A relevância do trabalho de George Eliot reveste-se na abordagem realizada, na sua clara fuga ao romanesco pré-victoriano de Jane Austen, procurando construir algo mais íntimo, baseado no modo como as mulheres viviam esses tempos, como sentiam, e menos naquilo que a sociedade esperava dessas mulheres. Neste sentido o trabalho de Eliot é central porque abre caminhos pouco trilhados, permitindo às mulheres da sociedade reverem-se enquanto seres humanos, e não enquanto marionetas às ordens de regras sociais.
Digo pouco trilhados, porque Eliot não foi a primeira a fazê-lo, e nem considero que tenha sido quem melhor o fez. Antes tivemos as irmãs Brontë que tinham começado este caminho, dando-nos uma das obras mais relevantes deste período, “Jane Eyre” (1847), capaz de afirmar a relevância da força interior da mulher, demonstrando que a mulher era muito mais do que a capa de bom-comportamento que a sociedade, nomeadamente masculina, lhe desejava reservar.
Ainda assim Eliot destaca-se porque não se socorre de heróis nem dramas, apresenta-se com um verdadeiro sentido de missão, diria quase académico, em busca de respostas para o subtítulo, tantas vezes esquecido, “Um Estudo da Vida Provincial”. Eliot queria dar conta da vida à sua volta, mas da vida vivida, e não da sonhada ou desejada, e talvez por isso mesmo a sua obra surja mais massuda, de difícil leitura, por ausência de estratégias narrativas que envolvam e motivem o leitor. Isto é tanto mais evidente nos primeiros quatro quintos do texto, em que Eliot vai descrevendo o mundo e os seus personagens, secundarizando os eventos que laboram o enredo, para se concentrar na apresentação e credibilização do universo por si criado. Deste modo, é exigido ao leitor um esforço inicial, grande, para uma recompensa final que ainda que intensa, seja muito breve.
Eliot passa a maioria da obra a descrever os universos que circundam os casamentos de Dorotea e Lydgate assim como de Mary e Fred, reservando para o final a entrada em força de Bulstrode e Ladislaw para unir tudo e assim contar uma verdadeira história, com conflito, progressão e objetivo. Mas talvez seja por esta insistência inicial em apresentar a vida, o mais próximo do que ela é, sem se focar em conflitos dramáticos mas antes no geral, que Eliot tenha conseguido passar a sua maior mensagem, de que o real não é fruto de vontade nossa mas de um conjunto de variáveis orgânicas que não podemos prever, nem impedir. Que por mais regras que criemos e imponhamos, o curso dos eventos encarregar-se-á de trilhar caminhos inesperados e incontroláveis. Tendo em conta este objeto, ou visão, muitos, nomeadamente ingleses, pretendem que Eliot seja o Tolstoi britânico, dando-lhe mesma a primazia. Não posso concordar, apesar de aceitar o paralelo, Tolstoi vai não só muito mais ao fundo desta visão do mundo, como acaso orgânico, como o faz entrelaçando muito melhor o contar de histórias, a criação dramática, com a filosofia, mais concretamente em “Guerra e Paz” (1863-8).
“o bem crescente do Mundo depende em parte de actos não históricos; se as coisas não vão tão mal para nós como seria possível, metade devemo—lo àqueles que viveram fielmente uma vida anónima e repousam em túmulos que ninguém visita.” (p.564)A escrita de Eliot é muito boa, com uma prosa por vezes quase poética, e é isso que faz com que a leitura se torne menos pesada, mas precisava de ter procedido a mais algumas revisões do texto no sentido de encurtar a enorme introdução (4/5 do texto), ou então estender os eventos do último quinto aos restantes, para garantir um maior apoio ao esforço do leitor, e assim conseguir também tornar a sua visão mais clara.
Edição lida: “A vida era assim em Middlemarch” (1872), de George Eliot, tradução Mário Domingues, Portugália
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