setembro 03, 2017

Gilead (2005)

Não percebia como é que um livro que tinha ganho o Pulitzer em 2005 nunca tinha sido editado em Portugal*, mas depois de o ler talvez perceba um pouco melhor. O tema tratado ainda que desejando-se universal está intimamente ligado à defesa de uma visão do chamado cristianismo norte-americano. O modo para o fazer é o melhor do livro, já o conteúdo falta-lhe estrutura, ou uma abordagem que aproxime quem está por fora do contexto das problemáticas que vão surgindo, aparentemente centrais para compreensão em profundidade do texto.


“Gilead” é uma história contada em tom diarista e confessional, por parte de um padre protestante com 75 anos que escreve ao seu pequeno filho que tem no momento apenas 7 anos. Todo o tom do texto é servido numa expetável melancolia, já que quem escreve o faz na esperança de ser lido depois de ter partido. É uma carta escrita para uma futura pessoa, e só por si é suficiente para nos colocar num estado introspectivo e meditativo, algo que a autora aproveita bem para lançar as suas grandes questões sobre a identidade religiosa.

O mais interessante acaba por provir da dúvida que acompanha o reverendo ao longo de todo o seu discurso, do modo como enfrenta a dúvida sem esperar por respostas de qualquer orgão religioso externo, confrontando-se apenas com algumas obras, em particular com Feuerbach. O foco narrativo centra-se na história de vida do reverendo que essencialmente dá conta das vidas do seu avô e pai que também foram reverendos. A discussão atrai porque as igrejas metodistas e congregacionalista, baseadas no Calvinismo diferem da Católica, entre outras coisas, por se formarem e susterem de modo autónomo. Não existe um centro de onde são emanadas leis e concordatas, para onde olhar e procurar respostas, o que faz com que as igrejas sejam mais assentes na comunidade, na construção do comum e menos no da mera evangelização.

Apesar do potencial interesse que o livro poderia representar, e da excelente escrita de Robinson, falta-lhe não apenas contexto, mas essencialmente estrutura. O livro surge como um carta que alguém vai escrevendo ao sabor do tempo e disponibilidade, faltando trama, razões e motivações que nos prendam à leitura. Se as primeiras páginas se sorvem de um trago o resto do livro parece repetir-se, dando conta de pequenos casos, pequenas situações, com um ou outro evento mais relevante, mas sem uma verdadeira consequência no todo, ou pelo menos assim o li, talvez por falta de conhecimento do contexto.


* 6 janeiro 2019
Afinal o livro foi editado em Portugal pela Difel, em 2006, sob o título "Ao Meu Filho"

setembro 01, 2017

Mudar, recomeçar, continuar

Passei os últimos 11 anos como professor e investigador na Universidade do Minho. Não foi fácil à chegada, também não é fácil na partida. Conheci funcionários, alunos e colegas fantásticos, com um sentido de dever e curiosidade constantes, e é por eles que custa. São as pessoas que nos marcam, são elas a cola das experiências que construímos no interior das nossas memórias, e que seguem conosco. Sou uma pessoa diferente da que chegou à UM em 2006, aprendi muito mais do que ensinei, e por isso agradeço a todos os que encontrei e me encontraram.



Hoje inicio funções na Universidade de Aveiro, é uma mudança, é um recomeço, mas será também uma continuação da construção de experiências, agora com um novo grupo, ainda que constituído de muitos antigos colegas, ansiando por estar à altura da excelência do trabalho que têm desenvolvido.

agosto 30, 2017

Ciência e igualdade de género

O tema está na agenda nacional o que é ótimo, quanto mais se falar e discutir mais poderemos criar conhecimento sobre o que representa, sobre os seus problemas, efeitos e limitações. O assunto é complexo, mexe com estruturas civilizacionais ancoradas em milhares de anos de evolução e por isso não podemos ter ilusões de que se possa mudar tudo em meio século, menos ainda num par de semanas. Vamos precisar de continuar a conversar, a estudar, e a desenvolver mais e melhores argumentos que elucidem as dúvidas de cada um. Se em Portugal a discussão se faz por causa de cadernos de atividades para crianças, nos EUA faz-se porque um empregado da Google escreveu um "Manifesto Anti-Diversidade", enquanto no meio online mais subterrâneo se digladiam movimentos, com enorme poder, como o chamado Gamergate.

Nesta composição podemos ver a expressão do modelo social que vingou na nossa espécie até há pouco tempo, e que a evolução dos tecidos sociais veio questionar.

A igualdade de género é uma abordagem sociológica, ou seja, baseia-se na análise dos modos de funcionamento das sociedades, procurando compreender porque funcionam da forma como funcionam, no sentido de contribuir para o seu auto-conhecimento, com o que se espera poder otimizar o funcionamento dessa sociedade. Uma das maiores confusões sobre os objetivos desta abordagem e que cria grande ceticismo e reticência em muitas discussões é o facto de se assumir que aqui se defende que os géneros são iguais, o que é um erro. A abordagem, por ser sociológica, trata do modo de funcionamento dos géneros em sociedade, não trata da fisiologia dos géneros. Ou seja, apesar do chapéu criado para englobar a discussão parecer indicar que se procura tornar os géneros iguais, o que é preciso saber, e aquilo porque se luta, é que os géneros tenham um tratamento igual pela sociedade: que nenhum ser humano seja tratado diferente por ser Mulher ou por ser Homem.

Ora para isto não basta criar um par de leis que defendam os mesmos direitos para homens e mulheres. As leis são emanadas da sociedade e se esta não acreditar, de forma generalizada, naquilo que essas leis defendem, dificilmente estas poderão ter efeito prático. Assim, mais importante do que criar leis é a formação e educação da sociedade, mas para isso também não basta criar umas cadeiras na universidade que discutam o assunto, é preciso que o tema seja debatido em sociedade, que as pessoas não tenham receio de falar sobre o mesmo, e mais importante, não tenham pudor em mudar de opinião.

Esta questão não tem meia-dúzia de anos, faz parte de nós desde que surgimos como espécie, desde que iniciámos a partilha de esforço e responsabilidades, precisando de homens e mulheres para progredir na conquista por mais e melhores condições. Se a sociologia estuda os comportamentos da sociedade atual, não o pode fazer no vazio, ou arredada do outro conhecimento existente sobre o ser humano, nomeadamente a biologia, as neurociências e em especial a psicologia evolucionária.

Psicologia que procura descrever o comportamento humano com base nas funções biológicas e genéticas

Dito isto, e assumindo todo o conhecimento científico que possuímos, temos de compreender que a modelação social dos géneros, Homem e Mulher, não é determinada apenas pela diferença dos órgãos reprodutores, o chamado sexo, o pénis e a vagina. Em termos sociais, ou seja do modo como nos relacionamos uns com os outros, mais importante do que o sexo são as hormonas que correm na nossa corrente sanguínea, nomeadamente a percentagem de duas em especial: a Testosterona e a Ocitocina.

A ciência diz-nos que a testosterona contribui para a formação de corpos mais robustos e ao mesmo tempo de comportamentos baseados na ação, no risco e no desapego. Por outro lado, a ocitocina contribui para tornar os corpos mais relaxados o que leva a criação de comportamentos mais passivos, de recato e apego. O facto de, em média, a testosterona estar mais presente nos homens, faz com que se associem os comportamento por ela incitados ao comportamento social másculo. Acontece o mesmo com a ocitocina que está, em média, mais presente nas mulheres, fazendo com que aqueles comportamentos ofereçam uma espécie de norma feminina.

