agosto 22, 2016

“Almas Mortas” (1842)

Uma comédia negra social e uma introdução à arte de Tolstói e Dostoiévski. Dito isto, “Almas Mortas” é uma obra relevante em termos históricos pela sua a sua arte e crítica social, no entanto continua a ler-se imensamente bem, com bons momentos de humor e uma belíssima escrita.


Este livro deveria ter sido o primeiro de uma trilogia, mas face às reações violentas da sociedade Gogol que tinha já iniciado o segundo volume acabaria por o destruir pouco antes de morrer. Contudo e sendo este o seu único romance, não desmerece em nada a leitura, já que o livro se fecha, deixando claro, caminho aberto para novas aventuras que nunca viremos a conhecer. A agressividade despoletada pela obra é facilmente entendível, já que Gogol desfaz tudo e todos ao longo do texto, desde os grandes proprietários, aos camponeses, aos funcionários públicos, incluindo procuradores, chefes de polícia, etc. Nada escapa à sátira, frontal e direta, que hoje está já muito distante desse real, mas que facilmente percebemos, já que se muito mudou, muito ainda continua na mesma.

Chichikov é alguém com anos de experiência na função pública russa do século XIX, sabe manejar a máquina e ganhar com isso. O seu mais brilhante esquema é o foco deste livro, e passa por comprar "almas mortas", nesta Rússia as "almas" eram servos, os camponeses que trabalhavam para os grandes proprietários que por sua vez mediam a riqueza em função do número de almas que possuíam. As almas mortas eram os servos mortos, que pagavam impostos enquanto o senhorio não desse baixa dos mesmos. Chichikov pretendia comprar os contratos dessas almas, conquanto os senhorios não os dessem como mortos. O fundamento e o esquema é revelado no final do livro, mas ficamos a perceber assim que o nosso herói é um vilão, mas é-o no sentido da sátira, já que para Gogol ele encarna o espírito da época, o que se levados a refletir sobre os esquemas criados pela banca internacional nos dias de hoje (ex. subprimes, ativos tóxicos, etc.) rapidamente percebemos que pouco mudou, neste caso apenas passou do público para o privado.

Claro que toda esta análise social pode ser também encontrada em Tolstói, e tendo em conta o facto de Gogol no fim do livro dizer que o escritor tem o dever de relatar e criticar o social, nenhum outro sucessor de Gogol poderia ter sido mais efetivo nessa função. Já Dostóievski é bem mais psicológico, embora traga sempre rente ao texto o olhar social, mas considero que aquilo que melhor recupera de Gogol é a descrição realista com laivos poéticos. Aliás Gogol sempre que se refere ao livro, já que enquanto autor se assume como narrador e vai falando com o leitor em apartes à história de Chichikov, fá-lo como poema. Para quem tenha lido Tolstói e Dostoiévski facilmente sentirá ao ler Gogoel as suas reminiscências.
"Feliz o viajante que após longa e incómoda jornada, durante a qual suporta o frio, a chuva, a lama, o tilintar contínuo dos guizos, as constantes reparações nas estradas, as sempiternas zaragatas dos cocheiros com os ferradores, chefes de posta ensonados e demais canalha dos caminhos, volta a ver enfim o telhado familiar, as luzes e os lugares que conhece, as pessoas que estima e acorrem, calorosas, a recebê-lo, e a ouvir as alegres exclamações dos criados, as turbulentas correrias das crianças, os relatos de tudo quanto se passou na sua ausência, estes entrecortados de abraços e beijos tão ardentes que varrem logo da memória todos os desgostos sofridos.” (p.141)

Edição do Círculo de Leitores, 1977, p.263, trad. José António Machado

agosto 20, 2016

“Corre, Coelho” (1960)

John Updike é uma das figuras mais emblemáticas da crítica literária americana, tendo ao longo da sua vida (1932-2009) realizado análises de obras dos mais conceituados escritores do século XX, na sua maioria para a The New Yorker. Updike fugiu à norma de que “quem não sabe ensina, ou crítica”, porque sabia, e sabia muito, como fica evidente neste magnífico opus que é “Corre, Coelho”, escrito em 1960, com apenas 28 anos. O livro é o primeiro tomo de quatro, tendo os restantes saído desde então sempre espaçados por períodos de 10 anos, dos quais dois tiveram direito a Pulitzer.


