"Class Enemy" (2013) é um filme europeu (Eslovénia) intensamente instigador, porque trata um tema com o qual todos temos de lidar, a Escola, de forma fracturante e perfurante. Tudo é questionado, pouco ou nada é defendido, deixando o espetador à sua própria mercê.
Um professor vem substituir uma colega grávida no ensino de alemão, numa classe de finalistas de liceu. O cenário é contemporâneo, tipicamente ocidental, com os alunos a arrogarem-se o direito de tudo questionar e os professores a preferirem passar despercebidos. Mas o novo professor tem uma postura distinta, defende uma ideologia: “a escola não é um direito, é um privilégio”. E essa sua postura vai provocar uma completa reviravolta em toda a escola, no posicionamento dos alunos, professores, e pais, sem contudo conduzir a respostas fechadas.
Passei metade do filme a questionar-me sobre os métodos de Supan, porque acreditando na sua justeza, não acredito na sua eficácia. Não acredito que se possa obter o melhor de um ser humano pela estimulação negativa. O filme comete um erro, porque não realiza um verdadeiro contraponto, já que coloca face a face extremos, o professor Supan e a psicóloga da escola, ambos incapazes de comunicar e chegar aos alunos. Aliás, a própria situação que tudo despoleta (suicídio) é excepcional e complexa, não existindo um modo de lidar com a mesma, tornando ainda mais complicada a leitura do que verdadeiramente está a acontecer com os jovens e a escola.
A obra suporta-se em vários autores como o esloveno Ivan Cankar, ou Thomas Mann para avançar muitas das suas ideias, nomeadamente no que diz respeito ao suicídio que trespassa todo o filme. Rok Bicek quer claramente elevar o teor da discussão, quer que nos questionemos sobre o todo, porque a escola não é apenas a escola, é Tudo.
“Learning means not knowing, wanting means not being able to.”
Ivan Cankar
E por isso passei a outra metade a questionar-me sobre a real função da escola na nossa sociedade. Quando se reduz a escola a mero local de transmissão de conhecimentos, esquecemos o quão pouco disso ela na verdade é. Existem vários momentos no filme em que isto é tão bem evidenciado, e muito bem apresentado, nas dinâmicas inter-pares dos alunos, dos professores, dos pais, e entre cada um destes grupos. Ou ainda, em tudo aquilo que vive emocionalmente cada um daqueles jovens durante o período de escola, ou tudo aquilo com que um professor tem que lidar que vai muito para além de matéria educativa.
Seria tudo mais simples, se pudéssemos à entrada das salas de aula, despir o fato emocional e permitir apenas à razão nelas entrar. Mas o ser humano não é feito de razão porque ela não ocorre sem a emoção. Não perceber isto em pleno século 21, é atroz.
Tenho seguido muito pouco a anime dos últimos anos, apesar de sempre me ter chamado a atenção pela forma adulta como são tratados os temas, ao contrário da maior parte das séries de animação ocidentais. “Erased” veio muito recomendada pelo seu storytelling, e apresentava a mais valia de trabalhar um dos meus temas preferidos, as viagens no tempo. São 12 episódios de 20m cada, que valem todo o tempo investido.
A narrativa de “Erased” foi desenhada segundo a tradicional estrutura de mistério. A personagem principal entra em choque com uma tragédia sucedida na sua vida, e acaba por sofrer aquilo, que a série designa por efeito de “revival”, que o faz regressar no tempo. Não percebendo porque regressou, iniciam-se as interrogações, com várias camadas narrativas a surgirem, enquanto nós procuramos respostas. Pelo meio, a viagem no tempo perde relevância para se focar completamente nos personagens, e talvez essa tenha sido a aposta mais acertada da série.
"The town where he alone is not there."
A caracterização é conseguida por meio de um leque de dramas que convidam a um cada vez maior aprofundamento de cada personagem. Temos desde relações professor-aluno, a rapto de crianças, maus-tratos familiares, e assassinos em série que dão vida e dinâmica a um enredo que se vai dirigindo para dois grandes motivos: o isolamento social e a amizade. Uma série que poderia ser apenas um entretém, brincar com a narrativa para nos manter grudados no ecrã, mas que é mais do que isso, procura ser mais, tratando problemas contemporâneos, assumindo posicionamentos e questionando-os.
