abril 07, 2017

Walden, uma história muito mal contada

Há anos que leio referências a “Walden” (1854) que leio reverências a Thoreau, e agora que aqui chego e leio a obra em si, surpreendo-me sobremodo com o que encontro. Não vinha à espera de nada em particular, apenas talvez o reconhecimento da natureza, o reconhecimento de uma vida enriquecida pela simplicidade dessa natureza, contudo encontrei tudo menos isso.


Antes que possam dizer que passei ao lado da essência, li sobre a obra, sobre o autor, sobre a sua proximidade com Ralph Waldo Emerson e em particular sobre a corrente filosófica que ambos procuram defender e fazer avançar, o transcendentalismo. Tanto que quase poderia desculpar a má impressão criada pela obra com base nessa corrente. Mas sendo o transcendentalismo proposto por estes, é sobre estes que nos devemos pronunciar.

Diga-se que a minha visão crítica desta obra não é uma raridade, o livro tem sido imensamente criticado desde que foi publicado. E ainda em 2015 a New Yorker publicou um extenso texto a tentar explicar o que há de errado com o livro, acertando, na minha opinião, em muitos dos problemas do texto, nomeadamente dos valores defendidos no mesmo.

Começando pelo único ponto positivo, a premissa. “Walden” tem uma premissa atrativa, alguém que se cansou de viver a vida desenfreada em sociedade e decide retirar-se para o meio da floresta, viver isolado e sozinho, apenas com a natureza, dependendo desta para sobreviver, evitando qualquer contato ou dependência de outros humanos. A atratividade desta ideia assenta na tentativa de se chegar à essência do que somos, do que nos define, de nos encontrarmos sem depender tanto dos espelhos que são os nossos pares. Assim como da separação da materialidade, da recusa da dependência dessa, vivendo o mais natural possível, objetivando voltar ao estado mais natural possível.

Contendo algo de positivo, visto pelos olhos de Thoreau tudo isto se transforma no seu oposto. Ou seja, Thoreau assume esta visão de modo extremista, radicalizando completamente a sua posição e a do mundo que o rodeia. O discurso segue atacando todos os que o rodeiam, separando-se deles, assumindo-se como o único ser que importa à face da terra. Autocentrado, inicia uma aventura tresloucada para quem nada já faz sentido desde o próprio ato de comer e beber à educação ou trabalho. O idealismo segue atrás da frugalidade e austeridade total, em nome de não se sabe o quê. Tudo isto está em parte na base do tal transcendentalismo, o ir além daquilo que somos pela supressão das necessidades, nomeadamente das do corpo, visto como mero envelope de uma alma que se quer pura. Não fosse todo o discurso de Thoreau pontuado por toda uma arrogância, pedantismo e orgulho e talvez se pudesse aceitar.

O primeiro capítulo, o maior do livro e dedicado à economia, ou modo como sobreviver em termos financeiros, é de uma sobranceira impressionante. Thoreau, filho de industriais, educado em Harvard, apresenta-se como especialista em matéria de sobrevivência, desdenhando do conhecimento e das imensas dificuldades que sofrem quem habita e vive apenas daquilo que a terra oferece, acabando por sobreviver ele próprio muito à custa das ajudas de todas essas pessoas. Um discurso típico de quem alimenta ideias, sem nunca ter de verdadeiramente que se suportar nelas. Isto é algo a que ainda hoje podemos assistir, a idealização do regresso à terra e à agricultura, como se essas vidas pudessem ser vividas apenas aos sábados com sol, esquecendo toda a dureza das condições de quem faz disso vida.

Este transcendentalismo tem algumas relações com o hinduísmo, contudo torna-se inaceitável quando filtrado por uma enorme falta de humildade. A visão critica dos outros torna inaceitável tudo o que tenha para nos dizer. Tudo se torna ainda mais ridículo quando nada do que se vai dizendo assenta em qualquer trabalho de análise metódico, já para não referir científico já que nem sequer religioso, mas apenas e só individual e subjetivo. Se muitos optam por ver nesta abordagem de Thoreau, o rechaçar de tudo e todos, um ideal de desobediência, eu vejo antes um ideal de arrogância. Eu vejo a antítese da célebre frase de John Donne “Nenhum homem é uma ilha”.

Por fim, apesar de escrito de modo bastante eloquente, o discurso está carregado de metáforas simbólicas que conduzem o texto muitas vezes a fugir da prosa para um registo mais poético. Esta forma não advém das competências estilísticas do autor, mas antes das raízes das formas românticas que permearam muito do que definiria o transcendentalismo. Contudo não é em si um texto de grande beleza, menos ainda quando dotado de um conteúdo assente no idealismo e egoísmo de Thoreau.

abril 04, 2017

"Sapiens", porque dominamos o planeta?

Sapiens: A Brief History of Humankind” conta a história da nossa espécie, focando-se sobre o modo como passámos de presas a predadores e nos tornámos na espécie dominante. Yuval Noah Harari parte da sua disciplina base, a História, à qual acopla as restantes ciências sociais — Comunicação, Sociologia, Psicologia, Economia e Geografia — tudo estruturado por uma lógica Evolucionista. O resultado é uma obra de divulgação de ciência dotada de enorme retórica e alcance conceptual, capaz de colocar Harari ao nível de Carl Sagan, David Deutsch, Jared Diamond, Stephen Hawking ou Richard Dawkins.


