“Mas os quadros deles são muito mais persuasivos, aproximam-se mais da verdadeira vida. Em vez de pintarem como se estivessem no alto de um minarete, de uma altura suficiente que os faça desdenhar aquilo que os ocidentais chamam perspectiva, eles põem-se, pelo contrário, ao nível da rua, ou no interior do quarto de um príncipe, para pintarem a cama, a colcha, o escritório, o espelho, o seu leopardo, a sua filha, as suas moedas de ouro. Eles põem lá tudo, como sabes. Aliás, nem tudo o que eles fazem me seduz. Indispõem-me e acho mesquinha, sobretudo, aquela maneira de quererem a todo o custo representar o mundo tal como parece. Mas há tanta sedução no resultado que eles obtêm com esse método! Porque eles pintam o que vêem, o que o seu olho vê, exactamente como a visão o recebe, enquanto nós pintamos o que contemplamos.”
"Siege of Rhodes" (~1564) Pintura em miniatura otomana, sem recurso a perspectiva.
"Deus quis certamente que a pintura exista como forma de arrebatamento, de maneira a mostrar que, para quem sabe olhar, o mundo é também um arrebatamento."
"Mona Lisa" (~1591), retrato em perspectiva de Leonardo da Vinci
Toda esta nova forma de representar o mundo assustou as pessoas, mais ainda numa sociedade em que a representação de certas figuras era considerada blasfémia, ao que se juntava o receio da criação de figuras de adoração. Pamuk pega em tudo isto, bem caracterizado historicamente, e cria um universo seu de grande beleza expressiva e intelectual. Como que cose todos estes ingredientes, à partida tão distantes, num único novelo, garantindo-nos acesso a todo um mundo de ideias por meio de um aparente simples romance detetivesco.
“Quanto às técnicas de pintura europeias, os jesuítas portugueses já as introduziram lá [na Índia] há muito tempo, como por todo o lado.” p. 457Ao longo de todo o livro sentimos esta tensão entre representar de modo natural ou formal, uma discussão que se tornou central com a chegada da fotografia muitos anos depois e acabou dando origem ao modernismo e toda a sua força criativa. Mas ainda hoje continuamos a discutir tudo isto, já não subjugados a visões esotéricas do mundo, nem mesmo a conceitos do que objetiva a arte, mas subjugados à impossibilidade da verdade científica.
Mas Pamuk mais do que centrado na verdade, está centrado no humano. O facto de ter estruturado o romance em capítulos atribuídos a cada um dos personagens, que falam cada um na primeira pessoa, parece inicialmente apenas uma abordagem estilística, mas é muito mais do que isso, é uma afirmação da sua visão do mundo, do modo como critica essa tentativa de então, de aniquilar o indivíduo, aniquilar a expressão pessoal, o Estilo, conceito da estética que se torna central e acaba estando no cerne da investigação do romance.
O livro de Pamuk grita pela força do indivíduo, pelos seus anseios, desejos, e vontades. Mais do que saber se é a verdade que enfrenta, o ser humano quer sentir-se. Cada um de nós é um ser, e por mais que gostemos e dependamos uns dos outros, estamos enredados em nós mesmos, buscamos compreender-nos antes de tudo o mais. Mais do que conhecer o real, precisamos de nos conhecer a nós mesmos, para assim podermos fazer os outros à nossa volta felizes.
“O Meu Nome é Vermelho” recordou-me por várias vezes Saramago e o seu “Memorial do Convento”, não por serem duas obras históricas, ou terem ambos um Nobel (2006 e 1998), mas pela força expressiva que imprimem ao ambiente e personagens, como as estruturam e tornam credíveis num tempo passado, tão real e tão cru, mas também porque em ambos o centro roda em redor da grande arte dos seus monarcas de então, a demonstrar mais uma vez que se alguma coisa perdura de todo o nosso esforço nestas vidas, é a arte que deixamos em legado.
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