Tudo isto é envolvido por uma belíssima plástica, tanto visual como sonora. Os ambientes são profundamente atmosféricos, o que permite densificar a história. É todo um trabalho de cor, arquitectura e música, que nos transporta para o espaço e nos faz esquecer a nossa realidade. Em termos de animação não temos nada de excepcional, é uma série de televisão, e por isso recorre aos artifícios típicos da anime para poupar frames, mas a ilustração, montagem e música acabam compensando.
Claro que nem tudo é brilhante, mas não podemos esquecer que se trata apenas de uma pequena anime. Para além de nunca se perceber como surge a capacidade de viajar no tempo, o maior problema surge no arco narrativo de Kayo que assume um papel demasiado forte, desequilibrando o desenho narrativo geral, roubando protagonismo ao arco principal de Fujinuma. Assim, terminado o arco de Kayo a série parece esvair-se de propósito para continuar, acabando por passar a ideia de que deveria terminar ali. Contudo, para os espectadores que mantêm o interesse vivo, são recompensados pouco mais à frente, quando tudo se resume, o equilíbrio se repõe, e o todo ganha um sentido não só mais coeso mas também mais intenso. Podemos dizer que a série merecia mais, é verdade, mas se colocarmos a fasquia da exigência no nível correto, saberemos apreciar e aproveitar o melhor que esta tem para nos oferecer.
As últimas semanas foram muito férteis em anúncios com temas de fundo sobre união, cooperação, colaboração (Coca-Cola, Corona, Budweiser) tudo contra os instintos individualistas, xenófobos e racistas promovidos por Trump. Mas nada supera a campanha criada pela 84 Lumber, uma empresa de construção civil americana familiar. O filme é tão forte, ideologicamente, que a Fox e a NFL proibiram o anúncio. Em resposta, a empresa dividiu o anúncio em duas partes, colocando na televisão apenas a primeira parte, introdutória, e a segunda, de desenvolvimento e clímax, passou para o online. Resultado, o site da empresa não consegue ser acessado com a quantidade de pessoas que quer ver o filme, e quer saber mais sobre a empresa.
Em termos narrativos, nada podia ter sido melhor feito. O filme introdutório que surge nos ecrãs de televisão é excelente no modo como apresenta ao que vem, e cria uma necessidade atroz no espetador de querer saber o que vai acontecer àqueles personagens. O facto de o anúncio ter sido banido ajuda ainda mais à causa, criando a vontade de saber o porquê, conhecer e estar a par. Nada é mais apetecível que o proibido ou banido.
Primeira parte. Anúncio passado na televisão durante o Super Bowl 2017.
E tudo seria apenas isso, uma boa campanha de teasing, recorrendo ao melhor do suspense e mistério para captar a atenção, mas não é apenas isso. Aquilo que a 84 Lumber faz, o fechamento da narrativa, o clímax, e tudo aquilo que ele representa politicamente, é simplesmente brutal. É uma chapada na cara de Trump, Bannon e toda a ala da extrema direita republicana.
Acabei de ver "Arrival", é um belo filme, dentro da linha que Villeneuve nos tem habituado, embora não me tenha impactado. A história sendo interessante não traz nada de muito novo com os artifícios da não-lineariadade passado-futuro, discordando do modo como inicia os flashbacks, embora concordando com a premissa base da história. Contudo, não é para falar da história nem da cinematografia que trouxe aqui o filme, mas antes para falar da banda sonora e score, ou melhor, para apresentar uma questão que me deixou intrigado.
O score de "Arrival" é brilhante tendo sido criado pelo não menos brilhante Jóhann Jóhannsson, e por isso mesmo teve direito a ser editado pela muito selecta Deutsche Grammophon. Contudo a sequência de início e fecho do filme, em que o twist se dá, e ligamos o círculo narrativo, é trabalhado com uma música, "On the Nature of Daylight", que não é de Jóhannsson, mas antes de um outro, também brilhante, compositor Max Richter.