Bastam as primeiras páginas para percebermos que estamos perante um texto distinto, no qual Harari define desde logo três momentos chave no seu enquadramento sobre o modo como a espécie humana transformou por completo a sua presença no planeta: a Revolução Cognitiva (70,000 anos a.c.); a Revolução Agrícola (10,000 anos a.c.); e a Revolução Científica (1500 d.c.). Harari foca todo o historiar a partir da primeira revolução, contando a nossa história ao longo destes 70 mil anos, numas breves 400 páginas.

Assim, até à Revolução Cognitiva, seríamos uma espécie como as outras, indefesa e presa fácil. A partir deste momento, passámos a contar com a Linguagem e com a Comunicação que iriam suportar a cooperação em larga-escala, permitindo-nos começar a trabalhar em grupos, comunidades, tribos e depois nações, ou seja, permitiu-nos organizar-nos e sair de África para conquistar todo o planeta. A partir deste ponto, o nervo central da nossa história deixa de ser a Biologia e passa a ser a Cultura por nós produzida. Nestes 70 mil anos, biologicamente falando pouco mudámos enquanto Sapiens, já culturalmente nada mais fizemos do que mudar.

A Revolução Agrícola apresentada por Harari não traz muito de novo, tendo em conta que Jared Diamond praticamente esgotou o tema nas suas obras, ainda assim existe espaço para a primeira grande provocação deste livro: terá sido um erro? Tendo em conta os níveis de felicidade humana, Harari questiona se não nos teremos tornado mais infelizes, ao deixar-nos sedentarizar e escravizar pelo trabalho duro e pesado da agricultura, tudo em nome de mais conforto. A questão tem provocado imensa discussão, não vou tomar partido, assumo antes um conceito criado por K. Kelly há uns anos, o da “inevitabilidade tecnológica”, e que Harari quase aflora, e que nos diz que somos de certo modo impulsionados pela tecnologia, enquanto parte da cultura, a inventar e a inovar. Deste modo não adianta muito questionar se terá sido um erro, já que dificilmente se pode ver como uma escolha da espécie.

Ambas as revoluções foram fruto de uma tecnologia base da comunicação, o ato de contar histórias que sustenta os mitos e as religiões. Foi através deste que pudemos criar imaginários coletivos, capazes de produzir crença e assim solidificar a colaboração na base da confiança uns nos outros. Contudo a uma determinada altura, os mitos e as religiões estagnariam o progresso, nomeadamente pelo seu distanciamento cada vez maior da realidade. Basta olhar para os séculos da idade medieval e o seu resultado em Inquisições religiosas. E é aí que Harari coloca a última revolução, a científica, que transformaria por completo o imaginário e impulsionaria avanços na capacitação da espécie, que antes nunca teriam sido sequer sonhados.

Harari é fortemente dotado na retórica pela narrativa, usa recorrentemente pequenas histórias, que polvilha com imensos factos, e afirma sem dúvidas, o que tem a dizer. Ou seja, partindo do pressuposto que as estruturas narrativas da nossa História são meramente especulativas, Harari faz aquilo que Sagan fazia, assume a sua escolha, e conta a sua história, como se da verdade absoluta se tratasse. Isto é problemático em termos científicos, mas por outro lado, é fundamental em divulgação científica. Não seria possível escrever um livro sobre 70 mil anos de história, se se ponderassem todos os caminhos e variáveis possíveis. O que Harari faz é contar a história, segundo pressupostos lógicos, fundamentados em processos dedutivos, assentes em grandes marcos teóricos.

Um desses marcos é o Evolucionismo. Toda a História de Harari se distancia do mero relatar de factos, da mera exposição do que terá acontecido, já que este se concentra antes em explicar porque aconteceu assim. E fá-lo munido de um grande conjunto de dados provenientes de uma série de disciplinas distintas. Ora o evolucionismo, apesar da sua problemática (não ser testável experimentalmente), acaba por funcionar muitíssimo bem em todo este trabalho, tal como já tinha acontecido com Dutton em “The Art Intinct”. Porque o evolucionismo contribui com um quadro teórico que sustenta um conjunto de preceitos lógicos e respondem de modo científico, ainda que teorizante, a questões que até aqui se enquadrariam no reino do mero mito.

Nesta senda Harari vai acabar por re-rotular muito daquilo que conhecemos, nomeadamente transformando todos os sistemas políticos — comunismo, capitalismo, socialismo, etc. — em religiões substitutas, no sentido em que passaram a ser estas quem dita as nossas condutas. Pelo meio Harari apresenta amiúde rasgos interpretativos soberbos, não totalmente deslocados de outros teóricos especulativos, nomeadamente no campo dos Estudos Culturais. Aproveito para deixar alguns desses rasgos:

Imaginário: Consumismo Romântico
“Even what people take to be their most personal desires are usually programmed by the imagined order. Let’s consider, for example, the popular desire to take a holiday abroad. There is nothing natural or obvious about this. A chimpanzee alpha male would never think of using his power in order to go on holiday into the territory of a neighbouring chimpanzee band. The elite of ancient Egypt spent their fortunes building pyramids and having their corpses mummified, but none of them thought of going shopping in Babylon or taking a skiing holiday in Phoenicia. People today spend a great deal of money on holidays abroad because they are true believers in the myths of romantic consumerism.”
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“Romanticism tells us that in order to make the most of our human potential we must have as many different experiences as we can. ”
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“Consumerism tells us that in order to be happy we must consume as many products and services as possible.”
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“Romanticism, which encourages variety, meshes perfectly with consumerism. Their marriage has given birth to the infinite ‘market of experiences’, on which the modern tourism industry is founded. The tourism industry does not sell flight tickets and hotel bedrooms. It sells experiences.”
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“Like the elite of ancient Egypt, most people in most cultures dedicate their lives to building pyramids. Only the names, shapes and sizes of these pyramids change from one culture to the other. They may take the form, for example, of a suburban cottage with a swimming pool and an evergreen lawn, or a gleaming penthouse with an enviable view. Few question the myths that cause us to desire the pyramid in the first place.”
Imaginário: Capitalismo
“Contrary to Aristotle, there is no known biological difference between slaves and free people. Human laws and norms have turned some people into slaves and others into masters. (..) 
Most people claim that their social hierarchy is natural and just, while those of other societies are based on false and ridiculous criteria. Modern Westerners are taught to scoff at the idea of racial hierarchy. They are shocked by laws prohibiting blacks to live in white neighbourhoods, or to study in white schools, or to be treated in white hospitals.
But the hierarchy of rich and poor – which mandates that rich people live in separate and more luxurious neighbourhoods, study in separate and more prestigious schools, and receive medical treatment in separate and better-equipped facilities – seems perfectly sensible to many Americans and Europeans. Yet it’s a proven fact that most rich people are rich for the simple reason that they were born into a rich family, while most poor people will remain poor throughout their lives simply because they were born into a poor family.”
Imaginário: A Felicidade
“What good was the French Revolution? If people did not become any happier, then what was the point of all that chaos, fear, blood and war? Biologists would never have stormed the Bastille. People think that this political revolution or that social reform will make them happy, but their biochemistry tricks them time and again.” 
“There is only one historical development that has real significance. Today, when we finally realise that the keys to happiness are in the hands of our biochemical system, we can stop wasting our time on politics and social reforms, putsches and ideologies, and focus instead on the only thing that can make us truly happy: manipulating our biochemistry. If we invest billions in understanding our brain chemistry and developing appropriate treatments, we can make people far happier than ever before, without any need of revolutions. Prozac, for example, does not change regimes, but by raising serotonin levels it lifts people out of their depression. Nothing captures the biological argument better than the famous New Age slogan: ‘Happiness Begins Within.’ Money, social status, plastic surgery, beautiful houses, powerful positions – none of these will bring you happiness. Lasting happiness comes only from serotonin, dopamine and oxytocin.”
Sim, ele está a falar de uma espécie de Soma do “Admirável Mundo Novo”. Mas a seguir diz,
“the findings demonstrate that happiness is not the surplus of pleasant over unpleasant moments. Rather, happiness consists in seeing one’s life in its entirety as meaningful and worthwhile. There is an important cognitive and ethical component to happiness (..) “As Nietzsche put it, if you have a why to live, you can bear almost any how. (..) “Though people in all cultures and eras have felt the same type of pleasures and pains, the meaning they have ascribed to their experiences has probably varied widely (..) medieval people certainly had it rough. However, if they believed the promise of everlasting bliss in the afterlife, they may well have viewed their lives as far more meaningful and worthwhile than modern secular people, who in the long term can expect nothing but complete and meaningless oblivion” 
“So our medieval ancestors were happy because they found meaning to life in collective delusions about the afterlife? Yes. As long as nobody punctured their fantasies, why shouldn’t they? As far as we can tell, from a purely scientific viewpoint, human life has absolutely no meaning. Humans are the outcome of blind evolutionary processes that operate without goal or purpose. Our actions are not part of some divine cosmic plan, and if planet Earth were to blow up tomorrow morning, the universe would probably keep going about its business as usual. As far as we can tell at this point, human subjectivity would not be missed. Hence any meaning that people ascribe to their lives is just a delusion.” 
“If happiness is based on feeling pleasant sensations, then in order to be happier we need to re-engineer our biochemical system.”

“If happiness is based on feeling that life is meaningful, then in order to be happier we need to delude ourselves more effectively.”  
“Is there a third alternative?”

Terão de ler o livro para saber se existe essa terceira alternativa. Resumindo, o mais relevante é como Harari acaba a demonstrar com estes imaginários, o quão somos feitos de ilusões (e não parece estar sozinho a julgar pela última entrevista de Dennett) e o quão frágeis, efémeros e inconstantes somos por oposição a todo nosso escafandro biológico. No último capítulo Harari leva a especulação para o futuro e mostra-nos um possível novo mundo no qual a espécie sapiens desaparece para dar lugar a uma espécie de neo-sapiens. Seremos outros, alterados externamente com próteses computacionais, assim como transformados biologicamente a nível celular e de DNA. É verdade que Harari parece apresentar um discurso algo pessimista, mais ainda quando comparado ao otimismo quase exacerbado de David Deutsch. Mas não deixa de ser um discurso realista, lógico e pela sua enorme eloquência imensamente atrativo.

A propósito da data de publicação. O livro foi publicado pela primeira vez em hebreu em 2011, apesar de Harari dominar o inglês, uma vez que se doutorou em Oxford, o que demonstra que se podem publicar grandes obras noutras línguas que não o inglês. É claro que a obra só se tornaria mundialmente famosa quando foi traduzida para inglês em 2014. Mas não tenhamos ilusões, não foi o inglês a razão do seu sucesso, mas o facto de pessoas famosas e poderosas como Obama, Bill Gates ou Zuckerberg o terem recomendado. Entretanto está já também traduzida para português pela Vogais, desde 2015.