O excesso de Testosterona conduz ao autismo, pelo sub-desenvolvimento da cognição social, sendo o autismo mais prevalente nos homens. O excesso de Ocitocina conduz a desordens bipolares e depressão, pelo super-desenvolvimento da cognição social, sendo estas patologias mais prevalentes nas mulheres. (Gráfico por Bernard Crespi, "Oxytocin, testosterone, and human social cognition" (2015), in Biological Reviews)

O primeiro problema a reconhecer, surge com o facto da sociedade se deixar conduzir pela força das hormonas, ao atribuir papéis aos géneros apenas em função de médias. Ou seja, só em média é que os homens têm mais testosterona, e as mulheres mais ocitocina, fora da média temos homens com mais ocitocina, e mulheres com mais testosterona. Para esses casos a sociedade arranjou novos rótulos, são as "maria rapaz", e os "afeminados", sem contudo deixar de exercer o seu poder de grupo para torcer estes sujeitos que não se encaixam bem na norma.

O segundo problema é não percebermos que a origem desta divisão da presença de quantidades das diferentes hormonas nos corpos do homem e da mulher, não é mero fruto da natureza. A testosterona não é produzida pelo pénis, nem a ocitocina pela vagina. A divisão decorre de um processo de seleção sexual, ocorrido ao longo de milhares de anos. Ou seja, tendo em conta as condições de vida na nossa pré-história, os grupos de humanos que sobreviveram e se tornaram dominantes foram os detentores desta divisão hormonal: homens dotados de muita testosterona e mulheres de muita ocitocina. Ou seja, os homens com corpos robustos, caçavam e protegiam, saíam para a caça porque não tinham medo do desconhecido, nem tinham um apego tal às crias que os impedisse de sair em busca de comida. Claro que estes homens só tiveram sucesso porque ao seu lado tiveram mulheres carregadas de ocitocina, que com medo do risco nunca abandonavam o lar, ao mesmo tempo que o seu forte apego as conduzia a dar tudo pelas crias, mesmo quando os homens desapareciam por muito tempo. Ou seja, a dupla teve de coexistir, e este padrão foi vencedor na luta interna da nossa espécie.

Joana d'Arc (1412-1431) foi queimada viva, aos 19 anos, por não se adequar aos estereótipos do século em que viveu.

Assim, as mulheres que nasciam com doses maiores de testosterona, que desejavam ir guerrear e não queriam saber de crias, eram votadas ao desprezo pelos homens, por isso reproduziam-se menos. Os homens que nasciam com maiores níveis de ocitocina, que queriam ficar nas grutas a tomar conta dos outros, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como incapazes de oferecer um futuro sustentável às mulheres que os preteriam, reduzindo a sua possibilidade de passar os seus genes. A natureza oferecia diferentes possibilidades de comportamento, mas coube sempre à cultura escolher quais privilegiar.

Os homens que queriam ficar nas grutas a tomar conta das crianças ou dos mais velhos, ou a tornar o espaço mais aprazível, eram vistos como fracos.

Mas o mundo muda, e mudou muito com o surgimento da agricultura, das civilizações, da ciência, e claro da Revolução Industrial. A agricultura fez desaparecer a necessidade de ir à procura de comida, e com isso trouxe as civilizações, juntando pessoas num mesmo espaço, obrigando à criação de regras de funcionamento, transformadas depois em leis, com direito a justiça, tribunais e polícia. O medo do desconhecido reduziu-se, passámos a viver em ambientes mais controlados, com deveres mas também com direitos. Depois a ciência ajudou-nos a compreender melhor o mundo, reduzindo ainda mais o medo, permitindo uma explosão criativa que nos levaria até à motorização do mundo, e mais recentemente a sua digitalização. A partir da motorização, ainda que sendo um processo iniciado já com a agricultura e domesticação de animais, a força muscular deixaria de ser a eleita, cedendo o lugar à força intelectual.

Os papéis que os nossos antepassados se tinham habituado a ver como essenciais para a sua sobrevivência deixariam de fazer sentido. O homem já não tem de ser alguém sem apego pelas crias, para conseguir sair em busca de comida, a agricultura trouxe a comida até ao seu quintal, e ele pode estar muito mais tempo com as crias. O homem já não tem ser mau e forte para afastar os outros que lhe querem roubar a riqueza e as crias, a polícia e a justiça fazem isso por ele. O homem já não tem de ser alguém robusto e ativo, pode trabalhar 8 horas sentado numa cadeira.

Do mesmo modo, a mulher já não tem ser recatada e submissa ao homem, não precisa da sua proteção, a sociedade — na forma de leis, justiça e polícia — assumiu a sua defesa como ser humano individual, independente do seu sexo, ainda que continue a apresentar muitos problemas, nomeadamente na resposta à violência doméstica. A mulher pode ser menos apegada às crias, porque passou a partilhar a responsabilidade de as criar com o homem com quem vive. Com isto não se está a defender, como erradamente defenderam algumas feministas, que as mulheres se tornem libertinas ou negligentes, porque isso seria defender uma troca dos papéis. Ou seja, não podemos defender que os homens abandonem papéis de desapego, e que por outro lado as mulheres adquiram esses papéis. O que está em jogo é as mulheres, em virtude de um apego exacerbado, não deixarem de viver as suas vidas, mas isso não deve conduzir a deixar de pensar na vida dos outros, principalmente das suas crias. Até porque nos dias de hoje, tendo a sociedade desenvolvido todo o tipo de suportes às crias desde bebés até quase à idade adulta — creches, jardins infantis, escolas, lares, ATLs, etc — não é preciso abandonar as crias para se poder ser independente.

Por outro lado, o facto de termos perpetuado a divisão de presença de hormonas nos homens e mulheres para além da sua necessidade pré-histórica, veio criar novos problemas nomeadamente ao nível do ensino, ou seja na nova sociedade assente no valor intelectual. Partindo de alguns factos sobre Portugal, existem mais mulheres (52.6%) que homens (47,4%), e apesar de no passado as mulheres terem sido impedidas de estudar, por isso a população sem qualquer escolaridade ser constituída por 71,2% de mulheres, atualmente as mulheres dominam no Ensino Superior, com 60.9% dos formados a serem mulheres. A razão porque isto acontece não é por as mulheres serem mais inteligentes, mas antes porque os estereótipos, ou melhor, a hormona da ocitocina que origina o recato, submissão e apego, funciona melhor em relações de autoridade, como é caracterizada a relação professor-aluno. As raparigas fazem o que os professores mandam, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a tentar fazer como lhes dá mais prazer, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

As raparigas, dotadas de mais ocitocina, submetem-se ao que os professores exigem, cumprem o que se lhes é pedido, demonstrando ter aprendido aquilo que o professor lhes ensinou. Os rapazes, dotados de mais testosterona, tendem a correr mais riscos, logo a desobedecer e a fazer diferente, indo contra as expectativas do professor, que vê isso como não aprendizagem.