Isto não seria surpreendente se o score tivesse sido feito por ambos os compositores, contudo como podemos ver na capa do álbum, surge apenas o nome de Jóhannsson. E se isso me incomoda, apesar de saber distinguir o Score da Banda Sonora, mais ainda me incomoda o facto da música de Richter escolhida, ter sido utilizada por várias vezes em diferentes filmes, entre os quais o "Shutter Island" (2010) de Martin Scorcese e "Stranger than Fiction" (2006) de Marc Forster, e estar editada no seu álbum "The Blue Notebooks" de 2004.
É o próprio Richter que diz que não se sentiu muito convencido em deixar usar a música em "Arrival", uma vez que já tinha sido usada em vários outros filmes, mas como ele diz também, foi o próprio Villeneuve que insistiu para o seu uso. É recorrente o uso de música de câmara de grandes autores clássicos no cinema, assim como música pop ou rock. Contudo o que questiono é, qual a razão disto quando se tem a trabalhar para o filme um compositor brilhante como Jóhannsson? E porquê ir buscar uma música que já está gasta, que os espectadores mais atentos associam a outras memórias, e memórias de outros filmes?
Max Richter, "On the Nature of Daylight", (2004)
Não posso deixar de demonstrar a minha surpresa e decepção. O final do filme perde, porque o evento que deveria ser completamente original, próprio e pertença única daquele momento cinematográfico marcante, mistura-se com todo um outro conjunto de memórias, perdendo muito do seu impacto estético, impedindo a criação de uma memória nova totalmente única.
Um diário, um testemunho. O relato de uma vida durante três anos (1942-1944) cruciais na história da Europa, e cruciais na história da autora (13-15) que vê a sua adolescência passar de criança a adulta. Um livro exemplo da história e estética da literatura, que demonstra a relevância do contexto da realidade e da autora para uma correta interpretação da mesma. Sendo um diário, estando conectado a alguém em particular, o momento histórico de que dá conta acaba fazendo deste também um diário de todos nós.
Teria sido apenas mais um diário, ainda que bem escrito, não fosse o seu enquadramento histórico, ao que se junta com enorme intensidade narrativa o desfecho dos eventos e da vida da autora. Não é possível ler o diário alheado desses factos, fazê-lo é até uma falta de respeito para com quem o escreveu. Por isso mesmo são tão descabidas as críticas que se podem ler ao livro — “não é suficientemente envolvente em termos narrativos” ou “não tem uma boa edição”. O “Diário” não é uma obra desenhada para provocar emoção, é a expressão interior de alguém que viveu sob determinadas condições. É um relatar de experiências, é um comunicar terapêutico de alguém num momento particular da sua vida e da nossa história. Desligar o livro do seu contexto é matá-lo.
Começando pela data em que foi escrito. Estávamos em plena Segunda Guerra Mundial, com os judeus perseguidos, não apenas para serem expulsos ou colocados num qualquer gueto, mas para serem exterminados. As pessoas que se escondiam, não o faziam por não quererem abandonar as suas casas, faziam-no porque o que os esperava eram as câmaras de gás, as valas comuns e os crematórios (ver “Shoah”, 1985). Não existia alternativa à auto-exclusão do mundo, à clausura forçada. Para agravar o problema, todos os que deles se aproximavam corriam sérios riscos de serem também executados. Se este contexto é ideal em termos narrativos, pelo perigo e mistério, ele deve servir para mais do que entreter o nosso tempo, ele deve servir a reflexão sobre as vidas vividas nesse tempo da nossa história.
Passando à autora, sua idade e contexto familiar. Temos alguém muito jovem, acabada de entrar na adolescência, feliz por ter tido a sua primeira menstruação, muito consciente de si e do mundo que a rodeia. Para tal serviu claramente uma família de classe média-alta, mas acima de tudo um pai e uma mãe muito conscientes da educação dos seus filhos. Uns pais capazes de falar de tudo, sempre presentes, e fundamentalmente grandes fornecedores de estímulos, nomeadamente na forma de livros dos mais diversos temas.
