janeiro 12, 2016

Da visceralidade da tinta a óleo

A materialidade da pintura plastificada pela macro cinematográfica. "Tone" é um pequeno filme de Trent Jaklitsch, no qual parece estar à procura de um acesso à essência da pintura por via de grandes planos da forma e dinâmica dos óleos. A momentos parece desejar penetrar a tinta, agarrar e plasmar através da objetiva para nos dar a sentir numa montagem imensamente dinâmica envolvida por uma música eletrónica que lhe confere o ritmo perfeito.





O efeito é simplesmente hipnotizante. Depois do vídeo vale a pena uma visita a Alyssa Monks.

"Tone" (2015) de Trent Jaklitsch

janeiro 10, 2016

O escritor desenrasca qualquer coisa

Se quiserem saber como decorrem as reuniões de trabalho durante a produção de um videojogo AAA (embora sirva de exemplo para reuniões de trabalho em múltiplos outros contextos), recomendo vivamente que experienciem a ficção interativa "The Writer Will Do Something" (2015).

"The year is 2012. You are the lead writer for the third game in the wildly popular ShatterGate™ franchise. Expectations are through the roof: fans of the series are waiting for the biggest, most bad-ass entry in the series yet, and your publisher is expecting the best-selling title in its history. But the game's development hasn't gone as smoothly as planned. One morning, just a couple months before E3 and six months before ship, an emergency meeting is called..."

É um artefacto simples, mais focado no relato do que na participação do leitor, ou seja os aspectos de agência são um tanto descurados, e se podemos por vezes sentir que somos ouvidos, nas poucas vezes que somos chamados a decidir, o efeito sobre o progresso narrativo é reduzido. Ainda assim, vale pelo conteúdo do relato, pelo modo como dá conta do vazio de que são feitas tantas reuniões de alto-nível, quando não se sabe propriamente o que se está a tentar fazer, porque já tudo saiu do controlo dos envolvidos.

Talvez, e aqui já sou eu em regime de interpretação do artefacto, os autores tenham desejado fazer-nos sentir alguma da importância do escritor nestas reuniões, do modo como não é ouvido, como procura a maior parte do tempo responder afirmativamente aos desejos de cada um dos responsáveis, para no final se ver como bode expiatório. Não sei se foi pensado assim, mas se o foi, é de génio, já que é isto que acabo por sentir no final por falta de mais agência.


Criado no Twine por Tom Bissel e Matthew S. Burns, ambos com experiência de escrita e produção em vários jogos AAA. Já aqui referenciei várias vezes Bissel, mais recentemente a propósito do seu livro "Extra Lives". Para quem não sabe o que é o Twine, é uma ferramenta open-source de criação rápida de ficção interativa, altamente recomendada para todos os que desejam iniciar-se na exploração da escrita interativa.


Experienciar "The Writer Will Do Something"

Até ser mau demais...

Until Dawn” é o típico jogo-filme, na senda de “Heavy Rain” (2010), um objeto quase-cinematográfico servido por um conjunto de escolhas dramáticas, às quais se acopla esparsamente alguma navegação e alguns “quick time events”, sendo que a jogabilidade se foca nas lógicas da estrutura narrativa. Até aqui tudo dentro do género, e para quem não gosta do mesmo o melhor será escolher outro género de jogo, mas para quem como eu adora, “Until Dawn” deixa imenso a desejar, talvez menos pela jogabilidade narrativa, e mais por tudo aquilo que a suporta.





Ou seja, o grande problema está no vazio dramático, uma história focada no decalcar do típico cinema de horror teenager, que apesar de constituído por muito lixo, tem bons títulos, tais como “Scream” (1996), “Final Destination” (2000), “The Cabin In The Woods” (2012) ou exemplos mais pesados, mas ainda assim focados em grupos de jovens, “Hostel” (2005), “Frontier(s)” (2007) ou até o mais recente “It Follows” (2015). Talvez “Until Dawn” tenha procurado ir mais no sentido de um “Evil Dead” (1981) ou de um “A Nightmare on Elm Street” (1985), ao qual tentou colar um pouco de “The Butterly Effect” (2004), mas o seu grande problema é mesmo originalidade, ou seja ausência de criatividade. Não existe aqui nada, absolutamente nada de novo a acrescentar ao género.