Se aparentemente as mulheres parecem estar a ganhar com os estereótipos hormonais do passado, isso não acontece em todas as frentes, nomeadamente não acontece nas Engenharias e Tecnologias, em que os homens dominam com 80% dos diplomados em Portugal. Mais uma vez a base deste desequilíbrio é hormonal, é a testosterona que contribui para ter rapazes sem medo do risco, sem medo de errar, a serem preferidos pela engenharia e tecnologia que desse tipo de abordagem depende. A engenharia e tecnologias não vivem tão centrados no conhecimento existente, como o Direito ou a Medicina, antes necessitam de estar constantemente a fazer diferente, partindo do que se sabe, mas essencialmente experimentando o desconhecido, em busca do que pode vir a funcionar. As mulheres não se dão tão bem com estes ambientes, não por serem mulheres, mas pelo excesso de ocitocina na sua corrente sanguínea, preferindo ambientes em que as matérias estão mais estabilizadas, em que o risco de erro é mais diminuto.

A testosterona facilita a navegação de mapas e labirintos, não por tornar os sujeitos mais inteligentes, mas por os dotar de menor resistência ao risco, menor medo de falhar, contribuindo para uma atitude de experimentação, avançando por tentativa e erro até conseguir o objetivo.

A luta pela presença de mais mulheres nas Tecnologias não se resolve atacando apenas o problema dentro das estruturas sociais que suportam as Tecnologias, é preciso ir à fonte do problema, aos ideais e estereótipos que regram toda a sociedade de modo quase invisível.

Em face de tudo isto, torna-se mais fácil compreender de onde vieram os estereótipos de género e compreender que servem apenas o perpetuar de ideias erróneas sobre aquilo que o Homem e a Mulher devem ser, inibindo homens e mulheres de serem aquilo que são ou pretendam ser, mas mais grave que isso, impondo direitos e deveres diferentes em função do simples facto de termos nascido homens ou mulheres. Repare-se como nada disto tem qualquer relação com o pénis ou a vagina, nem mesmo com um útero, ovários ou espermatozóides. Aliás, se os homens e mulheres não usassem roupas e adereços, completamente determinados pelos estereótipos sociais, na maior parte do tempo não saberíamos se a pessoa que está na nossa frente é Homem ou Mulher. Recorde-se a lenda da Papisa Joana e do seu suposto efeito, a criação de uma cadeira papal perfurada para avaliar os órgãos genitais antes da eleição.

Não passando de lenda, mas exatamente por se ter tornado numa lenda quase milenar, a Papisa Joana é apenas um dos muitos exemplos que dão conta do mau estar instalado no pensar da sociedade, que continua a perpetuar estereótipos de separação dos géneros.


Outros textos que sustentam a abordagem aqui apresentada:
A Ciência por detrás da Arte,, 2013
"Sapiens", porque Dominamos o planeta, 2017
"Homo Deus", de Yuval Noah Harari, 2017
O Gosto não Existe, 2017
O Cérebro (2015), 2016
Pensar Depressa e Devagar, 2013
Porque evoluímos tanto nos últimos 13,000 anos, 2013
A Ciência não é Crença é Conhecimento, 2017

agosto 28, 2017

Desgraça (1999)

Conhecia o filme homónimo mas não conhecia a escrita de Coetzee, por isso foi uma surpresa total esta leitura, tinha-a evitado durante anos por julgar que nada de novo aqui me aguardava. Sendo a história similar, ganha-se com a leitura porque a escrita é exemplar, e porque naturalmente o cinema não consegue dar a ver o que sente interiormente cada personagem na forma detalhada como Coetzee o faz. Embora tenha de dizer também que ganhei porque se passaram quase 10 anos desde a estreia do filme, tendo o meu mundo mudado e contribuído para enriquecer a minha compreensão da história criada por Coetzee.


Começando pela escrita, esta destaca-se por uma aparente simplicidade que no evoluir da leitura vamos percebendo ser fundamental para a narração neutral procurada pelo autor. Coetzee escreve de modo muito direto o que pensa e faz cada personagem, assumindo uma postura de brevidade, evitando adjetivação, evitando juízos. Ou seja, temos uma forma minimal e seca que funde escrita e narração, para nunca se abster de dizer o que está acontecer, abstendo-se apenas de dizer porque está a acontecer. Deste modo, e apesar de poder criar algum sentimento de perda de orientação no leitor, em essência o que Coetzee busca é que seja o leitor a criar os seus juízos. Assim, em termos estruturais, a obra é imensamente conseguida, unindo forma e conteúdo num discurso imensamente coerente.


Podemos dizer que Coetzee surge aqui nas antípodas de Victor Hugo (ler análise recente realizada a "Os Miseráveis"), o que é reconhecido pelo próprio Coetzee ao citar Hugo quase no final do livro. Apesar de ambos os autores estarem fortemente empenhados na luta social: Hugo usa e abusa do sentimento para manipular os leitores e os convencer da existência de um único caminho verdadeiro e correto; já Coetzee põe a nu as problemáticas por meio de conflitos que se opõem, mas não dá respostas sobre como as resolver, obriga os leitores a procurar as suas próprias respostas. Ou seja, Hugo é mais político, está mais preocupado em conduzir, enquanto Coetzee é filósofo, mais preocupado em fazer refletir. Se Hugo foi bem sucedido ganhando relevância política, Coetzee granjeou enorme resposta crítica e prémios literários.

Mas de que fala afinal “Desgraça”? Tenho de dizer que não é fácil sintetizar tudo o que é dito, aliás esse é um dos paradoxos mais interessantes da arte minimalista, quanto menos diz mais quer dizer. Não esquecendo que este é um livro com parcas 200 páginas, Coetzee ataca várias fantasmas sociais, desde logo o Pós-Apartheid, não fosse esta uma obra do fim do século XX escrita na África do Sul, mas não se fica por aí: fala de forma perfurante sobre os direitos da mulher; põe a nu os problemas da comunicação humana; dos efeitos do envelhecimento e seu existencialismo; dos direitos dos animais; do desejo sexual visto pela natureza versus cultura; e vários outros temas que vão surgindo colados a estes.

Não é imediato o acesso ao tema dos problemas da comunicação humana, mesmo quando Coetzee procura tornar isso implícito ao fazer de Lurie um professor universitário de Comunicação. Mas a verdade é que a essência do Apartheid nasceu da incapacidade de comunicar. Pode parecer ao lado, já que o racismo surge na frente e a comunicação é comumente vista como mero ato de transmissão de informação. Mas se olharmos àquilo que define a comunicação humana, e compreendermos que ela responde pelo ato de colocar em comum, ou seja, de conduzir os sujeitos num ato de comunicação a comungar uma mesma ideia, compreendemos melhor porque surjem os diferentes "apartheids" no mundo.

Nesta obra, Coetzee torna este ponto central, não apenas pelas desgraças que acontecem ao professor diretamente mas mais ainda indiretamente, por via da sua filha, Lucy, e da sua relação com o vizinho, Petrus. No diálogo que se vai construindo entre Lurie e Petrus, vai-se percebendo como ambos vivem em mundos de costumes muito mais distantes do que a simples cor da pele, e como só com enorme esforço e cedência se pode aprender a viver num mesmo mundo. De certa forma, o trauma da filha coloca este mesmo ponto em evidência, mas pelo lado dos direitos das mulheres. Porque se no caso de Petrus o que tolda a comunicação é a cor da pele, no caso de Lucy é o facto de ser mulher.

O mais impactante de tudo acaba sendo o quão difícil é para nós leitores ocidentais aceitar tudo isto. O facto de Coetzee lançar os dados e não criar guias de orientação, deixa-nos perdidos e sem respostas. Porque é que Petrus é assim? E Lucy, como pode ela continuar ali, aceitando? Terão algum problema, estes dois? Mas se em vez de procurarmos o problema neles o procurarmos em nós, como acaba fazendo Lurie, quando conseguimos chegar a comungar, então acabamos a compreender.

