Senti desilusão, apesar de não me surpreender. Depois de dois livros seguidos brilhantes — “Correcções” (2001) e “Liberdade” (2010) — era natural surgir um livro menos interessante. A escrita continua boa, o livro lê-se com grande velocidade, contudo é uma escrita menos rica, menos elaborada. Perdeu, considerava Franzen um patamar acima de Donna Tartt, mas “Purity” acaba sendo o equivalente de “O Pintassilgo” (2013).
A julgar pelo que foi escrevendo não-ficcional, fica a ideia de que Franzen seguiu em excesso a sua definição do “modelo de contrato”, entre escritor e leitor. A escrita parece aligeirada para facilitar a compreensão aos leitores, assim como existe mais enredo e menos personagem, ou ainda mais redundância explicativa da ação, ou ainda mais sexo, e já agora muito mais perspetivas do ponto de vista da mulher (não que isso tenha algo de errado, mas sendo ele homem não funciona, pelo menos de modo convincente). Chegado ao fim, parece que Franzen andou a ler todas as críticas que lhe foram feitas na última década, e criou um cardápio de respostas para oferecer aos leitores que o criticaram por não ter aceite o selo da Oprah.
A beleza do trabalho de Franken está na escrita, e o seu grande tema é a família, sair daí não o conduziu a nada de bom. Enfiou-se por uma trama policial sem grande sentido, talvez almejasse “Crime & Castigo” mas fica demasiado distante. Com personagens baseados em Assange e Snowden também não era difícil que assim acontecesse. Muitas vezes Franzen ataca a internet e as redes sociais, fala dos seus perigos, da privacidade e do mundo que mudou, mas é tudo tão lugar comum, tudo tão saturado que nada dali se retira. No extremo apresenta uma idealista, Anabel a mãe de Purity, que nos vai dar uma secção inteira de puro fastio, com as suas rejeições do vil metal e a sua pseudo-arte e um namorado/marido que é ainda mais fastioso por se deixar levar.
Tirando esse capítulo, todo o restante livro se lê muito bem, embora pareça sempre que vamos chegar a algum lado com tudo aquilo, quando na verdade nada existe para além do que se vai desfilando na nossa frente. Existem muitos rasgos de grande brilhantismo, com personagens a tocarem-nos dentro, mas logo a seguir tudo se desvanece e surgem ações desses mesmos personagens que dão conta de um vazio amnésico. Depois, o reles truque de fazer calhar na rifa uns milhões para esquecer todos os problemas e viver feliz para sempre cai muito mal.
Não o consegui colocar na mesma prateleira dos outros dois, foi para uma pilha no topo de outra estante. Acho que isso diz alguma coisa. Não vou dizer que é mau. Sei que assim escrevo pela desilusão que apoquenta quem tanto gosta de algo, neste caso deixei-me levar em excesso pelos trabalhos anteriores do autor. Por isso lhe dou 3 estrelas, mas talvez com algum distanciamento possa subir uma.
janeiro 15, 2017
janeiro 14, 2017
Experienciar pela Metáfora
No final da leitura e análise de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamin Bergen, surgiu-me esta questão: “Como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?”. A pergunta já tinha sido respondida antes por Lakoff & Johnson em "Metaphors We Live By" (1980).
Lakoff & Johnson disseram que "A essência da metáfora é compreender e experimentar um tipo de coisa em termos de outra." e consideraram-na essencial ao nosso modo de compreensão do real — "Enquanto seres humanos, utilizamos continuamente as metáforas para compreender o significado de conceitos abstractos, ou processar informação” (1980). Ou seja, a grande maioria do que verbalizamos são ideias abstractas, a única forma que temos de estabelecer a ponte com o outro ser-humano, e ele poder vir ao nosso encontro, é através da metáfora que ambos compreendemos da mesma forma.
A vida é ‘pesada’. (compreender a Vida pelo conceito de Peso)
Estás a ‘gastar’ o meu tempo. (compreender o Tempo pelo conceito de Dinheiro)
Ela vai subir até ao topo. (compreender o Sucesso pelo conceito de Espaço)
A minha cabeça não está a funcionar hoje. (compreender o Cérebro pelo conceito de Máquina)
Na verdade o nosso poder de metaforizarão vai ao ponto de desenvolver estruturas complexas de atribuição, em que os conceitos se metaforizam em função daquilo que somos enquanto humanos, e corpos no mundo, ou seja metáforas ontológicas. Assim podemos ter, segundo Lakoff & Johnson
Eventos e ações -> objetos
Atividades -> substâncias
Estados -> contentores
Um exemplo para compreendermos esta abordagem pode ser um Jogo de (qualquer coisa, futebol, cartas, etc.).
João, ‘viste o’ jogo no outro dia? (objeto: detém propriedade física)
O jogo acabou sendo muito ‘pesado’. (substância: detém propriedade sentiente)
Eu não aguentei ‘até ao final’. (contentor: detém propriedades variáveis)
A metáfora é distinta da metonímia e da sinédoque. Na metonímia não acontece comparação, de modo direto, nem se objetiva a dar a entender por outros meios, antes se produz uma substituição de termos, que de algum modo estão interligados (Ex. “Beber um copo”, o copo assume o significado do seu conteúdo). Não se metaforiza, mas antes se substitui pela sua variável dependente. Já a sinédoque, acaba aproximando-se muito da metonímia, no sentido, em que substitui o topo pelas partes, ou a parte pelo todo (ex. Lisboa caiu nas ‘mãos’ dos espanhóis).
Podemos então compreender o mundo sem metáforas? Podemos, tudo aquilo que experienciamos de forma física direta (Cima-Baixo, Dentro-Fora, Leve-Pesado, Frente-Trás, Escuro-Claro, Quente-Frio). Mas o mais interessante, é que partimos desta relação direta, tão básica e pobre em significação, para a construção conceptual de tudo o resto. Da acumulação de conceitos, camada sobre camada, chega-se à complexidade conceptual, aquela que nos permite detalhar aquilo que percepcionamos. Sem esta complexidade não conseguiríamos explicar as emoções que nos trespassam de cada vez que as sentimos na relação com o mundo. Ou seja, a construção de cada uma das metáforas, decorre de um processo causal baseado na manipulação direta (causa-efeito) dos conceitos, que quando bem sucedidas, atualizam os nossos mapas mentais do mundo.
Assim o uso de metáforas, representações do real, conhecidas por ambas as pessoas num diálogo é o que permite a comunicação. Percebemos tão bem isto, quando na leitura de um livro, o autor descreve um sentir, e nos revemos na metáfora aplicada. Mas quando por exemplo conversamos com uma criança, ou pessoa de outro país, damos por nós a gerar diferentes metáforas até encontrar aquela que faz acender a luz na cabeça do nosso interlocutor. Por não deterem o mesmo tipo de experiência que nós, por ainda serem novos ou terem experiências do mundo distintas, as metáforas não funcionam de modo automático. Isto quer dizer que o conhecimento, e a sua expressão (linguagem), funciona como uma espécie de pirâmide (metáfora para o conhecimento baseada em estrutura física) conceptual, que vai crescendo, com os conceitos a alicerçarem-se uns nos outros para ir aumentando o detalhamento e definição do mundo que conseguimos percepcionar. Quanto maior for o nosso mapa mental de conceitos, de metáforas, maior será a nossa capacidade para descrever o mundo, e ao mesmo tempo descrever-nos a nós mesmos.
O facto de eu trazer a comunicação para a discussão, interessa-me pelo que falarei a seguir sobre a literatura e o cinema, mas acaba por servir de resposta à discussão que Lakoff e Johnson produzem no final dobre livro, e que muita celeuma tem gerado, sobre o Objetivismo e Subjetivismo. O que percebemos a partir deste modo de conceptualização do mundo, baseado na metáfora, é que ele não pode decorrer apenas do mundo enquanto objeto, a realidade é construída, a factualidade não é verdadeiramente empírica já que precisa de ser recriada por nós internamente. Mas isso também não suporta a ideia de que vivemos perante uma inevitável subjetividade, em que o real é aquilo que a nossa imaginação quiser. No fundo voltamos à essência do que criou, e mantém viva, a ideia de sociedade, e que são as crenças partilhadas, produzidas pelo objetivismo (avaliação e contra-avaliação contínua da causalidade) mas devidamente sustentadas pelo subjetivismo (significação dessa causalidade) que tornam a realidade um bem comum. Considero assim, que é da comunicação humana que emerge aquilo que Lakoff & Johnson categorizam como via alternativa, o Experiencialismo, que não é mais do que uma atualização do 'pragmatismo' de Dewey que o levou a definir a Estética a partir da Experiência. (Do mesmo, modo tenho vindo a defender, do ponto de vista académico, a Comunicação como ponte essencial entre a Arte e a Tecnologia.)
E aqui surge então a parte a que pretendia chegar, e que no último texto aqui dava conta, falando da especificidade do cinema: “Como filmar o Pensamento?”. Na verdade o cinema está limitado a mostrar aquilo que percepcionamos de modo direto, pela visão e audição, já que regista a realidade. Ao contrário do texto que usa símbolos para descrever esse real. Contudo, como percebemos a literatura não usa esse símbolos para dar a ver o pensamento. As tradicionais descrições psicológicas do realismo russo (ex. Dostoiévski), são poderosas, não pelas palavras ou frases empregues, mas antes pela metaforizarão do interior dos personagens. Talvez por isso mesmo, Eisenstein, nos anos 20 do século passado, tenha tentado um tipo de expressão cinematográfica, que ficou conhecida por montagem intelectual, que nada mais é do que a criação de metáforas visuais (mais detalhe).
Não podemos esquecer que por esta altura o cinema não continha som, por isso tinha de se expressar o mais possível por meio das imagens em movimento. O cinema acabaria por progredir tecnologicamente e nos anos 1930 assimilaria o som, transformando-se numa arte audiovisual completa. A partir daí começou a contar com o poder da linguagem para expressar muito do que não conseguia mostrar. Isto não quer dizer que o cinema passasse a mera filmagem de cabeças falantes, já que isso iria contra o que o separava das outras expressões narrativas (oralidade e literatura). O cinema continuaria o seu caminho na tentativa de mostrar o que vai dentro da cabeça dos personagens, mas abandonaria a montagem intelectual, pelo distanciamento que cria face à ação, substituindo-a pela linguagem e música, mas focando-se cada vez mais em mostrar efeitos perceptíveis pela visão e audição. Daí que nesses anos 1930, o cinema alemão tenha criado aquilo que ficou conhecido pelo Expressionismo, uma tentativa de plasmar na imagem os sentimentos dos personagens, algo que também acabaria por atingir a saturação.
