A poucos capítulos do início senti-me de novo no universo Murakami, e apesar de estar a gostar uma preocupação apossou-se do meu espírito, estaria eu perante mais um livro-tipo de Murakami, desenhado a partir de uma mesma fórmula? Quando li “Kafka à Beira-Mar” (2002) isto foi o que mais me incomodou, a proximidade com “1Q84” (2010), e por isso a um terço da obra ponderei mesmo desistir, não queria ler “mais um”, queria ler o livro de Murakami que é citado como a sua obra-prima, e que como tal deveria ter algo para além da fórmula. Ainda bem que não desisti, “Crónica do Pássaro de Corda” é bem mais amplo e rico que os exemplos acima citados.
Do lado da fórmula podemos dizer que Murakami é um mestre na arte de contar histórias, algo que podemos encontrar na maior parte dos seus livros. A sua mestria surge através do modo como mantém o nosso interesse constantemente vivo baseado em dois elementos-chave — o fantástico e a subtração de informação —, ora as respostas que tem para dar às questões são de ordem sobrenatural, fora dos reinos dominados pelas leis da física e química, surpreendendo-nos e obrigando-nos a questionar sobre a real exequibilidade dessas explicações, ora simplesmente não dá respostas, abre questões a que não responde, prolongando a nossa necessidade de continuar a ler para chegar a explicações.
Do lado não formulaico, “Crónica do Pássaro de Corda” é uma obra maior pelo modo como constrói o seu mundo, assim como pelo modo como cria o acesso a esse mesmo mundo. Ou seja, a “realidade” que se nos abre não é constituída pelas mesmas regras da nossa, tanto no espaço como no tempo, nem tão pouco é constante, sendo desmultiplicada em diferentes camadas à medida que vai progredindo. Por outro lado, o modo como vamos acedendo a essas diferentes realidades, ou seja, a estrutura narrativa, é não só não-linear como multimodal, isto é, e seguindo de perto Joyce, a história salta, sem pré-aviso, entre passado e presente, entre sonho, realidade e realidade alternativa, assim como entre prosa, cartas, textos de jornal e até transcrições de conversas na net. Murakami puxa ao limite a experimentação, por vezes roçando o mero exibicionismo sem o chegar a ser, não só porque tudo funciona de modo integrado e "coerente", mas essencialmente porque mantém sempre a capacidade de nos surpreender e arrebatar.
No campo temático, temos Murakami no seu registo normal a discutir a efemeridade do amor nas relações, mas temos também política com algum posicionamento ideológico (com um herói desempregado jovem que não sente propriamente necessidade de procurar emprego, e um vilão político assertivo com uma carreira de sucesso), e temos ainda discussão histórica sobre a ação do Japão na 2ª Grande Guerra Mundial. Claro que tudo isto é envolvido pelo mundo Murakami que é comumente dotado de estranhamento, exotismo, misticismo e fantasia, ingredientes que lhe garantem uma arena muito particular para alavancar a expressividade pessoal a coberto de algum simbolismo, escapando ao criticismo realista.
Murakami faz-nos lembrar Philip K. Dick pelas diferentes camadas de realidade, faz-nos lembrar Bret Easton Ellis pela escrita direta e o niilismo urbano, mas faz-nos lembrar Kafka pela complexidade e opressão do real, à qual parece procurar fugir por via de algum surrealismo Lynchiano. Temos assim um texto que funciona como escape, envolvendo-nos ao ponto de nos sugar para uma nova realidade, criando uma espécie de rasgo alternativo em que a vida corre a um ritmo distinto, lento, porque nem tudo tem de ter uma causa, porque a lógica não garante explicações para tudo. Deste modo, somos obrigados a deixar-nos levar pelo que vai sendo apresentado, pondo de lado muita da ansiedade que nos habituámos a sentir na espera por respostas dos romances realistas. Ao congregar todas estas distintas abordagens Murakami, mais do que criar uma fórmula, criou uma identidade literária.
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