Não posso dizer muito mais, correndo o risco de estragar completamente o efeito surpresa da história para quem ainda não leu. Mas é disto que se faz a arte, de obras que nos obrigam a ir além da redoma do que somos feitos, que não se limitam a confirmar o mundo como desejamos e acreditamos ser. Que sendo difíceis e nos colocando em situações desconfortáveis, o fazem com um claro objetivo, o de nos enriquecer enquanto seres humanos.

agosto 20, 2017

Os Miseráveis (1862)

É um romance histórico, mas pelo número de personagens, extensão e eventos quase que o poderíamos qualificar de saga, uma saga social. Socorrendo-se de um período de grande alteração civilizacional, o pós-Revolução Francesa de 1789, Victor Hugo trabalha várias personagens históricas responsáveis pela época, mas escolhe para veículo de introdução aos factos e eventos, as classes mais baixas e desprotegidas do sistema — os ex-prisioneiros, os órfãos, as prostituas, os pobres — os miseráveis. Deste modo, serve-se do seu sucesso e influência na sociedade francesa para ao longo de 1300 páginas, e enquanto conta uma história, dissertar sobre as leis e as morais da época. Nem tudo é perfeito mas o seu sucesso e resistência ao teste do tempo demonstram a força e atualidade da sua mensagem.

Nova tradução de José Cláudio e Júlia Ferreira para a Relógio d'Água, publicada em Maio 2017.

“Os Miseráveis” foi publicado em 1862 quando Victor Hugo tinha 60 anos e era já um escritor reconhecido pelos pares a ponto de ser membro da elitista Academia Francesa desde 1841, respeitado pela sociedade política tendo sido eleito para a Assembleia Nacional em 1848, e respeitado pela sociedade em geral, não só pela sua poesia mas também pelo seu enorme sucesso obtido com “O Corcunda de Notre-Dame”. Exilado em Inglaterra a partir de 1851 com o golpe de Napoleão III, Victor Hugo sabia bem o que continuava a representar para a França, daí que este livro, que foi escrito ao longo de quase 20 anos, tenha sido visto pelo próprio como uma espécie de legado a essa França, ainda que de desejos universalistas. Deste modo, esta obra, apesar dos problemas que irei avançar à frente, para além da história que conta, é um manifesto sobre a vida em sociedade, no qual o autor procura expressar os seus ideais e desejos para construir aquilo que acreditava poder vir a ser um mundo melhor.
"A Igualdade tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Pelo direito ao alfabeto, é por aí que devemos começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos: é essa a lei. Da escola idêntica nasce a sociedade igual. O ensino, sim! Luz! Luz! Tudo vem da luz e tudo para lá volta. Cidadãos, o século XIX é grande, mas o século XX será feliz."
A prosa de Victor Hugo é irrepreensível. Se podemos ceder à tentação de comparar Jean Valjean com Edmond Dantés de Alexandre Dumas, as similaridades ficam-se pelos meros traços gerais da trama, já que toda a arte poética de Victor Hugo é tão elaborada e graciosa, fruto de um virtuosismo que está completamente fora do alcance de Dumas. Diga-se que a nova tradução apresentada agora pela Relógio d’Água faz verdadeiro jus à obra original, o que nos permite, em português, sorver o que de melhor nos deu a pena de Hugo. Se dúvidas houvesse, ser objeto de dedicatória de Balzac, um dos grandes pilares do cânone literário ocidental, e na obra por si considerada maior — “Ilusões Perdidas” (1843) — estando Victor Hugo ainda vivo e com apenas 41 anos, diz quase tudo o que se pode dizer sobre a qualidade da sua escrita, assim como pessoa.

É essa pessoa que temos em “Os Miseráveis”. Podemos dizer, como já foi dito antes pelos irmãos Goncourt que a obra roça o “artificial”. Não raras vezes damos por nós a pensar: mas existiria alguma vez alguém tão puro como o Bispo de Digne; ou como a freira que nunca mentiu; ou com a submissão infinita de Fantine; ou com a honra do dever de Javert; para não falar da gigantesca conversão e humildade inesgotável de Jean Valjean? Como diria Flaubert também, parece faltar “verdade”, são tantas as coincidências que o enredo provoca que é impossível não levantar o sobrolho. Mas dissecando a obra, dedicando-lhe a devida atenção, procurando compreendê-la no seu contexto histórico e do seu autor, podemos aos poucos começar a desvelar camadas não imediatamente visíveis.

A artificialidade aqui em questão é apenas o modo narrativo escolhido por Victor Hugo para lançar os seus dados, é um contar de história popular que para tal recorre a heróis, impossibilidades, e mitos. Victor Hugo disse-o ao editor: “Eu não sei se será lido por todos, mas foi escrito para todos”. Ou seja, Victor Hugo tal como Hollywood faz hoje, procurou o veículo ficcional que lhe pudesse oferecer o maior alcance possível, mas por ser a pessoa que era, não o fez pensando em ganhos financeiros, mas antes como manifesto, com objetivos puramente ativistas. Assim, se à superfície “Os Miseráveis” parece não passar de uma manta de mitos recontados ao longo da nossa história, por debaixo existe mais do que as pequenas lições que esses mitos serviam, existe uma vontade renovadora, reformadora, e progressista. Existe um ideal de sociedade, um olhar político encantado à procura de um mundo melhor, como fica explícito neste parágrafo quase no final da obra:
“O livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é, do princípio ao fim, no seu conjunto e nos seus pormenores, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou as fraquezas, o caminho do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus.”
O grande sucesso da obra de Victor Hugo pode não advir desses seus ideais para o mundo, embora seja por eles que é ainda hoje uma obra de referência obrigatória em qualquer país que siga o cânone ocidental. É um sucesso que se baseia no uso dos mitos eternos, dos arquétipos e do monómito do herói que facilmente se cola aos anseios dos seus leitores. Mas não é só, no trabalho de Victor Hugo existem elementos de pura genialidade narrativa, a um nível que nos habituámos a encontrar apenas em trabalhos da classe de Dostoiévski. Falo da acuidade e agilidade com que desenha os devires dos seus personagens, como os interroga e expõe o seu interior, conduzindo-nos a ver e a sentir como eles, nomeadamente no desenho das condições de escolha em momentos decisivos para os seus destinos, os dilemas. Damos por nós, estacados frente à página de papel, como que frente a uma parede, numa bifurcação em que os dois caminhos se opõem, sendo igualmente relevantes mas autoexcludentes. Apetece fechar o livro e não ler para não saber o que vai ser deixado cair: deve deixar morrer e salvar-se, ou salvar e morrer; deve expor-se e perder toda uma vida de conquistas para salvar um outro, ou deve permanecer na sombra com o peso na consciência... O que Victor Hugo busca aqui é acima de tudo o escrutinar do humano, como nos diz no seguinte parágrafo:
“Há um espetáculo maior do que o mar: é o céu; há um espetáculo maior do que o céu: é o interior da alma.
Escrever o poema da consciência humana, nem que fosse a respeito de um único homem, nem que seja a respeito do mais ínfimo dos homens, seria fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das intenções, a fornalha dos sonhos, o antro das ideias de que nos envergonhamos: é o pandemónio dos sofismas, o campo de batalha das paixões. Em certos momentos, experimentem olhar para a face lívida de um ser humano que está a refletir, olhem mais além, observem-lhe a alma e contemplem-na nessa obscuridade. Sob o silêncio exterior, desenrolam-se aí combates de gigantes como em Homero, batalhas de dragões e hidras e revoadas de fantasmas como em Milton e espirais visionárias como em Dante. Que coisa sombria é este infinito que cada homem arrasta consigo e pelo qual regula com desespero as vontades do cérebro e as ações da vida!” 
Naturalmente muitas destas questões funcionam apenas no calor da história que está a ser contada, porque rapidamente percebemos que o valor da vida não é o mesmo sempre, nem para todos. Os soldados que morrem num campo de batalha, ou os manifestantes que morrem numa barricada, parecem não passar de peões. É contudo interessante verificar como esta questão tem também sido discutida noutros meios narrativos, sendo bastante comum no cinema de Hollywoood, ou nos videojogos, sendo reconhecido pela sua definição psicológica, “dissonância cognitiva”. Isto deve-se em parte ao uso dos mitos, o modo como estes são facilmente aceites como supra-realidade, analogias de um mundo mágico, no qual as condições de verdade são por vezes suspensas, para assim se poder intensificar a emoção e enfatizar o sentimento pretendido. Não é por acaso que Victor Hugo cita inúmeras vezes Homero, Dante ou Milton ao longo do texto.

