janeiro 21, 2017

"Pre-Suasion: A Revolutionary Way to Influence and Persuade" (2016)

Nos anos 1980, Cialdini, um académico das áreas da Psicologia e do Marketing, lançou um dos livros mais relevantes sobre persuasão — "Influence" (1984). Nesse, apontava seis grandes princípios determinantes da persuasão — 1. Reciprocidade, 2. Prova Social, 3. Cometimento e Consistência, 4. Simpatia, 5. Autoridade e 6. Escassez. Foram entretanto precisos mais de 30 anos para Cialdini se dispôr a escrever um novo livro, porque segundo ele, não tinha encontrado nada de novo para dizer para além do que já tinha dito. O novo livro, "Pre-Suasion", apresenta-se como um pequeno trocadilho da palavra persuasão, e define em si mesmo o novo conceito que tem para nos apresentar.


Na realidade, o novo conceito que Cialdini nos traz neste livro tem pouco de revolucionário, já que se baseia em dois grandes princípios do Viés Cognitivo, apresentados por Kahneman no seu opus “Pensar, Depressa e Devagar” (2011): “ancoragem” e “priming”. A ancoragem dá conta do viés que possuímos e que tende a conduzir as nossas decisões em função da informação que nos é oferecida (ex. após pensar em números grandes cria-se uma tendência para aceitar valores maiores para produtos). Por sua vez o priming consiste num processo de associação de distintas memórias que partilham semelhanças (ex. pensar em pessoas idosas pode conduzir as pessoas a reduzir a velocidade; pensar em atletas que se esforçam muito pode conduzir à criação de maior a resiliência).

O que Cialdini faz então é potenciar estes vieses na comunicação, apresentando neste novo livro uma nova abordagem comunicativa baseada na manipulação do tempo imediatamente anterior à comunicação da mensagem. Nesse tempo, defende então a introdução de variáveis de ancoragem ou priming, que conduzam à criação de uma predisposição na audiência para aceitarem o que se vai dizer a seguir. Trata-se assim de uma preparação, ou modelação, para a mensagem. Podemos pensar em algo parecido como os genéricos cinematográficos, em que se modela o estado emocional dos espectadores para o filme que se vai seguir.
“If you want people to buy a box of expensive chocolates, first arrange for them to write down a number that’s much larger than the price of the chocolates.
If you want people to choose a bottle of French wine, first expose them to French background music before they decide.
If you want people to agree to try an untested product, first inquire whether they consider themselves adventurous.
If you want to convince people to select a highly popular item, we can begin by showing them a scary movie.
If you want people to choose a more expensive but more comfy option, first show them fluffy clouds
If you want people to feel warmly toward you, hand them a hot drink.
If you want people to be more helpful to you, first have them look at photos of individuals standing close together.
If you want people to be more achievement oriented, first provide them with an image of a runner winning a race.
If you want people to make careful assessments, first show them a picture of Auguste Rodin’s The Thinker.”
 in "Pre-suasion" (2016:Loc. 2338)

O desafio desta abordagem 
A pre-suasão de Cialdini assenta na arte de capturar e conduzir a atenção dos recetores, mas para que funcione é necessário conseguir atingir a atenção dos recetores. Ou seja, se aquilo que definirmos como estímulos de ancoragem e priming não falar aos recetores, o efeito será nulo. Por isso conhecer este processo, em si, pode ser interessante, mas nas mãos de alguém que não trabalhe devidamente a mensagem e o público, de muito pouco valerá. Para ajudar no trilhar do caminho, Cialdini propõe um conjunto de estratégias baseadas em conceitos, de teor mais universal, que podem contribuir para o desenhar de estratégias de pre-suasão.

6 Comandos de Atenção
* O Sexual *
Um dos elementos mais relevantes de toda a sociedade no que toca à captação de atenção, já que está subjacente a toda a origem das artes de persuasão, sendo utilizado por todos aqueles que produzem arte, entretenimento ou marketing. Contudo o sexo não funciona de forma igual para tudo. Se assim fosse não teríamos apenas 8% dos produtos a recorrerem ao mesmo, como nos diz Cialdini. A título de exemplo o apelo sexual funciona muito bem com a moda ou os perfumes, mas funciona mal com refrigerantes ou detergentes. Ou seja, “In any situation, people are dramatically more likely to pay attention to and be influenced by stimuli that fit the goal they have for that situation.” (Loc. 1141)

* A Ameaça *
Nada funciona melhor quando se quer fazer alguém pensar como nós do que definir uma ameaça à forma de pensar dessa outra pessoa. A necessidade de segurança é essencial ao ser humano. Basta ver a transformação da sociedade, tudo o que passou a aceitar em face da ameaça terrorista pós 11 Setembro. A título de exemplo, a maior parte das campanhas sociais trabalham sob este prisma, desde as campanhas anti-tabaco, com as fotografias devastadoras nos maços de tabaco, aos anúncios publicitários que mostram a violência doméstica, de guerra, ou outras. A ameaça tem ainda a capacidade de unir os seres humanos, de os levar a sentir necessidade de se aproximar do seu grupo, o problema é que isso também produz o efeito de rejeição do outro.

* A Diferença *
Talvez o maior marcador de atenção que possamos desenvolver, não é por acaso que a palavra de ordem é o Novo, e que a nossa sociedade se dirigiu na última década desenfreadamente para o mundo da Inovação e da Criatividade. A diferença marca o interesse de todos nós. A base desta relevância está no facto de que a ausência de diferença conduz à estagnação e redução de velocidade de processamento, logo redução da atenção. Evolucionariamente estamos treinados para ignorar o normal, relaxar, até que algo diferente surja, e isso nos volte a por em modo ativo. Contudo, é também obviamente um dos comandos mais difíceis de trabalhar.

* A Auto-Relevância *
Mais um marcador poderoso. O ser humano é por razões de sobrevivência auto-centrado — “primeiro Eu, depois Eu, e depois talvez o Outro”. Daí o surgimento nas últimas décadas dos discursos sobre as preferências pessoais, do “você merece mais”. Contudo, tal como o comando anterior, é difícil de construir, muito baseado nas particularidades de cada indivíduo.

* O Não-acabado *
Um princípio roubado à Gestalt, que esta começou por apresentar no domínio visual, pelo facto de necessitarmos de completar tudo o que se encontra incompleto. Este princípio levaria à criação de um outro que ficou conhecido como Efeito de Zeigarnik, e que defende que as pessoas têm tendência a recordar melhor aquilo que se queda incompleto. Cialdini fala neste ponto de uma técnica do processo de escrita muito interessante, e que consiste em parar a escrita a meio de uma ideia, em vez de a completar e fechar. Deste modo, ficamos a pensar na ideia e acabamos por ter um estímulo adicional para voltar ao processo de escrita.