Por último, e interessante mais para académicos, é o modo como surgiu o livro, depois de Harari ter sido obrigado a dar uma cadeira que não era a sua especialidade, História Mundial, sendo ele especialista em História Militar Medieval. Interessante porque mostra como os riscos da mudança implicam a criação de novo. Como também, se estivermos abertos a novas experiências poderemos encontrar novas razões, novos mitos para nos manter a sonhar a vida.

abril 02, 2017

“Dentes Brancos” (2000), o poder do símbolo

“Dentes Brancos” é uma obra poderosa, carregada de significados impossíveis de decifrar numa única passagem. É uma obra imensamente rica porque pede não mera reflexão mas diálogo em busca dos significados pretendidos e dos que cada um de nós leu, interpretou e sentiu. Mas não sendo eu grande fã de simbolismos, ou melhor das ultrainterpretações a que dão azo, tenho de dizer que aquilo que primeiro me seduziu em Zadie Smith foi a sua escrita, que Quinn muito bem definiu no New York Times como: “exuberante pirotecnia verbal”.


Pela sua qualidade estilística Zadie está na, minha, galeria de escritores ao lado de Jonathan Franzen e Philip Roth, embora para a maioria da imprensa esteja ao lado de Salman Rushdie. Impressionando, impacta verdadeiramente quando percebemos que “Dentes Brancos“, primeira obra, foi publicada em Janeiro de 2000, quando tinha 24 anos, e segue quando descobrimos que esta surge de um primeiro manuscrito datado de 1997, com 21 anos, que lhe valeu um contrato em redor das 250,000 libras. A idade impressiona, e houve quem qualificasse Zadie como uma daquelas crianças hiperativas que se revela cedo demais, correndo o risco de se perder no futuro, mas em 2017 sabemos que tal profecia não se concretizou, Zadie publicou desde então mais 4 romances, um dos quais, “Uma Questão de Beleza”, sobre o qual já aqui dei conta. Impressiona-me particularmente já que Zadie nasceu um ano depois de mim, o que me dá uma perspectiva muito próxima do que terá sido necessário para atingir este nível. Zadie é talento em bruto, mas não chega, o qualificativo de hiperatividade não é descabido, já que foi preciso investir muito do seu tempo em leitura, em introspeção e escrita. Produzir um texto desta magnitude com vinte e poucos anos não está ao alcance de muitos de nós, pode faltar talento mas falta acima de tudo o amor e a dedicação que Zadie depositou na literatura.

Zadie Smith

Em termos temáticos Zadie usa “Dentes Brancos” para ir ao fundo das complexidades familiares, raciais, colonizadoras e culturais da Inglaterra contemporânea. E se o livro terá impactado em 2000, o Brexit em 2017 veio tornar ainda mais relevante tudo o que nele se discute. Temos numa mesma narrativa, mais de 150 anos de história, três gerações e várias ex-colónias britânicas. A Jamaica, o Bangladesh e a Índia são chamados para a mesa inglesa, e o diálogo torna-se explosivo, multicolorido, dando a conhecer a essência da multiculturalidade. Zadie introduz temas como a 2ª Guerra Mundial, a eugenia, as religiões, a ciência, o livre-arbítrio, o suicídio, colocando toda uma constelação de personagens a questionar o propósito da vida. O propósito é aquilo que torna o resumo do livro tão difícil e os personagens tão diversos e realistas podem afastar-nos, mas Zadie usa uma forma inteligente de nos aproximar de tudo e todos, o "humor sério". Não sendo eu grande apreciador de comédia tenho de dizer que ri, gargalhadas espontâneas, imensas vezes ao longo da leitura, com o modo como tratando assuntos sérios e complexos, os personagens, cada um dotado das suas lógicas e crenças culturais, questionam o mundo.

Todas estas temáticas só são possíveis pelo contexto que envolve Zadie, as suas raízes. Filha de mãe negra, imigrada em 1969 da Jamaica para Inglaterra, e de pai branco britânico, em segundo casamento. Com dois meios-irmãos e dois irmãos mais novos, e uma adolescência marcada pelo divórcio dos pais, que a levou a mudar o seu nome original, de Sadie para Zadie. Este contexto parece ter servido de ebulição à criatividade que viria a demonstrar na universidade, no King's College em Cambridge, onde daria nas vistas com pequenos contos, e conseguiria então captar o interesse para um contrato de primeira obra.

Voltando ao início, o livro está carregado de símbolos. Não são necessários decifrar para se compreender a história, para se sentir prazer na leitura, mas instigam-nos a ir mais fundo, assim como separam o livro do mero historiar de aventuras familiares de raças diferentes. Elevam o sentido da leitura e explicam porque a literatura continua tão relevante enquanto arte, já que consegue não apenas fazer-nos passar bons momentos, mas ao mesmo tempo ensinar-nos, contribuindo para o edificar da nossa base civilizacional.