Sim, não é um filme, e poderia estar a inovar no seio dos videojogos, mas não chega, esperava-se mais, muito mais. No final o que vemos é apenas uma brincadeira interativa, uma espécie de artefacto que serve apenas o propósito de experimentar com a interatividade, nada mais. Ou seja, a história é profundamente básica, com clichés aos molhos, não conseguindo nunca surpreender-nos, ou sequer fazer-nos questionar, “o que irá acontecer a seguir?”, tal o enfado.

A juntar a um enredo fraquíssimo, como seria de esperar os personagens, que não são o forte do género, estão completamente ausentes. Como não há um bom enredo, e os personagens neste género são invariavelmente peões, fica-se sem nada. Como se não bastasse, a machadada final advém pela brincadeira com a agência, que na ânsia por sustentar a diferença face ao cinema, nos coloca no controlo de todos os personagens principais, indiferenciando-os ainda mais, tornando impossível qualquer construção de empatia, simpatia ou antipatia com o grupo. Sim posso fazer escolhas, até posso de certo modo escolher o destino de cada um deles, que é o no fundo o que seria o forte desta proposta, mas pergunto, se não sinto nada por nenhum deles que me interessa os seus destinos?

Na estética, apesar dos ambientes bem construídos, seguindo todas as lógicas do horror cinematográfico, a tradução para ambiente interativo falha completamente, já que de tão obcecados com os artifícios audiovisuais do cinema, se esquecem completamente dos artifícios próprios dos videojogos para criar horror. Sendo o pior a cinematografia em conjunto com a navegação. Percebe-se o que pretendiam, mas falham em toda a linha. Ou seja, temos uma câmara estática e uma navegação rígida, que deveria conduzir à emoção de medo. A nossa incapacidade de poder mover a câmara, a incapacidade de mover rapidamente os personagens, tudo é dirigido para uma resposta emocional de medo, mas acaba por em sua vez fazer surgir a frustração e o aborrecimento.

A título de exemplo, é horrível ver a câmara ficar parada enquanto me movo no espaço em profundidade, por mais que deseje manter-me atento ao personagem e ao que lhe pode acontecer, só consigo focar-me no facto de o jogo não me aproximar do mesmo, sentir-me irritado e não com medo, não funciona, e é por isso que o género “survival horror” abandonou estas técnicas, existem tantas outras que o género possui muito mais eficientes.

Until Dawn” é provavelmente um dos primeiros jogos que me obrigo a levar até ao fim só para justificar o dinheiro que me custou, tão chateado estava comigo próprio de não ter conseguido interpretar as críticas que li a respeito do mesmo. A demonstrar claramente que não basta tentar uma formula diferente, se não houver nada de novo para dizer mais vale ficar calado.

janeiro 09, 2016

Videojogos por uma cinéfila

Shannon Strucci é autora da série web "So You Wanna Be a Film Nerd", tendo decidido fazer uma pausa no seu louvar da arte que tanto adora, o cinema, para dedicar um episódio aos videojogos, na expectativa de convencer os seus seguidores de que, os videojogos não são em nada menos interessantes que o cinema.



Cheguei a este vídeo através de Philip Kollar do Polygon, que referencia o trabalho de Strucci por lhe ter feito recordar as razões porque gosta tanto de videojogos, estando eu em total sintonia com ele. Senti particularmente toda a discussão que Strucci faz à volta de "Silent Hill 2" (2001) porque juntamente com "Ico" (2001) foram responsáveis por eu voltar a interessar-me por videojogos, em vez de apenas me focar no cinema. Não esperem um trabalho em profundidade, é um documento vídeo, como tal discute vários outros jogos como "The Stanley Parable" (2013), "Papers, Please" (2013) ou "The Walking Dead" (2012) ligando-os com excertos do documentário de Charlie Brooker "Como os videojogos mudaram o mundo" (2013), sempre de uma forma fluída e informativa.