Dito tudo isto, justificadas as razões porque considero “Os Miseráveis” uma obra de referência e que continuará a eternizar-se, quero contudo apontar o ponto que considero, não como negativo, mas como menos conseguido artisticamente em toda a obra, e que é talvez aquele que fez Baudelaire, em privado, considerar o texto “incompetente”. Falo das digressões e ensaios que perfazem nada menos que o 1/3 do livro, 450 páginas em 1300. Claro que como disse um dos biógrafos de Victor Hugo, "as digressões dos génios são facilmente perdoadas", mas não quero por isso deixar de explicitar e discorrer sobre este ponto, tendo em conta a permanência da sua relevância para as artes narrativas.

Quero começar por separar as digressões dos ensaios, dizendo que não foram as digressões em si, comuns em tantas e tantas obras de grandes autores que me chocaram. Embora sobre estas ainda, deva dizer que pecam por verborreia e cargas metafóricas baseadas na mera interpretação pessoal da realidade, muitas vezes desprovidas de suporte em factos, estudos ou trabalhos, apresentando-se assertivamente, e por vezes mesmo algo arrogantes, como se do pedestal do seu observatório Victor Hugo se arvorasse em dono da verdade. Contudo como digo, o maior problema, em termos da obra como um todo, surge na forma de autênticos ensaios, ou seja, blocos integrais de texto com pouca ou nenhuma relevância para a narrativa.

Na introdução de muitos destes blocos o narrador, que se confunde com o autor, dá-se ao luxo de dizer na cara do leitor: espere aí que agora tenho de lhe contar aqui uma outra coisa, que para mim é também muito interessante. São dezenas de vezes em que literalmente diz isto aos leitores, chegando a criar um Livro (rótulo atribuído aos conjuntos de capítulos dentro da obra) inteiro que intitula de “Parêntesis”, para dissertar sobre mosteiros, abadias e deveres religiosos, quando ainda no Livro imediatamente anterior tinha já digressionado fartamente sobre a construção de um convento e as suas religiosidades. Noutros, como “Waterloo”, discute batalhas e estratégias de guerra; para pouco depois criar outro livro “Páginas de História” e discutir a revolução de 1830 em Paris; e mais à frente ainda dedicar todo um outro livro ao dia “5 de Junho 1832” em Paris. Pelo meio temos livros como “Paris no seu átomo” em que se apresenta um estudo das crianças abandonadas nessa cidade; outro como “Calão” em que se observa o modo como nasce o calão nas ruas de Paris; ou ainda “Patron Minette” em que se discute a formação de uma quadrilha em Paris; ou por último um inteiramente dedicado à razão e funcionamento das redes de esgotos de Paris.

O que é que estes textos fazem no meio de um livro que tem como personagem principal Jean Valjean? Ou secundárias como Fantine, Cosette, Marius, Javert, ou o Bispo de Digne? Nada, porque nenhuma destas personagens é mencionada em nenhum destes capítulos. Eles foram escritos por Victor Hugo como textos autónomos, independentes da trama, alheios ao discorrer da narração, assim como aos destinos dos personagens. São textos que demonstram o conhecimento e trabalho profuso de Victor Hugo, mas são textos que demonstram incompetência pela falta de artifício narrativo no fusionar de factos e do contar de história. É verdade que isto está longe de ser algo fácil, veja-se como o cinema tem dificuldade em o fazer, acabando por optar por diferenciar-se claramente entre filmes de ficção e filmes de documentário, ou como os videojogos educativos falham cabalmente. O chamado edutainment (entretenimento educativo) é difícil de criar, mesmo num campo mais abstrato como a literatura, por isso temos tal como no cinema a ficção e a não-ficção, mas existem excepções.

Enquanto Victor Hugo se debatia sobre a metodologia a adotar na criação do seu livro de ficção carregado de factos, Leo Tolstoi avançava e mostrava como fazê-lo. Se colocados lado a lado, “Os Miseráveis” (1862) e “Guerra e Paz” (1869), Victor Hugo falha "miseravelmente". O Pierre Bezukhov de Tolstoi viveu a batalha da Invasão Francesa da Rússia, sentiu o palpitar de uma Moscovo sitiada, e com ele levou-nos a experienciar todos esses eventos históricos por dentro. Já Jean Valjean nunca chega a saber quem foi Napoleão, nem porque raio as pessoas se envolvem em revoluções. Deste modo, apesar de ambas apresentarem fortes tramas e factos reais, os modos como o fazem são não só diferentes, como providenciam aprendizagens históricas efetivas bastante distintas. Aliás, basta olhar para a história das publicações de cada uma destas obras.

Existem muito poucas obras resumidas de “Guerra e Paz”, já de “Os Miseráveis” abundam, o nosso Plano Nacional de Leitura chega a recomendar uma dessas versões, o que nos diz que as partes históricas, os tais ensaios, normalmente extirpados destas versões, precisam de acompanhamento para chegar à maioria dos leitores. Ou seja, é uma obra que claramente aconselha o estudo em escolas, para que os professores possam ir contextualizando e trabalhando os dados históricos do livro com os alunos, não os deixando à mercê de factos complexos e em torrente.

Por outro lado, terá sido também a facilidade com o que se podem recortar esses blocos do livro, sem impacto na trama, que terá conduzido ao seu sucesso popular. Existem mesmo listas de aconselhamento sobre os capítulos que se podem evitar. É muito provável que o facto de “Guerra e Paz” ser pouco lido se deva menos à sua extensão e mais às suas digressões e relato de eventos históricos que acabam por não ser tão facilmente tolerados pelo leitor comum, mais habituado a focar-se no enredo. E talvez também por essa facilidade de extrair as partes mais ensaísticas, as adaptações de “Os Miseráveis” tenham tido tanto sucesso, com mais de meia centena realizada pelo meio audiovisual, sendo que um dos musicais adaptados permanece em cena há mais de 30 anos.