E assim, mesmo não sendo particularmente fã da ultrainterpretação simbólica, não quero deixar de destacar aqui o sentido do título da obra. Como disse, existe muito mais nas páginas do livro, tal como o RatoFuturo, o KEVIN, ou o Dr. Doença, que poderiam por si dar origem a páginas e páginas de reflexões, e que terão já dado múltiplas teses de mestrado. Mas porquê “Dentes Brancos”? Tenho de confessar que as ideias que passo a explorar não são originariamente minhas, surgiram de várias leituras (ligações: ab, cd, e), que me permitiram por via da confrontação de ideias, chegar uma interpretação que satisfez a minha leitura e o meu mundo.

Os “Dentes Brancos” surgem ao longo do livro várias vezes, mas sem conotações concretas, do impacto visual dos seus estragos (uma personagem não tem todos os dentes da frente), contrastando-se com o excessivo cuidado na sua limpeza (um dos personagens lava os dentes 5 a 6 vezes por dia). Como se os dentes tivessem uma relevância de classe, capaz de marcar a diferença de cultura e até de raça. Contudo, o mais significativo não surge nas páginas, temos de chegar lá por analogia, pela construção discursiva que nos une. Sendo um texto defensor do multiculturalismo, o que costumamos dizer é que a cor da pele na conta porque debaixo da mesma, corre o mesmo sangue vermelho. Ora dentro das nossas bocas estão também os mesmos dentes brancos, iguais para todos mas ao mesmo tempo diferentes, tão diferentes que são usados para identificar os restos mortais de corpos muito deteriorados. Ou seja, na igualdade podemos encontrar a diferença, e juntas contribuem para definir aquilo que somos. Não somos apenas iguais nem apenas diferentes, somos singulares, e por isso é fundamental preservar e acarinhar as raízes, as mesmas que garantem o branco dos nossos dentes.

abril 01, 2017

Guerrilheiros do Sofá

Nos últimos anos habituamo-nos a classificar as pessoas que se dedicam a comentar online como meros militantes de sofá, os que "falam falam, mas não os vemos fazer nada". Contudo dois eventos obrigaram-nos a repensar tudo isto, o Brexit e Trump, ou um outro menos mainstream mas igualmente problemático deste ponto de vista, o Gamergate. De repente, as pessoas que estavam sentadas por detrás dos ecrãs a emitir comentários dia e noite passaram a contar. Aquilo que dizem, por meio da liberdade de expressão que nós, sociedade, lhes concedemos, produz efeitos a partir do momento em que convence outras pessoas a pensar como elas.




O documentarista Kyrre Lien passou três anos atrás de 21 pessoas, espalhadas pelo mundo, que investem horas e horas online a comentar tudo de forma militante e chamou ao projeto: The Internet Warriors. O The Guardian selecionou 10 dos entrevistados e realizou uma montagem que agora nos dá a ver. Um dos entrevistados produziu mais de 170 mil tweets, e a maioria usa a ferramenta como "instrumento de trabalho", mas facilmente podemos extrapolar o que aqui está em questão para outras plataformas sociais, nomeadamente as caixas de comentário dos jornais. Nos depoimentos recolhidos temos pessoas que reclamam nas mais variadas frentes: Governo, Políticos, União Europeia, Muçulmanos, Israel, Obama ou Lady Gaga. Lien queria saber se estas pessoas se comportariam da mesma forma quando filmadas, quando retiradas debaixo da capa do anonimato. O resultado é poderoso e mostra bem como estas não estão simplesmente a brincar ou a passar o tempo, são seres humanos que acreditam honestamente em tudo o que dizem online.

Para mim, a questão central não é reconhecer ou proibir estes indivíduos de se exprimirem, mas compreender os mecanismos que os conduzem a pensar como pensam, e compreender porque são eles capazes de convencer outros indivíduos a pensar como eles. Para tal temos de ir à essência do que está aqui em causa, as duas emoções base que unem todos os entrevistados: o ódio e a raiva. Todos se sentem mal, todos acreditam que algo lhes está a ser vedado ou retirado. Sentem-se vítimas, oprimidos por algo ou alguém, seja o governo, um grupo ou uma religião. E por isso reagem com raiva que acaba por se transformar em ódio à medida que vão percebendo que as suas exigências não são cumpridas.

"The Internet Warriors" (2017) de Kyrre Lien

O ser humano é feito de raiva e de desejos, cabe-nos a nós enquanto sociedade criar condições para o civilizar de cada um, e isto passa por contribuir para que cada um de nós consiga ter as ferramentas necessárias para começar por se compreender a si mesmo.

março 26, 2017

“Assassin's Creed”, o filme

Tirando o IMDB vi o filme ser trucidado em quase todo o lado, apesar de sem surpresa. Virou moda dizer que os filmes adaptados dos videojogos são maus, e por mais que se façam adaptações interessantes como “Warcraft” (2016) ou “Angry Birds” (2016), nunca serão bons suficientes. Em parte isto explica-se por uma confusão de expectativas, os críticos esperam filmes elaborados quando se fala de videojogos blockbusters, e os jogadores esperam que tudo o que viveram, ao longo de dezenas e dezenas de horas, possa surgir com ainda mais intensidade em apenas duas horas de filme.