"Why you should care about video games" (2016) Shannon Strucci

“Debt: The First 5,000 Years”

Brilhante, incisivo e ao mesmo tempo angustiante. David Graeber é um antropólogo especializado em economia, o que lhe dá uma visão bastante distinta do comum economista, já que coloca lado a lado o humano e as finanças, estudando em profundidade as suas implicações e dependências. O facto de ter sido professor em Yale e agora na London School of Economics, apenas possível pela qualidade do seu trabalho, garante sustentabilidade ao que afirma ao longo de todo este livro, mesmo quando se afirma como anarquista. Graeber foi um dos principais mentores do movimento Occupy Wall Street, nomeadamente da sua premissa de partida, "We are the 99 percent”.


Debt: The First 5,000 Years” é um trabalho de fundo sobre os papéis do dinheiro e poder na organização das sociedades humanas que explica o modo como toda a nossa civilização se sustenta em processos de dívida. Graeber dá conta dos primeiros registos escritos que dão conta dessas mesmas dívidas, algo que não me surpreendeu já que essa é uma percepção que fui construindo com a visita a vários museus arqueológicos, nos quais vi alguns dos primeiros registos em pequenas pedras, tendo percebido que na generalidade se tratavam de inventários, heranças ou sentenças judiciais de pagamentos de dívidas.

São vários os mitos desmontados por Graeber ao longo do livro, um dos mais gritantes, o da economia de troca, algo que existe no nosso imaginário como uma cultura existente anterior ao dinheiro, e que por isso mesmo vimos florescer nos anos recentes como tentativa de resposta aos efeitos da austeridade, mas que aqui ao longo de muitas páginas, dezenas de exemplos, e muita história vamos perceber como nunca tendo passado de mero desejo do nosso imaginário. Seria insustentável desenvolver a civilização até ao ponto de complexidade que chegámos, baseado numa economia desse género, já que a possibilidade de trocas entre indivíduos seria imensamente mais lenta e reduzida na ausência de um qualquer registo (dinheiro) que garante a troca entre todos e em qualquer momento.

Graeber começa o primeiro capítulo de forma brilhante tocando o âmago da discussão do momento, a crise das dívidas soberanas, explicando como se chegou a este ponto, como evoluiu a sociedade por meio de uma obsessão quantitativa suportada por um moralismo judicial, no qual o FMI é o píncaro global, o grande cobrador de dívidas. Nos vários capítulos que se sucedem vários momentos da história da evolução da civilização são apontados como basilares, nomeadamente processos de exploração, desde os Romanos à expansão colonial europeia, ao tráfico de escravos, tráfico sexual, etc.. Tudo processos de poder e domínio por via da dívida permanente entre partes, que serve de justificativa moral na exploração do mais fraco pelo mais forte.
"Why debt? What makes the concept so strangely powerful? Consumer debt is the life-blood of our economy. All modern nation-states are built on deficit spending. Debt has come to be the central issue of international politics. But nobody seems to know exactly what it is, or how to think about it.
The very fact that we don’t know what debt is, the very flexibility of the concept, is the basis of its power. If history shows anything, it is that there’s no better way to justify relations founded on violence, to make such relations seem moral, than by reframing them in the language of debt — above all, because it immediately makes it seem like it’s the victim who’s doing something wrong." p.5-6
“It is the secret scandal of capitalism that at no point has it been or­ganized primarily around free labor. The conquest of the Americas began with mass enslavement, then gradually settled into various forms of debt peonage, African slavery, and "indentured service" that is, the use of contract labor, workers who had received cash in advance and were thus bound for five-, seven-, or ten-year terms to pay it back (.. ) This is a scandal (..) because it plays havoc with our most cherished assumptions about what capitalism really is­ particularly that, in its basic nature, capitalism has something to do with freedom.” p.350 
Concordando com muito, ou toda a forma como Graeber desconstrói e critica o desenvolvimento e estado da nossa civilização, o encanto deste seu livro esvai-se quando chega o momento de propor alternativas. Mas seria expectável que um homem só, no tempo de uma vida pudesse chegar a propor tal alternativa? Ou mesmo recuando a Marx e ligando ao mais recente trabalho de Piketty? O que acaba por ser imensamente angustiante é perceber que se estes que tiveram a capacidade de destrinçar a malha que nos encurrala, tal prisão invisível, não conseguiram ver como, que podemos então nós esperar? Existirá mesmo alternativa?

