Não há muito para dizer sobre uma história que escrita há mais de 400 anos continua tão atual como então, mas diz muito sobre Shakespeare e a sua capacidade para perscrutar o interior da mente humana. Fazer um filme em 2015 depois de tantas encenações, adaptações, filmes e tudo o mais criado em redor do imaginário do personagem, parece mera redundância, contudo não tem de o ser e neste caso não é, nomeadamente pelo uso do texto direto, mas acima de tudo pela excelência dos envolvidos na feitura, desde os atores à realização, produção e cinematografia.
O uso do texto no inglês arcaico de Shakespeare foi alvo de críticas, contudo esquecem essas que a história é sobejamente conhecida, e que não é necessário compreender tudo para compreender a ideia, mas que ao usar o texto tal como escrito o filme ganhou, e muito, em poética. Talvez por isso não seja de admirar que Justin Kurzel tenha procurado dar às restantes vertentes do filme a mesma densidade e harmonia, na tentativa de uma reconstrução do original capaz de ombrear em impacto estético, nomeadamente criando em nós algo, pouco, daquilo que terão sentido aqueles que pela primeira vez assistiram à encenação do texto.
Sim, porque o texto de Shakespeare, apesar de poderosamente introspectivo, só atinge o seu auge quando encenado, e se a encenação teatral é o palco por definição, a sua transformação em filme, nomeadamente nesta visão de Kurzel, não se fica atrás. As ferramentas da literatura são suficientes para dar conta do interior humano, mas não é essa a forma usada por Shakespeare, que escolheu apegar-se ao diálogo, a base da peça teatral, e assim criar uma obra que só se ergue em plenitude quando em palco, quando os diálogos verbalizados se juntam à densidade expressiva do não-verbal dos atores.
Dito mais do que queria dizer, porque iniciei este texto apenas para deixar algumas imagens do filme, por toda a sumptuosidade da cinematografia de Adam Arkapaw, não quero contudo deixar de expressar a enorme admiração sentida por Michael Fassbender e Marion Cotillard, são monumentais na interpretação de Macbeth e Lady Macbeth.
“The Witness” (2016) almeja mais do que aquilo que verdadeiramente oferece, contudo não deixa de ser uma obra incontornável do meio, desde logo pelo modo como fusiona arte e tecnologia, ou seja, o mundo audiovisual e o núcleo mecânico do jogo. Assim, se o deslumbre estético é total e quase universal, para quem sinta deslumbramento com modelos, princípios e leis de sistemas, pode dizer-se que fica a um passo do paraíso. “The Witness” parte da base desenvolvida por “Myst”, atualizada por “The Talos Principle”, indo além desses no despojamento narrativo para se concentrar totalmente e só nos sistemas, que por sua vez partem de um “Sudoku” elevado a “Cubo de Rubik”.
Muito do sucesso de “The Witness” assenta inevitavelmente no historial do seu criador e o sucesso obtido com a obra percursora de todo o movimento indie na indústria dos videojogos, “Braid” (2008). Tendo construído toda uma base de seguidores, e também “odiadores”, qualquer jogo que fizesse teria facilmente conseguido sucesso, mas Blow não quis seguir o caminho fácil, e depois de investir 5 anos em “Braid”, resolveu dedicar 7 anos ao desenvolvimento do seu novo videojogo, mais tempo do que a maior parte dos projetos de doutoramento que podemos encontrar pelo mundo fora. Deste modo goste-se ou não, “The Witness” é um legado, uma obra criada com um propósito muito objetivo e capaz de dar conta de si.
“The Witness” é uma espécie de metajogo, tão em voga nos últimos anos — "A Beginner's Guide" (2015) ou “The Stanley Parable” (2013) — que procura por meio da metaforização da vida como jogo, questionar o sentido da vida. Para tal os puzzles são aqui símbolos, o abecedário, da linguagem do autor, por meio da qual este expressa as suas ideias. Nesse sentido o mundo audiovisual e os audio logs são meros adereços, que enfatizando a mensagem não são verdadeiramente fundamentais, daí que a história esteja praticamente ausente, já que a forma de comunicação escolhida não é narrativa mas jogo.