Antes de entrar no livro quero deixar duas referências que senti ao lê-lo. No primeiro terço da minha leitura senti uma enorme proximidade entre o personagem principal, Rabbit e Holden Caulfield de “À Espera no Centeio” (1951) de Salinger, pela zanga com o mundo à sua volta e uma inquietação centrada sobre si muito americana, mas ao chegar a meio do livro, o fascínio pela personagem, capaz de se libertar de todas as amarras, começou a converter-se em desdém e aos poucos mesmo em repulsa, e foi aí que comecei a estabelecer o paralelo com outra obra, “Lolita” (1955) de Nabokov, já que ambas dão vida a personagens repugnantes mas ambas fazem-no por meio de prosa tão graciosa que nos obrigam a continuar a ler, até respeitar a obra.

No campo da escrita Updike apresenta uma capacidade descritiva absolutamente soberba, com um vocabulário rico, mesmo erudito, e um encadeamento frásico capaz de nos manter colados, dotando o texto de um ritmo que sustenta totalmente a nossa atenção e foco. Por vezes temos mesmo Updike a entrar em fluxo de consciência, quando descreve o pensar dos seus personagens, fazendo desses momentos pontos altos do sentir do texto, duas das melhores descrições acontecem quando Ruth e Janice se dão a conhecer.
“Pelo menos tem a sensação de que ‘existe’ para ele em vez de ser uma coisa colada no interior de uma cabeça pervertida. Meu Deus, costumava odiar os homens com as suas bocas húmidas e risinhos, mas quando o fez com Harry perdoou a todos os outros, pareceu-lhe que a culpa era só a meias, que eram uma espécie de muro no qual ela continuava a esbarrar porque sabia que ali havia alguma coisa, e de repente com Harry encontrou essa coisa e esse achado fez com que tudo o que tinha acontecido antes parecesse irreal. Afinal ninguém a tinha de facto magoado, ninguém lhe tinha deixado cicatrizes, e quando tenta recordar-se do que passou parece-lhe por vezes que aconteceu a outra pessoa. Parecem-lhe mais ou menos vagos, como se ela tivesse mantido os olhos fechados, vagos, patéticos e ansiosos, desejando qualquer coisa que as mulheres legítimas não lhe davam, palavrões ou gemidos, ou actos com a boca.” (p.145)
Em relação ao protagonista, Harry Rabbit (Coelho), julgo que que a sinopse do livro dá conta do seu historial, e vendo bem pouco mais sobre este há para dizer. No fim da leitura escrevi algumas frases que me passaram pela cabeça, que transcrevo de seguida, e que julgo darem conta de quem é Harry.
Eu, Eu, Eu, Eu, Eu,
A minha mulher não é suficientemente boa para mim,
O meu filho, a minha irmã, os meus pais, ninguém é suficientemente bom para mim,
O meu emprego não é suficientemente bom para mim,
A minha vida não é suficientemente boa para mim,
Mereço mais, muito mais,
Fui uma estrela. Sou uma estrela.
Ao escrever isto, e confrontando com as várias listas que citam esta série de livros de Updike como imensamente relevantes para compreender a América, não consegui deixar de ver os exploradores do oeste americano, os “self-made man”, ou o americano empreendedor, todos aqueles que não tiveram medo de deixar para trás e seguir atrás do sonho, independentemente de quem fica. E depois encontrei ainda uma entrevista de Updike de 1969 em que este confidencia que o livro lhe tinha surgido como resposta aos beatniks dos anos 1950, nomeadamente a “On the Road” de Kerouac, dizendo:
“o livro pretendia ser uma demonstração realista daquilo que acontece quando um jovem homem de uma família Americana vai para a estrada: as pessoas que ficam para trás magoam-se” (The Cambridge History of American Literature, p.191)
Ou seja, estamos perante uma crítica brutal de Updike à essência individualista da identidade americana, algo que em minha opinião Kerouac viu mais como necessidade de crescimento interior na idade pré-adulta, mas que outros, nomeadamente Ayn Rand, com livros como “The Fountainhead” (1943) e “Atlas Shrugged” (1957), estabeleceram como o fundamento filosófico da identidade americana, essência do capitalismo em contra-ciclo ao comunismo. Se quiserem saber mais sobre Rand, recomendo a biografia em banda desenhada que aqui dei conta recentemente.
“Uma vez vestido, Coelho sente a calma regressar. O acordar devolveu-o de certo modo ao mundo que abandonara. Sentira a falta da presença avassaladora de Janice, do miúdo e das suas incómodas necessidades, das paredes da sua casa. Tinha perguntado a si próprio o que estava fazer, mas agora esses reflexos que só lhe haviam chegado à superfície tinham-se consumido e brotam nele instintos mais profundos que lhe dão toda a razão. Sente a liberdade como oxigénio em seu redor.” (p.53)
Torna-se assim difícil fazer uma leitura prazeirosa do texto, exceptuando a beleza da prosa, mas um livro não é obrigado a fornecer-nos personagens empáticos, a sua recompensa pode surgir por outros meios, nomeadamente fazer-nos pensar, tal como ajudar-nos a compreender melhor a sociedade em que vivemos e os sonhos que propagandeia.

