a) O Romance
Neste campo Tolstói não nos dá nada de novo, apesar do realismo, e do drama próprio ao género, raramente nos arranca do lugar, nos surpreende ou prende a respiração. O romance atravessa os dilemas comuns de cinco famílias da aristocracia do século XIX, com as suas querelas por heranças, casamentos de fachada e de manutenção de riqueza, com os amores impedidos, impossíveis ou de consanguinidade, mas a “faca e o alguidar” não entra aqui, mesmo quando na relação com a guerra, da saída dos familiares ou das invasões do inimigo, Tolstói nunca aproveita o fácil que seria puxar a lágrima, ou impressionar com a aspereza, dureza e frieza próprias da vida em guerra, das faltas, da insegurança ou do frio, dos desaparecidos ou mortos em combate. Existem alguma cenas marcantes, como o exemplo inesquecível de Andrei pegando na bandeira logo no início, mas não está aqui o foco do autor.
Tolstói pretendia algo diferente, procurava dar conta de algo que se estava a transformar na sociedade, algo que acabaria por se ligar à guerra de Napoleão, a Revolução Francesa. Daqui começaram a surgir as elevações do povo, mas mais do que isso, para a camada aristocrática que estudava e refletia sobre a realidade, que tinha feito os estudos lá fora, tinha lido Rousseau, era tempo de mudança. Era tempo de repensar a propriedade privada, de repensar a escravatura, os direitos humanos, de repensar o Estado e as suas leis. E é isto que surge no centro do romance, ainda que de algum modo vá sendo camuflado pelo romanesco das relações, mas sempre que pode, e fá-lo imensas vezes, colocar Andei ou Pierre a falar, tudo isto vem ao cimo, e faz-nos refletir sobre o tipo de sociedade que existia nessa altura. De certo modo faz-nos pensar sobre a razão de ter surgido Napoleão.
As várias famílias acabam por dar conta de diferentes perspetivas sobre a sociedade, apesar de todas aristocráticas (condes e condessas), estavam todas em situações diferentes, acabando por estabelecer premissas e objetivos distintos. O centro inevitavelmente acaba por rodar à volta de Pierre, um filho bastardo que chega à aristocracia por mero acaso, e é no seu encalço que passamos o resto do romance, vendo muito daquilo que era a Rússia e do que foi a guerra, por meio do seus olhos. Alguém desprendido que por várias vezes tenta recompor-se mas que pela vicissitudes da vida, do acaso e coincidência, acaba por cair e voltar a cair. Tolstói faz isto imensamente bem, conseguindo estabelecer uma clara ligação entre o leitor e Pierre.
Por outro lado, tudo isto é acompanhado por um espírito crítico, que paira sobre o texto do próprio Tolstói, desde a igreja à política, à hierarquia militar, à medicina, aos académicos, à maçonaria, ao jornalismo, nada escapa, tudo é apresentado com direito a contraditório, mas na maior parte do tempo sucumbindo ao desejo reformador de Tolstói que está aqui claramente ao serviço de um desígnio, como veremos já a seguir.
b) O Relato Histórico
Guerra e Paz é assumidamente escrito com um espírito de missão, Tolstói procurava dar uma nova visão da História, estava claramente insatisfeito e sentia-se incomodado com os vários volumes escritos por académicos que relatavam a campanha de Napoleão na Rússia como um verdadeiro passeio, sem sofrer qualquer afronta por parte das forças russas. Daí que os 4 volumes sejam dedicados a discorrer sobre a História, mas não apenas a História como se contava, mas antes dando uma nova versão, ao mesmo tempo que criticava a ciência por detrás das análises históricas até então escritas, o que daria origem à terceira via deste livro, e de que falarei a seguir.
A História descreve Napoleão como o génio militar, e Tolstói sentiu-se profundamente incomodado com tal. Deste modo Guerra e Paz acaba por apresentar, além do romance, uma nova visão do embate de 1812 entre Alexandre I e Napoleão, colocando o general russo, Kutuzov, na frente, enaltecendo feitos pouco conhecidos ou reconhecidos, e assim trazendo orgulho ao povo russo. Não admira que esta obra se tenha tornado digna de honras de monumento para os russos. Ela é um monumento em si, épica, mas é-o ainda mais para o povo que viu nascer e morrer Tolstoi.