Hoje, passadas décadas, e milhares de experiências, o cinema desenvolveu toda uma forma de comunicação própria, com a qual os espetadores estão em sintonia, e que é utilizada por todos os criadores de imagens audiovisuais em qualquer canal, da televisão ao vídeo, online, móvel. Essa constitui-se por uma amalgama perfeita entre cinematografia, montagem, música (dietética e extra-diegética) e linguagem (voz off, monólogo e diálogo), que em conjunto trabalham para significar.
Sem ainda ter suficientemente confrontado, nem experimentado empiricamente, deixo uma hipótese: A imagem em movimento dedica-se acima de tudo a mostrar o real experiencial direto, sobre o qual a trabalham de modo metafórico a música e a palavra.
A vida é ‘pesada’. (compreender a Vida pelo conceito de Peso)
Estás a ‘gastar’ o meu tempo. (compreender o Tempo pelo conceito de Dinheiro)
Ela vai subir até ao topo. (compreender o Sucesso pelo conceito de Espaço)
A minha cabeça não está a funcionar hoje. (compreender o Cérebro pelo conceito de Máquina)
Na verdade o nosso poder de metaforizarão vai ao ponto de desenvolver estruturas complexas de atribuição, em que os conceitos se metaforizam em função daquilo que somos enquanto humanos, e corpos no mundo, ou seja metáforas ontológicas. Assim podemos ter, segundo Lakoff & Johnson
Eventos e ações -> objetos
Atividades -> substâncias
Estados -> contentores
Um exemplo para compreendermos esta abordagem pode ser um Jogo de (qualquer coisa, futebol, cartas, etc.).
João, ‘viste o’ jogo no outro dia? (objeto: detém propriedade física)
O jogo acabou sendo muito ‘pesado’. (substância: detém propriedade sentiente)
Eu não aguentei ‘até ao final’. (contentor: detém propriedades variáveis)
A metáfora é distinta da metonímia e da sinédoque. Na metonímia não acontece comparação, de modo direto, nem se objetiva a dar a entender por outros meios, antes se produz uma substituição de termos, que de algum modo estão interligados (Ex. “Beber um copo”, o copo assume o significado do seu conteúdo). Não se metaforiza, mas antes se substitui pela sua variável dependente. Já a sinédoque, acaba aproximando-se muito da metonímia, no sentido, em que substitui o topo pelas partes, ou a parte pelo todo (ex. Lisboa caiu nas ‘mãos’ dos espanhóis).
Podemos então compreender o mundo sem metáforas? Podemos, tudo aquilo que experienciamos de forma física direta (Cima-Baixo, Dentro-Fora, Leve-Pesado, Frente-Trás, Escuro-Claro, Quente-Frio). Mas o mais interessante, é que partimos desta relação direta, tão básica e pobre em significação, para a construção conceptual de tudo o resto. Da acumulação de conceitos, camada sobre camada, chega-se à complexidade conceptual, aquela que nos permite detalhar aquilo que percepcionamos. Sem esta complexidade não conseguiríamos explicar as emoções que nos trespassam de cada vez que as sentimos na relação com o mundo. Ou seja, a construção de cada uma das metáforas, decorre de um processo causal baseado na manipulação direta (causa-efeito) dos conceitos, que quando bem sucedidas, atualizam os nossos mapas mentais do mundo.
Assim o uso de metáforas, representações do real, conhecidas por ambas as pessoas num diálogo é o que permite a comunicação. Percebemos tão bem isto, quando na leitura de um livro, o autor descreve um sentir, e nos revemos na metáfora aplicada. Mas quando por exemplo conversamos com uma criança, ou pessoa de outro país, damos por nós a gerar diferentes metáforas até encontrar aquela que faz acender a luz na cabeça do nosso interlocutor. Por não deterem o mesmo tipo de experiência que nós, por ainda serem novos ou terem experiências do mundo distintas, as metáforas não funcionam de modo automático. Isto quer dizer que o conhecimento, e a sua expressão (linguagem), funciona como uma espécie de pirâmide (metáfora para o conhecimento baseada em estrutura física) conceptual, que vai crescendo, com os conceitos a alicerçarem-se uns nos outros para ir aumentando o detalhamento e definição do mundo que conseguimos percepcionar. Quanto maior for o nosso mapa mental de conceitos, de metáforas, maior será a nossa capacidade para descrever o mundo, e ao mesmo tempo descrever-nos a nós mesmos.
O facto de eu trazer a comunicação para a discussão, interessa-me pelo que falarei a seguir sobre a literatura e o cinema, mas acaba por servir de resposta à discussão que Lakoff e Johnson produzem no final dobre livro, e que muita celeuma tem gerado, sobre o Objetivismo e Subjetivismo. O que percebemos a partir deste modo de conceptualização do mundo, baseado na metáfora, é que ele não pode decorrer apenas do mundo enquanto objeto, a realidade é construída, a factualidade não é verdadeiramente empírica já que precisa de ser recriada por nós internamente. Mas isso também não suporta a ideia de que vivemos perante uma inevitável subjetividade, em que o real é aquilo que a nossa imaginação quiser. No fundo voltamos à essência do que criou, e mantém viva, a ideia de sociedade, e que são as crenças partilhadas, produzidas pelo objetivismo (avaliação e contra-avaliação contínua da causalidade) mas devidamente sustentadas pelo subjetivismo (significação dessa causalidade) que tornam a realidade um bem comum. Considero assim, que é da comunicação humana que emerge aquilo que Lakoff & Johnson categorizam como via alternativa, o Experiencialismo, que não é mais do que uma atualização do 'pragmatismo' de Dewey que o levou a definir a Estética a partir da Experiência. (Do mesmo, modo tenho vindo a defender, do ponto de vista académico, a Comunicação como ponte essencial entre a Arte e a Tecnologia.)
E aqui surge então a parte a que pretendia chegar, e que no último texto aqui dava conta, falando da especificidade do cinema: “Como filmar o Pensamento?”. Na verdade o cinema está limitado a mostrar aquilo que percepcionamos de modo direto, pela visão e audição, já que regista a realidade. Ao contrário do texto que usa símbolos para descrever esse real. Contudo, como percebemos a literatura não usa esse símbolos para dar a ver o pensamento. As tradicionais descrições psicológicas do realismo russo (ex. Dostoiévski), são poderosas, não pelas palavras ou frases empregues, mas antes pela metaforizarão do interior dos personagens. Talvez por isso mesmo, Eisenstein, nos anos 20 do século passado, tenha tentado um tipo de expressão cinematográfica, que ficou conhecida por montagem intelectual, que nada mais é do que a criação de metáforas visuais (mais detalhe).
Excerto de “Strike” (1925) de Sergei Eisenstein
Não podemos esquecer que por esta altura o cinema não continha som, por isso tinha de se expressar o mais possível por meio das imagens em movimento. O cinema acabaria por progredir tecnologicamente e nos anos 1930 assimilaria o som, transformando-se numa arte audiovisual completa. A partir daí começou a contar com o poder da linguagem para expressar muito do que não conseguia mostrar. Isto não quer dizer que o cinema passasse a mera filmagem de cabeças falantes, já que isso iria contra o que o separava das outras expressões narrativas (oralidade e literatura). O cinema continuaria o seu caminho na tentativa de mostrar o que vai dentro da cabeça dos personagens, mas abandonaria a montagem intelectual, pelo distanciamento que cria face à ação, substituindo-a pela linguagem e música, mas focando-se cada vez mais em mostrar efeitos perceptíveis pela visão e audição. Daí que nesses anos 1930, o cinema alemão tenha criado aquilo que ficou conhecido pelo Expressionismo, uma tentativa de plasmar na imagem os sentimentos dos personagens, algo que também acabaria por atingir a saturação.
Hoje, passadas décadas, e milhares de experiências, o cinema desenvolveu toda uma forma de comunicação própria, com a qual os espetadores estão em sintonia, e que é utilizada por todos os criadores de imagens audiovisuais em qualquer canal, da televisão ao vídeo, online, móvel. Essa constitui-se por uma amalgama perfeita entre cinematografia, montagem, música (dietética e extra-diegética) e linguagem (voz off, monólogo e diálogo), que em conjunto trabalham para significar.
Sem ainda ter suficientemente confrontado, nem experimentado empiricamente, deixo uma hipótese: A imagem em movimento dedica-se acima de tudo a mostrar o real experiencial direto, sobre o qual a trabalham de modo metafórico a música e a palavra.
janeiro 13, 2017
Como filmar o pensamento
O Nerdwriter traz-nos esta semana mais um brilhante ensaio, "Sherlock: How To Film Thought", no qual dá conta cabal do modo como as séries de televisão ombreiam com o cinema. Se até aqui falávamos do modo como estas dominavam a arte do storytelling, passámos agora a falar da arte completa do audiovisual, do uso e avanço da linguagem que torna o audiovisual um meio expressivo. O cinema deixou de ser o farol e passou a ser apenas mais um dos imensos suportes. O cinema é hoje o mesmo que televisão, vídeo, web, móvel, tudo suportes. É a linguagem do audiovisual que fundamenta todos estes canais, a arte da fusão entre imagem em movimento e som.
Neste ensaio é dissecada uma cena de 3m42s de um recente episódio da série "Sherlock" (2010-..), no qual Nerdwriter demonstra algo verdadeiramente importante. O cinema, o audiovisual, sempre teve dificuldade em dar a ver o pensamento, essa capacidade esteve durante imenso tempo resguardada para a literatura. A razão é simples, o pensamento é algo interno, introspectivo e subjetivo, enquanto o audiovisual é uma arte especializada em mostrar o externo e o objetivo, ou seja é uma forma expressiva dada à extroversão. Por isso de cada vez que este tem de mostrar o que alguém está a pensar, sentir, ou refletir, é complicado. Invariavelmente as ideias acabam sendo traduzidas em ações, sequências externas, que possam dar a compreender o que sente aquele personagem, porque reage como reage, e assim passar a ideia do que está a pensar a pessoa.