* O Misterioso *
Este princípio não se diferencia propriamente do anterior, já que não é mais do que a particularização narrativa do anterior. Ou seja, Cialdini fala da criação de mistério em redor de um assunto para manter uma audiência (ex. alunos numa aula) ao longo de toda a duração do discurso. Ora, este género de contar histórias, mistério e thriller, define-se por um truque simples que assenta na criação de uma necessidade de conhecer uma resposta, algo que funciona como cenoura para a audiência. Mas esta resposta não é mais do que a chave que fecha uma ideia não-acabada apresentada no início de um livro, filme ou da tal aula.


No final do livro Cialdini apresenta uma espécie de defesa de um potencial novo princípio de Influência, a juntar aos 6 definidos no seu anterior livro, que seria o de “Unidade”. Apesar de considerar interessante, julgo que o princípio não acrescenta muito ao princípio de “Simpatia”. Ou seja, Cialdini defende que a “Unidade” providenciada pelo sangue, família, região, ou qualquer tipo de relação que una os indivíduos conduz as pessoas a favorecer essas mesmas pessoas. Ora isto é exatamente o mesmo que acontece no princípio de Simpatia (“likeness”), que nos diz que tendemos a favorecer mais aqueles de quem mais gostamos. Embora possamos aqui falar, por exemplo, do ato de defender pessoas da nossa família — irmãos, filhos, pais — mesmo que não gostemos assim tanto deles. Contudo esta definição de não gostar, e do sangue se sobrepôr à amizade, não pode ser vista de modo simplista, o gostar ou não gostar não se define como mero preto e branco.

Para fechar, é um livro interessante, mas que para ser totalmente compreendido, e poder assacar o todo do que ele entrega, exige o conhecimento do livro anterior. Os princípios de pre-suasão não devem, não apenas por questões éticas, ser utilizados de modo indiscriminado, sem um conhecimento mais aprofundado da comunicação persuasiva e dos viés cognitivos que nos definem enquanto seres humanos.

janeiro 19, 2017

"Myra" de Maria Velho da Costa

Sintético e sincrético, num constante jogo de opostos. Uma amálgama discursiva de intenso sabor. Um texto impressivo que segue de muito perto o impressionismo da pintura, no modo como textualmente desfoca o real e o torna menos claro e preciso mas indelével e intenso. Se podemos sentir a história descarrilar a meio caminho, o discurso e a escrita são tão intensos e particulares que fazem desta obra um texto em língua portuguesa obrigatório.


“Myra” é provavelmente o romance mais económico que li até hoje. É tudo tão medido, não existem palavras ao acaso atiradas por entre frases, mas antes cada uma tem um desígnio. Muito é dito em frases curtas, por vezes duas palavras chegam para passar uma imensidão de acontecimentos, um sentir carregado de passado ou um mundo por vir. A autora não se perde em explicações, estamos sempre no presente, no interior da cabeça dos personagens, sejam estes pessoas, cães ou casas, todos falam, mas, e ainda que de forma comedida, quando falam dizem muito sobre o passado e o futuro. Interessante como apesar de tão pouco dizerem, sentimos que estão em diálogo permanente, porque na verdade estão, já que dialogam pensando, enriquecendo assim o discurso, criando deste modo uma obra singular.

Todo o desenho da obra é feito seguindo uma lógica geométrica de contrastes e opostos a vários níveis: cultura (alta / baixa), discurso (modernista / realista), trama (etérea / naturalista). Com um mundo representado pelo choque constante de culturas, numa busca pelo sincretismo que vai da alta cultura (a linguagem erudita, rodeada de música de câmara e cinema europeu) à baixa cultura (vernáculo, música pop e cinema de Hollywood); suportado por um discurso pontilhado de fluxo de consciência por entre diálogos claros e expositivos; por sua vez tudo dirigido por uma trama que divide o texto em três momentos, opondo-se os dois primeiros, oníricos, ao último mais naturalista.

De certo modo as referências intertextuais marcam toda esta cisão criada: com Pasolini, Eisenstein ou Rimbaud de um lado; Sylvester Stallone, Will Smith, ou séries de televisão, do outro. Não poucas vezes, o que se diz é dito por meio de um título de um filme, de uma fala, ou uma canção, trazendo para dentro da economia de texto uma enorme riqueza de sentidos. O mesmo se dá com as interjeições linguísticas que vão do inglês, francês, russo, ao italiano ou o latim. Tudo isto, enriquecendo não deixa de se tornar a certo ponto repetitivo, matemático, conduzindo a alguma deserção do texto em que estamos inseridos.

Cabe aqui interpretação, aliás muita, desde logo porque sendo um texto económico acaba por se aproximar bastante de uma obra minimal o que inevitavelmente produz a necessidade de seguir as pistas deixadas pela autora, mas também por toda a intertextualidade presente. De certo modo, a cabal compreensão do texto só é possível com um estudo mais aprofundado da autora e seu contexto. Depois de ter escrito esta palavras encontrei uma tese de mestrado, de Daniel Damasceno Floquet, completamente dedicada ao estudo das dicotomias em "Myra", no fundo aquilo que aponto acima como geometria de constrastes. Não a li, tentarei ler entretanto para chegar mais fundo na compreensão deste texto que apesar de curto é imensamente rico.

Da minha perspectiva, confronta-se aqui o belo, a elaboração cultural, com o grotesco do mundo primário real. Esse confronto atravessa toda a obra, num questionamento da elevação cultural, confrontado com o mantra da vida: “a fome, o sexo e o poder”, e por outro lado o condicionalismo da nossa natureza na expressão, muitas vezes repetida, “sangue puxa sangue”, como se Maria Velho da Costa nos quisesse apontar uma certa inevitabilidade em tudo o que apresenta. Apesar de nos civilizarmos e desenvolvermos, não largámos aquilo que nos condiciona enquanto humanos e isso cria uma mágoa profunda.


Prémios da obra:
Prémio Correntes de Escritas, 2008
Prémio P.E.N. Clube Português de Narrativa, 2009
Prémio Máxima de Literatura, 2009

janeiro 15, 2017

“Purity” (2015)

Senti desilusão, apesar de não me surpreender. Depois de dois livros seguidos brilhantes — “Correcções” (2001) e “Liberdade” (2010) — era natural surgir um livro menos interessante. A escrita continua boa, o livro lê-se com grande velocidade, contudo é uma escrita menos rica, menos elaborada. Perdeu, considerava Franzen um patamar acima de Donna Tartt, mas “Purity” acaba sendo o equivalente de “O Pintassilgo” (2013).


A julgar pelo que foi escrevendo não-ficcional, fica a ideia de que Franzen seguiu em excesso a sua definição do “modelo de contrato”, entre escritor e leitor. A escrita parece aligeirada para facilitar a compreensão aos leitores, assim como existe mais enredo e menos personagem, ou ainda mais redundância explicativa da ação, ou ainda mais sexo, e já agora muito mais perspetivas do ponto de vista da mulher (não que isso tenha algo de errado, mas sendo ele homem não funciona, pelo menos de modo convincente). Chegado ao fim, parece que Franzen andou a ler todas as críticas que lhe foram feitas na última década, e criou um cardápio de respostas para oferecer aos leitores que o criticaram por não ter aceite o selo da Oprah.

