Antes de entrar no livro quero deixar duas referências que senti ao lê-lo. No primeiro terço da minha leitura senti uma enorme proximidade entre o personagem principal, Rabbit e Holden Caulfield de “À Espera no Centeio” (1951) de Salinger, pela zanga com o mundo à sua volta e uma inquietação centrada sobre si muito americana, mas ao chegar a meio do livro, o fascínio pela personagem, capaz de se libertar de todas as amarras, começou a converter-se em desdém e aos poucos mesmo em repulsa, e foi aí que comecei a estabelecer o paralelo com outra obra, “Lolita” (1955) de Nabokov, já que ambas dão vida a personagens repugnantes mas ambas fazem-no por meio de prosa tão graciosa que nos obrigam a continuar a ler, até respeitar a obra.
No campo da escrita Updike apresenta uma capacidade descritiva absolutamente soberba, com um vocabulário rico, mesmo erudito, e um encadeamento frásico capaz de nos manter colados, dotando o texto de um ritmo que sustenta totalmente a nossa atenção e foco. Por vezes temos mesmo Updike a entrar em fluxo de consciência, quando descreve o pensar dos seus personagens, fazendo desses momentos pontos altos do sentir do texto, duas das melhores descrições acontecem quando Ruth e Janice se dão a conhecer.
“Pelo menos tem a sensação de que ‘existe’ para ele em vez de ser uma coisa colada no interior de uma cabeça pervertida. Meu Deus, costumava odiar os homens com as suas bocas húmidas e risinhos, mas quando o fez com Harry perdoou a todos os outros, pareceu-lhe que a culpa era só a meias, que eram uma espécie de muro no qual ela continuava a esbarrar porque sabia que ali havia alguma coisa, e de repente com Harry encontrou essa coisa e esse achado fez com que tudo o que tinha acontecido antes parecesse irreal. Afinal ninguém a tinha de facto magoado, ninguém lhe tinha deixado cicatrizes, e quando tenta recordar-se do que passou parece-lhe por vezes que aconteceu a outra pessoa. Parecem-lhe mais ou menos vagos, como se ela tivesse mantido os olhos fechados, vagos, patéticos e ansiosos, desejando qualquer coisa que as mulheres legítimas não lhe davam, palavrões ou gemidos, ou actos com a boca.” (p.145)Em relação ao protagonista, Harry Rabbit (Coelho), julgo que que a sinopse do livro dá conta do seu historial, e vendo bem pouco mais sobre este há para dizer. No fim da leitura escrevi algumas frases que me passaram pela cabeça, que transcrevo de seguida, e que julgo darem conta de quem é Harry.
Eu, Eu, Eu, Eu, Eu,Ao escrever isto, e confrontando com as várias listas que citam esta série de livros de Updike como imensamente relevantes para compreender a América, não consegui deixar de ver os exploradores do oeste americano, os “self-made man”, ou o americano empreendedor, todos aqueles que não tiveram medo de deixar para trás e seguir atrás do sonho, independentemente de quem fica. E depois encontrei ainda uma entrevista de Updike de 1969 em que este confidencia que o livro lhe tinha surgido como resposta aos beatniks dos anos 1950, nomeadamente a “On the Road” de Kerouac, dizendo:
A minha mulher não é suficientemente boa para mim,
O meu filho, a minha irmã, os meus pais, ninguém é suficientemente bom para mim,
O meu emprego não é suficientemente bom para mim,
A minha vida não é suficientemente boa para mim,
Mereço mais, muito mais,
Fui uma estrela. Sou uma estrela.
“o livro pretendia ser uma demonstração realista daquilo que acontece quando um jovem homem de uma família Americana vai para a estrada: as pessoas que ficam para trás magoam-se” (The Cambridge History of American Literature, p.191)Ou seja, estamos perante uma crítica brutal de Updike à essência individualista da identidade americana, algo que em minha opinião Kerouac viu mais como necessidade de crescimento interior na idade pré-adulta, mas que outros, nomeadamente Ayn Rand, com livros como “The Fountainhead” (1943) e “Atlas Shrugged” (1957), estabeleceram como o fundamento filosófico da identidade americana, essência do capitalismo em contra-ciclo ao comunismo. Se quiserem saber mais sobre Rand, recomendo a biografia em banda desenhada que aqui dei conta recentemente.
“Uma vez vestido, Coelho sente a calma regressar. O acordar devolveu-o de certo modo ao mundo que abandonara. Sentira a falta da presença avassaladora de Janice, do miúdo e das suas incómodas necessidades, das paredes da sua casa. Tinha perguntado a si próprio o que estava fazer, mas agora esses reflexos que só lhe haviam chegado à superfície tinham-se consumido e brotam nele instintos mais profundos que lhe dão toda a razão. Sente a liberdade como oxigénio em seu redor.” (p.53)Torna-se assim difícil fazer uma leitura prazeirosa do texto, exceptuando a beleza da prosa, mas um livro não é obrigado a fornecer-nos personagens empáticos, a sua recompensa pode surgir por outros meios, nomeadamente fazer-nos pensar, tal como ajudar-nos a compreender melhor a sociedade em que vivemos e os sonhos que propagandeia.