Apesar de não querer alimentar expectativas à partida, o facto de o realizador ser Justin Kurzel deixou-me bastante interessado, mais ainda quando suportado por Michael Fassbender, Marion Cotillard e Jeremy Irons. Se tinha gostado de “Snowtown” (2011), foi com “Macbeth” (2015) que tive a certeza de estar perante um realizador relevante. O modo como capta a essência do que pretende relatar, comprime e intensifica, é excelente, mas depois como constrói o universo plástico, brilha completamente. O naturalismo de “Snowtown” com uma imagem de rudeza esbatida é impressionante, e no entanto em “Macbeth” opta por uma mudança de quase 180º, recorrendo a toda a maquinaria digital para construir um universo belo e sumptuoso de luz e textura.

Assim, “Assassin's Creed” segue em quase toda a linha “Macbeth”, desde a dupla de atores  — Michael Fassbender e Marion Cotillard — à componente visual pela cinematografia de Adam Arkapaw. Por outro lado, tanto “Macbeth” como “Assassin's Creed” são adaptações, com uma não pequena diferença, uma provém do Bardo, o que acarreta responsabilidade acrescida, mas ao mesmo tempo minora o esforço necessário para conseguir uma boa estrutura, assim como uma audiência conhecedora do contexto.

No entanto, é exatamente estrutura o que mais falta no mundo dos jogos de “Assassin's Creed”. Apesar de ter jogado todo os jogos principais da série, e ter levado cinco deles até ao final, continua a persistir um rol de dúvidas sobre o que sustenta o mundo do jogo. O melhor da série sempre foi o que se vivia dentro do Animus — as viagens ao passado, cidades e personagens históricas — sendo que a história do presente foi sempre muito pouco clara, a ponto de nos últimos jogos se tornar praticamente irrelevante. O interesse da Ubisoft em criar o filme parece ter tido um objetivo claro, esclarecer as dúvidas criadas pelos jogos.

“Assassin's Creed”, o filme, responde a essas dúvidas, torna claro quem são os Templários, quem são os Assassinos, e a importância da Maçã. Podemos argumentar que a Maçã é aqui simplificada, mas não é, é antes sintetizada à sua uma essência. Ainda que possamos objetar contra a real possibilidade do seu poder, não deixa de se apresentar como uma boa premissa. Contudo, uma premissa baseada num objeto, por mais filosófico que seja, não tem como ombrear com uma premissa baseada no íntimo do conflito humano, como acontece em “Macbeth”. A Maçã não é mais do que um Graal, e como tal, objeto de enredos de aventuras infinitos que não podem impactar verdadeiramente a condição humana. Deste modo, procurar em “Assassin’s Creed” um filme que vá além do filme blockbuster de aventuras, é ridículo. “Assassin’s Creed” é um filme de aventuras, tal como os videojogos, e enquanto tal, faz muito bem o seu papel. Por isso quando vejo análises ao filme a qualificar a história de "mero Dan Brown", só posso pensar que se enganaram na sala de cinema quando aceitaram escrever a crítica.


Kurzel consegue, mais uma vez, puxar pela sua capacidade de síntese e construir um objeto que incorpora grande parte dos traços distintivos da série de videojogos “Assassin’s Creed”, desde o parkour e realidade virtual, ao mistério e thriller, passando pelo cruzamento entre a tecnologia e a envolvente histórica, incluindo o "leap of faith", está lá tudo para quem quiser entrar no filme sem preconceitos.

Montagem, literal, de significados

Podia ser apenas mais uma animação a tentar dar vida a uma das telas do grande cânone ocidental da pintura. Podia ser apenas mais uma obra a relevar-se por conta do peso da obra trabalhada, "A Última Ceia" (1498) de Leonardo Da Vinci. Mas, "The Da Vinci Time Code" (2009) é algo diferente, a tela representada serve realmente de atrativo geral, mas o que verdadeiramente conta é a técnica, não per se, mas pelo modo como se torna expressiva.


O criador, Gil Alkabetz (1957), é professor na Filmuniversität Babelsberg Konrad Wolf (Alemanha), mas é antes disso alumni da Bezalel Academy of Art and Design (Israel), uma escola de referência no mundo da animação e que já aqui mencionei várias vezes. O design de som e música são de Alexander Zlamal, parte fundamental na edificação das ideias de Alkabetz para o modo audiovisual. Por fim, o interesse geral em redor da animação advém da potencial descoberta de novas interpretações sobre uma das obras de arte mais ultra-interpretadas da história, sendo a própria sinopse do filme a indicar isso mesmo:
"In the film “The Da Vinci Time Code” one picture is taken apart in order to create an animated film from its fragments. Different parts of this one picture, based on similar forms, allow us to discover secret movements.The people in the picture eat, dance, discuss and argue, until finally all are silenced."
Contudo, o que mais surpreende não é, de todo, o que se descobre, o que de novo se interpreta, mas antes o método que nos abre o acesso a essas novas significações. Alkabetz retalha a "A Última Ceia" em pequenas partes, coloca-as em movimento, e utiliza a técnica de montagem audiovisual para dar a ver novos mundos dentro da grande representação estática pintada. É isto que impressiona, a elevação no uso das diferentes técnicas, sem qualquer objetivo virtuoso, mas apenas em nome da expressividade, criando sentidos novos a partir de movimentos imaginados sobre elementos estáticos. O trabalho realizado assenta numa lógica de repetição e ritmo intenso que iniciando-se como mero atributo estético, imprimindo sensações no espectador, vai aos poucos ganhando forma própria, criando um mundo próprio a ponto de começar a produzir os seus próprios significados. "A Última Ceia" ganha assim uma completa nova dimensão, como que insuflada de nova atmosfera, produzida a partir de simples movimento visual e a adição de um ligeiro substrato sonoro.