A beleza do trabalho de Franken está na escrita, e o seu grande tema é a família, sair daí não o conduziu a nada de bom. Enfiou-se por uma trama policial sem grande sentido, talvez almejasse “Crime & Castigo” mas fica demasiado distante. Com personagens baseados em Assange e Snowden também não era difícil que assim acontecesse. Muitas vezes Franzen ataca a internet e as redes sociais, fala dos seus perigos, da privacidade e do mundo que mudou, mas é tudo tão lugar comum, tudo tão saturado que nada dali se retira. No extremo apresenta uma idealista, Anabel a mãe de Purity, que nos vai dar uma secção inteira de puro fastio, com as suas rejeições do vil metal e a sua pseudo-arte e um namorado/marido que é ainda mais fastioso por se deixar levar.

Tirando esse capítulo, todo o restante livro se lê muito bem, embora pareça sempre que vamos chegar a algum lado com tudo aquilo, quando na verdade nada existe para além do que se vai desfilando na nossa frente. Existem muitos rasgos de grande brilhantismo, com personagens a tocarem-nos dentro, mas logo a seguir tudo se desvanece e surgem ações desses mesmos personagens que dão conta de um vazio amnésico. Depois, o reles truque de fazer calhar na rifa uns milhões para esquecer todos os problemas e viver feliz para sempre cai muito mal.

Não o consegui colocar na mesma prateleira dos outros dois, foi para uma pilha no topo de outra estante. Acho que isso diz alguma coisa. Não vou dizer que é mau. Sei que assim escrevo pela desilusão que apoquenta quem tanto gosta de algo, neste caso deixei-me levar em excesso pelos trabalhos anteriores do autor. Por isso lhe dou 3 estrelas, mas talvez com algum distanciamento possa subir uma.

janeiro 14, 2017

Experienciar pela Metáfora

No final da leitura e análise de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamin Bergen, surgiu-me esta questão: “Como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?”. A pergunta já tinha sido respondida antes por Lakoff & Johnson em "Metaphors We Live By" (1980).


Lakoff & Johnson disseram que "A essência da metáfora é compreender e experimentar um tipo de coisa em termos de outra." e consideraram-na essencial ao nosso modo de compreensão do real — "Enquanto seres humanos, utilizamos continuamente as metáforas para compreender o significado de conceitos abstractos, ou processar informação” (1980). Ou seja, a grande maioria do que verbalizamos são ideias abstractas, a única forma que temos de estabelecer a ponte com o outro ser-humano, e ele poder vir ao nosso encontro, é através da metáfora que ambos compreendemos da mesma forma.

A vida é ‘pesada’. (compreender a Vida pelo conceito de Peso)
Estás a ‘gastar’ o meu tempo. (compreender o Tempo pelo conceito de Dinheiro)
Ela vai subir até ao topo. (compreender o Sucesso pelo conceito de Espaço)
A minha cabeça não está a funcionar hoje. (compreender o Cérebro pelo conceito de Máquina)



Na verdade o nosso poder de metaforizarão vai ao ponto de desenvolver estruturas complexas de atribuição, em que os conceitos se metaforizam em função daquilo que somos enquanto humanos, e corpos no mundo, ou seja metáforas ontológicas. Assim podemos ter, segundo Lakoff & Johnson

Eventos e ações -> objetos
Atividades -> substâncias
Estados -> contentores

Um exemplo para compreendermos esta abordagem pode ser um Jogo de (qualquer coisa, futebol, cartas, etc.).

João, ‘viste o’ jogo no outro dia? (objeto: detém propriedade física)
O jogo acabou sendo muito ‘pesado’. (substância: detém propriedade sentiente)
Eu não aguentei ‘até ao final’. (contentor: detém propriedades variáveis)

A metáfora é distinta da metonímia e da sinédoque. Na metonímia não acontece comparação, de modo direto, nem se objetiva a dar a entender por outros meios, antes se produz uma substituição de termos, que de algum modo estão interligados (Ex. “Beber um copo”, o copo assume o significado do seu conteúdo). Não se metaforiza, mas antes se substitui pela sua variável dependente. Já a sinédoque, acaba aproximando-se muito da metonímia, no sentido, em que substitui o topo pelas partes, ou a parte pelo todo (ex. Lisboa caiu nas ‘mãos’ dos espanhóis).

Podemos então compreender o mundo sem metáforas? Podemos, tudo aquilo que experienciamos de forma física direta (Cima-Baixo, Dentro-Fora, Leve-Pesado, Frente-Trás, Escuro-Claro, Quente-Frio). Mas o mais interessante, é que partimos desta relação direta, tão básica e pobre em significação, para a construção conceptual de tudo o resto. Da acumulação de conceitos, camada sobre camada, chega-se à complexidade conceptual, aquela que nos permite detalhar aquilo que percepcionamos. Sem esta complexidade não conseguiríamos explicar as emoções que nos trespassam de cada vez que as sentimos na relação com o mundo. Ou seja, a construção de cada uma das metáforas, decorre de um processo causal baseado na manipulação direta (causa-efeito) dos conceitos, que quando bem sucedidas, atualizam os nossos mapas mentais do mundo.

Assim o uso de metáforas, representações do real, conhecidas por ambas as pessoas num diálogo é o que permite a comunicação. Percebemos tão bem isto, quando na leitura de um livro, o autor descreve um sentir, e nos revemos na metáfora aplicada. Mas quando por exemplo conversamos com uma criança, ou pessoa de outro país, damos por nós a gerar diferentes metáforas até encontrar aquela que faz acender a luz na cabeça do nosso interlocutor. Por não deterem o mesmo tipo de experiência que nós, por ainda serem novos ou terem experiências do mundo distintas, as metáforas não funcionam de modo automático. Isto quer dizer que o conhecimento, e a sua expressão (linguagem), funciona como uma espécie de pirâmide (metáfora para o conhecimento baseada em estrutura física) conceptual, que vai crescendo, com os conceitos a alicerçarem-se uns nos outros para ir aumentando o detalhamento e definição do mundo que conseguimos percepcionar. Quanto maior for o nosso mapa mental de conceitos, de metáforas, maior será a nossa capacidade para descrever o mundo, e ao mesmo tempo descrever-nos a nós mesmos.

O facto de eu trazer a comunicação para a discussão, interessa-me pelo que falarei a seguir sobre a literatura e o cinema, mas acaba por servir de resposta à discussão que Lakoff e Johnson produzem no final dobre livro, e que muita celeuma tem gerado, sobre o Objetivismo e Subjetivismo. O que percebemos a partir deste modo de conceptualização do mundo, baseado na metáfora, é que ele não pode decorrer apenas do mundo enquanto objeto, a realidade é construída, a factualidade não é verdadeiramente empírica já que precisa de ser recriada por nós internamente. Mas isso também não suporta a ideia de que vivemos perante uma inevitável subjetividade, em que o real é aquilo que a nossa imaginação quiser. No fundo voltamos à essência do que criou, e mantém viva, a ideia de sociedade, e que são as crenças partilhadas, produzidas pelo objetivismo (avaliação e contra-avaliação contínua da causalidade) mas devidamente sustentadas pelo subjetivismo (significação dessa causalidade) que tornam a realidade um bem comum. Considero assim, que é da comunicação humana que emerge aquilo que Lakoff & Johnson categorizam como via alternativa, o Experiencialismo, que não é mais do que uma atualização do 'pragmatismo' de Dewey que o levou a definir a Estética a partir da Experiência. (Do mesmo, modo tenho vindo a defender, do ponto de vista académico, a Comunicação como ponte essencial entre a Arte e a Tecnologia.)