O diário inicia-se com a história do seu próprio surgimento, na forma de prenda do aniversário dos 13 anos de Anne. Podemos desde logo ver como nesse aniversário a prenda que é oferecida em maior quantidade a Anne, são livros. Apenas pelo lado da família próxima recebe 6 livros. Durante os três anos em que estão presos no Anexo, os livros nunca faltarão a Anne, não só de leitura mas também de estudo. Os seus pais mantiveram horários e objetivos de estudo ao longo de todos aqueles três anos. E perto do final, Anne e a sua irmã só sonham em voltar para a Escola!
"Também é ela que traz cinco livros da biblioteca, todos os sábados. Ansiamos pelos sábados, porque significa livros. Somos como uma data de miúdos com um presente. As pessoas normais nem sonham como os livros podem ser importantes para alguém que está engaiolado. As nossas únicas diversões são ler, estudar e ouvir rádio." (p.152)
É por demais evidente que todas essas leituras tiveram grande influência sobre o diário de Anne. Que não sendo uma obra de grande elaboração, é uma obra em que se nota uma clara progressão na qualidade descritiva, tanto pelo amadurecimento psicológico da autora, como pela evolução das suas competências de escrita. Anne passa dos 13 aos 15 anos, passa pela sua primeira paixão, e tem imenso tempo para se dedicar à introspeção do que sente, servindo-se do diário como síntese de todos esses sentires.
Por outro lado, o diário foi reescrito por Anne. Depois de ouvir na rádio que no pós-guerra iriam usar os diários das pessoas para tentar reconstituir o que teria acontecido de facto, Anne fez uma segunda versão do que tinha escrito. Anne chega a dizer-nos que quer ser Jornalista ou Escritora. Ou seja, o que lemos nestas páginas, não é algo não autorizado, mas é algo que assume a leitura por outros. Ainda assim a técnica narrativa que permite a Anne aprofundar todas as suas descrições — escrevendo no diário cada dia como se fossem cartas para uma amiga imaginária — é algo que está presente desde o início, dando conta das suas capacidades criativas.
Ao longo do livro, impressionam as descrições dos sentires da casa, do seguimento da evolução da guerra pelo rádio, da manutenção da esperança, do agarrar à vida. Todos faziam cursos por correspondência, para se manter sãos, mas ao mesmo tempo porque acreditavam no que havia de vir. No diário fica claro o confronto entre os instintos mesquinhos do ser humano e os valores superiores, nomeadamente num estoicismo enraizado na educação de Anne que nos toca, porque a estes valores não é alheia a progressão da qualidade e elaboração da sua escrita, motivada por todo o seu trabalho, esforço e dedicação.
“Se Deus me deixar viver, conseguirei chegar mais longe do que a Mamã alguma vez conseguiu, farei ouvir a minha voz, sairei para o mundo e trabalharei para o bem da humanidade! Sei agora que é preciso em primeiro lugar coragem e alegria!” (p.347)
Tenho poucas dúvidas sobre o potencial de Anne enquanto escritora, caso tivesse sobrevivido ao Holocausto.
A revista Vox entrevistou Shigeru Miyamoto e questionou-o sobre os fundamentos do design que estão na base dos seus maiores sucessos na indústria de videojogos. A entrevista é curta e a interpretação do que Miyamoto diz é muito fraca, razão pelo qual não sigo os conceitos como explanados pelo vídeo, mas antes como os interpreto das palavras de Miyamoto. Não sendo uma entrevista de grande aprofundamento, os três componentes apresentados conseguem ser relevantes para quem se quiser focar sobre a essência do design de videojogos.
1 - Realização (accomplishment)
Apesar da Vox definir este primeiro componente como história, não sigo, porque não é isso que Miyamoto diz, e nem sequer faz sentido aplicado aos jogos em questão — Donkey Kong e Mario. Nas suas palavras a realização corresponde a: “You have to have a sense that you have done something, so that you get that sense of satisfaction of completing something.”
2 - Visualização (Show, Don’t Tell)
O segundo componente é mais uma vez erradamente interpretado pelos senhores da revista, que traduzem o que Miyamoto quer dizer por simplicidade. Apesar de o poder ser, em essência Miyamoto está a falar do conhecido processo de criação — show, don’t tell. Nas suas palavras, a preocupação centra-se sobre: “How I’m showing a situation to a player, conveying to them what they’re supposed to do.” A discussão em redor do nível de tutorial é ótima, porque é o ponto em que a visualização do que se deve fazer é maximizada.