agosto 19, 2016

Aveiro Visto do Céu

Fizeram-me chegar a conta de Instagram do designer Paulo Cunha, na qual este se dedica a publicar fotos aéreas de Aveiro, a sua ria e praias. O facto de cá morar aproxima-me bastante destas imagens, mas a sua beleza extasiante fez com que resolvesse partilhá-las. Não sendo, de todo, um trabalho com o mesmo alcance, fez-me lembrar o magnífico "Home" (2009) de Yann Arthus-Bertrand, e a série fotográfica que o precedeu "La Terre Vue du Ciel" (1999) (+imagens).

Sem ter informação, arrisco a dizer que todas estas fotografias foram capturadas a partir de parapente com motor, algo bastante comum aqui em Aveiro, nomeadamente no verão.

Costa Nova

Costa Nova

Porto de Aveiro

Ponte da Barra

Praia do Areão

Praia da Barra

Ria de Aveiro

Ria de Aveiro

Para ver mais imagens como estas sigam o Paulo Cunha no Instagram.

"A Letra Encarnada" (1850)

Considerada uma obra maior do romantismo americano (século XIX), a par com “Moby Dick” (1851), sendo por isso mesmo de leitura obrigatória nas escolas americanas, “A Letra Encarnada” relata uma história, passada dois séculos antes, centrada na moral de uma sociedade nascente, a dos EUA.

Uma tradução de Fernando Pessoa

Pelo facto do livro aparentemente se centrar sobre o adultério e a punição do mesmo pela sociedade, numa primeira leitura pode ficar a ideia de que o livro perdeu o seu valor para os dias atuais, algo que fica patente nas imensas discussões presentes no Goodreads, iniciadas por muitos dos que foram obrigados a ler o livro nas escolas americanas e se sentiram ultrajados, não apenas pela história mas também pela dificuldade de aceder à mesma já que o livro foi escrito seguindo os preceitos estéticos do romantismo, reconhecidamente menos acessíveis que os do realismo de hoje.

Mas esta obra de Hawthorne vai bastante mais longe do que o motivo que mantém o enredo vivo. Ao contrário de todos os indicadores, desde o título à sua constante menção no texto, o foco não é o Adultério, marcado pela letra A, mas antes a Redenção. O adultério serve aqui apenas como rampa de lançamento da narrativa, com o objetivo de aprofundar o sentir dos personagens para trazer à flor do texto a vergonha, a culpa, a vingança e o desespero. Repare-se como Hawthorne nunca dá conta, de modo explícito, do que verdadeiramente aconteceu, iniciando o relato in media res, com Hester já sobre o cadafalso de letra ao peito.

O que verdadeiramente interessa, e por isso o livro é tão relevante, é o modo como os diferentes atores se relacionam com o sucedido, desde a visada, à filha, ex-marido, companheiro, e claro sociedade. O adultério é apenas um móbil, em seu lugar poderíamos ter o suicídio ou a perda de um filho, claro que com impactos distintos, mas que serviriam do mesmo modo à desconstrução que Hawthorne procura fazer do ser humano e seus laços societais. Para uma obra do período romântico, não deixa de impressionar a capacidade de ir ao fundo da psicologia humana, de nos fazer entrar pelos personagens adentro e compreender como sentem.