E aqui surge então a parte a que pretendia chegar, e que no último texto aqui dava conta, falando da especificidade do cinema: “Como filmar o Pensamento?”. Na verdade o cinema está limitado a mostrar aquilo que percepcionamos de modo direto, pela visão e audição, já que regista a realidade. Ao contrário do texto que usa símbolos para descrever esse real. Contudo, como percebemos a literatura não usa esse símbolos para dar a ver o pensamento. As tradicionais descrições psicológicas do realismo russo (ex. Dostoiévski), são poderosas, não pelas palavras ou frases empregues, mas antes pela metaforizarão do interior dos personagens. Talvez por isso mesmo, Eisenstein, nos anos 20 do século passado, tenha tentado um tipo de expressão cinematográfica, que ficou conhecida por montagem intelectual, que nada mais é do que a criação de metáforas visuais (mais detalhe).

Excerto de “Strike” (1925) de Sergei Eisenstein

Não podemos esquecer que por esta altura o cinema não continha som, por isso tinha de se expressar o mais possível por meio das imagens em movimento. O cinema acabaria por progredir tecnologicamente e nos anos 1930 assimilaria o som, transformando-se numa arte audiovisual completa. A partir daí começou a contar com o poder da linguagem para expressar muito do que não conseguia mostrar. Isto não quer dizer que o cinema passasse a mera filmagem de cabeças falantes, já que isso iria contra o que o separava das outras expressões narrativas (oralidade e literatura). O cinema continuaria o seu caminho na tentativa de mostrar o que vai dentro da cabeça dos personagens, mas abandonaria a montagem intelectual, pelo distanciamento que cria face à ação, substituindo-a pela linguagem e música, mas focando-se cada vez mais em mostrar efeitos perceptíveis pela visão e audição. Daí que nesses anos 1930, o cinema alemão tenha criado aquilo que ficou conhecido pelo Expressionismo, uma tentativa de plasmar na imagem os sentimentos dos personagens, algo que também acabaria por atingir a saturação.

Hoje, passadas décadas, e milhares de experiências, o cinema desenvolveu toda uma forma de comunicação própria, com a qual os espetadores estão em sintonia, e que é utilizada por todos os criadores de imagens audiovisuais em qualquer canal, da televisão ao vídeo, online, móvel. Essa constitui-se por uma amalgama perfeita entre cinematografia, montagem, música (dietética e extra-diegética) e linguagem (voz off, monólogo e diálogo), que em conjunto trabalham para significar.

Sem ainda ter suficientemente confrontado, nem experimentado empiricamente, deixo uma hipótese: A imagem em movimento dedica-se acima de tudo a mostrar o real experiencial direto, sobre o qual a trabalham de modo metafórico a música e a palavra.

janeiro 13, 2017

Como filmar o pensamento

O Nerdwriter traz-nos esta semana mais um brilhante ensaio, "Sherlock: How To Film Thought", no qual dá conta cabal do modo como as séries de televisão ombreiam com o cinema. Se até aqui falávamos do modo como estas dominavam a arte do storytelling, passámos agora a falar da arte completa do audiovisual, do uso e avanço da linguagem que torna o audiovisual um meio expressivo. O cinema deixou de ser o farol e passou a ser apenas mais um dos imensos suportes. O cinema é hoje o mesmo que televisão, vídeo, web, móvel, tudo suportes. É a linguagem do audiovisual que fundamenta todos estes canais, a arte da fusão entre imagem em movimento e som.




Neste ensaio é dissecada uma cena de 3m42s de um recente episódio da série "Sherlock" (2010-..), no qual Nerdwriter demonstra algo verdadeiramente importante. O cinema, o audiovisual, sempre teve dificuldade em dar a ver o pensamento, essa capacidade esteve durante imenso tempo resguardada para a literatura. A razão é simples, o pensamento é algo interno, introspectivo e subjetivo, enquanto o audiovisual é uma arte especializada em mostrar o externo e o objetivo, ou seja é uma forma expressiva dada à extroversão. Por isso de cada vez que este tem de mostrar o que alguém está a pensar, sentir, ou refletir, é complicado. Invariavelmente as ideias acabam sendo traduzidas em ações, sequências externas, que possam dar a compreender o que sente aquele personagem, porque reage como reage, e assim passar a ideia do que está a pensar a pessoa.

Ora neste episódio de Sherlock, procurou-se antes dar a ver o pensamento. Pegou-se na mente de Sherlock, naquele momento em que ele está prestes a descobrir, a ter a revelação, e pegou-se no melhor que a arte audiovisual tem — a montagem e a cinematografia — e plasmou-se no ecrã, literalmente, aquilo que lhe está a passar pela mente. O Nerdwriter termina dizendo que esta é uma das sequência original e admirável.

"A Requiem for a Dream" (2000) Darren Aranofski

É claro que o Nerdwriter se deixa levar pelo entusiasmo, desde logo quando diz que não há CGI, quando várias das sequências estão prenhes de efeitos visuais, mas especialmente porque isto não é novo. Mais uma vez o cinema já lá tinha chegado antes, e o tinha mostrado, e até de forma mais efetiva. Se gostaram desta sequência, recomendo-vos vivamente "A Requiem for a Dream" (2000) do brilhante Darren Aranofski. A mim contudo, resta-me uma questão, porque razão só se procura mostrar o interior da mente dos personagens quando eles estão sob efeito de drogas!?

"Sherlock: How To Film Thought" (2017) de Nerdwriter

janeiro 10, 2017

A linguagem dos videojogos: “The Last Guardian”

Mark Brown traz-nos esta semana, no episódio "The Last Guardian and the Language of Games", uma análise do design de jogos centrado na discussão daquilo que faz de um videojogo um videojogo. O que o torna distinto dos outros meios, das outras formas de expressão artística. Tenho a dizer sobre isto que tenho vindo a tentar responder a esta questão em muitos dos meus escritos, talvez o principal tenha sido um que ficou com um título próximo ao deste episódio: “A singularidade da linguagem do videojogo” (2013).