Toda a nossa ação em “The Witness” se resume a uma busca constante de respostas (a puzzles) que assentam numa base lógica, matematicamente perfeita, em que nada surge do acaso ou coincidência, fruto de um determinismo mecanicista. E é assim que Blow passa da epistemologia, a ciência que procura compreender a natureza do conhecimento, à metafísica, a ciência que procura compreender a existência, o que numa primeira impressão, e por serem conceitos pouco usuais nos videojogos, reivindicam um lugar de destaque na sua história, mas que como dizia no início deste texto se ficam pela superfície, ainda que os audio logs que encontramos na ilha procurem aprofundar um pouco o assunto:
“The most beautiful thing we can experience is the mysterious. It is the source of all true art and science. He to whom the emotion is a stranger, who can no longer pause to wonder and stand wrapped in awe, is as good as dead — his eyes are closed. The insight into the mystery of life, coupled though it be with fear, has also given rise to religion. To know what is impenetrable to us really exists, manifesting itself as the highest wisdom and the most radiant beauty, which our dull faculties can comprehend only in their most primitive forms — this knowledge, this feeling is at the center of true religiousness.” ― Albert Einstein
Blow segue à letra esta ideia de Einstein, coloca-nos num local magnífico e deixa-nos vaguear em busca de respostas para questões que não compreendemos (puzzles), e de tanto vaguear chegamos às estruturas base do conhecimento que estruturam esse mundo (o simbolismo da linguagem dos puzzles), que em contato com as nossas capacidades cognitivas de aprendizagem, nos permitam então chegar às almejadas respostas. Se tudo isto é perfeitamente elaborado, tal qual um relógio suíço, a minha crítica advém por duas questões filosóficas, ou seja as propostas reducionista e determinista do conhecimento que o jogo expressa.
Começo pela componente determinista que Blow defende ao longo de todo o jogo, que sentencia que tudo tem um sentido, que nada surge do acaso, pressupondo um criador, neste caso o designer mas quando metaforizado nos leva a pensar na existência de um Deus, algo que parece contido nas palavras de Einstein, mas que quando lidas com mais cuidado se percebe não existir ali. Contudo Blow, provavelmente antecipando esta crítica, ou não, vai além da mesma, embora o faça já fora do chamado “jogo principal”, ou seja um puzzle que não é necessário resolver para terminar o jogo, e que dá pelo nome de “The Challenge”. Aí os quadros de puzzles apresentados deixam de ser fixos, sendo elaborados processualmente pela máquina de cada vez que ali chegamos, com base no aleatório (recomenda a leitura de “The Drunkard's Walk” de Leonard Mlodinow), o fundamento que por muito que incomode a nossa existencialmente, é a base do Cosmos.
Se Blow consegue aliviar a crítica ao determinismo que lhe poderíamos assacar, o mesmo não se pode dizer do reducionismo na forma do conhecimento humano tratado. Criar um jogo que requer do jogador um envolvimento sério de quase uma centena de horas, para apenas trabalhar conhecimento imperativo, ou procedural, sabe a pouco. Sendo imensamente relevante, e fundamental na construção do próprio objeto, o videojogo que é fruto de programação computacional, não serve em nada quando fora do seu domínio. Ou seja, com que fundamento conduzo pessoas a aprender todo um sistema complexo e intrincado, exigindo delas quase infinitos recursos de processamento cognitivo, para apenas tratar problemas intrínsecos. Em concreto, tudo aquilo que aprendo sobre os puzzles — unidades, princípios e leis do seu sistema - de “The Witness” servem apenas os puzzles de “The Witness”.
É verdade que Blow tem um objetivo com esta abordagem, de nos levar ao questionamento sobre a construção do conhecimento, mas para isso não precisava de estigmatizar os jogadores, de lhes exigir tempo e reflexão que as pessoas poderiam ter investido na leitura de dezenas de livros que pela sua natureza de conhecimento distinta — geralmente proposicional ou declarativo — lhes seriam muito mais proveitosos.