Ora neste episódio de Sherlock, procurou-se antes dar a ver o pensamento. Pegou-se na mente de Sherlock, naquele momento em que ele está prestes a descobrir, a ter a revelação, e pegou-se no melhor que a arte audiovisual tem — a montagem e a cinematografia — e plasmou-se no ecrã, literalmente, aquilo que lhe está a passar pela mente. O Nerdwriter termina dizendo que esta é uma das sequência original e admirável.
É claro que o Nerdwriter se deixa levar pelo entusiasmo, desde logo quando diz que não há CGI, quando várias das sequências estão prenhes de efeitos visuais, mas especialmente porque isto não é novo. Mais uma vez o cinema já lá tinha chegado antes, e o tinha mostrado, e até de forma mais efetiva. Se gostaram desta sequência, recomendo-vos vivamente "A Requiem for a Dream" (2000) do brilhante Darren Aranofski. A mim contudo, resta-me uma questão, porque razão só se procura mostrar o interior da mente dos personagens quando eles estão sob efeito de drogas!?
Neste ensaio é dissecada uma cena de 3m42s de um recente episódio da série "Sherlock" (2010-..), no qual Nerdwriter demonstra algo verdadeiramente importante. O cinema, o audiovisual, sempre teve dificuldade em dar a ver o pensamento, essa capacidade esteve durante imenso tempo resguardada para a literatura. A razão é simples, o pensamento é algo interno, introspectivo e subjetivo, enquanto o audiovisual é uma arte especializada em mostrar o externo e o objetivo, ou seja é uma forma expressiva dada à extroversão. Por isso de cada vez que este tem de mostrar o que alguém está a pensar, sentir, ou refletir, é complicado. Invariavelmente as ideias acabam sendo traduzidas em ações, sequências externas, que possam dar a compreender o que sente aquele personagem, porque reage como reage, e assim passar a ideia do que está a pensar a pessoa.
Ora neste episódio de Sherlock, procurou-se antes dar a ver o pensamento. Pegou-se na mente de Sherlock, naquele momento em que ele está prestes a descobrir, a ter a revelação, e pegou-se no melhor que a arte audiovisual tem — a montagem e a cinematografia — e plasmou-se no ecrã, literalmente, aquilo que lhe está a passar pela mente. O Nerdwriter termina dizendo que esta é uma das sequência original e admirável.
"A Requiem for a Dream" (2000) Darren Aranofski
"Sherlock: How To Film Thought" (2017) de Nerdwriter
janeiro 10, 2017
A linguagem dos videojogos: “The Last Guardian”
Mark Brown traz-nos esta semana, no episódio "The Last Guardian and the Language of Games", uma análise do design de jogos centrado na discussão daquilo que faz de um videojogo um videojogo. O que o torna distinto dos outros meios, das outras formas de expressão artística. Tenho a dizer sobre isto que tenho vindo a tentar responder a esta questão em muitos dos meus escritos, talvez o principal tenha sido um que ficou com um título próximo ao deste episódio: “A singularidade da linguagem do videojogo” (2013).
Brown realiza no vídeo um trabalho sobre as motivações e contextualização do criador de “The Last Guardian”, Fumigo Ueda, trazendo para a discussão os seus dois anteriores videojogos, “Ico” (2001) e “Shadow of Colossus” (2005). Mas é na comparação com outros jogos, também bastante relevantes no campo dos videojogos narrativos — “Enslaved” (2010) "Bioshock Infinite" e "The Last of Us" (2013) — que Brown vai alcançar a principal conclusão deste pequeno ensaio vídeo. Opto por então citar o excerto principal do ensaio, e juntar ao mesmo partes do meu texto, acima referenciado:
Ensaio "The Last Guardian and the Language of Games" (2017) de Mark brown
Nota: Apesar de Brown iniciar o ensaio dizendo que não contém spoilers, isso apenas acontece em termos estritos da história, já que não seria possível realizar o trabalho que aqui se propõe fazer, de desconstrução do design, sem avançar dentro do jogo, dar a ver resoluções em pontos chave, ou digo mesmo, destruir o potencial encantamento que algumas das sequências possuem se jogados com total desconhecimento. Daí, que só recomende visionar o vídeo quem já jogou, ou quem nunca conte jogar.
Brown realiza no vídeo um trabalho sobre as motivações e contextualização do criador de “The Last Guardian”, Fumigo Ueda, trazendo para a discussão os seus dois anteriores videojogos, “Ico” (2001) e “Shadow of Colossus” (2005). Mas é na comparação com outros jogos, também bastante relevantes no campo dos videojogos narrativos — “Enslaved” (2010) "Bioshock Infinite" e "The Last of Us" (2013) — que Brown vai alcançar a principal conclusão deste pequeno ensaio vídeo. Opto por então citar o excerto principal do ensaio, e juntar ao mesmo partes do meu texto, acima referenciado:
“ Each artistic medium has its own unique language, painting uses the language of shape and colour, music is an exploration of sound, literature uses the language, of language, and film is about moving image. Videogames, can of course use all of this stuff...” (Brown, 2017)
"O videojogo contém em si mesmo tudo aquilo que o cinema contém, por isso nos interessa perceber o que o cinema alcança. É para nós claro que antes de surgir o cinema enquanto meio de expressão, e não mera tecnologia, tivemos o teatro. O cinema não é mais do que o resultado da plastificação do teatro, sob o desígnio expressivo da fotografia. Depois de termos conseguido melhorar a tecnologia de suporte ao registo da realidade, nomeadamente termos conseguido passar a fotografar a realidade várias vezes por segundo, o passo seguinte foi apontar essa possibilidade de registo para um palco de teatro. O objectivo primeiro foi o registo apenas, depois descobriu-se o seu potencial para transformar a comunicação teatral em tempo real e presencial num novo modo assíncrono e à distância. A pintura distanciou-se do retrato da fotografia, mas o teatro viu nesta, todo um novo mundo de possibilidades expressivas. Com o tempo a arte teatral que era registada por câmaras, agora condicionada por variáveis de distância e tempo diferentes, passou a trabalhar de forma diferente. Era agora possível num curto espaço de tempo mostrar mais do que um cenário, era possível mostrar mais perto ou mais longe, era possível contar histórias não apenas baseadas nas ações dos atores, mas também baseadas na forma e tempo como eram mostradas essas ações. Ou seja, tínhamos criado a montagem, e com ela nascia a essência narrativa do cinema” (Zagalo, 2013)
“but what makes the medium unique is interaction, things like mechanics, rules and systems, you can poke at and tell the language of videogames.” (Brown, 2017)
“É na interatividade que os videojogos se distanciam claramente do cinema. Se o cinema faz da montagem o seu motor de storytelling principal, os videojogos fazem da interatividade o seu centro nevrálgico de expressividade. Na literatura o autor “conta”, em texto, o que tem para dizer, já no cinema o autor não deve contar, mas antes “mostrar” o que tem para dizer. Nos videojogos o autor não conta, nem se limita a mostrar, antes leva o receptor a “fazer”. Ou seja, o receptor só compreende a mensagem contida na narrativa, realizando as ações pedidas pelo autor da obra. Estas ações são o centro narrativo do videojogo, e servem para conduzir o jogador de receptor a ator” (Zagalo, 2013)Para demonstrar estes pontos, Brown concentra-se no momento do videojogo "The Last Guardian" em que Trico quebra as regras que o próprio jogo tinha apresentado como parte integrante daquela realidade. Trico não pode ir contra os vidros coloridos, nada o faria nunca ir contra tal, até ao momento em que algo faz, algo inesperado, algo que se constitui parte de toda a interação desenvolvida por nós com Trico. A quebra da convenção é o ponto alto da fuga à essência de jogo, em que “The Last Guardian” se dá totalmente à narrativa. Ao sobrepôr a história à regra, o jogo deixa de o ser, passa de design a arte, dado que assume a expressão como mais relevante que aquilo que o constitui. E tudo é feito através de pura interatividade.
Ensaio "The Last Guardian and the Language of Games" (2017) de Mark brown
janeiro 07, 2017
Do enfado do romantismo
Chegado a meio, acabei por ler o resto em diagonal, apesar de saber que surge em praticamente todas as listas dos melhores livros de ficção de língua portuguesa*. Passo a explicar.
Vitorino Nemésio doutorou-se com uma tese em Alexandre Herculano em 1934, tendo em 1936 editado um dos seus mais importantes contributos académicos, "Relações Francesas do Romantismo Português”. Serve isto para definir e delimitar o seu estilo literário ao romantismo, o que estaria na base e génese do seu, quase único romance (apenas mais duas pequenas obras 20 anos antes, e uma posterior, quase 30 anos depois), “Mau tempo no Canal”. Tendo o Romantismo iniciado-se com a Revolução Francesa, viria a sucumbir ao realismo na segunda metade do século XIX. Mesmo em Portugal, temos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, seguidos por Camilo Castelo Branco, e já na reta final Júlio Dinis, a fechar o género por volta de 1870, altura em que surge Eça de Queirós e vira tudo do avesso no país, transformando por completo a face da literatura portuguesa, abrindo caminho ao realismo e a tudo o que isso implicaria não apenas em liberdade temática, mas discursiva.
Ora Nemésio, passados mais de 70 anos, volta atrás no tempo. Não o faz por acaso, estava-se em plena efervescência no que toca à discussão académica das delimitações cronológicas dos modelos literários do século anterior. Os seus escritos académicos disso são prova. Por isso surgir da sua pena um romance assente nestes modelos, faz todo o sentido para si, e para alguns académicos, mas não deixa de ser anacrónico.
Voltando ao início. Se fechei o texto na diagonal, não foi apenas por considerar a obra anacrónica, isso é apenas um efeito do tempo, embora mereça reflexão. Mas foi apenas por ter esgotado a minha quota de paciência para com o romantismo literário. Do ponto de vista teórico, deveria adorar o romantismo, pelos seus valores, motivos e objetos. Contudo quando aplicado, nomeadamente na literatura, satura-me. A tendência para o exageramento e subjetivismo que conduz ao obscurecimento do que se vai descrevendo, cansa-me. Mas o que mais me incomoda é que aquilo que seria de esperar do estilo, um aprofundamento do sentir (psicologia) dos personagens, dado o seu enfoque no amor e suas tragédias, é completamente fantasioso, diria mesmo inócuo. Comparando-se ao que o realismo fez com as descrições psicológicas, parece até que se inverteram papéis estéticos. Assim, se fiz o esforço com “Moby Dick”, acabei por já não sentir suficiente ímpeto para o fazer por Nemésio. Diga-se que a impressão causada em 1944 não é replicável hoje. Se na altura o romance era um género praticamente ausente no país, estando a literatura nacional quase refém da poesia, hoje não nos falta romance, prosa e ficção.