3 - Imersão (Immersiveness)
Por fim, a imersão, aqui seguindo Miyamoto, embora acabando por na explicação por misturar o conceito com o de feedback. Para Miyamoto a imersão corresponde simplesmente a: "Being able to feel like it’s a world you’re immersed in, that you’ve become a hero.” Ou seja, criar uma situação que garanta a participação do jogador ao ponto deste esquecer o seu mundo, e sentir-se imerso.
Filme monumento, no qual a palavra é elevada a estatuto indiferente ao meio, fazendo de “Shoah” um artefacto que está para além do cinema e da literatura. 9h26m de vozes ilustradas por caras e espaços que nos contam o que os olhos viram e recriam para o espectador um mundo que inacreditavelmente existiu.
Shoah é a palavra hebraica usada para referenciar o Holocausto
Claude Lanzmann passou 11 anos a trabalhar para este documentário, tendo definido algumas linhas de partida, de que não se afastou, e que serviram na acentuação de uma estética documental naturalista: não foram usadas quaisquer imagens de arquivo, não foi usada música, nem foi usado qualquer efeito sonoro ou gráfico, nem sequer na etiquetagem dos espaços ou pessoas. Aquilo que vemos são apenas os espaços que a câmara capta nos locais em que os eventos aconteceram, e as caras de quem fala sobre o que aconteceu nesses locais.
“Shoah” é um testemunho polifónico vivo e irrepetível. Grande parte das pessoas entrevistadas e sobreviventes do Holocausto, passados 76 anos sobre o acontecido, já desapareceram. O que nos é dito aqui, fica para a memória da espécie humana, e é por tal um documento de valor inestimável. “Shoah” dá-nos a experienciar o horror, mas de uma forma racional, sem estilhaçar as nossas emoções, sem nos obrigar a virar a cara, o impacto dá-se dentro de nós, por meio das palavras que evocam ideias e experiências que despoletam sentimentos.
“The greatness of Claude Lanzmann's art is in making places speak, in reviving them through voices and, over and above words, conveying the unspeakable through peoples' facial expressions.” Simone de Beauvior
Não é um filme sobre o qual valha muito dissertar sobre as qualidades estéticas, apesar de presentes e imensamente poderosas, desde a cinematografia ao ritmo da montagem, que tornam a obra uma experiência intensa. Por outro lado, são muitas as evidências apresentadas que nos surpreendem, apesar de a maioria de nós ter visto e lido centenas de obras sobre o sucedido. Da simplicidade aberrante, do uso de um camião e o seu próprio monóxido de carbono para matar dezenas de pessoas de uma vez, às técnicas de propaganda psicológica para domesticar e adormecer as populações, não existem adjetivos que qualifiquem.
No final ficam algumas certezas: a espécie humana é capaz do melhor e do pior; a nossa essência assenta na sobrevivência e essa está biologicamente ligada à discriminação do outro, do que é diferente. Os Judeus foram perseguidos desde sempre pela sua diferença, e passados 2000 anos o melhor que conseguimos fazer foi ditar o seu total extermínio. A diferença corrompe-nos, temos de ser melhores, temos de ser capazes de controlar os nossos instintos ou acabaremos por nos eliminar a nós mesmos enquanto espécie deste planeta.
As primeiras 400 páginas, 5 estrelas, as segundas 400 páginas, 2 estrelas. A escrita de DeLillo é, neste livro, sublime porque profusa, erudita, eloquente, e atmosférica. Na primeira parte somos apresentados a um conjunto de personagens, eventos e épocas. Na segunda parte DeLillo desenvolve uma profunda análise crítica por meio de uma fragmentação articulada, tipicamente pós-moderna, na qual envolve acontecimentos mais e menos conhecidos da história dos EUA, para dar forma ao imaginário coletivo americano.