Toda esta capacidade para perscrutar o sentir humano é no fundo a essência da arte literária, e cada época apresenta os seus melhores exemplos, que muitas vezes, sem sequer o procurarem, ultrapassam e precedem a ciência e filosofia, como fica evidente na obra de Lehrer, “Proust era um Neurocientista” (2007). Neste caso temos Hawthorne, em 1850, a preceder Nietzsche, que escreveu em “Crepúsculo dos Ídolos”, em 1888 a tão citada expressão “o que não me mata torna-me mais forte”, da seguinte forma:
“Faltava a esta — o que a muita gente falta toda a vida — uma dor que profundamente a ferisse, e assim a humanizasse e tomasse capaz de sentir profundamente.” (p.191)
“A letra encarnada era o seu passaporte para regiões onde outras mulheres não ousariam entrar. O Opróbrio, o Desespero, a Solidão! Tinham sido estes os seus mestres — mestres severos e desregrados — e tinham-na tornado forte, ainda que não fosse bom o que com eles tinha aprendido.” (p.210)
Hester Prynne é assim uma das primeiras grandes heroínas da literatura, e de certa forma uma clara homenagem de Hawthorne à perseverança e dureza das mulheres, comumente catalogadas como sexo fraco, frágeis e incapazes do uso da força, a demonstrar aqui que por debaixo da capa de fragilidade que se lhes atribui, existe muito mais, existe toda uma capacidade não apenas de suportar a dor mas de ir além, de fazer brotar e renascer, sempre mais forte. No fundo a obra reflete a vida de Hawthorne, pessoa tímida e frágil, imensamente dependente de sua esposa, Sophia Peabody Hawthorne, artista dedicada à pintura e ilustração, e o pilar psicológico do casamento, sem a qual muito provavelmente Hawthorne não teria deixado o legado que deixou.

"The Scarlet Letter" (1861) de Hugues Merle. Na frente temos Hester Prynne com a sua filha Pearl, em fundo e à esquerda surgem Arthur Dimmesdale e Roger Chillingworth.

Por fim, e voltando à questão estética, o texto é de difícil leitura, embora reconheça que o facto de ser uma tradução de Fernando Pessoa ajuda imenso. Hawthorne escreve muitíssimo bem, e quando traduzido por Pessoa eleva-se a um nível de beleza por vezes extático. (Interessante que não se saiba ainda hoje porque Pessoa traduziu esta obra, tendo sido encontrada no meio da sua documentação apenas anos depois de ter morrido.) Contudo, e apesar de belo, o texto dá trabalho a "mastigar", já que se oferece muito trabalhado, como que talhado pelo seu sentido estético e não narrativo. Ou seja, antes de garantir a compreensão, o romantismo procurava impactar sensorialmente pela forma, daí que os textos surjam extensos e labirínticos, carregados de simbolismos, obrigando o leitor a esforçar-se para extrair sentido do que vai lendo.

agosto 17, 2016

“Crónica do Pássaro de Corda” (1994)

A poucos capítulos do início senti-me de novo no universo Murakami, e apesar de estar a gostar uma preocupação apossou-se do meu espírito, estaria eu perante mais um livro-tipo de Murakami, desenhado a partir de uma mesma fórmula? Quando li “Kafka à Beira-Mar” (2002) isto foi o que mais me incomodou, a proximidade com “1Q84” (2010), e por isso a um terço da obra ponderei mesmo desistir, não queria ler “mais um”, queria ler o livro de Murakami que é citado como a sua obra-prima, e que como tal deveria ter algo para além da fórmula. Ainda bem que não desisti, “Crónica do Pássaro de Corda” é bem mais amplo e rico que os exemplos acima citados.


Do lado da fórmula podemos dizer que Murakami é um mestre na arte de contar histórias, algo que podemos encontrar na maior parte dos seus livros. A sua mestria surge através do modo como mantém o nosso interesse constantemente vivo baseado em dois elementos-chave — o fantástico e a subtração de informação —, ora as respostas que tem para dar às questões são de ordem sobrenatural, fora dos reinos dominados pelas leis da física e química, surpreendendo-nos e obrigando-nos a questionar sobre a real exequibilidade dessas explicações, ora simplesmente não dá respostas, abre questões a que não responde, prolongando a nossa necessidade de continuar a ler para chegar a explicações.

Do lado não formulaico, “Crónica do Pássaro de Corda” é uma obra maior pelo modo como constrói o seu mundo, assim como pelo modo como cria o acesso a esse mesmo mundo. Ou seja, a “realidade” que se nos abre não é constituída pelas mesmas regras da nossa, tanto no espaço como no tempo, nem tão pouco é constante, sendo desmultiplicada em diferentes camadas à medida que vai progredindo. Por outro lado, o modo como vamos acedendo a essas diferentes realidades, ou seja, a estrutura narrativa, é não só não-linear como multimodal, isto é, e seguindo de perto Joyce, a história salta, sem pré-aviso, entre passado e presente, entre sonho, realidade e realidade alternativa, assim como entre prosa, cartas, textos de jornal e até transcrições de conversas na net. Murakami puxa ao limite a experimentação, por vezes roçando o mero exibicionismo sem o chegar a ser, não só porque tudo funciona de modo integrado e "coerente", mas essencialmente porque mantém sempre a capacidade de nos surpreender e arrebatar.