Para fechar, e socorrendo-me do musical, talvez o fruto mais expressivo do sucesso desta obra, quero referir um facto apontado pelo produtor Cameron Mackintosh, que disse numa entrevista que parte do revigorar do sucesso da adaptação “Les Mis” ao chegar ao marco dos 25 anos, se deveu ao fenómeno surgido num programa da televisão inglesa, Susan Boyle. Surgindo como revelação no concurso "Britain Got Talent", a cantar o tema do musical “I Dreamed a Dream”, encarnava pela história da sua vida, o fundamento de tudo aquilo que Victor Hugo nos quis deixar como legado. No final de "Os Miseráveis" Jean Valjean pode não ser um grande conhecedor da História que o rodeou ao longo de todas aquelas páginas, mas o leitor não poderá dizer que não percebeu o porquê de Jean Valjean ter vivido como viveu.

Susan Boyle no concurso Britain Got Talent canta "I Dreamed a Dream"

agosto 14, 2017

Pensar em ditadura com Herta Muller

O Nobel atrai, naturalmente, mas o que me interessava no livro de Herta Muller, “A Terra das Ameixas Verdes” (1994), era o seu contexto, a vida sob o regime comunista da Roménia pré-Revolução. Em 1989 assisti àquilo que foi a primeira Revolução emitida em direto pelo meio de televisão, em desacordo com o título do poema de Gil Scott-Heron, “The Revolution Will Not Be Televised” (1970), ainda que não com o conteúdo da sua mensagem.
A Revolução foi televisionada.

Era adolescente, nascido um par de meses após a Revolução portuguesa (1974), tendo passado toda a minha vida a ouvir falar da Revolução que tinha permitido aos meus pais voltarem ao seu país, e libertado todo um povo. Na minha cabeça tudo se construía numa mancha de abstrações, a vida vivida na Europa e em Portugal desde então era calma, a cultura pop dos anos 1980 tomava conta dos nossos imaginários e a Revolução parecia um passado distante, em certa medida e dada a ingenuidade da infância, chegava a parecer insignificante.

Quando em 1989 estava a passar as férias escolares de Natal no Luxemburgo, por ocasião de um regresso temporário dos meus pais ao país para onde tinham fugido da nossa ditadura nos anos 1960, fui surpreendido pelos eventos que eclodiam em Timisoara. No mês anterior, o Muro de Berlim tinha caído, e com ele o comunismo europeu tinha chegado ao fim, mas o líder romeno, Ceausescu então com 71 anos, não conseguindo lidar com a ideia de fim, recusou a demissão, mantendo-se no pedestal ilusório que tinha criado ao longo de 24 anos de ditadura.
A bandeira romena com o rasgo circular em que estava o brasão comunista.

Foram duas semanas em que de quase mais nada se falou, ou viveu, os romenos éramos nós, passados 15 anos. A televisão, à custa do regime, usava todas as estratégias narrativas para nos manter colados ao ecrã — mistério, suspense, vilões, heróis, maldade, ganância e muitos inocentes — até a labirintos subterrâneos e passagens secretas tivemos direito. É impossível esquecer as bandeiras romenas tricolores com rasgos circulares ao centro, marcando a purga do brasão comunista da bandeira nacional. Mas para quem era ainda apenas um adolescente, o mais marcante estaria ainda para vir, chegando no próprio dia de Natal com as imagens do julgamento do casal Ceausescu, tendo as imagens do seu fuzilamento sido apenas reveladas mais tarde. Era o fim, mas ao contrário, porque era o nascimento de um novo país. Por muito que tivesse sido ensinado a olhar a morte como algo profundamente contra-natura, não pude deixar de a ver como a catarse última daquela Revolução, por representar a permissão para todo um país poder finalmente acreditar que podia falar livremente.
Imagem do último discurso de Ceausescu, em direto na televisão nacional romena, marcada pela expressão de incompreensão originada pela multidão que ousa, pela primeira vez em 24 anos, desobedecer e assobiar o seu líder. O seu discurso não duraria mais de 2 minutos, e o impacto das imagens transmitidas em direto para todo o país colocariam em marcha a Revolução.

A Roménia, tal como Portugal, tinha uma polícia secreta, a nossa era a PIDE, a deles era a Securitate. Salazar era nacionalista, de inspiração fascista, Ceaucescu era comunista, na aparência separados por polos políticos opostos mas em essência juntos, ambos ditadores. As suas polícias serviam a manutenção das suas ditaduras, através da constante vigilância que se socorria de legiões de bufos, impondo-se pelo desrespeito de quaisquer direitos que fossem contrários aos supostos interesses dos estados. A tortura era a punição mais comum, mas servia essencialmente a produção de medo, sustentando os regimes no terror.

E é exatamente sobre este último ponto que Herta Mueller nos fala em “A Terra das Ameixas Verdes”, principalmente a opressão e repressão operadas pelo regime de Ceausescu. Mas fá-lo de um modo completamente particular, não seguindo princípios romanescos melodramáticos, esquivando-se às formulas de lágrima fácil. O trabalho de Mueller assenta numa espécie de escalpelização dos efeitos psicológicos do regime, mas acima de tudo numa tentativa formalista de dar a experienciar esses efeitos a quem lê.


Para o efeito, Mueller produziu um texto completamente único, em que as pequenas histórias vão sendo apresentadas como que aos soluços, com pausas, intermitências, recuos e avanços no tempo, cortes abruptos da linearidade discursiva, tudo polvilhado por uma camada de elementos simbólicos muitas vezes indecifráveis. O resultado é um texto difícil, mas acima de tudo uma incapacidade de descortinar sentidos completos do que se vai lendo, que acabam por se assemelhar ao que vai sentindo cada um dos personagens que habitam sob aquele regime. Um desespero por querer compreender, dar sentido, explicar, atribuir uma lógica, ‘porque fazem o que fazem?’. Este sentimento é ainda mais enfatizado pela exploração da escrita de cartas entre os personagens, que por terem de passar os crivos da polícia, não podiam nunca ser explícitas, e que de algum modo a obra pela sua estética nos vai fazendo sentir para compreender a psicologia de quem as escrevia.

No fim deste livro podemos sentir de perto os efeitos de um estado policial, a autora conseguiu criar através da arte escrita um pequeno acesso ao horror de quem vive soterrado mentalmente por uma Thinkpol, a polícia do pensamento de Orwell (1947). Choca e dói porque o que aqui se relata não é ficção, não surge da imaginação de quem escreveu, mas da experiência de quem viveu. Pensar que todo um povo pode a tal ser submetido, pensar que 22 milhões de romenos, 9 milhões de portugueses, mas também muitos milhares de milhões ao longo da história das várias civilizações tiveram de por aqui passar, dói. Como diz Muller, já perto do final, “transfinito é uma janela que não desaparece quando alguém caiu dela”.

agosto 12, 2017

All That Fall (1956)

Cheguei até “All That Fall” através de Elena Ferrante, que se socorre desta peça no segundo volume da saga “A Amiga Genial” para lançar uma discussão existencial entre Lenu, Lila e Nino. Ferrante fixa a conversa em redor de um dos múltiplos pontos discutidos na peça, e apesar de ser algo fugaz é provavelmente uma das partes mais relevantes da peça, já que se liga diretamente ao modo como Beckett desejava que a peça fosse experienciada.


