos em que Elkins discorre sobre a história das escolas de artes ao longo dos últimos séculos, e discute as questões em redor dos currículos nucleares, são muito interessantes, ocupando quase toda a primeira metade do livro. O problema surge, na segunda parte, quando Elkins olha para o presente daquilo em que se tornou a escola superior de artes, tecendo considerações sobre a sua atual inconsequência, manifestando-se totalmente incapaz de propor qualquer alteração. Estando tudo mal, segundo Elkins, não há nada que possamos fazer, resta-nos continuar a fazer de conta que estamos a ensinar!
“The idea of teaching art is irreparably irrational. We do not teach because we do not know when or how we teach.” (p.189)
Ora existem aqui vários problemas de base: a confusão, propositada ou não, entre processos técnicos e criatividade; a ausência de conhecimento sobre os processos cognitivos; e a ausência de conhecimento sobre os processos sociais criativos.

O primeiro ponto é talvez o mais relevante já que está na base desde logo do próprio título. Se olharmos a arte do ponto de vista do resultado, enquanto produtora de artefactos expressivos e originais, então claramente não é possível ensinar arte a ninguém, desde logo porque estes resultados, enquanto tais, não dependem apenas dos criadores, mas também da interpretação dos recetores dos mesmos. Por exemplo, o mercado da arte que todos conhecemos, e que vende obras por valores incalculáveis não se regula pela avaliação dos objetos em si, mas antes pela avaliação de um conjunto de críticos/colecionadores que atribuem valor ou não a uma obra. Quando muito, poderíamos ensinar os artistas a comunicar ideias de modo a garantir o interesse desses colecionadores, seguindo as mesmas lógicas que utilizamos no ensino da criação de entretenimento ou de publicidade. Mas se queremos ensiná-los a ser diferentes, a quebrar convenções, a subverter o status quo, aí entramos num território bastante mais complexo, para o qual podemos, de modo metafórico, abrir janelas, mas não podemos apresentar o caminho, já que ele é individual e construído no tempo conjuntamente com a sociedade.

Mas o ensino de arte não tem de ser isto, apesar de ter sido neste sentido que convergiu ao longo do último século, nomeadamente depois da revolução modernista, como fica evidenciado na apresentação das várias escolas de ensino de artes. Compreendendo quem ainda defende esta visão da, e consequente ensino da arte, tenho dúvidas em aceitá-la, exatamente por aquilo que fica demonstrado neste livro de Elkins, já que conduz o ensino a um beco sem saída, como ilustra Clowes abaixo:

"If you must go to art school" (1991), in Eightball 7, de Daniel Clowe. (Elkins, 2001:87)

Neste sentido, a criação artística é um processo, como qualquer outro processo aplicado, que carece de conhecimento especializado, e é esse conhecimento, as técnicas, que o ensino pode ensinar. Com isto não se defende aqui um ensino profissionalizante a um nível superior, mas defende-se que apenas com muito conhecimento e domínio técnico se pode chegar à superação e consequente subversão. Como diz Saramago:
“A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe-lhe ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer. (…) Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escrita será clara. (…) A escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença.” 
José Saramago (2003)
As regras são a técnica que se pode ensinar, mas também o ouvir e o pensar, o crescer enquanto indivíduo consciente do mundo que o rodeia. E é no mínimo caricato, para não dizer algo pior, que Elkins tente comparações entre a Arte e a Física, e venha falar de testes que dão conta do que efetivamente o aluno aprendeu, e não olhe para as outras artes mesmo ao lado das Visuais, tais como a Música ou a Dança. Sendo a avaliação nesses ramos tão subjetiva como é em qualquer outra arte, não deixa de conter um enorme espaço para a objetividade, que é assegurada pelo corpo de praticantes da mesma. A distinção entre um performer medíocre e um bom é discernível com critérios objetivos, claro que já não poderemos dizer o mesmo, entre um muito bom e um excelente. Mas aqui eu questiono, e onde no mundo em que vivemos, é que isso é possível de ser distinguido? Mesmo no campo da ciência, quando submeto uma proposta de investigação para financiamento, a avaliação que é realizada sobre a mesma, desde que ela atinja os tais parâmetros mínimos objetivos de qualidade, é profundamente subjectiva.

Mas isto é confundir a realidade com o ensino. A educação não foi inventada para criar seres profissionais, prontos a debitar aquilo que as sociedades necessitam. A educação existe para acelerar o processo de adaptação às realidades, e acima de tudo para garantir as mesmas hipóteses, em termos cognitivos a todos, mas é apenas isso. Depois cabe a cada indivíduo encontrar-se, definir-se, e destacar-se. Por isso não cabe a um curso superior criar um artista, tanto como não cabe criar um médico ou um advogado, que só podem afirmar sê-los, depois de cumprirem uma série de requisitos no mundo real, exterior à rede de segurança proporcionada pela escola.

Daí que afirmar, “It does not make sense to try to understand how art is taught.” (p.190) é não só ridículo, mas acima de tudo uma acomodação àquilo que se tem, mesmo não concordando com o que se tem. Desde logo não podia ser dado exemplo pior a um aluno, de artes ou qualquer outra área, do que dizer-lhe que “não vale a pena”. Por outro lado, é a demonstração de que Elkins nunca parou um minuto para estudar matérias fora do seu próprio domínio. Porque não faltam trabalhos no domínio da Educação, mas mesmo que não quisesse entrar por aí, se tivesse pelo menos tentado compreender os seres-humanos com quem tem de lidar todos os dias, ou seja a psicologia dos seus alunos, teria estudado um pouco sobre ciência cognitiva, procurando perceber de que é feita a motivação humana, assim como as diferenças entre talento, inspiração e trabalho, e teria conseguido ver um mundo completamente diferente. No fundo, em vez de ter passado todo o tempo a questionar a arte pela arte, devia ter parado para ouvir, ler e questionar a realidade que o rodeia.