No campo temático, temos Murakami no seu registo normal a discutir a efemeridade do amor nas relações, mas temos também política com algum posicionamento ideológico (com um herói desempregado jovem que não sente propriamente necessidade de procurar emprego, e um vilão político assertivo com uma carreira de sucesso), e temos ainda discussão histórica sobre a ação do Japão na 2ª Grande Guerra Mundial. Claro que tudo isto é envolvido pelo mundo Murakami que é comumente dotado de estranhamento, exotismo, misticismo e fantasia, ingredientes que lhe garantem uma arena muito particular para alavancar a expressividade pessoal a coberto de algum simbolismo, escapando ao criticismo realista.

Murakami faz-nos lembrar Philip K. Dick pelas diferentes camadas de realidade, faz-nos lembrar Bret Easton Ellis pela escrita direta e o niilismo urbano, mas faz-nos lembrar Kafka pela complexidade e opressão do real, à qual parece procurar fugir por via de algum surrealismo Lynchiano. Temos assim um texto que funciona como escape, envolvendo-nos ao ponto de nos sugar para uma nova realidade, criando uma espécie de rasgo alternativo em que a vida corre a um ritmo distinto, lento, porque nem tudo tem de ter uma causa, porque a lógica não garante explicações para tudo. Deste modo, somos obrigados a deixar-nos levar pelo que vai sendo apresentado, pondo de lado muita da ansiedade que nos habituámos a sentir na espera por respostas dos romances realistas. Ao congregar todas estas distintas abordagens Murakami, mais do que criar uma fórmula, criou uma identidade literária.

agosto 15, 2016

Peixoto com Proust e Joyce

O nº31 da Biblioteca de Bolso, de Inês Bernardo e José Mário Silva, traz-nos José Luís Peixoto numa conversa descontraída sobre Bukowski, Eggers e Proust. Se continuo a gostar imenso da maneira de estar de Peixoto, a sua humildade perante o mundo, voltei a identificar-me mais uma vez com o seu sentir, desta vez no que toca a Proust e Joyce. Deixo a entrevista, e alguns comentário a excertos.






Comentários a excertos da entrevista:

JLP: “Não gosto de falar dos livros que li”

Entendo e sigo, embora possa parecer que não, nomeadamente pela conta do Goodreads e pelo blog, mas considero diferente escrever sobre o que se leu de simplesmente colecionar livros lidos para se dizer que se leu. Falo sobre os livros, ou melhor escrevo sobre eles com o propósito de escrever, não me ficar apenas pela leitura, e também com o propósito de aprimorar as minhas capacidades de análise narratológicas — história, estrutura e estética — sendo relevante para o trabalho que realizo profissionalmente.

JLP: “Proust tem momentos de puro êxtase literário”

Totalmente de acordo, é indescritível o que se sente a ler Proust, vertiginoso, capaz de nos elevar ao panteão e aí nos suspender a respiração por breves trechos.

JLP: “Li duas vezes, uma na colecção Europa-América, outra na tradução de Pedro Tamen (..) Tamen se não fosse o poeta que já era, teria ficado para sempre reconhecido por este trabalho.”

Não li a versão EA, e não conto ler já que hoje não é preciso, se tivesse lido quando ele leu não teria tido alternativa, mas não posso deixar de concordar com o que diz a propósito de Tamen, porque li trechos de outras versões, nomeadamente brasileiras e do original, e sinto que Tamen colocou a sua tradução num patamar muito próximo do original, capaz de nos fazer esquecer na maior parte do tempo que estamos sequer perante uma tradução e que Proust na verdade falaria português.

JLP: “Uma coisa que os livros deixam na memória é, certas fases na vida — ‘quando se leu aquele livro’ — porque efetivamente para mim ler o ‘Em Busca do Tempo Perdido’ na edição Europa-América ou depois na tradução de Pedro Tamen, foram duas experiências completamente diferentes, quase podiam ser dois livros diferentes.”

Sem dúvida, a extensão, o tempo de leitura e toda a sua beleza, marca-nos. Ainda só passou um ano, mas sinto que não esquecerei a fase em que o li, e talvez por isso, apesar de o desejar tanto reler, esperarei mais algum tempo para poder separar os sentires das duas leituras.