No fundo, chego ao final de "The Witness" com a mesma crítica que cheguei ao final de “Braid”, Blow é um mestre no design de jogos, mas muito fraco contador de histórias. “Braid” revolucionou toda a mecânica de plataformas, mas quando chegou o momento de dizer alguma coisa com essa revolução, ficou-se pela básica narrativa paralela à jogabilidade, totalmente desconexa da representação. “The Witness”, parecendo não ser tão revolucionário, é bem mais ambicioso, recorrendo ao metajogo para teorizar o fundamento da existência humana, e conseguindo-o estruturalmente peca, mais uma vez, pela total desconexão com o conteúdo ou sentido dessa mesma existência.
Não adianta, acho até que teria sido melhor não entrar por aí porque evitava o pretensiosismo totalmente desnecessário, comparar-se com Thomas Pynchon, em concreto a sua obra "Gravity's Rainbow" (1973). Primeiro e desde logo porque a literatura é uma forma de arte bastante distinta dos videojogos. E segundo, porque para além das diferenças, encontram-se em estados de maturidade das suas linguagens completamente distintos. As propostas de Pynchon, entre muitas outras de quem como ele abraçou o pós-modernismo, surgem como resposta a um estado canónico da narrativa literária. É verdade que Blow também aqui afronta os cânones da indústria, mas não é menos verdade que ainda andamos à procura do cânone narrativo, e enquanto não o tivermos, pretender estar a fragmentar algo que ainda não existe, é no mínimo cómico.
Uma das evidências desta incapacidade de Blow de construir uma história, sintetizar diferentes ideias numa visão sua com princípio, meio e fim e que nada têm que ver com uma abordagem de afronta ao narritivismo, surge na sala de cinema que encontramos na ilha. Aí são apresentados seis filmes, excertos de documentários de James Burke e Richard Feynman, do "Nostalghia" (1983) de Tarkovski, entre outros, que apontam em várias direções, um pouco como os audio logs, mas que acabam por servir de escusa narrativa, na esperança de que sejam os jogadores / leitores / espetadores a construir as suas próprias histórias.
Ainda assim atrevo-me a entrar na discussão de um dos vídeos apresentados, nomeadamente por o considerar central na problemática da abordagem de Blow. No clip de James Burke (vídeo acima) apresenta-se a crença num mundo determinado pela ciência, como se esta tudo pudesse, como se esta fosse uma espécie de nova salvação da espécie, arrogando-se o direito de excluir outras formas de compreensão do real. O mais ridículo do desacreditar das artes, vistas como meras formas interpretativas do real, ilusões sem utilidade, é que são preconceitos com mais de dois mil anos, estão inscritas desde a "República" por Platão, no entanto quando olhamos ao nosso passado, aquilo que resta da nossa espécie, aquilo que a identifica, aquilo que permite individualizar o ser humano e perscrutar o seu verdadeiro ser, está apenas ao alcance da arte, ficando a ciência apenas pela forma, pela equação. De certo modo é isto que acontece com toda a filosofia que Blow tenta desenvolver em "The Witness".
Para fechar, e simplificando, até porque existe algo naïf em toda esta tentativa de Blow, ao almejar responder a toda a problemática do universo, não por o fazer pelo meio dos videojogos, mas por ter fechado tudo sobre um simbolismo inconsequente, acredito que a origem do jogo surge pelo viés da sua formação, as ciências da computação, algo que está presente em múltiplos outros videojogos. Ou seja, mentes que afunilam o mundo em teias conceptuais deterministas, que organizam o mundo em sistemas de sistemas, esquecendo que no mundo real, fora do constructo matemático-computacional, os sistemas são abertos, profundamente variáveis e na maior parte das vezes completamente indeterminados.
No âmbito de um curso de especialização em Video Design and Mapping leccionado pelo IED - Istituto Europeo di Design em Florença, Victor Valobonsi criou o teledisco "Submission of Thought" (2016) para o duo Drumcell & Luis Flores. O filme não é mais do que um trabalho de motion design sem grande complexidade, mas ganha encanto pela obra de fundo utilizada como tema, "O Jardim das Delícias Terrenas" (1504) de Hieronymus Bosch.
Detalhe da tela, apresentado como plano geral do filme "Submission of Thought"
Abas exteriores do tríptico, quando fechado, que representarão "A Criação do Mundo".