Não posso contudo deixar de dizer que Nemésio escreve de forma belíssima, tal como Melville. São vários os momentos em que nos quedamos a ler e reler, pelo prazer que nos dão certas descrições mais divagantes. Mas quantas são as vezes em que nos perdemos, não percebemos onde estamos, ou onde estão os personagens, nem o que dizem, ou porque dizem. Não é uma questão de vocabulário, que sendo rico é acessível. É mesmo de estrutura narrativa, de maneirismo na forma das descrições que se perdem no espaço e no tempo. É como se nada pudesse ser dito de forma clara, menos ainda direta, e fosse obrigatório emaranhar. Como se o criador em vez de descamar a realidade para nos a apresentar, a esboçasse com mais e mais camadas até que esta se tornasse irreconhecível, fora do alcance de quem não a viu a nu, dificultando a partilha entre quem conta e quem recebe, por ausência de imaginário comum.
Talvez noutra fase da minha vida, com mais tempo e calma, possa cá voltar para desfrutar o que agora não fui capaz.
*Listas de livros de língua portuguesa
12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos, 2016
As 50 Obras Essenciais da Literatura Portuguesa, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Público, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Restrito, 2016
Grandes Livros RTP, série documental, 2009
Vitorino Nemésio doutorou-se com uma tese em Alexandre Herculano em 1934, tendo em 1936 editado um dos seus mais importantes contributos académicos, "Relações Francesas do Romantismo Português”. Serve isto para definir e delimitar o seu estilo literário ao romantismo, o que estaria na base e génese do seu, quase único romance (apenas mais duas pequenas obras 20 anos antes, e uma posterior, quase 30 anos depois), “Mau tempo no Canal”. Tendo o Romantismo iniciado-se com a Revolução Francesa, viria a sucumbir ao realismo na segunda metade do século XIX. Mesmo em Portugal, temos Alexandre Herculano e Almeida Garrett, seguidos por Camilo Castelo Branco, e já na reta final Júlio Dinis, a fechar o género por volta de 1870, altura em que surge Eça de Queirós e vira tudo do avesso no país, transformando por completo a face da literatura portuguesa, abrindo caminho ao realismo e a tudo o que isso implicaria não apenas em liberdade temática, mas discursiva.
Ora Nemésio, passados mais de 70 anos, volta atrás no tempo. Não o faz por acaso, estava-se em plena efervescência no que toca à discussão académica das delimitações cronológicas dos modelos literários do século anterior. Os seus escritos académicos disso são prova. Por isso surgir da sua pena um romance assente nestes modelos, faz todo o sentido para si, e para alguns académicos, mas não deixa de ser anacrónico.
Voltando ao início. Se fechei o texto na diagonal, não foi apenas por considerar a obra anacrónica, isso é apenas um efeito do tempo, embora mereça reflexão. Mas foi apenas por ter esgotado a minha quota de paciência para com o romantismo literário. Do ponto de vista teórico, deveria adorar o romantismo, pelos seus valores, motivos e objetos. Contudo quando aplicado, nomeadamente na literatura, satura-me. A tendência para o exageramento e subjetivismo que conduz ao obscurecimento do que se vai descrevendo, cansa-me. Mas o que mais me incomoda é que aquilo que seria de esperar do estilo, um aprofundamento do sentir (psicologia) dos personagens, dado o seu enfoque no amor e suas tragédias, é completamente fantasioso, diria mesmo inócuo. Comparando-se ao que o realismo fez com as descrições psicológicas, parece até que se inverteram papéis estéticos. Assim, se fiz o esforço com “Moby Dick”, acabei por já não sentir suficiente ímpeto para o fazer por Nemésio. Diga-se que a impressão causada em 1944 não é replicável hoje. Se na altura o romance era um género praticamente ausente no país, estando a literatura nacional quase refém da poesia, hoje não nos falta romance, prosa e ficção.
Não posso contudo deixar de dizer que Nemésio escreve de forma belíssima, tal como Melville. São vários os momentos em que nos quedamos a ler e reler, pelo prazer que nos dão certas descrições mais divagantes. Mas quantas são as vezes em que nos perdemos, não percebemos onde estamos, ou onde estão os personagens, nem o que dizem, ou porque dizem. Não é uma questão de vocabulário, que sendo rico é acessível. É mesmo de estrutura narrativa, de maneirismo na forma das descrições que se perdem no espaço e no tempo. É como se nada pudesse ser dito de forma clara, menos ainda direta, e fosse obrigatório emaranhar. Como se o criador em vez de descamar a realidade para nos a apresentar, a esboçasse com mais e mais camadas até que esta se tornasse irreconhecível, fora do alcance de quem não a viu a nu, dificultando a partilha entre quem conta e quem recebe, por ausência de imaginário comum.
Talvez noutra fase da minha vida, com mais tempo e calma, possa cá voltar para desfrutar o que agora não fui capaz.
*Listas de livros de língua portuguesa
12 Melhores Livros Portugueses dos Últimos 100 anos, 2016
As 50 Obras Essenciais da Literatura Portuguesa, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Público, 2016
Melhores Romances Escritos em Língua Portuguesa, Restrito, 2016
Grandes Livros RTP, série documental, 2009
janeiro 06, 2017
Por detrás da HiperNormalização (media e storytelling)
Chegou-me por diferentes fontes o documentário “HyperNormalisation” (2016), de Adam Curtis, produzido pela BBC. Fontes que por respeitar me obrigaram a encontrar as 2h46m para dedicar ao visionamento do mesmo. No fim, não posso dizer que tenha sido tempo perdido, mas também não posso deixar de dizer que me senti defraudado e até vítima de uma enorme tentativa de manipulação, o que não deixa de ser irónico, ainda que interessante, tendo em conta que a tese central do documentário assenta na demonstração da manipulação global das massas pela política internacional.
Ao longo de quase três horas Curtis ensaia as mais diversas teorias, que vai suportando totalmente em imagens de arquivo e uma voz off de autoridade. Esta abordagem audiovisual é magistral, já que usa o real como espetáculo para passar a ideia e ao mesmo temo credibilizá-la. Usa um modo discursivo com que as pessoas estão familiarizadas, o do cinema espetáculo mesclado com o da informação televisiva. É difícil escapar à argumentação, apresentada como verdade cabal, única sem margem para dúvida, reforçada por imagens do real, som e vozes coadunantes, ficamos como que hipnotizados e deixamo-nos embalar pela excelência da retórica audiovisual.
Em essência, Curtis defende que o mundo vive dominado por meia-dúzia de políticos que para se manter no poder, engendram continuamente histórias da carochinha (ex. Sistema Bancário, Bolsa, Kissinger, Assad, Kadafi, Bush, Blair, Hussein, ISIS, Putin, Farage e Trump) que servem no adormecimento da sociedade, como ele diz, na defesa de uma suposta “estabilidade”. Curtis defende, que em face da complexidade da realidade, e da impotência para a transformar, os políticos, e o mundo — artistas, juízes, professores, etc. —, têm-se retraído e contado histórias uns aos outros para evitar dizer que “o rei vai nu”. Curtis elabora a teoria com base no fim do regime comunista na União Soviética, em que ninguém acreditava já na capacidade do sistema para dar resposta às necessidades reais da sociedade, mas todos continuavam a querer acreditar nas histórias que falseavam os problemas existentes, criando uma realidade patranha ("fake") em que todos preferiam acreditar e conviver. Este mundo aparente e aceite por todos, foi etiquetado como processo de "hipernormalização", pelo antropólogo Alexei Yurchak, no livro 2005, “Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation”, e é a base de todo o filme, e toda a grande teoria de Curtis.
Diga-se, não é uma má teoria, o problema deste documentário é que peca exatamente pelo pecado que tenta elucidar, o que é no mínimo caricato. Ou seja, ao tentar demonstrar que os políticos, e o mundo, têm criado histórias que fogem à complexidade do real, para hipernormalizar tudo à nossa volta, Curtis acaba a criar a sua própria hipernormalização sobre a hipernormalização, fugindo, ele próprio, à gigantesca teia de complexidades que percorre cada um dos exemplos dados para suportar a sua teorização. Diga-se que ao longo do documentário, Curtis faz leituras muito interessantes, diria mesmo penetrantes e verdadeiros abre-olhos, tais como o fantoche internacional Gaddafi, ou ainda a definição dos perfis e modos de atuação política de Putin e Trump, como “shape-shifters” (constante mudança de forma e objetivos, baralhando tudo e todos). Contudo, outros exemplos como o arco narrativo de décadas criado para explicar o surgimento do ISIS roça a pura mitologia. E isso fica evidente para cada um de nós especialista nas suas áreas. Não especialista em ciência política não sou capaz de medir com concretude o alcance do que Curtis afirma, deixando-me seduzir. Contudo quando ele fala de cinema, internet ou IA fico totalmente estupefacto com o modo como supersimplifica o complexo apenas para garantir que o que se conta corresponde às necessidades da sua história, algo que os académicos conhecem muito bem como viés.
Mas se à partida tudo isto deitaria por terra o menor interesse pelo documentário, antes pelo contrário só o torna ainda mais relevante, já que acaba por se auto-incluir nesse mundo patranha, assumido ou não, sendo um documentário patranha. Mas sendo-o funciona como um objeto que merece toda a nossa cuidada atenção, já que é um objeto meta-hipernormalizante. E por isso a questão que se impõe, é tentar perceber o porquê deste fenómeno, o que encerra enquanto ação humana, como se produz, e com que objetivos; como se tornou tão central ao ponto de contaminar o próprio discurso que o tenta desmistificar.
Ora a resposta advém de um, entre muitos, dos principais fatores escamoteados pela análise de Curtis, os Media, a mediatização do real, dos factos e acontecimentos. As transformações industriais e tecnológicas permitiram transformar o planeta numa aldeia global. Como tal existe uma necessidade vital de manter a aldeia pulsante, ora essa vida só é possível através dos media, já que não se pode juntar as pessoas todas à volta da fogueira, no final do dia ou da semana. Não existe vida sem comunicação, porque a essência do que nos torna humanos é a nossa capacidade social, em essência o diálogo e a troca.