Acredito que sim, mas só num nível de consciência e autocontrolo muito superior ao que temos atualmente enquanto sociedade. O grande problema é que se somos profundamente gregários, cooperativos e colaborativos, não somos menos profundamente dependentes uns dos outros para sobreviver, daí que a dívida seja a base da civilização, porque ela é no fundo a base da classe mamífera, que ao contrário da dos répteis, não consegue sobreviver individualmente, apenas em grupo.

"The Last of Us: Left Behind" (2014)

É um dos poucos DLC que joguei, e não fossem as ramificações narrativas brotarem de um primeiro jogo maior, poderia perfeitamente funcionar como um pequeno jogo autónomo, tendo em conta o seu arco e intensidade dramáticas. Aliás chegou a ser vendido em modo stand alone, mas a sua força comunicativa, nomeadamente o seu final, está umbilicalmente ligada ao jogo original, "The Last of Us" (2013), sem o qual não se consegue chegar a essência do seu desfecho.




"Left Behind" não inova com o duplo enredo, mas ainda vai sendo algo que os videojogos não aproveitam completamente. O DLC surge num momento cronológico da história de "The Last of Us" para estender e explicar em maior detalhe os eventos decorridos, ao que acopla um segundo enredo por via de recordações da personagem principal, Ellie. No friso do tempo presente enfrentamos o jogo, obstáculos e ação, no passado temos acesso ao mundo interior da personagem, revivendo momentos de uma amizade marcante da sua adolescência.

Como já acontecia com TLOUS, mais do que inovar LB faz muito bem o contar de história, com uma sensibilidade imensamente apurada, capaz de construir e densificar personagens que nos emocionam, falam conosco. Ficamos a conhecer melhor Ellie, ficamos a compreender ainda melhor as suas angústias, de forma íntima e cuidada as personagens são apresentadas com vidas próprias, medos e alegrias, entre romance e melancolia.

Posso dizer que foi um choque para mim jogar LB enquanto jogava "Until Dawn" (2015), dois videojogos focados em adolescentes, mas tão longe um do outro em termos dramáticos, narrativos, comerciais e acima de tudo maturidade criativa. LB pode ser apenas um DLC ou um pequeno videojogo, mas aquilo que tem para nos contar leva a que seja mais do que isso, é uma experiência dramática completa.

janeiro 06, 2016

“Jogo de Influências”, um jogo sério e dramático

Jeu d'influences” é um serious game muito interessante pela forma como consegue traduzir os recursos dramáticos em proveito do jogo e do assunto que pretende tratar. Sendo um jogo sobre processos de gestão de comunicação de crise, consegue colocar o jogador no centro da crise e fazer com que este seja levado a agir e decidir em função dos vários interesses — financeiros, políticos e morais.




Em síntese, somos colocados no lugar de um diretor de uma empresa de sucesso, acarinhada por políticos e banca devido à criação de um novo tipo de betão ecológico, contudo uma noite o nosso sócio mais próximo, o investigador por detrás desse novo betão, comete suicídio. É aí que a crise começa, como gerir a comunicação das razões dessa morte? Motivos profissionais ou familiares? Em que estava ele a trabalhar nessa altura? Como é que os média estão a lidar com o assunto? Como é que lidamos com os média? E os bloggers, como lidamos com eles? E a verdade deve prevalecer, ou a mentira faz parte? E o rumor alimenta-se ou cria-se?