A cada novo trabalho que se realiza sobre as telas de Bosch sente-se como se novas obras do autor nos surgissem na frente. Isto deve-se ao facto de cada uma das telas conter um tal nível de detalhe que qualquer observação geral fica muito aquém da apreensão do todo nelas contido. Neste pequeno vídeo, que me surpreendeu mais pela qualidade do recorte e tratamento do mesmo do que do movimento, sente-se exatamente isso, uma espécie de sensação de novo, como se apesar de já ter olhado para este quadro dezenas de vezes, de o ter até visto ao vivo, tudo o que me surge parece ser algo que nunca tinha visto. Na verdade, ver vi, até porque o contexto do traço e cor rapidamente me situou em termos de autor e obra, mas o conteúdo em si, a sua expressão concreta, não me recordo propriamente de ter visto, ou pelo menos não restaram na minha memória quaisquer registos.
"Submission of Thought" (2016) de Victor Valobonsi
Gillian Tett é jornalista do Financial Times, colunista de mercados e finanças, e é doutorada em Antropologia Social. Provavelmente este cruzamento de saberes fez com que fosse uma das jornalistas a soar os alarmes para crise financeira em 2006, tendo participado no documentário explicativo da crise “Inside Job” (2010). O seu mais recente livro “The Silo Effect: The Peril of Expertise and the Promise of Breaking Down Barriers” (2015) dá conta de um problema que anteviu a partir dos estudos etnográficos realizados sobre a organização da banca, e que entretanto conseguiu extrapolar para a generalidade das organizações humanas complexas.
Segundo Tett, os “silos” organizacionais surgem quando as pessoas de uma mesma organização não falam umas com as outras ou não partilham informação. Ao proceder deste modo as organizações criam áreas internas estanques, que cedo ou tarde acabam por competir entre si, podendo colocar em risco toda a organização. Como jornalista, e seguindo um estilo gladwelliano, Tett apresenta em cada capítulo a história de uma organização para solidificar a argumentação. Para apresentar os impactos do problema apresenta a história da Sony e da crise financeira de 2008, por outro lado e para apresentar possibilidades de resposta ao problema, apresenta dois casos de sucesso uma Clínica de Cleveland e a empresa Facebook.
Nos anos 1970 e 1980 a Sony tornou-se líder mundial com as televisões Trinitron e o Walkman. O império cresceu, complexificou-se, tendo dado origem a subdivisão interna em 25 sub-organizações. No curto prazo a eficiência aumentou e os lucros aumentaram, mas com o passar do tempo começou a surgir a competição interna, e com ela o declínio da cooperação criando os silos e consequentemente a impossibilidade criativa e de inovação. Um dos exemplos mais gritantes dado por Tett surge num dia de apresentação de novos produtos da Sony no final dos anos 1990, em que o CEO da Sony apresentou em palco, nada menos que três leitores de música portáteis diferentes, cada um com o seu codec proprietário, o que ilustra na perfeição a incapacidade de entendimento interno na empresa. Não fosse a Playstation, e a Sony já teria implodido por esta altura.
Existem vários capítulos dedicados à crise financeira vistos de diferentes perspectivas que acabam por, e em síntese, dar conta de uma rede interconectada mas vedada pela complexidade intrínseca, que tornou possível o crescimento exponencial isolado de estruturas, e consequentemente o desabamento do todo quando alguns dos silos caíram. O trabalho de Tett na análise dos comportamentos de várias figuras proeminentes do sistema, tanto dos grandes bancos, como fundos, como regulação é imensamente rico e permite-nos ver toda crise num tom humanamente menos negro.
Em contra-ciclo são apresentados dois exemplos extremamente interessantes, pela forma como perceberam desde cedo os problemas da criação de silos internos, e como procuraram agir para impedir a sua formação. O caso da Clínica de Cleveland é tanto mais importante pela área delicada que trabalha, a saúde, contudo não está imune a este tipo de problemas, algo que nós em Portugal facilmente podemos depreender se seguirmos algumas notícias dos nossos hospitais. Ou seja, a comunicação entre equipas, entre departamentos ou entre hospitais é débil, e com isso surgem imensos problemas. Em Cleveland uma das formas de dar conta dos problemas internos foi criar equipas mistas, terminar com os departamentos fechados em áreas científicas, e criar novas equipas em função das doenças e suas necessidades. Deste modo, ainda que só depois de muita guerra interna, conseguiram por exemplo colocar a trabalhar juntos numa mesma equipa — cardiologistas, neurologistas e psicólogos.