Reconhecida a presença essencial dos media, passamos ao passo seguinte, que são os seus conteúdos. Para que grupos grandes compreendam o teor das mensagens que lhes são passadas, é requerida uma simplificação da complexidade. Quando tal não acontece o grupo simplesmente acaba ignorando, começa a desligar e vai à procura de outra fonte que compreenda, que fale no seu comprimento de onda. Deste modo, mais do que encenar, foi e será sempre vital omitir e simplificar informação, isto é a condição base do processo de contar histórias (storytelling), processo de organização de informação que evolutivamente mais frutos deu à formação das civilizações humanas.
O storytelling é uma tecnologia de simplificação, podemos dizer de normalização do complexo. O processo assenta na selecção de eventos chave, na estripação do secundário e redundante, mas também do impossível ou não explicável. O processo de contar histórias não funciona bem quando, o que se diz, não tem uma causa e efeito, é como se a história ficasse incompleta. Quem está do outro lado, fica sem perceber, e como disse acima, tende a desligar de quem conta histórias sem sentido completo, fechado fácil de apreender. Era assim nos grupos tribais, onde o storytelling germinou para ajudar a transmitir conhecimento de geração em geração, mas também para manter o grupo unido, devoto de uma mesma visão, crente nos mesmos princípios, podemos dizer, sequiosos de normalização. Daí que os políticos se debatam constantemente por encontrar os bodes expiatórios, fantoches, que possam de algum modo fechar as histórias, dar-lhes uma explicação e sentido, que acalme as pessoas e lhes permita avançar.
Curtis ataca a hipernormalização pela ânsia da estabilidade, como se essa fosse um erro. É verdade que a disrupção é bem vista pelos meios artísticos e criativos, sabemos que é dela que brota o melhor de nós, as grandes inovações e avanços da humanidade. Mas daí a extrapolarmos o sentimento de momentos decisivos da sociedade, para um contínuo no tempo, vai uma distância inimaginável. O ser humano precisa da estabilidade, até para se tornar criativo. Como vários estudos têm demonstrado, os momentos de disrupção, só surgem porque momentos de acalmia e enorme estabilidade permitiram formar o conhecimento para o salto no momento de aperto. Se a todo o momento vivermos sob aperto, a criatividade simplesmente definha, basta tentar procurar inovação em regiões que vivem sob a pressão constante da guerra.
Por fim, uma rápida pesquisa na web, ou visita ao IMDB, dá para perceber que este documentário é uma linha de trabalho já muito experimentada pelo autor. Não há aqui nada de muito novo. São múltiplas as pontas do documentário que ficam soltas, e que Curtis se desculpa com a ideia de que não pretende fazer cinema, apenas criar ideias que as pessoas possam apanhar em qualquer momento que começam a ver os seus filmes. Mas o que Curtis faz é apontar o dedo à sociedade, às pessoas, simplesmente para dizer que estão a fazer algo errado. O problema de Curtis não é não explicar como fazer certo, não sejamos ingénuos ao ponto de esperar que Curtis apresentasse uma 3ª Via para ombrear com Giddens e Gaddafi! Mas, e para além das contradições naturais em teorizações deste calibre, Curtis não tem argumentos para explicar sequer porque é errado. Apontar o dedo, fazem as crianças desde pequenas, desde que começam a perceber a diferença entre si e os outros.
Ao longo de quase três horas Curtis ensaia as mais diversas teorias, que vai suportando totalmente em imagens de arquivo e uma voz off de autoridade. Esta abordagem audiovisual é magistral, já que usa o real como espetáculo para passar a ideia e ao mesmo temo credibilizá-la. Usa um modo discursivo com que as pessoas estão familiarizadas, o do cinema espetáculo mesclado com o da informação televisiva. É difícil escapar à argumentação, apresentada como verdade cabal, única sem margem para dúvida, reforçada por imagens do real, som e vozes coadunantes, ficamos como que hipnotizados e deixamo-nos embalar pela excelência da retórica audiovisual.
Em essência, Curtis defende que o mundo vive dominado por meia-dúzia de políticos que para se manter no poder, engendram continuamente histórias da carochinha (ex. Sistema Bancário, Bolsa, Kissinger, Assad, Kadafi, Bush, Blair, Hussein, ISIS, Putin, Farage e Trump) que servem no adormecimento da sociedade, como ele diz, na defesa de uma suposta “estabilidade”. Curtis defende, que em face da complexidade da realidade, e da impotência para a transformar, os políticos, e o mundo — artistas, juízes, professores, etc. —, têm-se retraído e contado histórias uns aos outros para evitar dizer que “o rei vai nu”. Curtis elabora a teoria com base no fim do regime comunista na União Soviética, em que ninguém acreditava já na capacidade do sistema para dar resposta às necessidades reais da sociedade, mas todos continuavam a querer acreditar nas histórias que falseavam os problemas existentes, criando uma realidade patranha ("fake") em que todos preferiam acreditar e conviver. Este mundo aparente e aceite por todos, foi etiquetado como processo de "hipernormalização", pelo antropólogo Alexei Yurchak, no livro 2005, “Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation”, e é a base de todo o filme, e toda a grande teoria de Curtis.
Diga-se, não é uma má teoria, o problema deste documentário é que peca exatamente pelo pecado que tenta elucidar, o que é no mínimo caricato. Ou seja, ao tentar demonstrar que os políticos, e o mundo, têm criado histórias que fogem à complexidade do real, para hipernormalizar tudo à nossa volta, Curtis acaba a criar a sua própria hipernormalização sobre a hipernormalização, fugindo, ele próprio, à gigantesca teia de complexidades que percorre cada um dos exemplos dados para suportar a sua teorização. Diga-se que ao longo do documentário, Curtis faz leituras muito interessantes, diria mesmo penetrantes e verdadeiros abre-olhos, tais como o fantoche internacional Gaddafi, ou ainda a definição dos perfis e modos de atuação política de Putin e Trump, como “shape-shifters” (constante mudança de forma e objetivos, baralhando tudo e todos). Contudo, outros exemplos como o arco narrativo de décadas criado para explicar o surgimento do ISIS roça a pura mitologia. E isso fica evidente para cada um de nós especialista nas suas áreas. Não especialista em ciência política não sou capaz de medir com concretude o alcance do que Curtis afirma, deixando-me seduzir. Contudo quando ele fala de cinema, internet ou IA fico totalmente estupefacto com o modo como supersimplifica o complexo apenas para garantir que o que se conta corresponde às necessidades da sua história, algo que os académicos conhecem muito bem como viés.
Mas se à partida tudo isto deitaria por terra o menor interesse pelo documentário, antes pelo contrário só o torna ainda mais relevante, já que acaba por se auto-incluir nesse mundo patranha, assumido ou não, sendo um documentário patranha. Mas sendo-o funciona como um objeto que merece toda a nossa cuidada atenção, já que é um objeto meta-hipernormalizante. E por isso a questão que se impõe, é tentar perceber o porquê deste fenómeno, o que encerra enquanto ação humana, como se produz, e com que objetivos; como se tornou tão central ao ponto de contaminar o próprio discurso que o tenta desmistificar.
Ora a resposta advém de um, entre muitos, dos principais fatores escamoteados pela análise de Curtis, os Media, a mediatização do real, dos factos e acontecimentos. As transformações industriais e tecnológicas permitiram transformar o planeta numa aldeia global. Como tal existe uma necessidade vital de manter a aldeia pulsante, ora essa vida só é possível através dos media, já que não se pode juntar as pessoas todas à volta da fogueira, no final do dia ou da semana. Não existe vida sem comunicação, porque a essência do que nos torna humanos é a nossa capacidade social, em essência o diálogo e a troca.
Reconhecida a presença essencial dos media, passamos ao passo seguinte, que são os seus conteúdos. Para que grupos grandes compreendam o teor das mensagens que lhes são passadas, é requerida uma simplificação da complexidade. Quando tal não acontece o grupo simplesmente acaba ignorando, começa a desligar e vai à procura de outra fonte que compreenda, que fale no seu comprimento de onda. Deste modo, mais do que encenar, foi e será sempre vital omitir e simplificar informação, isto é a condição base do processo de contar histórias (storytelling), processo de organização de informação que evolutivamente mais frutos deu à formação das civilizações humanas.
O storytelling é uma tecnologia de simplificação, podemos dizer de normalização do complexo. O processo assenta na selecção de eventos chave, na estripação do secundário e redundante, mas também do impossível ou não explicável. O processo de contar histórias não funciona bem quando, o que se diz, não tem uma causa e efeito, é como se a história ficasse incompleta. Quem está do outro lado, fica sem perceber, e como disse acima, tende a desligar de quem conta histórias sem sentido completo, fechado fácil de apreender. Era assim nos grupos tribais, onde o storytelling germinou para ajudar a transmitir conhecimento de geração em geração, mas também para manter o grupo unido, devoto de uma mesma visão, crente nos mesmos princípios, podemos dizer, sequiosos de normalização. Daí que os políticos se debatam constantemente por encontrar os bodes expiatórios, fantoches, que possam de algum modo fechar as histórias, dar-lhes uma explicação e sentido, que acalme as pessoas e lhes permita avançar.
Curtis ataca a hipernormalização pela ânsia da estabilidade, como se essa fosse um erro. É verdade que a disrupção é bem vista pelos meios artísticos e criativos, sabemos que é dela que brota o melhor de nós, as grandes inovações e avanços da humanidade. Mas daí a extrapolarmos o sentimento de momentos decisivos da sociedade, para um contínuo no tempo, vai uma distância inimaginável. O ser humano precisa da estabilidade, até para se tornar criativo. Como vários estudos têm demonstrado, os momentos de disrupção, só surgem porque momentos de acalmia e enorme estabilidade permitiram formar o conhecimento para o salto no momento de aperto. Se a todo o momento vivermos sob aperto, a criatividade simplesmente definha, basta tentar procurar inovação em regiões que vivem sob a pressão constante da guerra.
Trailer de "HyperNormalisation" (2016) de Adam Curtis
Por fim, uma rápida pesquisa na web, ou visita ao IMDB, dá para perceber que este documentário é uma linha de trabalho já muito experimentada pelo autor. Não há aqui nada de muito novo. São múltiplas as pontas do documentário que ficam soltas, e que Curtis se desculpa com a ideia de que não pretende fazer cinema, apenas criar ideias que as pessoas possam apanhar em qualquer momento que começam a ver os seus filmes. Mas o que Curtis faz é apontar o dedo à sociedade, às pessoas, simplesmente para dizer que estão a fazer algo errado. O problema de Curtis não é não explicar como fazer certo, não sejamos ingénuos ao ponto de esperar que Curtis apresentasse uma 3ª Via para ombrear com Giddens e Gaddafi! Mas, e para além das contradições naturais em teorizações deste calibre, Curtis não tem argumentos para explicar sequer porque é errado. Apontar o dedo, fazem as crianças desde pequenas, desde que começam a perceber a diferença entre si e os outros.