Brown realiza no vídeo um trabalho sobre as motivações e contextualização do criador de “The Last Guardian”, Fumigo Ueda, trazendo para a discussão os seus dois anteriores videojogos, “Ico” (2001) e “Shadow of Colossus” (2005). Mas é na comparação com outros jogos, também bastante relevantes no campo dos videojogos narrativos — “Enslaved” (2010) "Bioshock Infinite" e "The Last of Us" (2013) — que Brown vai alcançar a principal conclusão deste pequeno ensaio vídeo. Opto por então citar o excerto principal do ensaio, e juntar ao mesmo partes do meu texto, acima referenciado:
“ Each artistic medium has its own unique language, painting uses the language of shape and colour, music is an exploration of sound, literature uses the language, of language, and film is about moving image. Videogames, can of course use all of this stuff...” (Brown, 2017)
"O videojogo contém em si mesmo tudo aquilo que o cinema contém, por isso nos interessa perceber o que o cinema alcança. É para nós claro que antes de surgir o cinema enquanto meio de expressão, e não mera tecnologia, tivemos o teatro. O cinema não é mais do que o resultado da plastificação do teatro, sob o desígnio expressivo da fotografia. Depois de termos conseguido melhorar a tecnologia de suporte ao registo da realidade, nomeadamente termos conseguido passar a fotografar a realidade várias vezes por segundo, o passo seguinte foi apontar essa possibilidade de registo para um palco de teatro. O objectivo primeiro foi o registo apenas, depois descobriu-se o seu potencial para transformar a comunicação teatral em tempo real e presencial num novo modo assíncrono e à distância. A pintura distanciou-se do retrato da fotografia, mas o teatro viu nesta, todo um novo mundo de possibilidades expressivas. Com o tempo a arte teatral que era registada por câmaras, agora condicionada por variáveis de distância e tempo diferentes, passou a trabalhar de forma diferente. Era agora possível num curto espaço de tempo mostrar mais do que um cenário, era possível mostrar mais perto ou mais longe, era possível contar histórias não apenas baseadas nas ações dos atores, mas também baseadas na forma e tempo como eram mostradas essas ações. Ou seja, tínhamos criado a montagem, e com ela nascia a essência narrativa do cinema” (Zagalo, 2013)
but what makes the medium unique is interaction, things like mechanics, rules and systems, you can poke at and tell the language of videogames.” (Brown, 2017)
“É na interatividade que os videojogos se distanciam claramente do cinema. Se o cinema faz da montagem o seu motor de storytelling principal, os videojogos fazem da interatividade o seu centro nevrálgico de expressividade. Na literatura o autor “conta”, em texto, o que tem para dizer, já no cinema o autor não deve contar, mas antes “mostrar” o que tem para dizer. Nos videojogos o autor não conta, nem se limita a mostrar, antes leva o receptor a “fazer”. Ou seja, o receptor só compreende a mensagem contida na narrativa, realizando as ações pedidas pelo autor da obra. Estas ações são o centro narrativo do videojogo, e servem para conduzir o jogador de receptor a ator” (Zagalo, 2013) 
Para demonstrar estes pontos, Brown concentra-se no momento do videojogo "The Last Guardian" em que Trico quebra as regras que o próprio jogo tinha apresentado como parte integrante daquela realidade. Trico não pode ir contra os vidros coloridos, nada o faria nunca ir contra tal, até ao momento em que algo faz, algo inesperado, algo que se constitui parte de toda a interação desenvolvida por nós com Trico. A quebra da convenção é o ponto alto da fuga à essência de jogo, em que “The Last Guardian” se dá totalmente à narrativa. Ao sobrepôr a história à regra, o jogo deixa de o ser, passa de design a arte, dado que assume a expressão como mais relevante que aquilo que o constitui. E tudo é feito através de pura interatividade.


Ensaio "The Last Guardian and the Language of Games" (2017) de Mark brown

Nota: Apesar de Brown iniciar o ensaio dizendo que não contém spoilers, isso apenas acontece em termos estritos da história, já que não seria possível realizar o trabalho que aqui se propõe fazer, de desconstrução do design, sem avançar dentro do jogo, dar a ver resoluções em pontos chave, ou digo mesmo, destruir o potencial encantamento que algumas das sequências possuem se jogados com total desconhecimento. Daí, que só recomende visionar o vídeo quem já jogou, ou quem nunca conte jogar.

janeiro 07, 2017

Do enfado do romantismo

Chegado a meio, acabei por ler o resto em diagonal, apesar de saber que surge em praticamente todas as listas dos melhores livros de ficção de língua portuguesa*. Passo a explicar.


Vitorino Nemésio doutorou-se com uma tese em Alexandre Herculano em 1934, tendo em 1936 editado um dos seus mais importantes contributos académicos, "Relações Francesas do Romantismo Português”. Serve isto para definir e delimitar o seu estilo literário ao romantismo, o que estaria na base e génese do seu, quase único romance (apenas mais duas pequenas obras 20 anos antes, e uma posterior, quase 30 anos depois), “Mau tempo no Canal”. Tendo o Romantismo iniciado-se com a Revolução Francesa, viria a sucumbir ao realismo na segunda metade do século XIX. Mesmo em Portugal, temos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, seguidos por Camilo Castelo Branco, e já na reta final Júlio Dinis, a fechar o género por volta de 1870, altura em que surge Eça de Queirós e vira tudo do avesso no país, transformando por completo a face da literatura portuguesa, abrindo caminho ao realismo e a tudo o que isso implicaria não apenas em liberdade temática, mas discursiva.

Ora Nemésio, passados mais de 70 anos, volta atrás no tempo. Não o faz por acaso, estava-se em plena efervescência no que toca à discussão académica das delimitações cronológicas dos modelos literários do século anterior. Os seus escritos académicos disso são prova. Por isso surgir da sua pena um romance assente nestes modelos, faz todo o sentido para si, e para alguns académicos, mas não deixa de ser anacrónico.

Voltando ao início. Se fechei o texto na diagonal, não foi apenas por considerar a obra anacrónica, isso é apenas um efeito do tempo, embora mereça reflexão. Mas foi apenas por ter esgotado a minha quota de paciência para com o romantismo literário. Do ponto de vista teórico, deveria adorar o romantismo, pelos seus valores, motivos e objetos. Contudo quando aplicado, nomeadamente na literatura, satura-me. A tendência para o exageramento e subjetivismo que conduz ao obscurecimento do que se vai descrevendo, cansa-me. Mas o que mais me incomoda é que aquilo que seria de esperar do estilo, um aprofundamento do sentir (psicologia) dos personagens, dado o seu enfoque no amor e suas tragédias, é completamente fantasioso, diria mesmo inócuo. Comparando-se ao que o realismo fez com as descrições psicológicas, parece até que se inverteram papéis estéticos. Assim, se fiz o esforço com “Moby Dick”, acabei por já não sentir suficiente ímpeto para o fazer por Nemésio. Diga-se que a impressão causada em 1944 não é replicável hoje. Se na altura o romance era um género praticamente ausente no país, estando a literatura nacional quase refém da poesia, hoje não nos falta romance, prosa e ficção.