JLP: “Há livros que nunca li, por exemplo o Ulisses de James Joyce, já comecei a ler várias vezes… hoje sinto que é um livro que nunca vou ler, não sei… vivo bem com isso, às vezes não é preciso lê-los, sinceramente (..)”

Também eu várias vezes tentei, e por uma vez, recentemente, cheguei até meio da obra mas inesperadamente acabei por novamente desistir. Depois disso tenho olhado para ele tantas vezes, mas não mais lá voltei, e ao ouvir Peixoto hoje, dei-me conta que talvez tenha razão, talvez nunca o vá ler, e talvez não seja mesmo preciso. Sim custa-me deixar para trás um livro que é fundamental na história da literatura, mas cada vez mais me convenço que a sua relevância não se deve à experiência que cria ao leitor, mas antes à obra produzida, ao seu virtuosismo modernista. Acredito que mais do que a sua leitura, o que “Ulisses” nos pede é o seu reconhecimento, e aí concordando com Peixoto, não é preciso lê-lo, mas conhecê-lo, compreender a sua génese, forma e objetivo.

agosto 13, 2016

"Middlemarch" (1872)

Middlemarch” é considerada uma das obras maiores do cânone britânico, indicado muitas vezes como o representante máximo do período victoriano (corrente definida pelo reinado da Rainha Victoria, do Reino Unido, 1837-1901). George Eliot surge em qualquer discussão sobre este período, sendo incontornável, mas a acompanhá-la surgem também as irmãs Brontë, Charles Dickens, Lewis Carroll, Thomas Hardy ou Oscar Wilde, todos com direito a presença no panteão britânico, a Abadia de Westminster, o que dá bem conta da relevância deste período na história das letras britânicas.


A relevância do trabalho de George Eliot reveste-se na abordagem realizada, na sua clara fuga ao romanesco pré-victoriano de Jane Austen, procurando construir algo mais íntimo, baseado no modo como as mulheres viviam esses tempos, como sentiam, e menos naquilo que a sociedade esperava dessas mulheres. Neste sentido o trabalho de Eliot é central porque abre caminhos pouco trilhados, permitindo às mulheres da sociedade reverem-se enquanto seres humanos, e não enquanto marionetas às ordens de regras sociais.

Digo pouco trilhados, porque Eliot não foi a primeira a fazê-lo, e nem considero que tenha sido quem melhor o fez. Antes tivemos as irmãs Brontë que tinham começado este caminho, dando-nos uma das obras mais relevantes deste período, Jane Eyre” (1847), capaz de afirmar a relevância da força interior da mulher, demonstrando que a mulher era muito mais do que a capa de bom-comportamento que a sociedade, nomeadamente masculina, lhe desejava reservar.

Ainda assim Eliot destaca-se porque não se socorre de heróis nem dramas, apresenta-se com um verdadeiro sentido de missão, diria quase académico, em busca de respostas para o subtítulo, tantas vezes esquecido, “Um Estudo da Vida Provincial”. Eliot queria dar conta da vida à sua volta, mas da vida vivida, e não da sonhada ou desejada, e talvez por isso mesmo a sua obra surja mais massuda, de difícil leitura, por ausência de estratégias narrativas que envolvam e motivem o leitor. Isto é tanto mais evidente nos primeiros quatro quintos do texto, em que Eliot vai descrevendo o mundo e os seus personagens, secundarizando os eventos que laboram o enredo, para se concentrar na apresentação e credibilização do universo por si criado. Deste modo, é exigido ao leitor um esforço inicial, grande, para uma recompensa final que ainda que intensa, seja muito breve.