Filme completo, disponível no Youtube temporariamente, até ser retirado. Normalmente apenas visionável no BBC iPlayer.
janeiro 03, 2017
“Os Dias do Abandono” de Elena Ferrante
Quem quer que esteja a par do que vai sendo editado, sabe que o fenómeno Ferrante atingiu Portugal em cheio nos últimos dois anos com a publicação da sua obra pela Relógio d’Água, apesar de “Os Dias do Abandono” ter sido editado entre nós há mais de uma década pela D. Quixote. Do meu lado, conhecendo apenas o nome, não tendo lido críticas além das de amigas do Goodreads, nem nada da autora, fui apanhado completamente de surpresa quando por acaso resolvi ler a primeira página de “Os Dias do Abandono”, no ebook da edição brasileira, editado pela Biblioteca Azul. Estaquei no final da página, queria ler o resto sem parar, necessitava desesperadamente de ler o resto.
Mas não queria ler em português do brasil, tentei em inglês mas também não funcionou, e o italiano estava ainda mais distante. A escrita era de tal forma direta, humano para humano, que não queria ler o texto numa qualquer forma que me impedisse de chegar o mais perto possível da origem. A única forma de o fazer era na língua materna e numa abordagem escrita próxima no tempo e na geografia, tornando mais neutro o veículo textual, para que a sintonia pudesse conferir o esquecimento do processo de leitura. Esgotada a edição da D. Quixote, sobrou comprar a edição da novela pela RA, que me custou quando descobri que vinha enxertada numa coletânea, “Crónicas do Mal de Amor”.
Iniciada a leitura, nem queria acreditar no que estava a ler, sentia como jorros, literalmente, jorros de experiências projetados na escrita que agora se vertiam das páginas. Acontecimentos cuspidos no papel, crus, nus e reais. Realidade fria mas dada a quente. E só pensava, que forma de escrever é esta? De onde veio isto?! Era pura telepatia, como se pudesse aceder ao sentir da autora sem intermediário. Não era o que era dito, mas era o que se dizia fundido com o como se dizia, que me fez começar a investigar sobre o estilo por detrás daquela escrita. Era, talvez também, o facto de estar a ver, e a sentir, o mundo através do interior da mente feminina que me impactava tão fortemente, criando ainda mais a necessidade de compreender em maior profundidade o que tudo aquilo representava.
Ainda sem ter lido resenhas profissionais, tinha evitado ler as palavras do respeitadíssimo James Wood, que vinham como prefácio à edição da RA, e resolvi pesquisar sobre “escrita confessional”. Era o que me parecia estar ali em causa, alguém que nos revela, na primeira pessoa, o seu sentir a propósito de uma tragédia da vida. Tinha lido várias obras dentro do tipo, mas não tinha noção do seu alcance criativo, nem da existência de sub-géneros. Da minha pesquisa, encontrei três grandes sub-géneros: memórias e diários, iniciado por Marco Aurélio, tornado popular por Anne Frank no século XX, podendo definir-se, latamente, como conjunto de factos reais escritos sem um objeto definido, nem intenção de ser tornado publico; confessionalismo, iniciado por Santo Agostinho em plena idade média, tornado ex-libris literário em Sylvia Plath no século XX, definindo-se num conjunto de factos reais trabalhados pela imaginação, escritos com o objetivo de expiação, daí que tenda a centrar-se em aspetos humanos mais negativos; não-ficção criativa, um estilo muito mais recente, que se desfia no limite da linha entre o documental e o ficcional, tendo sido de certo modo iniciado por Henry David Thoreau, com seguidores como Jack Kerouac ou Jon Krakauer, e ainda experimentado noutras formas por Truman Capote, que se pode definir por conjuntos de factos reais trabalhados pela experiência, escritos com objetivos sociais ou políticos.
Como se pode ver, todos estes modos se configuram a partir de algum tipo de conjunto de factos reais, podendo nuns casos resvalar mais para o não-ficcional, enquanto noutros para o ficcional, muito em função do que cada autor pretende. Diga-se ainda, que saindo da literatura e entrando nos textos de revistas e jornais, podemos encontrar o estilo de escrita confessional desmultiplicado numa imensidade de formas e formatos. Desde quase o início do século XX que se edita nos EUA uma revista chamada “True Story” com o lema, “A Verdade é mais Estranha do que a Ficção”. Esta mesma revista daria origem ainda a mais duas novas revistas: “True Conventions” e a “Creative Nonfiction”. Mas não se fica por aqui, no início deste novo século, a escrita confessional ganhou um palco ainda mais poderoso e desmultiplicador, com a facilidade de publicação online, desde os blogs ao facebook. Só em Portugal, existem centenas de pessoas que se dedicam a este tipo de escrita, das quais aproveito para deixar dois casos que espelham a qualidade do meio: Ana Cássia Rebelo e Mil Ghent.
Por outro lado, e mais ainda por termos uma Elena Ferrante italiana, ou localizada em Itália, torna-se inevitável falar do movimento artístico fílmico aí surgido nas décadas de 1940/50, o neorealismo italiano, que procurava apresentar na tela a vida tal como ela era, sem qualquer embelezamento. Pensando em "Os Dias do Abandono", vêm-me a memória a mãe em "Roma, Cidade Aberta" (1945) de Roberto Rossellini, ou o pai em "Ladrões de Bicicleta" (1948) de Vittorio De Sica. Embora em termos de representação de estados emocionais, considere que o neorealismo estava ainda muito apegado ao classicismo cinematográfico. Em termos cinematográficos, considero que existe todo um movimento, tendencialmente europeu, que reflete uma realidade na qual Elena Ferrante bem se enquadra, que qualifiquei recentemente como Realismo Áspero, e que envolve filmes como “The Seventh Continent” (1989), “The Celebration” 1998, “Tuesday, After Christmas” (2010).
Voltando à escrita em tom confessional, apesar de todos os géneros aqui listados, parece existir uma certa tendência para seguir a pauta ditada por Santo Agostinho, em termos de propósito. Ou seja, servir uma certa catarse interior, revelando um sentir normalmente não verbalizado, desvelando aquilo que faz mover quem escreve, acabando por se centrar invariavelmente nos pensamentos mais negros, em tragédias humanas das mais variada espécies. Desta forma, é também um género em que quem escreve tende a optar pelo anonimato, o que faz pleno sentido. Quem não sendo capaz de revelar aos mais próximos os seus males interiores , optando pela escrita como prática quase terapêutica, o faria de modo público?!
Dito isto, assumo a minha precipitação na publicação de um texto em que defendia a necessidade de conhecer a identidade de Elena Ferrante. Sei agora o que isso implica, ou pode implicar, e aceito completamente a vontade da autora, contudo, apenas na expectativa de que após a sua morte nos possa ser revelada. Isto porque só na posse da identidade e conhecimento da sua vida, poderemos chegar a uma cabal definição do género literário de Ferrante. Não estão aqui em causa as "desculpas" dadas pela autora — da fama, celebridade ou voyeurismo —, discordando totalmente da sua afirmação de que a obra existe autonomamente. Não podemos chegar ao âmago completo do entendimento do texto porque desde logo é-nos pedida a crença em algo, em algo que aconteceu. Podemos dizer que apreciamos a obra pela obra, mas ela não existe sem o ser-humano que a criou, parte da chave daquele texto está nessa pessoa, é essa a condição fundamental da escrita confessional. Aliás, a própria Ferrante afirma-o em entrevista, contradizendo-se:
Em termos técnicos, o que Ferrante faz é muito interessante porque não se escusa a usar a forma narrativa clássica para comunicar o sentir mais íntimo. Usa essa forma para construir e organizar as suas ideias, encadeando todos os eventos de forma causal, exteriorizando muitos dos pensamentos em ações físicas, num sucedâneo perfeitamente cronológico, tornando assim o acesso ao que nos diz muito fácil. Não existe qualquer tentação por trabalhar em fluxo de consciência, com fragmentação de memórias ou polifonias, que pudessem aproximar o leitor do modo como funciona o pensamento humano, naquela ânsia por chegar mais próximo do experienciar e sentir. Ainda mais, tendo em conta que nos quer dar a sentir o caos emocional que tem sido melhor trabalhado em abordagens mais experimentalistas. Contudo, Ferrante não sucumbe, mantém-se linear, muito direta, muito correta, falando connosco, dialogando sempre, sem esquecer que existe um leitor do outro lado. E se o faz, é porque de algum modo consegue fazer-nos chegar essa experiência do sentir, mesmo colocando-se do outro lado da folha de papel, assumindo-se como contadora, mas também como ser-humano igual a nós, mantendo a compostura para continuar a relatar, como se conversando pudesse simultaneamente gritar.
Julgo, em parte, que ela consegue esta proeza pelo modo como fusiona discurso e história. Ou seja, o discurso é uniforme e sóbrio, mas o que nos vai contando roça a insanidade. Da depravação à alucinação, tudo entra, e tudo constrói a nossa impressão do que lemos. O discurso é contido na forma mas completamente incontinente na revelação dos pensamentos mais negros e recônditos da personagem. Mais uma vez comparando, se o Molilóquio de Joyce impressiona pela forma, traduzindo-se tão próximo do modo como pensamos, já naquilo que nos vai revelando é bem mais refreado, algo fantasioso até, ainda que para 1922 já se tenha considerado pornográfico. Ferrante apesar de não inovar na forma, não deixa de ser virtuosa, o modo como movimenta os seus personagens no espaço e tempo, cria ritmos e dinâmicas muito impressivas que espelham o interior mental destes. Toda a novela tem um ritmo muito definido, quase matemático, de intensificação pela escolha dos termos, pontuação e frases que nos conduzem a um clímax, para depois, tudo se aplicar no desencher dessa intensidade, que conduz ao clarear e ganho de consciência revogatório. É classicismo puro, mas é-o de uma forma áspera, algo que nos habituámos a guardar para a vida real, que é no fundo o que Ferrante procura, como fica claro nestas palavras quase no final da novela:
Edição: “Os Dias do Abandono” (2002), in Crónicas do Mal de Amor, Elena Ferrante, Relógio D’Água, Lisboa: 2014 (pp.132-288)
Mas não queria ler em português do brasil, tentei em inglês mas também não funcionou, e o italiano estava ainda mais distante. A escrita era de tal forma direta, humano para humano, que não queria ler o texto numa qualquer forma que me impedisse de chegar o mais perto possível da origem. A única forma de o fazer era na língua materna e numa abordagem escrita próxima no tempo e na geografia, tornando mais neutro o veículo textual, para que a sintonia pudesse conferir o esquecimento do processo de leitura. Esgotada a edição da D. Quixote, sobrou comprar a edição da novela pela RA, que me custou quando descobri que vinha enxertada numa coletânea, “Crónicas do Mal de Amor”.