Não posso contudo deixar de dizer que Nemésio escreve de forma belíssima, tal como Melville. São vários os momentos em que nos quedamos a ler e reler, pelo prazer que nos dão certas descrições mais divagantes. Mas quantas são as vezes em que nos perdemos, não percebemos onde estamos, ou onde estão os personagens, nem o que dizem, ou porque dizem. Não é uma questão de vocabulário, que sendo rico é acessível. É mesmo de estrutura narrativa, de maneirismo na forma das descrições que se perdem no espaço e no tempo. É como se nada pudesse ser dito de forma clara, menos ainda direta, e fosse obrigatório emaranhar. Como se o criador em vez de descamar a realidade para nos a apresentar, a esboçasse com mais e mais camadas até que esta se tornasse irreconhecível, fora do alcance de quem não a viu a nu, dificultando a partilha entre quem conta e quem recebe, por ausência de imaginário comum.

Talvez noutra fase da minha vida, com mais tempo e calma, possa cá voltar para desfrutar o que agora não fui capaz.


*Listas de livros de língua portuguesa
12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos, 2016
As 50 Obras Essenciais da Literatura Portuguesa, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Público, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Restrito, 2016
Grandes Livros RTP, série documental, 2009

janeiro 06, 2017

Por detrás da HiperNormalização (media e storytelling)

Chegou-me por diferentes fontes o documentário “HyperNormalisation” (2016), de Adam Curtis, produzido pela BBC. Fontes que por respeitar me obrigaram a encontrar as 2h46m para dedicar ao visionamento do mesmo. No fim, não posso dizer que tenha sido tempo perdido, mas também não posso deixar de dizer que me senti defraudado e até vítima de uma enorme tentativa de manipulação, o que não deixa de ser irónico, ainda que interessante, tendo em conta que a tese central do documentário assenta na demonstração da manipulação global das massas pela política internacional.




Ao longo de quase três horas Curtis ensaia as mais diversas teorias, que vai suportando totalmente em imagens de arquivo e uma voz off de autoridade. Esta abordagem audiovisual é magistral, já que usa o real como espetáculo para passar a ideia e ao mesmo temo credibilizá-la. Usa um  modo discursivo com que as pessoas estão familiarizadas, o do cinema espetáculo mesclado com o da informação televisiva. É difícil escapar à argumentação, apresentada como verdade cabal, única sem margem para dúvida, reforçada por imagens do real, som e vozes coadunantes, ficamos como que hipnotizados e deixamo-nos embalar pela excelência da retórica audiovisual.

Em essência, Curtis defende que o mundo vive dominado por meia-dúzia de políticos que para se manter no poder, engendram continuamente histórias da carochinha (ex. Sistema Bancário, Bolsa, Kissinger, Assad, Kadafi, Bush, Blair, Hussein, ISIS, Putin, Farage e Trump) que servem no adormecimento da sociedade, como ele diz, na defesa de uma suposta “estabilidade”. Curtis defende, que em face da complexidade da realidade, e da impotência para a transformar, os políticos, e o mundo — artistas, juízes, professores, etc. —, têm-se retraído e contado histórias uns aos outros para evitar dizer que “o rei vai nu”. Curtis elabora a teoria com base no fim do regime comunista na União Soviética, em que ninguém acreditava já na capacidade do sistema para dar resposta às necessidades reais da sociedade, mas todos continuavam a querer acreditar nas histórias que falseavam os problemas existentes, criando uma realidade patranha ("fake") em que todos preferiam acreditar e conviver. Este mundo aparente e aceite por todos, foi etiquetado como processo de "hipernormalização", pelo antropólogo Alexei Yurchak, no livro 2005, “Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation”, e é a base de todo o filme, e toda a grande teoria de Curtis.

Diga-se, não é uma má teoria, o problema deste documentário é que peca exatamente pelo pecado que tenta elucidar, o que é no mínimo caricato. Ou seja, ao tentar demonstrar que os políticos, e o mundo, têm criado histórias que fogem à complexidade do real, para hipernormalizar tudo à nossa volta, Curtis acaba a criar a sua própria hipernormalização sobre a hipernormalização, fugindo, ele próprio, à gigantesca teia de complexidades que percorre cada um dos exemplos dados para suportar a sua teorização. Diga-se que ao longo do documentário, Curtis faz leituras muito interessantes, diria mesmo penetrantes e verdadeiros abre-olhos, tais como o fantoche internacional Gaddafi, ou ainda a definição dos perfis e modos de atuação política de Putin e Trump, como “shape-shifters” (constante mudança de forma e objetivos, baralhando tudo e todos). Contudo, outros exemplos como o arco narrativo de décadas criado para explicar o surgimento do ISIS roça a pura mitologia. E isso fica evidente para cada um de nós especialista nas suas áreas. Não especialista em ciência política não sou capaz de medir com concretude o alcance do que Curtis afirma, deixando-me seduzir. Contudo quando ele fala de cinema, internet ou IA fico totalmente estupefacto com o modo como supersimplifica o complexo apenas para garantir que o que se conta corresponde às necessidades da sua história, algo que os académicos conhecem muito bem como viés.

Mas se à partida tudo isto deitaria por terra o menor interesse pelo documentário, antes pelo contrário só o torna ainda mais relevante, já que acaba por se auto-incluir nesse mundo patranha, assumido ou não, sendo um documentário patranha. Mas sendo-o funciona como um objeto que merece toda a nossa cuidada atenção, já que é um objeto meta-hipernormalizante. E por isso a questão que se impõe, é tentar perceber o porquê deste fenómeno, o que encerra enquanto ação humana, como se produz, e com que objetivos; como se tornou tão central ao ponto de contaminar o próprio discurso que o tenta desmistificar.

Ora a resposta advém de um, entre muitos, dos principais fatores escamoteados pela análise de Curtis, os Media, a mediatização do real, dos factos e acontecimentos. As transformações industriais e tecnológicas permitiram transformar o planeta numa aldeia global. Como tal existe uma necessidade vital de manter a aldeia pulsante, ora essa vida só é possível através dos media, já que não se pode juntar as pessoas todas à volta da fogueira, no final do dia ou da semana. Não existe vida sem comunicação, porque a essência do que nos torna humanos é a nossa capacidade social, em essência o diálogo e a troca.

Reconhecida a presença essencial dos media, passamos ao passo seguinte, que são os seus conteúdos. Para que grupos grandes compreendam o teor das mensagens que lhes são passadas, é requerida uma simplificação da complexidade. Quando tal não acontece o grupo simplesmente acaba ignorando, começa a desligar e vai à procura de outra fonte que compreenda, que fale no seu comprimento de onda. Deste modo, mais do que encenar, foi e será sempre vital omitir e simplificar informação, isto é a condição base do processo de contar histórias (storytelling), processo de organização de informação que evolutivamente mais frutos deu à formação das civilizações humanas.

O storytelling é uma tecnologia de simplificação, podemos dizer de normalização do complexo. O processo assenta na selecção de eventos chave, na estripação do secundário e redundante, mas também do impossível ou não explicável. O processo de contar histórias não funciona bem quando, o que se diz, não tem uma causa e efeito, é como se a história ficasse incompleta. Quem está do outro lado, fica sem perceber, e como disse acima, tende a desligar de quem conta histórias sem sentido completo, fechado fácil de apreender. Era assim nos grupos tribais, onde o storytelling germinou para ajudar a transmitir conhecimento de geração em geração, mas também para manter o grupo unido, devoto de uma mesma visão, crente nos mesmos princípios, podemos dizer, sequiosos de normalização. Daí que os políticos se debatam constantemente por encontrar os bodes expiatórios, fantoches, que possam de algum modo fechar as histórias, dar-lhes uma explicação e sentido, que acalme as pessoas e lhes permita avançar.

