"O Triunfo de Aquiles" por Franz Matsch, num fresco do século XX, em que se vê Aquiles puxado pelos seus "cavalos de casco não fendido", arrastando, pelos pés, o corpo de Heitor.
A “Odisseia”, como o próprio título indica, trata uma viagem, no caso, a do regresso de Ulisses a casa, depois dos 10 anos que duraram a Guerra de Tróia. Já a “Ilíada” foca-se nessa guerra, mas se dá conta das razões que a ela conduziram, acaba por depois se centrar quase exclusivamente num punhado de eventos, realizando avanços e recuos ao longo de toda a sua descrição, sem nunca chegar a concluir o que inicia. Assim, temos como razão para o início da guerra, um tanto tonta como Heródoto já terá dito: Paris, filho do rei de Tróia, rapta a mulher, Helena, do rei de Esparta (Antiga Grécia), Menelau, e fogem ambos para Tróia, fazendo com que os gregos se levantem em sua perseguição, e iniciem uma guerra de 10 anos para destruir Troia e reaver Helena.
A edição em capa dura da Cotovia é deliciosa, mas o melhor continua sendo a tradução, como já havia dito a propósito da "Odisseia", realizada por Frederico Lourenço.
Os avanços e recuos nesta guerra acabam por ocupar a maior parte do livro, com as peripécias dos diferentes personagens. Do lado de Tróia: Paris, o seu irmão Heitor, e pai Priamo, ou o militar Eneias, que surgirá mais tarde como personagem principal da “Eneida” de Virgilo. Do lado dos gregos, temos Menelau, Agamenon, Ajax, Pátroclo e Ulisses que será o principal personagem da “Odisseia”. O miolo da narrativa arrasta-se bastante, não fossem as intervenções dos Deuses (Zeus, Ares, Afrodite, Atena, Apolo, Hera, Poseidon, etc.) em defesa de cada fação! Sim os Deuses defendem lados e atacam-se uns aos outros, tornando-os numa das mais interessantes atrações deste livro.
O núcleo da narrativa, acabará por surgir apenas na última parte do texto, com Aquiles a assumir por completo o protagonismo, a ponto de no final se tornar inevitável ler a “Ilíada” como o livro de Aquiles, ou como é reconhecido por alguns, "A Ira de Aquiles". Isto é no mínimo surpreendente, já que apesar de Aquiles surgir desde o início, ele é praticamente secundário durante todo o livro, contudo o modo como depois Homero o trabalha nesse último terço, acaba por elevar a sua personagem a um ponto de destaque não dado a mais nenhum dos restantes elementos. Aliás, em parte, o problema desta "Ilíada" está exatamente no quão pouco trabalhados vão surgindo cada um dos personagens, completamente lineares, ao contrário do que acaba por acontecer com Aquiles, o problema é isto acontecer apenas na reta final. Repare-se como em a "Odisseia", o trabalho de desenvolvimento de personagem recai sobre Ulisses mas esse é trabalhado o início ao final do poema.
“E Aquiles atirou-se a ele, com o coração cheio de ira
selvagem, e cobriu o peito à frente com o escudo,
belo e variegado, agitando o elmo luzente
de quatro chifres. Belas se agitavam as crinas
douradas, que Hefesto pusera cerradas como penacho.
Como o astro que surge entre as outras estrelas no negrume da noite,
a estrela da tarde, que é o astro mais belo que está no céu —
assim reluziu a ponta da lança, que Aquiles apontou
na mão direita, preparando a desgraça para o divino Heitor,
olhando para a bela carne, para ver onde melhor seria penetrada.”
Canto XXIISe é crível o despoletador da chama de Aquiles (a morte do seu amigo Pátroclo)? Julgo que é tão crível como uma cidade inteira deixar-se levar para uma guerra destrutiva por causa de um capricho, moralmente indefensável, de um filho de um rei. No fundo a "Ilíada" mostra, como desde a primeira hora, a narrativa teve de lidar como problemas de dissonância cognitiva, no caso: com tantos e tantos personagens mortos de formas violentíssimas, descritas para nos fazer sentir o terror da guerra, quer depois a narrativa que se chorem alguns desses personagens em particular, como se umas vidas tivessem mais valor que outras. Isto apenas se explica porque como muitos foram dizendo, estes poemas épicos não procuram retratar a realidade, antes dão conta de histórias populares, folclore, com um sentido de puro entretenimento, recorrendo à fantasia e mitologia.
Neste sentido, interessa menos a credibilidade do que se conta, e mais a ênfase do heróico dos personagens, que para o ser requer emocionalidade, e nesse campo Aquiles acaba sendo um dos poucos a ser capaz de nos emocionar. Faltam episódios marcantes, mais ainda quando comparado com a “Odisseia”, nem mesmo o Cavalo de Tróia aqui surge, ou o tendão de Aquiles, ainda que no último terço surjam todo um conjunto de eventos fortes enquadrados pela Ira de Aquiles — a morte de Pátrocolo; o resgate do seu corpo; a luta entre Heitor e Aquiles; a morte de Heitor; e o pedido de Priamo para levar o corpo do seu filho Heitor de volta.
"Priamo implorando a Aquiles" (1815) de Bertel Thorvaldsen
Dito tudo isto, julgo que fica clara a relação das duas obras, e nomeadamente porque “Odisseia” vai surgindo quase sempre como a referência desta época. Não fosse a “Íliada” o primeiro poema épico sobrevivente (depois do curto poema “Gilgamesh”), e provavelmente acabaria esquecido na nossa história. Tudo o que tem para oferecer é imensamente melhor conseguido na “Odisseia”. Ainda assim, não posso deixar de recomendar a sua leitura. É um processo lento, mas em que o crescendo se vai instalando, para no último terço, vivido com Aquiles, recompensar todo o nosso investimento. Como já tinha dito a propósito da “Odisseia”, Homero parece um autêntico realizador de cinema de Hollywood, capaz de nos arrastar pelo pescoço, com a emoção pendurada desde o canto do olho até à ponta do coração. Pura visceralidade, não fosse este é um Poema Épico.
A ler:
"Odisseia" de Homero, in Virtual Illusion