Mas o exemplo mais impactante é o do Facebook, se a Sony ilustra na perfeição os problemas dos silos, o Facebook ilustra quase na perfeição o modo como os combater. Compreendendo os problemas das grandes empresas, que dependem fortemente da burocracia para funcionar, e sendo uma empresa de “social media”, foi pensado algo que pudesse combater a burocracia, tendo por base partido da ideia do social. Ou seja, a Facebook acredita que a única forma de combater os silos é criando laços fortes entre os trabalhadores, de modo a que eles não se desliguem uns dos outros, e consigam sempre que necessitem recorrer uns aos outros. Para isso existem duas estruturas fundamentais na Facebook: o bootcamp e o hackamonth.
O bootcamp consiste numa espécie de formação/workshop de 6 semanas pela qual todos os empregados, juniores ou seniores, têm de passar quando entram na empresa. Sendo que o objetivo não é preparar competências técnicas, mas sociais e motivacionais. Ou seja, por um lado levar as pessoas a compreender melhor em que área da empresa querem realmente trabalhar, por outro conseguir que estabeleçam laços fortes com os colegas do curso. Pelos estudos já realizados pela empresa, os laços criados nestas 6 semanas perduram por anos dentro da empresa, mesmo estando a trabalhar em departamentos completamente distintos.
A segunda estrutura é mais complexa, e difícil de imitar, mas é aquela que mais me impressionou, e aquela que eu próprio gostaria de ver implementada em muitas outras instituições, desde logo nas universidades. O hackamonth consiste em reuniões periódicas na qual se encorajam pessoas que estão há mais de um ano a trabalhar numa equipa/projeto a mudar durante um mês para outra área completamente diferente. Isto é verdadeiramente delicioso, e explica em parte, porque a Facebook foi capaz de passar a barreira dos 10 anos de vida. O que estas trocas internas permitem é uma enorme germinação de ideias e constante inovação, grandes saltos criativos, algo que só é possível com a constante introdução de pessoas novas (o sangue novo como se costuma dizer).
Silos da Universidade
Hoje nas universidades vivemos com gerações envelhecidas, há mais de 10 anos que os quadros não são renovados, e muita da inovação que fazíamos começa agora a arrastar-se. Precisamos de pessoas novas nas estruturas das universidades, mas precisamos também de aprender a trabalhar mais juntos. Isto é um discurso que já existe na universidade atual, já se compreendeu o problema e se reconhece a necessidade da interdisciplinaridade, mas do compreender ao fazer vai uma enorme distância. Hoje continuamos fechados nos nosso silos, quando saímos e tentamos estabelecer laços, toda a componente burocrática previamente instalada pela complexidade institucional nos cai em cima, e joga por terra muitos dos esforços encetados.
Por outro lado, como a própria Tett reconhece, os silos são ainda precisos, não podemos sonhar com uma revolução que arrase todos estes “edifícios”, porque assim como a colaboração é fundamental na gestação de novas ideias, a competição é fundamental para a especialização que é quem torna possível muitas dessas ideias. Como ela diz, “Our world does not function effectively if it is always rigidly streamlined” mas “A dedicated team of trained firefighters is likely to be better at fighting fires than a random group of amateurs” No fundo o que precisamos não é de uma revolução, mas o reconhecimento do problema e ações concretas para lidar com o mesmo.
As abordagens da Facebook são uma hipótese, mas Tett, enquanto antropóloga sugere outras, nomeadamente a criação de cargos nas empresas para pessoas com literacia em diferentes especialidades, capazes de criar pontes entre diferentes departamentos, capazes de traduzir as linguagens entre si, e assim abrir espaços de colaboração. Todos os estudos sobre criatividade e inovação mostram que estas surgem na intersecção de fronteiras, internas das áreas ou do conhecimento existente sobre as mesmas. Nesse sentido é vital que reconheçamos o elefante branco no meio das salas das nossas instituições, mais ainda em pleno século XXI.
O fim-de-semana é por norma dedicado à família, ainda que se aproveitem os momentos mais parados para avançar trabalho, por isso ao longo do ano as atividades que se realizam variam bastante, desde passear de bicicleta a ir a casa dos avós, realizar alguma visita mais distante ou apenas descansar por casa, e pelo meio vai-se encontrando também alguma vontade de criar.