Curtis ataca a hipernormalização pela ânsia da estabilidade, como se essa fosse um erro. É verdade que a disrupção é bem vista pelos meios artísticos e criativos, sabemos que é dela que brota o melhor de nós, as grandes inovações e avanços da humanidade. Mas daí a extrapolarmos o sentimento de momentos decisivos da sociedade, para um contínuo no tempo, vai uma distância inimaginável. O ser humano precisa da estabilidade, até para se tornar criativo. Como vários estudos têm demonstrado, os momentos de disrupção, só surgem porque momentos de acalmia e enorme estabilidade permitiram formar o conhecimento para o salto no momento de aperto. Se a todo o momento vivermos sob aperto, a criatividade simplesmente definha, basta tentar procurar inovação em regiões que vivem sob a pressão constante da guerra.


Trailer de "HyperNormalisation" (2016) de Adam Curtis

Por fim, uma rápida pesquisa na web, ou visita ao IMDB, dá para perceber que este documentário é uma linha de trabalho já muito experimentada pelo autor. Não há aqui nada de muito novo. São múltiplas as pontas do documentário que ficam soltas, e que Curtis se desculpa com a ideia de que não pretende fazer cinema, apenas criar ideias que as pessoas possam apanhar em qualquer momento que começam a ver os seus filmes. Mas o que Curtis faz é apontar o dedo à sociedade, às pessoas, simplesmente para dizer que estão a fazer algo errado. O problema de Curtis não é não explicar como fazer certo, não sejamos ingénuos ao ponto de esperar que Curtis apresentasse uma 3ª Via  para ombrear com Giddens e Gaddafi! Mas, e para além das contradições naturais em teorizações deste calibre, Curtis não tem argumentos para explicar sequer porque é errado. Apontar o dedo, fazem as crianças desde pequenas, desde que começam a perceber a diferença entre si e os outros.

Filme completo, disponível no Youtube temporariamente, até ser retirado. Normalmente apenas visionável no BBC iPlayer. 

janeiro 03, 2017

“Os Dias do Abandono” de Elena Ferrante

Quem quer que esteja a par do que vai sendo editado, sabe que o fenómeno Ferrante atingiu Portugal em cheio nos últimos dois anos com a publicação da sua obra pela Relógio d’Água, apesar de “Os Dias do Abandono” ter sido editado entre nós há mais de uma década pela D. Quixote. Do meu lado, conhecendo apenas o nome, não tendo lido críticas além das de amigas do Goodreads, nem nada da autora, fui apanhado completamente de surpresa quando por acaso resolvi ler a primeira página de “Os Dias do Abandono”, no ebook da edição brasileira, editado pela Biblioteca Azul. Estaquei no final da página, queria ler o resto sem parar, necessitava desesperadamente de ler o resto.


Mas não queria ler em português do brasil, tentei em inglês mas também não funcionou, e o italiano estava ainda mais distante. A escrita era de tal forma direta, humano para humano, que não queria ler o texto numa qualquer forma que me impedisse de chegar o mais perto possível da origem. A única forma de o fazer era na língua materna e numa abordagem escrita próxima no tempo e na geografia, tornando mais neutro o veículo textual, para que a sintonia pudesse conferir o esquecimento do processo de leitura. Esgotada a edição da D. Quixote, sobrou comprar a edição da novela pela RA, que me custou quando descobri que vinha enxertada numa coletânea, “Crónicas do Mal de Amor”.

Iniciada a leitura, nem queria acreditar no que estava a ler, sentia como jorros, literalmente, jorros de experiências projetados na escrita que agora se vertiam das páginas. Acontecimentos cuspidos no papel, crus, nus e reais. Realidade fria mas dada a quente. E só pensava, que forma de escrever é esta? De onde veio isto?! Era pura telepatia, como se pudesse aceder ao sentir da autora sem intermediário. Não era o que era dito, mas era o que se dizia fundido com o como se dizia, que me fez começar a investigar sobre o estilo por detrás daquela escrita. Era, talvez também, o facto de estar a ver, e a sentir, o mundo através do interior da mente feminina que me impactava tão fortemente, criando ainda mais a necessidade de compreender em maior profundidade o que tudo aquilo representava.

Ainda sem ter lido resenhas profissionais, tinha evitado ler as palavras do respeitadíssimo James Wood, que vinham como prefácio à edição da RA, e resolvi pesquisar sobre “escrita confessional”. Era o que me parecia estar ali em causa, alguém que nos revela, na primeira pessoa, o seu sentir a propósito de uma tragédia da vida. Tinha lido várias obras dentro do tipo, mas não tinha noção do seu alcance criativo, nem da existência de sub-géneros. Da minha pesquisa, encontrei três grandes sub-géneros: memórias e diários, iniciado por Marco Aurélio, tornado popular por Anne Frank no século XX, podendo definir-se, latamente, como conjunto de factos reais escritos sem um objeto definido, nem intenção de ser tornado publico; confessionalismo, iniciado por Santo Agostinho em plena idade média, tornado ex-libris literário em Sylvia Plath no século XX, definindo-se num conjunto de factos reais trabalhados pela imaginação, escritos com o objetivo de expiação, daí que tenda a centrar-se em aspetos humanos mais negativos; não-ficção criativa, um estilo muito mais recente, que se desfia no limite da linha entre o documental e o ficcional, tendo sido de certo modo iniciado por Henry David Thoreau, com seguidores como Jack Kerouac ou Jon Krakauer, e ainda experimentado noutras formas por Truman Capote, que se pode definir por conjuntos de factos reais trabalhados pela experiência, escritos com objetivos sociais ou políticos.

Como se pode ver, todos estes modos se configuram a partir de algum tipo de conjunto de factos reais, podendo nuns casos resvalar mais para o não-ficcional, enquanto noutros para o ficcional, muito em função do que cada autor pretende. Diga-se ainda, que saindo da literatura e entrando nos textos de revistas e jornais, podemos encontrar o estilo de escrita confessional desmultiplicado numa imensidade de formas e formatos. Desde quase o início do século XX que se edita nos EUA uma revista chamada “True Story” com o lema, “A Verdade é mais Estranha do que a Ficção”. Esta mesma revista daria origem ainda a mais duas novas revistas: “True Conventions” e a “Creative Nonfiction”. Mas não se fica por aqui, no início deste novo século, a escrita confessional ganhou um palco ainda mais poderoso e desmultiplicador, com a facilidade de publicação online, desde os blogs ao facebook. Só em Portugal, existem centenas de pessoas que se dedicam a este tipo de escrita, das quais aproveito para deixar dois casos que espelham a qualidade do meio: Ana Cássia Rebelo e Mil Ghent.