Iniciada a leitura, nem queria acreditar no que estava a ler, sentia como jorros, literalmente, jorros de experiências projetados na escrita que agora se vertiam das páginas. Acontecimentos cuspidos no papel, crus, nus e reais. Realidade fria mas dada a quente. E só pensava, que forma de escrever é esta? De onde veio isto?! Era pura telepatia, como se pudesse aceder ao sentir da autora sem intermediário. Não era o que era dito, mas era o que se dizia fundido com o como se dizia, que me fez começar a investigar sobre o estilo por detrás daquela escrita. Era, talvez também, o facto de estar a ver, e a sentir, o mundo através do interior da mente feminina que me impactava tão fortemente, criando ainda mais a necessidade de compreender em maior profundidade o que tudo aquilo representava.
Ainda sem ter lido resenhas profissionais, tinha evitado ler as palavras do respeitadíssimo James Wood, que vinham como prefácio à edição da RA, e resolvi pesquisar sobre “escrita confessional”. Era o que me parecia estar ali em causa, alguém que nos revela, na primeira pessoa, o seu sentir a propósito de uma tragédia da vida. Tinha lido várias obras dentro do tipo, mas não tinha noção do seu alcance criativo, nem da existência de sub-géneros. Da minha pesquisa, encontrei três grandes sub-géneros: memórias e diários, iniciado por Marco Aurélio, tornado popular por Anne Frank no século XX, podendo definir-se, latamente, como conjunto de factos reais escritos sem um objeto definido, nem intenção de ser tornado publico; confessionalismo, iniciado por Santo Agostinho em plena idade média, tornado ex-libris literário em Sylvia Plath no século XX, definindo-se num conjunto de factos reais trabalhados pela imaginação, escritos com o objetivo de expiação, daí que tenda a centrar-se em aspetos humanos mais negativos; não-ficção criativa, um estilo muito mais recente, que se desfia no limite da linha entre o documental e o ficcional, tendo sido de certo modo iniciado por Henry David Thoreau, com seguidores como Jack Kerouac ou Jon Krakauer, e ainda experimentado noutras formas por Truman Capote, que se pode definir por conjuntos de factos reais trabalhados pela experiência, escritos com objetivos sociais ou políticos.
Como se pode ver, todos estes modos se configuram a partir de algum tipo de conjunto de factos reais, podendo nuns casos resvalar mais para o não-ficcional, enquanto noutros para o ficcional, muito em função do que cada autor pretende. Diga-se ainda, que saindo da literatura e entrando nos textos de revistas e jornais, podemos encontrar o estilo de escrita confessional desmultiplicado numa imensidade de formas e formatos. Desde quase o início do século XX que se edita nos EUA uma revista chamada “True Story” com o lema, “A Verdade é mais Estranha do que a Ficção”. Esta mesma revista daria origem ainda a mais duas novas revistas: “True Conventions” e a “Creative Nonfiction”. Mas não se fica por aqui, no início deste novo século, a escrita confessional ganhou um palco ainda mais poderoso e desmultiplicador, com a facilidade de publicação online, desde os blogs ao facebook. Só em Portugal, existem centenas de pessoas que se dedicam a este tipo de escrita, das quais aproveito para deixar dois casos que espelham a qualidade do meio: Ana Cássia Rebelo e Mil Ghent.
Por outro lado, e mais ainda por termos uma Elena Ferrante italiana, ou localizada em Itália, torna-se inevitável falar do movimento artístico fílmico aí surgido nas décadas de 1940/50, o neorealismo italiano, que procurava apresentar na tela a vida tal como ela era, sem qualquer embelezamento. Pensando em "Os Dias do Abandono", vêm-me a memória a mãe em "Roma, Cidade Aberta" (1945) de Roberto Rossellini, ou o pai em "Ladrões de Bicicleta" (1948) de Vittorio De Sica. Embora em termos de representação de estados emocionais, considere que o neorealismo estava ainda muito apegado ao classicismo cinematográfico. Em termos cinematográficos, considero que existe todo um movimento, tendencialmente europeu, que reflete uma realidade na qual Elena Ferrante bem se enquadra, que qualifiquei recentemente como Realismo Áspero, e que envolve filmes como “The Seventh Continent” (1989), “The Celebration” 1998, “Tuesday, After Christmas” (2010).
Voltando à escrita em tom confessional, apesar de todos os géneros aqui listados, parece existir uma certa tendência para seguir a pauta ditada por Santo Agostinho, em termos de propósito. Ou seja, servir uma certa catarse interior, revelando um sentir normalmente não verbalizado, desvelando aquilo que faz mover quem escreve, acabando por se centrar invariavelmente nos pensamentos mais negros, em tragédias humanas das mais variada espécies. Desta forma, é também um género em que quem escreve tende a optar pelo anonimato, o que faz pleno sentido. Quem não sendo capaz de revelar aos mais próximos os seus males interiores , optando pela escrita como prática quase terapêutica, o faria de modo público?!
Dito isto, assumo a minha precipitação na publicação de um texto em que defendia a necessidade de conhecer a identidade de Elena Ferrante. Sei agora o que isso implica, ou pode implicar, e aceito completamente a vontade da autora, contudo, apenas na expectativa de que após a sua morte nos possa ser revelada. Isto porque só na posse da identidade e conhecimento da sua vida, poderemos chegar a uma cabal definição do género literário de Ferrante. Não estão aqui em causa as "desculpas" dadas pela autora — da fama, celebridade ou voyeurismo —, discordando totalmente da sua afirmação de que a obra existe autonomamente. Não podemos chegar ao âmago completo do entendimento do texto porque desde logo é-nos pedida a crença em algo, em algo que aconteceu. Podemos dizer que apreciamos a obra pela obra, mas ela não existe sem o ser-humano que a criou, parte da chave daquele texto está nessa pessoa, é essa a condição fundamental da escrita confessional. Aliás, a própria Ferrante afirma-o em entrevista, contradizendo-se:
"Eu prefiro chamar [a escrita] de apropriação ilícita em vez de indiscrição. Escrever para mim é como um arrastão que carrega tudo consigo: expressões e figuras de discurso, posturas, sentimentos, pensamentos, problemas. Em suma, a vida de outros." Elena Ferrante em entrevista ao The GuardianMas definindo o género de escrita confessional de Ferrante, fica tudo dito? A opção por este modo é suficiente para tornar um texto íntimo, poderosamente emocional, como acontece com Ferrante? Não, simplesmente não. O género é apenas uma estrutura que em termos artísticos tende a ser sempre algo imensamente lato. Ferrante não é apenas escrita confessional, é algo mais, algo diferente, e que não é fácil de definir. Se evocarmos Sylvia Plath, que deambulou por este género como acima dissemos, veremos que se aproximam nas intenções (especulando no caso de Ferrante), mas ainda assim existe uma gigantesca distância entre ambas em termos discursivos. Aliás, não querendo discutir Plath, mas agora que comparo, penso que se tornou mais ícone pelo tempo e forma como morreu, o que de certo modo acaba dando ainda mais força à ideia que tenho tentado passar, de que as obras não existem sem os seus autores. Aquilo que os criadores fazem fora das suas obras contamina totalmente aquilo em que as obras se transformam.
Em termos técnicos, o que Ferrante faz é muito interessante porque não se escusa a usar a forma narrativa clássica para comunicar o sentir mais íntimo. Usa essa forma para construir e organizar as suas ideias, encadeando todos os eventos de forma causal, exteriorizando muitos dos pensamentos em ações físicas, num sucedâneo perfeitamente cronológico, tornando assim o acesso ao que nos diz muito fácil. Não existe qualquer tentação por trabalhar em fluxo de consciência, com fragmentação de memórias ou polifonias, que pudessem aproximar o leitor do modo como funciona o pensamento humano, naquela ânsia por chegar mais próximo do experienciar e sentir. Ainda mais, tendo em conta que nos quer dar a sentir o caos emocional que tem sido melhor trabalhado em abordagens mais experimentalistas. Contudo, Ferrante não sucumbe, mantém-se linear, muito direta, muito correta, falando connosco, dialogando sempre, sem esquecer que existe um leitor do outro lado. E se o faz, é porque de algum modo consegue fazer-nos chegar essa experiência do sentir, mesmo colocando-se do outro lado da folha de papel, assumindo-se como contadora, mas também como ser-humano igual a nós, mantendo a compostura para continuar a relatar, como se conversando pudesse simultaneamente gritar.
Julgo, em parte, que ela consegue esta proeza pelo modo como fusiona discurso e história. Ou seja, o discurso é uniforme e sóbrio, mas o que nos vai contando roça a insanidade. Da depravação à alucinação, tudo entra, e tudo constrói a nossa impressão do que lemos. O discurso é contido na forma mas completamente incontinente na revelação dos pensamentos mais negros e recônditos da personagem. Mais uma vez comparando, se o Molilóquio de Joyce impressiona pela forma, traduzindo-se tão próximo do modo como pensamos, já naquilo que nos vai revelando é bem mais refreado, algo fantasioso até, ainda que para 1922 já se tenha considerado pornográfico. Ferrante apesar de não inovar na forma, não deixa de ser virtuosa, o modo como movimenta os seus personagens no espaço e tempo, cria ritmos e dinâmicas muito impressivas que espelham o interior mental destes. Toda a novela tem um ritmo muito definido, quase matemático, de intensificação pela escolha dos termos, pontuação e frases que nos conduzem a um clímax, para depois, tudo se aplicar no desencher dessa intensidade, que conduz ao clarear e ganho de consciência revogatório. É classicismo puro, mas é-o de uma forma áspera, algo que nos habituámos a guardar para a vida real, que é no fundo o que Ferrante procura, como fica claro nestas palavras quase no final da novela:
“Existir é isto, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que fremem sob a pele, e não há outra verdade que se possa contar.” (p.286)Por fim, e agora já depois de ter lido Wood, não tendo sentido grande sintonia com a sua abordagem à obra, concordo plenamente com a sua qualificação de autenticidade. É o que sobressai, um sentimento de verdade discursiva, mesmo não fazendo a mínima ideia se aquilo que se relata, é ou não verdade.