Eliot passa a maioria da obra a descrever os universos que circundam os casamentos de Dorotea e Lydgate assim como de Mary e Fred, reservando para o final a entrada em força de Bulstrode e Ladislaw para unir tudo e assim contar uma verdadeira história, com conflito, progressão e objetivo. Mas talvez seja por esta insistência inicial em apresentar a vida, o mais próximo do que ela é, sem se focar em conflitos dramáticos mas antes no geral, que Eliot tenha conseguido passar a sua maior mensagem, de que o real não é fruto de vontade nossa mas de um conjunto de variáveis orgânicas que não podemos prever, nem impedir. Que por mais regras que criemos e imponhamos, o curso dos eventos encarregar-se-á de trilhar caminhos inesperados e incontroláveis. Tendo em conta este objeto, ou visão, muitos, nomeadamente ingleses, pretendem que Eliot seja o Tolstoi britânico, dando-lhe mesma a primazia. Não posso concordar, apesar de aceitar o paralelo, Tolstoi vai não só muito mais ao fundo desta visão do mundo, como acaso orgânico, como o faz entrelaçando muito melhor o contar de histórias, a criação dramática, com a filosofia, mais concretamente em Guerra e Paz” (1863-8).
“o bem crescente do Mundo depende em parte de actos não históricos; se as coisas não vão tão mal para nós como seria possível, metade devemo—lo àqueles que viveram fielmente uma vida anónima e repousam em túmulos que ninguém visita.” (p.564) 
A escrita de Eliot é muito boa, com uma prosa por vezes quase poética, e é isso que faz com que a leitura se torne menos pesada, mas precisava de ter procedido a mais algumas revisões do texto no sentido de encurtar a enorme introdução (4/5 do texto), ou então estender os eventos do último quinto aos restantes, para garantir um maior apoio ao esforço do leitor, e assim conseguir também tornar a sua visão mais clara.


Edição lida: “A vida era assim em Middlemarch” (1872), de George Eliot, tradução Mário Domingues, Portugália

agosto 10, 2016

"Correcções" (2001)

Li primeiro “Liberdade” (2010) e o impacto foi tremendo, ao começar “Correcções” (2001) já sabia ao que vinha, ainda assim não deixei de me surpreender, parar e contemplar ao longo da leitura. Temos um padrão temático, a família média contemporânea e as interdependências com a sociedade, assim como um padrão estético, torrentes descritivas complexamente enredadas e surpreendentemente fluídas.


Franzen segue uma linha narrativa já explorada por outros autores americanos contemporâneos — David Foster Wallace, Don Delillo ou no cinema Jim Jarmusch, Hal Hartley ou Todd Solondz — que assentam o seu trabalho nos personagens, secundarizando o enredo, gerando o fio condutor a partir das pregas de cada uma das múltiplas histórias emanadas de cada personagem, necessitando assim de ir ao fundo de cada um, de os elaborar em profundidade e abrangência por forma a garantir elos de conexão.
“Well, I didn't really think in terms of plot. Does this book even have a plot? I thought more in terms of the story-character nexus. With each of the major characters and each of the large sections, I was striving for the classical unities of place, time, and action. I was trying to find simple problems, simple situations—man tries to prove to his wife that he's not depressed; fun-loving woman goes on luxury cruise with intermittently demented husband—and then inhabit them as fully as possible.” Franzen em entrevista à New Yorker, em 2001
O universo de Franzen é profundamente realista, e por isso não admira o nosso constante embate contra o espelho, conseguindo desta forma gerar simultaneamente reflexão e satisfação. No Goodreads podem ler-se várias críticas às pessoas de cada personagem como cheias de defeitos, incapazes de criar empatia com o leitor, mas Franzen não pretende romancear, está antes interessado em recriar e interpretar o mundo à sua volta, e nesse mundo não existem seres perfeitos, tal como não existem grandes linhas de história, apenas pessoas que vivem e fazem o melhor que podem em cada dia que passa. Inevitavelmente, e apesar do humor do autor ir salpicando de sátira, a viagem é profundamente melancólica, como não poderia deixar de ser sempre que nos pomos a pensar sobre as questões da condição humana, os “como's”, os “porquê's” e “para quê's”.

A chave de “Correcções” está em cada um dos leitores, posso dar-vos a minha mas abre apenas caminho para um dos imensos mundos possíveis construídos pelo confronto entre o texto e as experiências de vida de cada leitor. Subrepticiamente ao longo de todo o livro vão surgindo indícios que dão conta da necessidade de nos afirmarmos pelo que somos, de enfrentar o mundo de cabeça erguida e aceitar o que este nos propõe, sem medos nem estratégias de fuga (ex. drogas), de modo que as correções surgem naquilo que vamos fazendo ao longo da vida para corrigir o caminho, para não sair da forma que define aquilo que somos. É um trabalho contínuo que exige esforço, feito de avanços e recuos, de escolhas e decisões, esquecimentos e regressos ao passado, uma vontade interior que nos impele a seguir uma linha e a não divergir dela, corrigindo-a sempre que se desvia. A grande questão que Franzen deixa em aberto para nós é o porquê dessa necessidade, existem algumas tentativas de resposta, mas essas deixo-as para os leitores de Franzen.