As crianças cá em casa (7 e 10) adoram atividades criativas, adoram experimentar, mexer, trocar, mudar, transformar em busca da melhor conjugação, da melhor composição, em busca da replicação de conceitos e representações anteriormente vistas e sentidas num qualquer filme ou videojogo. É verdade que por terem acesso a todo um mundo de conteúdos se tornam bastante exigentes com o que criam, frustrando-se muito por não conseguirem chegar rapidamente, ou tão bem, à imitação do que já conhecem. A impaciência reina e cabe-nos a nós ser capazes de a domar, para tal é crucial definir objetivos curtos, que possam ser atingidos rapidamente e com esforço reduzido para que possam começar a percepcionar o caminho, sentindo que apesar de não poderem chegar ao que viram na televisão, estão a conseguir construir algo, sentindo progressão.
Há umas semanas foi a vez da mais velha pegar na caixa "Estúdio de Animação" e na máquina fotográfica que recebeu no Natal e começar um projeto que já tinha sido discutido noutros fins-de-semana sem consequência. Assim, depois das fotografias tiradas pela própria (54), ajudei-a a construir o resto do filme no After Effects. Mais do que aquilo que possa ter aprendido, em termos de competências técnicas, retiro a enorme satisfação na forma de realização pessoal que ela sentiu na finalização do projeto, quando percebeu que tinha na sua frente um pequeno filme com princípio, meio e fim, criado praticamente por si apenas, intitulado por ela como "O irmão sério e o irmão brincalhão".
"O irmão sério e o irmão brincalhão" (2016)
Já este fim-de-semana foi a vez do mais novo, que não se interessou muito pelo projeto de animação da irmã, tendo no entanto ficado deslumbrado há algumas semanas quando lhe disse que poderia construir o seu próprio videojogo no Scratch. Esta história tem um aparte delicioso que dá bem conta daquilo que frisava acima sobre a impaciência das crianças de hoje, já que quando lhe disse que o jogo não poderia ser jogado nem na Nintendo 3DS nem na Playstation da sala ficou "possesso", dizendo-me mesmo que sendo assim já não queria fazer jogo nenhum! Foi preciso algum trabalho de desmontagem das ilusões construídas na sua cabeça, e tempo, tendo feito com que o projeto se arrastasse por três fins-de-semana. Começámos então por digitalizar as dezenas de personagens que ele se vai dedicando a desenhar (ver as duas imagens no topo deste texto), baseadas em universos ficcionais como os Invizimals ou o Pokémon, mas foi um desenho mais recente que acabou por apresentar todos os ingredientes necessários à construção do primeiro jogo, ou melhor dizendo, ilustração interativa, tendo assim chegado-se ao resultado final que ele intitulou de "Fogo na palha"!
Não sendo nenhum dos trabalhos excepcional, dou aqui conta destes não pela sua qualidade ou diferença, mas apenas pelo modo como servem na produção de interesse e motivação pelas diferentes artes, ajudando as crianças a compreender os processos de construção por detrás de objetos culturais do seu quotidiano que tanto gostam, reconhecendo assim o trabalho e dedicação necessárias à sua construção. Acima de tudo, espero que estas experiências desenvolvam neles o gosto por continuar a experimentar e criar.
Os “brinquedos inteligentes” (ex. MagikBee) continuam a surgir um pouco por todo o lado, o mais recente vem do Copenhagen Institute of Interaction Design, chama-se Ziff e foi criado por Alejandra Molina, uma designer de interação mexicana, como trabalho de tese da pós-graduação Interaction Design Programme.
Ziff é um brinquedo inteligente, um híbrido composto por dois objetos, um físico e um digital. O brinquedo físico funciona neste caso como uma interface tangível do videojogo. A inovação mais interessante da abordagem apresentada reside no entanto no facto do brinquedo não se limitar ao mero estatuto de interface, mas ser ele próprio dotado de uma componente de interação criativa. Ou seja, os jogadores precisam de experimentar com o brinquedo, construir e transformar, para que ele possa realizar as tarefas necessárias no âmbito do jogo digital. Não basta pegar e carregar em botões, ou abanar e mexer, é preciso olhar para o que se tem nas mãos e para o que está no mundo digital e combinar, encontrar a complementaridade.