Edição: “Os Dias do Abandono” (2002), in Crónicas do Mal de Amor, Elena Ferrante, Relógio D’Água, Lisboa: 2014 (pp.132-288)
janeiro 01, 2017
Textos de 2016
Estive a passar os olhos pela listagem de textos publicados ao longo do ano, e nas visualizações que cada um teve. De um conjunto de cerca de vinte mais vistos, destaco dez que me parecem ser dos mais interessantes. Outros houve que mais me disseram, mas não tendo sido tão preferidos, opto por não os nomear.
Do conjunto, de textos recolhidos, extraí as palavras-chave mais relevantes: banda desenhada, narrativa, design de jogos, animação e multimédia.
1 - Fazer um doutoramento? (Banda Desenhada, Academia)
2 - 10 Estruturas Narrativas (Narrativa)
3 - Design de "Downwell" (Design de jogos)
4 - A glória de Unity, e sem programação (Software, Multimédia)
5 - “Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo (Narrativa, Multimédia)
6 - “Inside”, uma obra incontornável (Videojogos)
7 - ”Hipopotamy" (M/18) (Animação)
8 - “The Beginning of Infinity" (2011) (Livro, Ciência)
9 - "Life is Strange" (2015) (Videojogos)
10 - Criar histórias originais (Narrativa)
1 - Fazer um doutoramento? (Banda Desenhada, Academia)
2 - 10 Estruturas Narrativas (Narrativa)
3 - Design de "Downwell" (Design de jogos)
4 - A glória de Unity, e sem programação (Software, Multimédia)
5 - “Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo (Narrativa, Multimédia)
6 - “Inside”, uma obra incontornável (Videojogos)
7 - ”Hipopotamy" (M/18) (Animação)
8 - “The Beginning of Infinity" (2011) (Livro, Ciência)
9 - "Life is Strange" (2015) (Videojogos)
10 - Criar histórias originais (Narrativa)
dezembro 31, 2016
“O Pintassilgo” (2013)
Adorei “A História Secreta” (1992), gostei de “O Pintassilgo” (2013), se não tivesse lido “A História Secreta”, teria talvez adorado “O Pintassilgo”. Aconteceu-me exatamente o mesmo com Murakami, e os seus “1Q84” (2010) e “Kafka à Beira-mar” (2002). Bons escritores, mas que parecem ter apenas um mundo a oferecer. Talvez o problema nem seja deles, talvez eu espere demasiado, talvez espere algo que a literatura, enquanto arte, não pode dar. Poderá um escritor dar-nos múltiplos mundos distintos? Foi exatamente sobre isto, e por causa deste livro que acabei a escrever, há dias, “Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais”.
Donna Tartt tem um estilo próprio, tem uma voz própria, escreve de forma fluída e lúcida. Fala das emoções sentidas num mundo contemporâneo carregado de deveres morais para com a sociedade. A sua primeira pessoa é instigante, mantém-nos agarrados ao pensar e sentir dos seus personagens, como se estivéssemos todo o tempo dentro das suas cabeças. Mas no final existe um certo vazio, por mais que tudo pareça rebuscar erudição. De certa forma, acontece-me exatamente o mesmo com as obras de Murakami.
Veja-se o mundo de Tartt. Em termos temáticos, temos um jovem que se procura, perdido no mundo, sozinho, tentando tornar-se adulto. Sim, também temos a arte, o quadro que está todo o tempo lá, como está a mãe, são ambos aquilo que mantém o jovem ligado ao mundo. A arte surge, ou parece surgir, como o elo que nos pode manter vivos, a beleza que torna o real suportável, e impede de marchar desta vida. Por outro lado, temos droga a rodos, é ela que acaba por verdadeiramente, em "O Pintassilgo" nos manter à tona. Em certos momentos questionei-me mesmo se Tartt não percebia mais de farmácia do que de arte. Mas é claramente o mundo particular de Tartt, em que cabe à droga funcionar como motor das pequenas tensões morais, já que simplesmente não existe sexo, como se os seus personagens fossem todos abstinentes. Como Tartt precisa do Yin e do Yang no desenho dos seus personagens, ao criar personagens puros na carne, impurifica-os pela droga. Muito anos passaram desde 1990, falta evolução no traço da escritora, algo que se agrava mais quando em muitos momentos a "voz" do personagem principal ecoa completamente o personagem principal de "A História Secreta".
Julgo que a espécie de vazio que sinto com “O Pintassilgo” advém do facto de já não me encontrar no público alvo. É um livro sobre um jovem que se torna adulto, mas é um adulto contemporâneo, como tal, o seu mundo aos 25 anos, é o típico mundo dos 17. E é para esses que Tartt escreve, mesmo pensando que não o faz. O uso das técnicas de thriller envolvem muito bem o romance psicológico, sustentam e mantêm o leitor agarrado, mas tudo o que vai sendo desvelado sabe a pouco, porque na verdade não existe muito para dar dentro da cabeça de uma criança que sofre um grande trauma e passa o resto dos seus dias a tentar sobreviver emocionalmente. É uma viagem existencial, com todos os dramas da incompreensão, da perda, do amor não correspondido, do só contra todos, que por vezes roça o puro niilismo.
Para elevar o discurso, Tartt traz para o centro da discussão três autores e suas obras — Rembrandt, Dostoiévski e Proust — e consegue desta forma levar-nos a submergir, a aceitar muito do que tem para dizer sobre o Belo, a Arte e a Vida. Mas não chega. Não chega construir uma tese e colá-la nas últimas 30 páginas do livro, quando todo o livro parece tão pouco preocupado com essa tese. Acredito que teria sido inebriante, tivesse eu outra idade, aquelas últimas páginas em que tudo parece cozer-se, tudo parece ter sentido, tudo tem um desígnio, mesmo que tudo não o tenha, nem possa ter. Acaba sendo uma fuga existencialista, capaz de criar momentos de leitura apaixonantes, em que as páginas se vão virando sozinhas, criando horas bem preenchidas, mas que no final se arruma na prateleira, para esquecer.
Esta leitura serviu-me ainda para colocar em perspetiva o prémio Pulitzer. Cada vez me convenço mais que se deveria ter ficado pela área de eleição do seu fundador, o jornalismo, onde tem servido bastante melhor a sua função.
Capa da versão americana, e o quadro "The Goldfinch" (1654) de Carel Fabritius que serve de móbil à trama do livro.
Donna Tartt tem um estilo próprio, tem uma voz própria, escreve de forma fluída e lúcida. Fala das emoções sentidas num mundo contemporâneo carregado de deveres morais para com a sociedade. A sua primeira pessoa é instigante, mantém-nos agarrados ao pensar e sentir dos seus personagens, como se estivéssemos todo o tempo dentro das suas cabeças. Mas no final existe um certo vazio, por mais que tudo pareça rebuscar erudição. De certa forma, acontece-me exatamente o mesmo com as obras de Murakami.
Veja-se o mundo de Tartt. Em termos temáticos, temos um jovem que se procura, perdido no mundo, sozinho, tentando tornar-se adulto. Sim, também temos a arte, o quadro que está todo o tempo lá, como está a mãe, são ambos aquilo que mantém o jovem ligado ao mundo. A arte surge, ou parece surgir, como o elo que nos pode manter vivos, a beleza que torna o real suportável, e impede de marchar desta vida. Por outro lado, temos droga a rodos, é ela que acaba por verdadeiramente, em "O Pintassilgo" nos manter à tona. Em certos momentos questionei-me mesmo se Tartt não percebia mais de farmácia do que de arte. Mas é claramente o mundo particular de Tartt, em que cabe à droga funcionar como motor das pequenas tensões morais, já que simplesmente não existe sexo, como se os seus personagens fossem todos abstinentes. Como Tartt precisa do Yin e do Yang no desenho dos seus personagens, ao criar personagens puros na carne, impurifica-os pela droga. Muito anos passaram desde 1990, falta evolução no traço da escritora, algo que se agrava mais quando em muitos momentos a "voz" do personagem principal ecoa completamente o personagem principal de "A História Secreta".
Julgo que a espécie de vazio que sinto com “O Pintassilgo” advém do facto de já não me encontrar no público alvo. É um livro sobre um jovem que se torna adulto, mas é um adulto contemporâneo, como tal, o seu mundo aos 25 anos, é o típico mundo dos 17. E é para esses que Tartt escreve, mesmo pensando que não o faz. O uso das técnicas de thriller envolvem muito bem o romance psicológico, sustentam e mantêm o leitor agarrado, mas tudo o que vai sendo desvelado sabe a pouco, porque na verdade não existe muito para dar dentro da cabeça de uma criança que sofre um grande trauma e passa o resto dos seus dias a tentar sobreviver emocionalmente. É uma viagem existencial, com todos os dramas da incompreensão, da perda, do amor não correspondido, do só contra todos, que por vezes roça o puro niilismo.
Para elevar o discurso, Tartt traz para o centro da discussão três autores e suas obras — Rembrandt, Dostoiévski e Proust — e consegue desta forma levar-nos a submergir, a aceitar muito do que tem para dizer sobre o Belo, a Arte e a Vida. Mas não chega. Não chega construir uma tese e colá-la nas últimas 30 páginas do livro, quando todo o livro parece tão pouco preocupado com essa tese. Acredito que teria sido inebriante, tivesse eu outra idade, aquelas últimas páginas em que tudo parece cozer-se, tudo parece ter sentido, tudo tem um desígnio, mesmo que tudo não o tenha, nem possa ter. Acaba sendo uma fuga existencialista, capaz de criar momentos de leitura apaixonantes, em que as páginas se vão virando sozinhas, criando horas bem preenchidas, mas que no final se arruma na prateleira, para esquecer.
Esta leitura serviu-me ainda para colocar em perspetiva o prémio Pulitzer. Cada vez me convenço mais que se deveria ter ficado pela área de eleição do seu fundador, o jornalismo, onde tem servido bastante melhor a sua função.
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