Por outro lado, e mais ainda por termos uma Elena Ferrante italiana, ou localizada em Itália, torna-se inevitável falar do movimento artístico fílmico aí surgido nas décadas de 1940/50, o neorealismo italiano, que procurava apresentar na tela a vida tal como ela era, sem qualquer embelezamento. Pensando em "Os Dias do Abandono", vêm-me a memória a mãe em "Roma, Cidade Aberta" (1945) de Roberto Rossellini, ou o pai em "Ladrões de Bicicleta" (1948) de Vittorio De Sica. Embora em termos de representação de estados emocionais, considere que o neorealismo estava ainda muito apegado ao classicismo cinematográfico. Em termos cinematográficos, considero que existe todo um movimento, tendencialmente europeu, que reflete uma realidade na qual Elena Ferrante bem se enquadra, que qualifiquei recentemente como Realismo Áspero, e que envolve filmes como “The Seventh Continent” (1989), “The Celebration” 1998, “Tuesday, After Christmas” (2010).

Voltando à escrita em tom confessional, apesar de todos os géneros aqui listados, parece existir uma certa tendência para seguir a pauta ditada por Santo Agostinho, em termos de propósito. Ou seja, servir uma certa catarse interior, revelando um sentir normalmente não verbalizado, desvelando aquilo que faz mover quem escreve, acabando por se centrar invariavelmente nos pensamentos mais negros, em tragédias humanas das mais variada espécies. Desta forma, é também um género em que quem escreve tende a optar pelo anonimato, o que faz pleno sentido. Quem não sendo capaz de revelar aos mais próximos os seus males interiores , optando pela escrita como prática quase terapêutica, o faria de modo público?!

Dito isto, assumo a minha precipitação na publicação de um texto em que defendia a necessidade de conhecer a identidade de Elena Ferrante. Sei agora o que isso implica, ou pode implicar, e aceito completamente a vontade da autora, contudo, apenas na expectativa de que após a sua morte nos possa ser revelada. Isto porque só na posse da identidade e conhecimento da sua vida, poderemos chegar a uma cabal definição do género literário de Ferrante. Não estão aqui em causa as "desculpas" dadas pela autora — da fama, celebridade ou voyeurismo —, discordando totalmente da sua afirmação de que a obra existe autonomamente. Não podemos chegar ao âmago completo do entendimento do texto porque desde logo é-nos pedida a crença em algo, em algo que aconteceu. Podemos dizer que apreciamos a obra pela obra, mas ela não existe sem o ser-humano que a criou, parte da chave daquele texto está nessa pessoa, é essa a condição fundamental da escrita confessional. Aliás, a própria Ferrante afirma-o em entrevista, contradizendo-se:
"Eu prefiro chamar [a escrita] de apropriação ilícita em vez de indiscrição. Escrever para mim é como um arrastão que carrega tudo consigo: expressões e figuras de discurso, posturas, sentimentos, pensamentos, problemas. Em suma, a vida de outros." Elena Ferrante em entrevista ao The Guardian
Mas definindo o género de escrita confessional de Ferrante, fica tudo dito? A opção por este modo é suficiente para tornar um texto íntimo, poderosamente emocional, como acontece com Ferrante? Não, simplesmente não. O género é apenas uma estrutura que em termos artísticos tende a ser sempre algo imensamente lato. Ferrante não é apenas escrita confessional, é algo mais, algo diferente, e que não é fácil de definir. Se evocarmos Sylvia Plath, que deambulou por este género como acima dissemos, veremos que se aproximam nas intenções (especulando no caso de Ferrante), mas ainda assim existe uma gigantesca distância entre ambas em termos discursivos. Aliás, não querendo discutir Plath, mas agora que comparo, penso que se tornou mais ícone pelo tempo e forma como morreu, o que de certo modo acaba dando ainda mais força à ideia que tenho tentado passar, de que as obras não existem sem os seus autores. Aquilo que os criadores fazem fora das suas obras contamina totalmente aquilo em que as obras se transformam.

Em termos técnicos, o que Ferrante faz é muito interessante porque não se escusa a usar a forma narrativa clássica para comunicar o sentir mais íntimo. Usa essa forma para construir e organizar as suas ideias, encadeando todos os eventos de forma causal, exteriorizando muitos dos pensamentos em ações físicas, num sucedâneo perfeitamente cronológico, tornando assim o acesso ao que nos diz muito fácil. Não existe qualquer tentação por trabalhar em fluxo de consciência, com fragmentação de memórias ou polifonias, que pudessem aproximar o leitor do modo como funciona o pensamento humano, naquela ânsia por chegar mais próximo do experienciar e sentir. Ainda mais, tendo em conta que nos quer dar a sentir o caos emocional que tem sido melhor trabalhado em abordagens mais experimentalistas. Contudo, Ferrante não sucumbe, mantém-se linear, muito direta, muito correta, falando connosco, dialogando sempre, sem esquecer que existe um leitor do outro lado. E se o faz, é porque de algum modo consegue fazer-nos chegar essa experiência do sentir, mesmo colocando-se do outro lado da folha de papel, assumindo-se como contadora, mas também como ser-humano igual a nós, mantendo a compostura para continuar a relatar, como se conversando pudesse simultaneamente gritar.

Julgo, em parte, que ela consegue esta proeza pelo modo como fusiona discurso e história. Ou seja, o discurso é uniforme e sóbrio, mas o que nos vai contando roça a insanidade. Da depravação à alucinação, tudo entra, e tudo constrói a nossa impressão do que lemos. O discurso é contido na forma mas completamente incontinente na revelação dos pensamentos mais negros e recônditos da personagem. Mais uma vez comparando, se o Molilóquio de Joyce impressiona pela forma, traduzindo-se tão próximo do modo como pensamos, já naquilo que nos vai revelando é bem mais refreado, algo fantasioso até, ainda que para 1922 já se tenha considerado pornográfico. Ferrante apesar de não inovar na forma, não deixa de ser virtuosa, o modo como movimenta os seus personagens no espaço e tempo, cria ritmos e dinâmicas muito impressivas que espelham o interior mental destes. Toda a novela tem um ritmo muito definido, quase matemático, de intensificação pela escolha dos termos, pontuação e frases que nos conduzem a um clímax, para depois, tudo se aplicar no desencher dessa intensidade, que conduz ao clarear e ganho de consciência revogatório. É classicismo puro, mas é-o de uma forma áspera, algo que nos habituámos a guardar para a vida real, que é no fundo o que Ferrante procura, como fica claro nestas palavras quase no final da novela:
“Existir é isto, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que fremem sob a pele, e não há outra verdade que se possa contar.” (p.286)
Por fim, e agora já depois de ter lido Wood, não tendo sentido grande sintonia com a sua abordagem à obra, concordo plenamente com a sua qualificação de autenticidade. É o que sobressai, um sentimento de verdade discursiva, mesmo não fazendo a mínima ideia se aquilo que se relata, é ou não verdade.


Edição: “Os Dias do Abandono” (2002), in Crónicas do Mal de Amor, Elena Ferrante, Relógio D’Água, Lisboa: 2014 (pp.132-288)