A prototipagem em papel do jogo
Existe aqui uma certa similaridade com a nossa abordagem no Bridging Book, pelo uso da conceptualização da representação em modo de complementaridade. Ou seja, o brinquedo aqui tem de funcionar em complemento do mundo digital, e não apenas como transmissor de sinais. E é aí que tudo se torna mais complicado no processo de design como acaba por admitir Molina ao Gamasutra,
“I have to think about where the attention of the player is at all times, exactly where the player’s eyes will be looking. The level design has to consider the time it takes to make any physical change, and I needed to consider all the possibilities, not just the “right ones”. The game should react to whatever configuration the child makes, and should give you some space to experiment, and learn by trial and error. Every level has to have different environments to motivate the player to change configuration.”
Em termos de desenvolvimento a componente digital foi toda criada sobre Unity, no caso do brinquedo recorreu-se ao Arduino e RFduino. O resultado final é fruto de trabalho de equipa, sendo Molina engenheira, toda a arte foi criada por Line Birgitte Borgensen.
A maker Alejandra Molina
O projeto convenceu desde já muitas pessoas, tendo sido selecionado para ser apresentado no Alt.CTRL.GDC da Game Developers Conference que vai decorrer de 14 a 18 Março em São Francisco. Aliás estará aí presente um outro projeto dentro desta mesma linha, que esteve no Kickstarter há pouco tempo, o Fabulous Beasts.
Sobre todo o processo criativo e de desenvolvimento podem ler em detalhe no blog de Molina ou ler a entrevista que deu à Gamasutra recentemente.
Esta semana aproveitei o texto para o IGN para escrever sobre um dos videojogos que há muito tempo aguardava poder jogar, "That Dragon, Cancer" (2016). Tendo sido anunciado em 2013, demorou a finalizar já que pelo meio foi necessário ainda encontrar financiamento, enfrentar o desaparecimento da criança, e terminar o jogo. Tudo isto foi sendo seguido pela rede, aumentando a cada nova informação mais e mais a expectativa, que agora posso dizer que não defrauda.
Sendo pai, talvez seja mais fácil entrar no jogo, do que para quem não é, ainda assim arrisco que o jogo tem capacidade para tocar todos, a integração de todos elementos da comunicação audiovisual e interativa é tão coesa e dirigida que dificilmente se consegue escapar ao tema e à mensagem.
O texto pode ser lido integralmente no IGN, sob o título, O Luto nos Videojogos (IGN 8.3.2016).
A Interaction Design Association criou um pequeno filme com entrevistas a alguns dos mais interessantes designers de interação, incluindo Brenda Laurel, e disponibilizou-o no Vimeo. Nada de muito novo, embora seja interessante olhar para as percepções dos outros, e compreender que estamos no mesmo comprimento de onda.
“a lot of people say they are bad at technology, but I think that a lot of technology is bad at humans” Amber Case
Obra-prima. Não porque tem uma escrita perfeita, não porque tem uma história primorosa, não porque tem uma ideia primordial, mas porque integra tudo isto numa só obra. Ao fim das primeiras vinte páginas já percebemos que assim é, e Franzen nunca desilude ao longo das quase 700 páginas que a vontade anseia por ler de um só fôlego.
A escrita de Franzen é perfeita mas não num sentido lírico que no entanto, e na ausência do belo, não faz menos por nos agarrar, nos enlaçar. Cada frase sucede-se a outra, sem notarmos que uma termina e outra começa, sem percebermos sequer que são frases, porque apenas sentimos aquilo que vamos imaginando. Franzen desenvolve uma forma de nos dar a conhecer o mundo ficcional que nos faz esquecer que estamos a ler, as palavras sugam-se para dentro das frases, e estas para dentro dos parágrafos, e por sua vez para dentro de nós mesmos, como que se traduzindo de forma automática em pensamentos. Acredito que o modo como o faz se deve a duas componentes base: a erudição linguística e a escalpelização da ação.