“All That Fall” foi criada como audio drama, uma peça dramática para rádio. Vários foram os criadores que procuraram Beckett para realizar adaptações para palco, entre os quais Ingmar Bergman e Laurence Olivier, mas sempre, ou quase sempre, recusadas por Beckett. Dizia ele:
“Even the reduced visual dimension it will receive from the simplest and most static of readings (..) will be destructive of whatever quality it may have and which depends on the whole thing's coming out of the dark." (fonte)
Ou seja, “All That Fall” baseia a criação e comunicação da experiência na forma do medium. Um dos personagens é cego, daí que toda a peça seja construída para o sentido da audição por meio dos diálogos, música e efeitos sonoros. Cabe ao recetor recriar mentalmente os cenários, espaços e cores. E aqui chego ao destaque realizado por Ferrante, e que me parece ser aquele que verdadeiramente justifica a obstinação de Beckett quanto à não adaptação para palco.
“Mr. Rooney: (..) No, I cannot be said to be well. But I am no worse. Indeed, I am better than I was. The loss of my sight was a great fillip. If I could go deaf and dumb I think I might pant on to be a hundred”, excerto de “All that Fall” de Beckett
“Dan Rooney, she said, is blind but he’s not bitter about it, because he believes that life is better without sight, and in fact he wonders whether, if one became deaf and mute, life would not be still more life, life without anything but life.” excerto de “The Story of a New Name” de Elena Ferrante
O velho e eterno dilema dos sentidos, tão discutido por Sócrates e Platão, sobre o modo como estes deturpam a realidade que nos chega, impossibilitando-nos de aceder à pura verdade. A realidade não é possível através do modo sensível, dizia Platão, tendo por isso defendido a erradicação das artes da República. A elaboração de Ferrante é distinta, já que procura um enaltecer da desistência existencialista da realidade perceptiva, ou seja, uma fuga às dores e obstáculos que a vida nos vai colocando na frente. Já Beckett pelo contrário está mais preocupado em encontrar distintas possibilidades de aceder ao belo, servindo este diálogo num extremar dessa busca.

A peça tem sido bastante trabalhada em ambiente escolar dada a sua imensa expressividade, nomeadamente simbólica. Deixo aqui uma ligação que vale a pena explorar para quem pretenda trabalhar a peça nesses ambientes. A peça pode ser ouvida no YouTube, embora o som não esteja com a melhor qualidade, e por isso pode ser também lida em português online.

agosto 09, 2017

Uma Abelha Na Chuva (1953)

Vi o filme na adolescência, a adaptação de 1971 de Fernando Lopes, e não gostei. Ficou-me marcado o estilo nada natural, o ritmo lento e entrecortado, combinado com um título que sempre me pareceu ingénuo, pelo simbólico e fragilidade do inseto, incapaz de gerar interesse. Por isso tive sempre relutância em pegar no texto original de Carlos de Oliveira. Admito que foi um erro, o texto é superior, ou talvez o facto de hoje ter mais do dobro da idade me faça sentir tudo tão diferentemente.


Carlos de Oliveira nasceu no Brasil, mas foi na região portuguesa da Gândara que cresceu e de onde retirou a geografia que serve de cenário a “Uma Abelha Na Chuva”. Esta região situada no litoral — entre o Mondego e a Ria de Aveiro — conheço-a muito bem por também aí ter vivido uma parte da minha infância, mas por isso mesmo posso dizer que não apresenta particularidade — na generalidade plana e arenosa, dotada de pequenas lagoas e muitos pinhais. Aqui nada parece acontecer nunca, mas de certo modo é dessa espécie de marasmo brumoso que Oliveira se socorre para encorpar o universo da sua história, e daí que refletindo, hoje, sobre a adaptação de Fernando Lopes me pareça afinal muito condigna, assumindo eu a minha incapacidade para enquanto jovem a poder compreender.

Os pinhais da Gândara

A história dá conta de um conjunto de personagens que ocupam diferentes estratos sociais do Portugal dos anos 1950, das suas relações, ambições e decadências. Mas os personagens, tal como a geografia, parecem não ter muito para dizer, para se importar, ou agir, como se se deixassem levar pelas forças que os trespassam, sejam as leis, regras sociais, ou condições geográficas e climatéricas. Inevitável  a colagem a “Satantango” (1994) de Bela Tarr, o seu mundo mecânico sem força interior, mágico nebuloso, de certo modo castrado pelas condições políticas de uma Hungria comunista, o que não deixa de apresentar semelhanças com um Portugal sob o jugo ditatorial.

"Satantango" (1994) de Bela Tarr 

A crítica e análise do texto, tão prolífica no mundo académico a ponto de tornar o texto obrigatório na escola nacional, centra-se muito sobre a componente ativista do neo-realismo português, dando grande destaque para o simbólico que percorre o texto, desde logo o título e as classes sociais, no modo como destaca a falta de organicidade da sociedade de então. Se me interessou, o que verdadeiramente me espantou, o que me agarrou, e deixou fixado em Carlos de Oliveira foi a estilística. Oliveira era um mestre da palavra, leiam-se os seguintes excertos:
“Arrastava-se a viagem. A morrinha parara mas havia mais frio. Traçou o xaile de lã sobre a garganta, sempre aquilo, colhia-a um golpe de humidade e a voz, rouca de natureza, tornava-se inaudível. Só o calor lhe permitiria falar outra vez desafogadamente. Passou de memória a sala do Montouro, com pinhas acesas e desfeitas no tijolo do lar, as conversas vagarosas, o grande candeeiro de petróleo com as senhoras debruçadas sobre as malhas, e ela que em geral se azedava no pasmo daquelas noites desejava-o agora de todo o coração, quem me dera estendida na cadeira de verga, ao brando crepitar do lume.”
“Sentou-se num desses marcos de pedra tosca que dividem as propriedades; tentava serenar, sair da sua confusão; e olhando aqueles sítios conhecidos agasalhou-se na memória das manhãs infantis passadas por ali: as galinhas mansas e ensonadas a desenterrar as minhocas da humidade do pátio; a voz pastosa de João Dias, o velho caseiro, a gritar ao gado; o cavalo novo, comprado em S. Caetano, empinava-se a meio do terreiro e relinchava atirando pelas narinas o fumo da respiração selvagem; as aves madrugavam nas ramagens da nogueira imensa; ele, empoleirado na alpendrada de madeira e zinco, dava conta do catarro do velho Silvestre, dos seus primeiros passos no quarto, estendia a vista pelos currais, pelas culturas encharcadas de orvalho; o sino espargia sobre a gândara o som antigo do amanhecer e nas casas nascia o lume que a dejua;”
“Levou o resto da manhã às voltas com a ideia e tanto lhe mexeu que a deixou a sangrar: o sangue farto das feridas recentes. Espantava o sono com goladas duma garrafa de aguardente que escondia no cofre. Pouco a pouco, ressuscitava nele o homem implacável que a intensa amargura dalguns dias arrancava ao desespero a que descia, como se o vento desse na poeira da sua consciência desmoronada e as pedras limpas se reerguessem umas sobre as outras. Nesses acessos tornava-se rígido, cruel.”
Muito expressivo e ao mesmo tempo, impressivo. O texto que parece simples, carrega consigo uma quantidade de imagens a que só acedemos na plenitude após várias releituras. Como se as palavras dessem conta de uma realidade imediatamente perceptível mas formassem camadas de sentido que se vão construindo na soma de palavras em frases e por sua vez na soma de sentidos. Para isto contribui o ritmo e o encadeamento das frases que contribuem para uma prosa particularmente poética.