Para o comum leitor, a união do romance à História é fundamental na criação do espaço e universo narrativo. No final da leitura, dificilmente se fica com a mesma ideia do século XIX, sentimos os nossos horizontes crescer, e compreendemos melhor o que se passou com Napoleão, embora neste caso concreto tivesse gostado de ver Tolstói ir mais longe. Tolstói porque tinha algo a provar, que o faria na terceira via do livro, acaba por não reconhecer a origem de Napoleão, nem dos escritos que o suportavam, os "autores" por detrás da Revolução Francesa, o que teria sido muito interessante. Por outro lado, ao assumir que o leitor detém esse conhecimento, obriga a procurar e a querer saber mais quem tenha aqui algumas lacunas. Deste modo acaba por tornar Guerra e Paz uma obra praticamente obrigatória em termos da cultura geral europeia, embora não seja uma obra que se possa obrigar à leitura, dada a sua complexidade.
c) A Análise Filosófica
Esta foi talvez a vertente do livro mais criticada desde o seu surgimento, tendo mesmo levado Tolstoi na 4ª edição em 1873 a cortar quase toda esta análise do livro, algo que foi apenas reposto mais tarde pela mulher em 1886 para 5ª edição, a que hoje normalmente lemos. Um dos elementos mais marcantes desta edição aparece como segunda parte do Epílogo, em 35 páginas inteiramente dedicadas à reflexão sobre a Ciência da História e à vida em si. Diga-se que são 35 páginas um tanto obsessivas, Tolstoi procura convencer-nos por todos os meios, detalhando ao pormenor o seu argumentário, mas desta forma acaba tornando-se excessivamente complexo, afastando muitos leitores. Em algumas críticas chega-se mesmo a recomendar os leitores a arrancar o epílogo, para diminuir o tamanho e peso, mas principalmente para não se ter de atravessar aquilo que para alguns é a parte mais árida do romance.
Percebo que assim seja para quem vem à procura de romance, mas Guerra e Paz não seria o que é sem as suas três partes. Para quem consiga seguir o raciocínio de Tolstói é recompensado no final, sendo capaz de sentir o que ele sente. Sim, ele é nestes momentos mais pregador que artista, aliás existem dois momentos no meio do livro em que o narrador abandona a terceira pessoa, e sentimos claramente Tolstói a falar connosco, a dizer-nos o que pensa sobre os factos históricos, sobre os erros de leitura, e sentimos que ele ja não está a escrever uma história, mas a dar uma aula carregada de impressões pessoais, ainda que de algum modo sustentadas. Tolstói não se limita a escrever sobre um assunto que leu, faz uso da sua experiência pessoal na Guerra da Crimeia (1853-1856), assim como de imensa pesquisa no terreno, chegando a incluir mapas de correção dos campos de batalha no livro.
Antes de entrar na discussão histórica quero frisar algum dos devaneios que vão surgindo ao longo do livro da parte de Andrei e Pierre, com perspetivas sobre a vida bastante negras, nas quais podemos encontrar facilmente paralelos com Schopenhauer, filósofo que Tolstói admirava, claro que não se fica pelo mero seguimento, notamos mesmo ao longo do livro uma evolução das perspetivas mais negras, um amadurecimento. Claramente que o seu desânimo com a sociedade, a aristocracia e o tratamento dado às pessoas do campo afetou muito o mundo de Tolstói, ele que fundou várias escolas especificamente para quem não tinha acesso à educação na Rússia.
Mas o cerne da filosofia apresentada por Tolstói com o culminar no Epílogo dá conta da discussão em redor do determinismo e acaso. A discussão surge a Tolstói por vida da demonstração de que não é um homem, neste caso Napoleão, que pode mudar o mundo, que é preciso um movimento, que são precisas massas, e que essas não se movem à vontade de uma só voz. Esta luta começa logo no início do livro, mas agudiza-se no final, com Tolstói a dar conta de uma ciência incapaz de nos dar a conhecer a História, por se concentrar apenas nas figuras de proa, esquecendo as massas, as pessoas reais que fizeram a História. Esquecendo a imensidão de variáveis que contribuem para cada evento, em que tudo tem uma causa e um efeito, e que cada efeito afecta a causa seguinte, num sucedâneo que provoca aquilo que mais tarde reconhecemos como História.