A linguagem apresentada é imensamente rica, não petulante com adjetivação barroca, mas pela extrema diversidade vocabular, e seu uso, que Franzen vai buscar ao interior da sociedade de várias décadas, diferenciando as linguagens das diferentes gerações e tempos. Não há espaço para o cliché, tudo parece cristalinamente renovado, porque evocando um mundo conhecido por nós, mas por meio de uma representação textual completamente nova, capaz de nos dar a ver de modo diferente.
Por sua vez a construção do texto segue uma abordagem, aqui sim barroca, pelo excesso de detalhamento do real, nomeadamente no modo como descreve as ações, e mais ainda a sucessão das mesmas, como que encapsulando umas nas outras, garantindo sempre ao leitor o acesso a um todo. O leitor sente o aprofundamento das camadas, esquecendo por momentos de onde se parte, para logo a seguir o texto resumir e voltar a trazer de volta ao início, para garantir que tudo se mantém no limiar do entendível. Este detalhe chega por vezes a parecer infinito, sem nunca saturar, mas sobre ele Franzen diz,
“Qualquer romance, mesmo razoavelmente longo, representa apenas uma fração infinitesimal daquilo que se sabe sobre o mundo. Aquilo que eu sei sobre Liberdade é maioritariamente acerca dos seus quatro personagens principais, os quais cresceram a partir do pequeno pedaço de mundo conhecido pelo seu criador. Representar um mundo é uma forma de permitirmos a nós mesmos sentir pequenas coisas de modo mais intenso, e não de conhecer muita informação.” no Guardian.
De certa forma, Franzen optando por não seguir nenhuma das abordagens de subversão do texto, modernas ou pós-modernas, acaba por inovar no modo como consegue rentabilizar e complexificar a estrutura clássica de contar histórias, nomeadamente pelo brilho com que desenvolve uma estrutura de tão fácil compreensão, impregnada de construções frásicas imensamente complexas. Neste sentido podemos dizer que Franzen é menos lírico que Roth ou Nabokov e imensamente mais acessível que Foster Wallace ou McCarthy, contudo é tão ou mais competente que qualquer um deles, exatamente pelo modo como entrelaça a forma narrativa de complexidade mantendo o seu fluir tranquilo.
No campo da história, “Liberdade” oferece-se em várias camadas, sendo a mais imediata, um recorte social e psicológico da família de classe média americana, facilmente identificável pela sociedade ocidental contemporânea, através da qual Franzen nos faz reviver os dilemas e conflitos do casamento, dinheiro, amor e sexo, competição e colaboração, passado e futuro, natureza e sobrepopulação. Tudo isto é elevado a uma categorização em círculos ideológicos demarcados por opções políticas, republicanos e democratas, que parecendo por vezes sofrer de viés do escritor, acaba por nunca nenhum ficar incólume à sua crítica.
Mariquita-azul (Setophaga cerulea), a espécie ameaçada de extinção que surge no centro do enredo.
E é desta crítica, às diferentes ideologias, que veremos emergir o objeto de “Liberdade”, a nossa incapacidade individual para lidar com a tal liberdade sempre que esta coloca em risco o nosso próprio benefício, mesmo quando isso implica a nossa própria perda de liberdade. Isto fica patente desde cedo no modo como se lida com uma ocorrência de violação sexual, e atravessa subterraneamente todas as grandes decisões ao longo da epopeia familiar, conduzindo-nos até ao grande propósito deste livro. Este propósito primordial, objeto de "Liberdade", é como facilmente se pode depreender desta descrição profundamente melancólico, mesmo trágico, contudo e ao contrário do universo mccarthyano, Franzen não se fica e oferece saída, que depende de cada um interpretar à sua maneira.
"Não sabia o que fazer, não sabia como viver. Cada nova coisa que encontrava na vida impelia-o numa direcção que o convencia por completo da sua rectidão, mas depois surgia uma outra coisa nova que o impelia na direcção oposta, mas que também lhe parecia certa. Não havia nenhuma narrativa controlada: aos seus próprios olhos parecia ser uma bola de pinball puramente reactiva, num jogo cujo o único objectivo era manter-se vivo só mesmo para estar vivo." p.392
Edição: "Liberdade" (2010) de Jonathan Franzen, trad. Maria João Freire de Andrade, Publicações Dom Quixote, 688 pág., 2011