"The Da Vinci Time Code", (2009), Gil Alkabetz

março 22, 2017

“O Idiota” (1868)

“O Idiota” vem catalogado como uma das cinco grandes obras de Dostoiévski, mas de grande só lhe encontrei as mais de seiscentas páginas. Não me revi, nem compreendi Míchkin, assim como a narrativa é pouco coesa o que acaba servindo mal a premissa de partida que tinha muito a dar ao texto. Com análises que invariavelmente ligam Míchkin a Jesus Cristo e D. Quixote, parece-me que isso se pode encontrar apenas na premissa, sendo necessário forçar a interpretação para se poder encontrar o seu lastro na obra. O meu problema com este livro de Dostoiévski assenta em dois vetores — a história e o discurso que a suporta — que passo a explorar nos parágrafos seguintes.


A história que Dostoiévski nos quer contar assenta na idea do “Homem Ideal” — bom, honesto e altruísta — e o modo como esse homem, a existir, nunca poderia funcionar numa sociedade que é corrupta e egoísta em todas as suas dimensões. Dostoiévski terá dito que pretendia “representar um ser humano completamente belo“. É realmente isto que podemos ver na história de Jesus Cristo, é isto que podemos ver em "D. Quixote", e até podemos dizer mais recentemente em “Forrest Gump”. Mas é aqui que começa o problema, Míchkin não se parece com nenhum destes personagens. Míchkin não é nenhum idiota, mas também está longe de ser o "Homem Ideal".

Vejamos. Conhecemos Míchkin no seu regresso da Suíça onde esteve em tratamento à epilepsia. No comboio encontra companheiros russos que lhe falam de uma mulher muito bonita, Nastássia Filíppovna, por quem um deles está apaixonado. O que faz Míchkin? Primeiro deixa-se apaixonar por Nastássia apenas a partir da sua aparência, a fotografia é tudo o que lhe não sai da cabeça. E o que vai fazer depois, mesmo antes de verdadeiramente a conhecer? Vai tentar roubá-la às pessoas de quem supostamente era amigo. Quando ela lhe pergunta se deve casar com o amigo, o que diz ele?, que não, porque quer ele casar com ela. Que idiota é este afinal que depois de ter visto uma fotografia se apaixona, sem querer saber mais quem é a pessoa. Torna-se obcecado por ela, a ponto de magoar muitas outras pessoas e outras mulheres, e vive todo o livro a tentar possuí-la (ainda que não sexualmente)! Ora isto não encaixa na minha visão do Homem Ideal. As mulheres que se digladiam por Míchkin são ambas fúteis, à sua maneira, mas são estas que o cercam, é por elas que ele se interessa! Podíamos dizer que é idiota, mas como é que um idiota, se o fosse, teria tanto para filosofar habilmente sobre a vida? Como é que alguém tão desinteressado em tudo se torna obcecado por uma mulher, embora seja uma obsessão que o vai sendo, na sua inconstância.

Podemos antes dizer que Míchkin era um louco, e é por aí que o livro parece muitas vezes querer enveredar, mas até aí me perturba. Como pode Dostoiévski, que era ele próprio epilético, caracterizar alguém que sofre de epilepsia de louco, ou mesmo idiota. Sei bem que estamos no século XIX, mas custa-me ler uma caracterização destas, de alguém que sabia muito mais do que aquilo que mostra nas linhas desta obra. Mais para o final, quando a loucura começa a tomar conta do texto, surge a referência a “Madame Bovary”, mas Bovary além de ser mulher, e de carregar esse fardo numa sociedade completamente dominada por homens, tinha várias motivações para chegar ao estado a que chega. E aqui, é a epilepsia?

Não me parece. E a prova surge nos cadernos que Dostoiévski foi escrevendo à medida que foi desenvolvendo o romance, e que mostram de onde vêm a maior parte dos problemas de que aqui falo,  as inconsistências. A escritora A. Susan Byatt que adora o livro, não deixa de lhe apontar criticas e numa parte da sua análise diz o seguinte:
“Anna [mulher de Dostoiévski] preservou os cadernos de notas, que mostram como tanto o enredo como os personagens estavam num estado fluído e num caos vulcânico, mesmo na altura em que o livro já estava a ser publicado como seriado. O bom príncipe aparece nas notas iniciais como orgulhoso e demoníaco, e como o violador da sua irmã adotada (que seria um protótipo de Nastássia Filíppovna). Bota fogo de forma criminosa e mata a própria esposa. Esta primeira parte, como parece, deveria ter sido poderosa. Mas Dostoiévski parecia não ter ideias muito claras sobre como proceder. A segunda parte seria fantasmagórica e divagante, sem estrutura mas agilmente enérgica.” A. S. Byatt, 2004, in The Guardian 
Este parágrafo explica todos os meus problemas com o “O Idiota”. As inconsistências e o personagem estão explicados, assim como a própria Nastássia ganha uma nova consistência, com a colagem a uma potencial ideia de paixão pela irmã. Ou seja, todo o livro parece ter nascido de uma ideia com traços profundamente góticos, dos quais ainda existem alguns resquícios mais para o final do livro. A uma determinada altura começamos a sentir a fantasmagoria, por vários momentos pensei mesmo que os personagens não existissem, fossem fantasmas, ou invenções das alucinações da cabeça do Príncipe. E em parte foi isso que me levou até ao final do livro. No meio de tanta insanidade e de um final do mais puro gótico que li nos temos recentes, esperava encontrar, até à última linha, uma qualquer explicação paranormal para tudo aquilo que Míchkin representava. Mas não, nada.