Naturalmente a primeira parte deveria ser a mais maçuda e secante, contudo não o é, porque a escrita é fantástica, e tudo o que nos vai apresentando é sorvido por nós avidamente. Os personagens são tipicamente americanos que podemos reconhecer de muito do cinema americano, sente-se particularmente os anos 1950 e os 1970. Fala-se de muita coisa, com dois motivos centrais a funcionar como aglutinadores, o baseball e a guerra fria.
Todas as análises literárias se detêm sobre o primeiro capítulo, o qual foi inclusive destacado e re-publicado em livro à parte. Neste, DeLillo narra um dos grandes episódios do baseball americano a final de 1951 entre os Giants e os Dodgers, que apesar de todo o dramatismo envolvido à sua volta, terá assumido toda esta relevância por algo que DeLillo não diz de forma explícita, mas a que DeLillo é muito sensível, e que é o facto de ter sido o primeiro jogo a ser emitido pela televisão nacional dos EUA. Ou seja, o evento não ficou contido no estádio, nem na região, contaminou o imaginário de todos os americanos no país por meio desse meio de comunicação poderoso que foi a televisão, ao longo de toda a segunda metade do século passado.
"The Shot Heard 'Round The World", Giants X Dodgers, 1951
Este primeiro capítulo, e primeiro episódio de "Underworld", marca o estilo do livro e aquilo que DeLillo pretende fazer. O seu objetivo é claramente entrar na psique do imaginário coletivo, dissecá-lo. A sua descrição é cabalmente detalhada e envolve inclusive personagens da época como Frank Sinatra ou J. Edgar Hoover. A sua leitura é uma enorme delícia, na forma, mas só na forma, e é aqui que reside o problema maior de “Underworld”. Ou seja, para grande parte dos não-americanos, que não percebem o desporto, mas principalmente não detêm qualquer memória do evento reportado, a leitura funciona de forma estranha. Ou seja, em vez de aquele relato profuso nos ir fazendo aproximar do evento, acaba por nos afastar ainda mais, por não sermos parte do colectivo que conhece e se reconhece, porque o relato não se foca na tentativa de nos dar a compreender a grandiosidade do feito, mas antes foca-se na evocação dos sentires de quem o experienciou.
Por outro lado, o episódio seguinte, muito menos discutido, é muito mais efetivo, provavelmente pela sua universalidade. DeLillo continuando a sua digressão sobre os media, elabora uma descrição magistral de um dos assassínios do Assassino da Auto-Estrada do Texas. A particularidade do mesmo, é que tal como o jogo de baseball, é filmado, e passado e repassado nas televisões. Aqui temos uma alusão direta à criação de imaginário coletivo pelos meios de comunicação social. E podemos mesmo ligar este episódio ao primeiro, já que o enfoque na repetição da sequência, é no fundo um decalque daquilo que provavelmente terá acontecido com o jogo de baseball na televisão, em que terá sido repetido ad nauseam.
Dito isto, parecia termos aqui tudo para um livro magnífico. Apesar de não me interessar o baseball, o meu trabalho centra-se em redor dos efeitos dos media, logo tudo isto me interessaria, e tenho de dizer que este segundo episódio vale a leitura mesmo para quem não queira ler o resto do livro. Aliás os dois primeiros episódios, valem a leitura, recomendo vivamente.
O problema surge a seguir, quando DeLillo quer fazer da literatura um espelho dos sentires da massa colectiva criada pelos media. Porque o modo como o faz é por meio da multiplicação de personagens, de eventos históricos e fragmentação de linhas de enredo, o que acaba por nos fazer perder. A leitura ganha um grau acentuado de dificuldade, claramente na senda de um “Infinite Jest” (1996), mas com uma diferença, não existe um elemento unificador. Ou melhor, ele existe, mas por se tratar de um imaginário colectivo, não é algo palpável, nem facilmente delimitado, mais ainda porque trabalha múltiplos eventos da história de um país que não conhecemos, pelo menos o suficiente para o modo distanciado como DeLillo vai relatando. Acabamos assim perante uma massa de fragmentos narrativos, de personagens e eventos, pendurados no ar, sem conexão clara, e se racionalmente lhe podemos atribuir um rótulo, emocionalmente nada sentimos.