Ingrid Bergman em "Stromboli" (1950) de Roberto Rossellini

Se no final da leitura me dava conta da imensa beleza do texto por contraste à pequenez da história contada, à medida que o tempo pós-leitura foi passando fui sentindo cada vez mais o mundo de Oliveira, e percebendo melhor o que ele pretendia. Oliveira não queria contar uma história, queria criar uma experiência, a sua Gândara é o “Stromboli” (1950) de Rosselini, e se ambas estas figuras foram rotuladas de neo-realistas, eu não consigo deixar de as sentir como impressionistas.

agosto 07, 2017

A rejeição da diferença, com Amos Oz

Ler um livro, “Uma História de Amor e Trevas” (2004), em que o evento principal relata a criação do estado de Israel em 1948, estando de férias na região de Andaluzia, Espanha, pode parecer não ter qualquer relação, no entanto os dois elementos acabaram por servir a intensificação em mim da compreensão do sentimento humano de "rejeição da diferença".


A designação da região espanhola provém do termo árabe Al-Andalus atribuído em 711 aquando da entrada dos muçulmanos na península. A região conheceu uma prosperidade até aí inexistente, já que anteriormente tinha conhecido apenas povos pouco organizados. Os muçulmanos souberam viver aqui e construir um império em conjunto com todas as outras religiões, nomeadamente os judeus que tinham vindo para a Península Ibérica, a partir do ano 70 d.c. Em 1492 os Reis Católicos terminariam o domínio muçulmano e dariam início à conversão forçada de muçulmanos, assim como dos judeus. Esta conversão consistia num verdadeiramente policiamento de costumes e práticas diárias, e a sua não obediência implicava multas, prisão ou tortura. Em Portugal aconteceria o mesmo.

Concluindo pela impossibilidade da conversão iniciou-se a expulsão, muitos muçulmanos foram enviados para o norte de África, tendo uma parte dos judeus partido para o norte da Europa. A cultura criada pelos muçulmanos em conjunto com todos os povos aí residentes, durante 8 séculos, foi de tal modo expressiva que ainda hoje, passados 5 séculos sobre a sua expulsão, não apenas está presente, como é o principal motor da sua maior indústria: o turismo.

Dito isto, não só podemos estabelecer uma ligação entre Israel e a Andaluzia, como temos de o fazer. Ler sobre o surgimento deste estado em pleno século XX obriga-nos a uma reflexão sobre os últimos 2000 anos da história da Europa. Foi um imperador de Roma, Adriano, que no ano 63 d.c. destruiu a Judeia e renomeou o território como Palestina. Daí que ter em 1948 a instituição que congrega representantes de todo o planeta, a ONU, a votar democraticamente e positivamente o reconhecimento do Estado de Israel é algo quase tão importante, historicamente, como o primeiro passo do homem na Lua.


Em “Uma História de Amor e Trevas” Amos Oz fala da sua herança genética, apresentando quatro gerações que geograficamente atravessam os territórios da Rússia a Israel. Enquanto lia sobre os seus antepassados residentes no norte europeu, nunca consegui deixar de pensar que muitos desses carregariam consigo herança portuguesa. Aliás, fiquei a saber que um dos principais códigos judeus, “Shulchan Aruch”, foi criado por José Caro, um judeu português expulso em 1497. Mas fiquei saber muito mais, que por exemplo a subida ao poder de Hitler em 1933 foi bem recebida pela comunidade judaica espalhada por essa Europa do norte, pela simples razão de que era já muito mal tratada por todos, não podendo sequer aceder às universidades de muitos desses países em plena década de 1920. Hitler vinha impor a ordem, acabar com os abusos.

Depois percebi também algo que sempre me tinha feito alguma confusão em todo o historiar da destruição dos judeus pelas forças nazis: porque os judeus nunca retaliaram! A razão, deduzida pelo que fui lendo e agora para mim claramente plasmada nas palavras de Oz, teve que ver com uma educação de sobrevivência desenvolvida pelo próprio povo judeu ao longo de séculos de maus-tratos e que assentou na humildade. Os judeus primaram sempre por uma educação forte baseada no crescimento pelo conhecimento, mas sem permissão de exibição ou vaidade, mantendo perfis pouco visíveis, para não levantar ondas. Se por um lado Nietzsche teve razão ao dizer que aqueles que se fazem de humildes tendem a continuar a ser pisados, aliás muito provavelmente aqui vieram beber os ideólogos de Hitler, a verdade é que os Judeus nunca foram esmagados. Os judeus, por via da sua humildade quase foram erradicados por Hitler, mas olhando ao outro lado do prisma, não deixaram de ocupar lugares da maior relevância científica, artística e cultural por todos os países por onde passaram. Se dúvidas houvesse, deixo apenas alguns nomes: Einstein, Freud, Marx, Proust, Pessoa, Kafka, Spinoza, Spielberg, Stan Lee, e já agora Jesus de Nazaré.

O que verificamos, século após século, milénio após milénio, é que o facto de sermos animais gregários não é condição suficiente para vivermos em comunidade. Que esta condição de pertença a um grupo cria por inerência o seu contrário, a não pertença a outro grupo. Se sou dos vermelhos não sou dos verdes. Conclusão, ao mínimo sinal de crise ou conflito, aproximo-me dos vermelhos e distancio-me dos verdes, e o sentimento de gregariedade, sendo profundamente reptiliano, faz emergir em mim o melhor, proteger os meus a qualquer custo, e o pior, tudo para os meus e nada para os outros. Daqui emerge o racismo, a xenofobia, e todas as imensas formas de discriminação.

Nada disto que digo é novo, porque está conosco desde sempre, vem inscrito em nós. Por isso criámos sistemas de justiça, para evitar a justiça conduzida pelo sentimento. Por isso nos anos mais recentes separámos a justiça da política e a política da religião, para impedir o controlo de uns pelos outros baseados em desvios da racionalidade por via do sentimento, e assim obrigar à igualdade de tratamento. É verdade que se perdem dimensões humanas, mas o que se perde é bem menor do que aquilo que se ganha, e basta ver aquilo que acontece nos territórios em que estas separações ainda não aconteceram.

Ainda que por outras palavras, “Uma História de Amor e Trevas” fala de tudo isto e coloca no centro um paradoxo, aparentemente irresolúvel. Amos Oz escreveu um romance autobiográfico no qual procura: dar conta do nascimento de Israel ao fim de 2000 anos; enquanto dá conta da desistência da sua mãe da vida. Mas nada, em termos simbólicos pode ser irresolúvel, a tudo podemos significar, e cada um de nós lerá aqui o que melhor entender. Para mim, Oz procura dar conta da essência do que somos, e que não somos feitos nem de diferenças nem de estados, mas somos antes sujeitos que buscam encontrar-se, e isso só acontece a partir de dentro de cada um de nós, a partir dessa vontade de nos conhecermos a nós mesmos. E assim posso responder a uma outra questão com que me tenho interrogado desde há muito: como conseguiram os judeus sobreviver a mais de 5 mil anos de perseguições, sem nunca perderem o norte dos seus ideais e valores.


Para fechar, e sobre a prosa de Amos Oz, tenho de dizer que a escrita é boa mas não entrou para o meu rol de preferidas. Que a estrutura definida para relatar os eventos não sendo má, não é suficientemente engajadora, principalmente durante a primeira metade do livro. O livro só se torna compulsivo no último terço, quando já temos o grande cenário todo elaborado na nossa cabeça. Por comparação, o relatar de Mann das gerações de Buddenbrook, também bastante autobiográficas, é muito mais conseguida, também por ser suportada por uma escrita sumptuosa, apesar das gerações de famílias de Mann não terem um ínfimo da relevância histórica das gerações de famílias de Oz.