No final fiquei imensamente desconsolado. O que mais recordo da obra são personagens constantemente a entrar e a sair de cena, com mexericos atrás de mexericos, rumores atrás de rumores, diz que disse. Os personagens parecem estar todos a olhar uns para os outros à espera de algo, mas nunca nada chega a acontecer, nem se espera que aconteça. Vamos seguindo e vendo o Príncipe vaguear sem rumo, sem interesse por nada. Mesmo quando se lembra de Nastássia, logo a seguir já a esqueceu. E depois, de 100 em 100 páginas, aparece um diálogo mais profundo, com alguma discussão filosófica até interessante, mas que surge de modo extemporâneo em relação ao restante texto. Não, não o vejo como um grande livro, vejo-o como uma manta de retalhos, e ainda que alguns desses retalhos apresentem grande qualidade, não chegam para fazer uma grande obra. Pelo menos para mim não chegou.

"Strange Beasts": Uma app para o futuro próximo?

Fantástica curta, ou talvez reportagem, ou ainda anúncio! O melhor será mesmo caracterizar de mockumentary, já que é um pouco de tudo, ou talvez bastasse dizer que é um trabalho do género "Black Mirror", fica tudo mais claro! Mas não é por isso que o trago aqui, embora também, é pelo seu conteúdo, o que tem para nos dizer ou melhor questionar, seguido da belíssima execução, tanto discursiva como plástica.




"Strange Beasts" foi criada por Magali Barbe, uma especialista em VFx baseada em Londres, que tem no seu CV trabalhos pela Passion Pictures, Framestore e TheMill, o que só por si garante à priori um trabalho de topo. Mas como disse acima, não é apenas a execução plástica que é deliciosa, o discurso narrativo é modelado de forma brilhante. Desde o momento em que somos introduzidos ao universo, ao momento em que nos despedimos, a crença é completa em tudo o que se apresenta, porque o storytelling é absolutamente perfeito no ritmo, na causalidade, na verossimilidade e familiaridade. Barbe usa os diferentes discursos do storytelling para nos envolver, focar a atenção e criar o modo de humor próprio, para depois nos tirar o tapete. Belíssima execução.

Quanto ao que se discute no filme, não quero entrar em pormenores, já que vos estragaria a surpresa. Mas que não vos deixará indiferentes, disso não tenho dúvidas. As questões despoletadas são absolutamente centrais em face da realidade que a tecnologia atual nos providencia.

"Strange Beasts" (2017) de Magali Barbé

março 19, 2017

“Breaking Bad - O Filme”

5 anos em exibição, de 2008 a 2013, resultaram em 5 temporadas, 62 episódios, 48 horas contínuas de filme. Em 2017 podemos finalmente ter acesso a toda a saga de “Breaking Bad” por meio de um filme que totaliza apenas duas horas e sete minutos. Se se pode dizer que a experiência é igual? Não, é totalmente impossível, mas permitiu-me conhecer a história completa depois de ter desistido no 3ª episódio.




Dois franceses, Gaylor Morestin (designer gráfico) e Lucas Stoll (realizador), resolveram dedicar grande parte do seu tempo livre, ao longo de dois anos, para criar um filme completo a partir das 48 horas de série, que conseguisse conter a nata da narrativa e da experiência de “Breaking Bad”. É um trabalho insano, pelas múltiplas linhas narrativas presentes na série e a multiplicidade de personagens, pelas temporadas filmadas com diferentes realizadores, pela variação de recursos de produção, do guarda-roupa e da maquilhagem. Mas também porque trata-se de recriar algo a partir do que existe apenas, sem hipótese de filmar o que quer que seja para dar conta de aspetos menos claros.

No final das duas horas posso dizer que compreendi a razão do sucesso da série, compreendi o que a tornou tão relevante, consegui gizar os traços gerais dos personagens e conflitos, mas tenho perfeita noção que passei ao lado de muito daquilo que gera a verdadeira experiência de “Breaking Bad”. O filme cria a sensação de estarmos a ver detrás de alguém, captando apenas partes do que vai acontecendo, dando sentindo ao todo, mas percebendo que nos falta contexto, que cada conflito aparece e desaparece sem chegarmos a compreender a essência do seu desenvolvimento.

“Breaking Bad - O Filme” é uma obra interessante para quem viu a série e quer agora rever os momentos altos, pode servir a quem como eu nunca viu, mas saiba que tem de se comprometer em aceitar que ver o filme não é o mesmo que ver a série. Que a experiência que vai viver, não é aquela que foi pensada por quem criou a série. A experiência está adulterada, funciona, mas não oferece o pleno. Serve para conhecer a história, para compreender o fenómeno e apaziguar as ânsias de quem não quer dedicar 48 horas a conhecer o universo da série.

Para ver o filme precisam de procurar no submundo da web, já que a Sony fez o favor de mandar retirar o trabalho do Vimeo e do YouTube, apesar de catalogado como Fair Use. Por antecipar isso mesmo, fiz download do mesmo no dia em que saiu, contudo deixo um link para quem não se importar de ver online.