Em 2006, "Underworld" terá ficado em segundo lugar atrás de "Beloved" (1987) de Toni Morrison que venceu uma votação de críticos americanos da melhor literatura dos anteriores 25 anos. Comparando ambos, repetiria o argumento que fecha o parágrafo anterior: "Underworld" é um feito académico em termos de escrita, mas "Beloved" consegue aquilo que só a literatura completa consegue, transformar-nos.
Mais uma primeira-obra portuguesa que merece nota máxima, depois de “O Meu Irmão” (2014) e “Perguntem a Sarah Gross” (2015). Todas com boas histórias, bem escritas, mas com estéticas muito diferentes, e neste caso não admira que António Lobo Antunes lhe tenha tecido elogios, já que Ana Margarida de Carvalho escreve na sua senda. Temos um discurso indireto livre sem freios, que entra pelas mentes dos personagens adentro e os esventra dos seus sentires. Tendo recentemente lido “Myra” (2008) de Maria Velho da Costa, “Que importa a fúria do mar” não está ao mesmo nível, falta-lhe maturidade capaz de conferir um controlo fino do texto e do que vai dizendo, mas aproxima-se bastante e promete sobre Ana Margarida de Carvalho.
“Que importa a fúria do mar” é um texto curto, 200 páginas, dotado de uma escrita erudita e não-linear, mas que ainda assim no desenrolar de páginas se vai colando a nós, tornando a leitura cada vez mais fácil e rápida. Em pouco tempo damos por nós a querer virar páginas para saber o que vai acontecer a seguir, tendo já esquecido que o discurso não segue linear, e que ora estamos dentro de Eugénia, de Joaquim, Francisco, o Gato ou o Pastor, mas com a autora sempre a manter o caminho da trama suficientemente iluminado, exigindo apenas quanto baste pela experimentação estética que vai realizando.
"Eras tão nova, mãe. E eu agarrada aos teus sonhos, aos teus cabelos, aos teus sapatos, ao teu presente, ao teu futuro – e pior – ao teu passado, que tu querias esquecer. Mas lá estava eu a fazer-te lembrar que tinha mesmo acontecido. Desafortunadamente, era uma menina empecilho, largada numas paragens agrestes e húmidas, em casa de uns parentes remotos. E velhos."
Para primeira obra é admirável escrever-se assim. Não só ter uma boa história para contar, que enlaça o passado ditatorial e colonial do nosso país com o presente das tragédias de quem por cá sempre viveu e tem de viver, mas acima de tudo por um texto capaz de ser tão intrincado e ao mesmo tempo tão aberto, tão dado. Existem claro passagens menores, alguns excessos. Muita crítica é feita ao palavreado rebuscado, que se sente mais no início e que acaba por perder leitores, mas que vejo mais como sintoma de alguma insegurança originada pela imaturidade. Do meu lado, sinto ainda um excesso no número de tragédias apresentadas tão a jeito de catarse emocional, e que por vezes até em aberto se quedam. Mas é também, em parte, graças a estas catarses, que Ana Margarida de Carvalho consegue a nossa atenção e interesse todo o tempo da leitura, fazendo deste texto um dos livros portugueses que mais mexeu com as minhas emoções.
"Ao calor do meio-dia, Joaquim fazia por enterrar os arrames farpados nas costas. Preferia focar-se na dor das feridas do que na sede que o ensandecia. Isso e as moscas que não podia enxotar e lhe sondavam a face com as suas trombinhas impertinentes."
"Não estou aqui para curar, mas para assinar certidões de óbitos"
Quanto à chave do texto, está no título. As suas duas primeiras palavras dizem tudo. As tragédias passam por nós, os outros passam por nós, e nós seremos o que todos estes fizeram de nós.
Fotografias do Campo de Concentração do Tarrafal, Cabo Verde, 2016
Nota final: O facto de ter estado no Tarrafal este ano contribuiu, e muito, para ampliação do meu sentir do que se encerra nas páginas deste livro. Inevitável criar estas relações com as obras que se aproximam de nós, a familiaridade é um dos mais poderosos afrodisíacos do prazer das histórias.