"Para estudar as leis da história, temos de mudar completamente o objeto da observação, deixar em paz os czares, os ministros e os generais, passando a estudar os elementos heterogéneos, infinitesimais que dirigem as massas.” p. 298, III
“Se dispusermos de uma grande série de experiências, se as nossas observações incidirem incessantemente nas relações de causa a efeito nos actos humanos, então estes actos apresentam-se tanto mais necessários e tanto menos livres quanto mais ligarmos os efeitos às causas.” p. 397, IVDaqui chegamos à grande dualidade entre Liberdade e Necessidade, que no fundo serve a oposição, livre-arbítrio e determinismo. De um lado, a liberdade total pode apenas existir na nossa consciência, enquanto a necessidade existe na razão (no espaço, tempo e causalidade). A luta entre liberdade e necessidade é permanente, não podendo nós viver apenas num dos lados.
“Assim, para imaginarmos um acto humano sujeito tão-só à necessidade sem a mínima dose de liberdade, seríamos obrigados a admitir o conhecimento de um número ‘infinito’ de condições espaciais, um período ‘infinitamente’ grande de tempo e uma série de causas ’infinita’.
Para podermos imaginar um homem completamente livre, não sujeito à necessidade, deveríamos imaginá-lo sozinho, ‘fora do espaço, fora do tempo e não dependendo de qualquer causa’.” p.401, IV
Conclusões
Tolstói não considerava Guerra e Paz um romance e Gustave Flaubert concordava dizendo que o livro estava cheio de repetições e demasiada filosofia, com o que concordo em parte. Só não concordo que não continue a ser um romance, porque o romance não tem uma forma, é antes aquilo que quisermos fazer dele, mas claro que é muito mais fácil para mim dizer isto em 2016.
Na realidade, Guerra e Paz opta por uma forma do tipo “edutainment”, um trabalho que ao mesmo que entretém (romance), educa (história e filosofia), e nesse sentido é um trabalho enormemente conseguido. Este tipo de abordagem híbrida não pode almejar ao mesmo tipo de uma obra consagrada a um domínio apenas. Ou seja, um romance focado no romance, pode ir muito mais longe no drama e emoção, na envolvência da nossa atenção e captação dos nossos sentires. Por outro lado um tratado filosófico sobre estes temas, vai muito mais ao fundo da essência do que Tolstoi faz aqui, mesmo com a sua repetição obsessiva do tema, porque acaba faltando-lhe espaço para a exposição metodológica. O mesmo acontece com a componente histórica, em que muito do contexto do cenário de 1812 fica de fora. De qualquer modo, Tolstoi consegue juntar os três discursos e não só tocar-nos como abrir-nos os horizontes históricos e filosóficos, e é isso que tem mantido esta obra relevante ao longo de tantos anos.
Estilisticamente a inovação, e dificuldade de leitura, advêm por esta abordagem tripartida, já que em termos de escrita temos um texto bastante fluído, numa lógica realista, com um bom vocabulário mas nada demasiado exigente. O primeiro tomo é dedicado à apresentação dos personagens, é um bocadinho mais chato na progressão mas é amplamente compensado pelo segundo e o terceiro nos quais temos o desenvolvimento do romance e História, com algumas interessantes digressões filosóficas, já no quarto entra novamente num ritmo mais descritivo, de fechamento de pontas, tornando-se menos envolvente, embora o epílogo redima e nos ponha num estado profundamente reflexivo sobre tudo aquilo que acabámos de ler.
Apesar de vivamente recomendado, não é um livro que sinta, pelo menos no imediato, vontade de reler. É um livro magnífico, capaz de nos fazer ver o mundo de uma forma diferente, mas que sofre um pouco com a progressão ocorrida no seio da ciência e filosofia. Entre Tolstói e Proust, julgo não haver lugar para dúvidas no que toca ao prazer da leitura de Proust, ainda que em termos de assunto e conteúdo seja imensamente mais rico Tolstói.
Lev Tolstói, (1869), Guerra e Paz, Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Editorial Presença (2005), 4 volumes, p. 1697