Se o livro fosse apenas isto já seria muito bom, mas é mais, porque existe toda uma experiência estética que dificilmente se encontra na comum literatura e que obriga a revisitar os clássicos para se poder encontrar tamanho fôlego artístico. Desde logo por todo um trabalho de pesquisa que é feito em redor da criação de cada personagem, psicologicamente mas também em termos sociais com as implicações dos seus empregos, profissões, amigos e família. Franzen constrói literalmente um mundo a partir de ideias, capaz de se erguer nas nossas mentes como algo de próximo e facilmente reconhecível.

Por outro lado a densidade com que labora as ramificações de cada personagem, decorrendo do conteúdo, surge por via de um tipo de descrição verdadeiramente literária, e não cinemática como se foi tornando moda nos últimos anos. Ou seja, mais importante do que dar a ver é dar a sentir. Franzen não limita o seu discurso ao visível, trabalha como merecedores da mesma atenção o audível, assim como o gosto e o cheiro, e claro o palpável e mais complexo ainda o impalpável. Na sua leitura sentimos por vezes o bloqueio de não conseguir visualizar o que se vai descrevendo porque não é suposto ser visível mas sentido, e talvez seja em parte por isto que a leitura de Franzen é tão particular, tão capaz na sua expressividade.

julho 31, 2016

"Dragon Age: Inquisition" (2014)

Joguei apenas duas horas do primeiro tomo da série, "Dragon Age: Origins" (2009), que não me entusiasmaram, daí que não tenha tentado sequer jogar o segundo, "Dragon Age II" (2011), contudo depois de várias vezes me ter sido sugerido, acabei por aceder e começar a jogar o terceiro volume, “Dragon Age: Inquisition” (2014). Chegado ao fim da main quest, quero dizer que não é magnífico, raramente nos impacta, mas existe algo no seu desenho que nos atrai e mantém interessados, levando-nos a regressar sempre com vontade de continuar a progredir, de certa forma posso dizer que é um jogo dotado de excelente design, mas com uma narrativa fraca, uma escrita pouco inspirada.





Como RPG que é, assumimos o papel de Inquisidor, o governante de um mundo de fantasia, numa qualquer linha temporal alternativa à nossa. Os personagens e cenários assumem alguns traços medievais, mas misturados com algum renascentismo europeu, e por vezes até alguma arquitectura industrial. Em termos de ambientes, temos bons mundos, credíveis e belos, o pior da arte visual surge nas animações dos personagens, fracas quando comparadas com a atual geração de consolas.

A jogabilidade, ou interpretação do nosso papel, é suficientemente detalhada, permitindo-nos definir praticamente tudo aquilo que somos, desde a fisionomia ao perfil, podendo ao longo do jogo continuar a tomar decisões que vão contribuindo para definir e afinar o nosso perfil. Existe sempre muito para fazer, imenso para nos manter ocupados e interessados, e a progressão é não só contínua como efetiva, isto é imensamente visível ao nível dos combates, nomeadamente como vamos aprendendo a usar os sistemas de armas, armaduras, poções e do trabalho em equipa.

No campo da história temos a governação de um mundo e claro, um messias, salvador de um povo contra uma força poderosa do mal. O engodo é comum, e não é por este que me incomodo, o que se perde aqui, e comparando com “The Witcher 3”, é o aprofundamento dos personagens, que não passam de meros peões do enredo. O nosso personagem, o inquisidor é oco, mas todos os que à sua volta gravitam também o são. Falta-lhes dimensão humana, emocional e dramática, capaz de nos tocar de nos demover, de criar bases empáticas. Foram dezenas de horas com aqueles personagens, e chegado ao final, continuo a senti-los como estranhos. Cheguei a pensar que o problema seria meu, por declaradamente não gostar de fantasia, mas não é só isso (e não é completamente verdade já que adorei “The Witcher 3”), é mesmo uma falha de guião, da escrita dos personagens e seus diálogos, com uma aposta muito mais dirigida ao jogo que à história, esquecendo que um isco de enredo e uma boa base de jogo, não chegam para nos fazer apaixonar por um jogo que supostamente nos deve fazer afundar num universo ficcional.

Em síntese, temos uma obra mecanicamente equilibrada, coerente e consistente, mas falta-lhe garra, falta-lhe algo que a distinga dos restantes jogos, que marque a sua posição, e nos marque emocionalmente.