Tudo questões que veremos surgir na nossa frente, muito bem dissimuladas como parte da narrativa, e que nos farão questionar sobre tudo aquilo que fundamenta a gestão da comunicação de crise. Diga-se que com a evolução para o modelo atual de Sociedade de Informação em que vivemos, os assessores e estrategas de comunicação tornaram-se tão ou mais importantes que os jornalistas. Se até aqui a comunicação era toda controlada pelas redações, existia aquilo que chamávamos de gatekeeping, controlo do que se publica e não publica, hoje tudo isso se democratizou, não apenas porque o número de órgãos de comunicação social explodiu via web — blogs, facebook, twitter, etc — mas também porque quem está do outro lado deixou de ser ingénuo, ganhou uma nova literacia e passou a saber gerir aquilo que quer comunicar. No fundo o espaço mediático deixou de ser aquele domínio de aparente transparência, de aparente acesso direto à pura verdade, para se transformar numa arena de luta entre as múltiplas verdades. Isto porque como diz Christophe Reille, gestor de comunicação: "A verdade é aquilo em que a maioria das pessoas acredita."

Durante seis capítulos somos conduzidos por uma narrativa bem desenhada, bem ilustrada e com excelente performance de vozes, tudo sendo complementado por pequenos documentários vídeo que servem para ilustrar os conceitos mais complexos, que podemos decidir ver ou não em função do conhecimento que já detemos sobre o tema. As questões vão surgindo e à medida que vamos agindo e decidindo, três medidores vão contabilizando o nosso desempenho: UBM (unidade de medida de ruído média), isto é, a importância que o caso está a assumir nos média; a Confiança do nosso gestor de comunicação; e o nosso Stress. Se deixarmos o UBM chegar aos 100, o jogo termina; se o nosso gestor de comunicação deixar de confiar em nós (chegar a 0), o jogo termina; e por fim, se ficarmos demasiado stressados durante o processo (chegar a 100) o jogo é terminado também. No fundo temos de fazer um gestão interna das nossas ações, tendo em conta estas três variáveis. A experiência vai levar-nos a situações de dilema moral, criando pressão para a realização de atos potencialmente reprováveis, cabendo-nos decidir ir atrás do nosso gestor ou seguir os nossos modelos mentais do real.

O interessante — e a aprendizagem acontece nestes momentos — surge quando os nossos modelos mentais do que achamos que seria melhor colide com aquilo que o jogo nos apresenta, e faz com que percamos. Aí começamos a perceber que o mundo que pintamos interiormente pode diferir daquele que uma boa gestão de comunicação requer, e é aí que começamos a ganhar noção do que está em jogo nesta literacia dos media.

Jeu d'influences” (2014) foi criado pela francesa The Pixel Hunt para a cadeia de televisão France 5, com um orçamento incrivelmente magro de apenas 90 mil euros, mais ainda para os níveis franceses, mas que resulta num trabalho surpreendente, nomeadamente no design de jogo, a sua sintonia com o tema retratado, assim como no detalhe artístico e extensão do jogo. O jogo está online e é gratuito, mas está em francês, podem experienciar em “Jeu d'influences”.

janeiro 05, 2016

“O Meu Nome é Vermelho”

Magnífica viagem pela história das civilizações através do choque entre as suas filosofias da arte. Localizado em Istambul no auge do império Otomano, em 1591, numa altura em que a arte Otomana se debatia com a chegada das inovações do renascentismo italiano, nomeadamente a Perspectiva e o Retrato, tudo isto é envolvido numa história de crime e mistério que nos mantém agarrados à narração até à última página.

“Mas os quadros deles são muito mais persuasivos, aproximam-se mais da verdadeira vida. Em vez de pintarem como se estivessem no alto de um minarete, de uma altura suficiente que os faça desdenhar aquilo que os ocidentais chamam perspectiva, eles põem-se, pelo contrário, ao nível da rua, ou no interior do quarto de um príncipe, para pintarem a cama, a colcha, o escritório, o espelho, o seu leopardo, a sua filha, as suas moedas de ouro. Eles põem lá tudo, como sabes. Aliás, nem tudo o que eles fazem me seduz. Indispõem-me e acho mesquinha, sobretudo, aquela maneira de quererem a todo o custo representar o mundo tal como parece. Mas há tanta sedução no resultado que eles obtêm com esse método! Porque eles pintam o que vêem, o que o seu olho vê, exactamente como a visão o recebe, enquanto nós pintamos o que contemplamos.” 
"Siege of Rhodes" (~1564) Pintura em miniatura otomana, sem recurso a perspectiva.
"Deus quis certamente que a pintura exista como forma de arrebatamento, de maneira a mostrar que, para quem sabe olhar, o mundo é também um arrebatamento."
"Mona Lisa" (~1591), retrato em perspectiva de Leonardo da Vinci

Toda esta nova forma de representar o mundo assustou as pessoas, mais ainda numa sociedade em que a representação de certas figuras era considerada blasfémia, ao que se juntava o receio da criação de figuras de adoração. Pamuk pega em tudo isto, bem caracterizado historicamente, e cria um universo seu de grande beleza expressiva e intelectual. Como que cose todos estes ingredientes, à partida tão distantes, num único novelo, garantindo-nos acesso a todo um mundo de ideias por meio de um aparente simples romance detetivesco.
Quanto às técnicas de pintura europeias, os jesuítas portugueses já as introduziram lá [na Índia] há muito tempo, como por todo o lado.p. 457
Ao longo de todo o livro sentimos esta tensão entre representar de modo natural ou formal, uma discussão que se tornou central com a chegada da fotografia muitos anos depois e acabou dando origem ao modernismo e toda a sua força criativa. Mas ainda hoje continuamos a discutir tudo isto, já não subjugados a visões esotéricas do mundo, nem mesmo a conceitos do que objetiva a arte, mas subjugados à impossibilidade da verdade científica.

Mas Pamuk mais do que centrado na verdade, está centrado no humano. O facto de ter estruturado o romance em capítulos atribuídos a cada um dos personagens, que falam cada um na primeira pessoa, parece inicialmente apenas uma abordagem estilística, mas é muito mais do que isso, é uma afirmação da sua visão do mundo, do modo como critica essa tentativa de então, de aniquilar o indivíduo, aniquilar a expressão pessoal, o Estilo, conceito da estética que se torna central e acaba estando no cerne da investigação do romance.

O livro de Pamuk grita pela força do indivíduo, pelos seus anseios, desejos, e vontades. Mais do que saber se é a verdade que enfrenta, o ser humano quer sentir-se. Cada um de nós é um ser, e por mais que gostemos e dependamos uns dos outros, estamos enredados em nós mesmos, buscamos compreender-nos antes de tudo o mais. Mais do que conhecer o real, precisamos de nos conhecer a nós mesmos, para assim podermos fazer os outros à nossa volta felizes.

O Meu Nome é Vermelho” recordou-me por várias vezes Saramago e o seu “Memorial do Convento”, não por serem duas obras históricas, ou terem ambos um Nobel (2006 e 1998), mas pela força expressiva que imprimem ao ambiente e personagens, como as estruturam e tornam credíveis num tempo passado, tão real e tão cru, mas também porque em ambos o centro roda em redor da grande arte dos seus monarcas de então, a demonstrar mais uma vez que se alguma coisa perdura de todo o nosso esforço nestas vidas, é a arte que deixamos em legado.

janeiro 04, 2016

Fotografia do fragmento

O fotógrafo Alexander Yakovlev tornou-se conhecido pelo seu trabalho de fotografia dinâmica de dança, tendo recentemente adotado a técnica de adicionar farinha em movimento às imagens garantindo-lhes assim uma dinâmica impossível de conseguir de outra forma em imagens estáticas.


Inevitável ver nestas imagens resquícios do trabalho de Vhils, embora construídos a partir de técnicas completamente diferentes, resultando em objetos finais totalmente distintos, conseguem por momentos tocar-se e fazer-nos sentir a força do fragmento, da sua relevância no conjunto, capaz de formar um todo dos muitos fragmentos, fascinando o nosso olhar.






Podem ver uma enorme coleção de imagens no site de Alexander Yakovlev.