Demasiadas coisas más, acabei o livro a bufar, mais ainda depois de um epílogo sobre escritas rabínicas! Opto por justificar esta minha impressão em quatro pontos, o primeiro central, dois menores, e por fim o maior problema deste livro.
"How to Read and Why" (2000) de Harold Bloom
Primeiro, este é um livro que não fala absolutamente nada sobre aquilo que o seu título propõe, ou seja, nada é dito sobre o Como, assim como nada é dito sobre o Porquê, de ler, literatura ou outra forma escrita qualquer. Bloom limita-se a mais uma vez, depois de o ter feito n vezes, a listar e dissertar sobre o seu cânone. No final do livro fica a ideia de que Bloom passou toda uma vida a ler literatura, apenas e só, nunca se tendo importado realmente em perceber o ser humano que lê, a sua biologia, a sua psicologia. A filosofia é importante, mas se queremos compreender o processo de leitura, e o porquê da sua importância, não é aí que estão as respostas.
O segundo ponto, menos relevante, é que Bloom defendendo que a literatura deve ser um prazer, faz o favor de dar conta dos conflitos principais nas obras, revelando todas as suas resoluções, e assim destruindo uma das grandes gratificações que se pode retirar da leitura de qualquer narrativa. Ora se o livro diz que procura instigar as pessoas na leitura, isto mais parece uma abordagem de quem está a falar para quem já leu, e se é para quem já leu, acaba por ser um livro sem sentido, já que muito pouco é acrescenta à leitura das obras.
Terceiro, Shakespeare. É uma caraterística académica, isto de trabalharmos tão profundamente uma área, um tema, uma obra, um autor, tanto que depois todo o mundo passa a ser filtrado por aí. É isso que aqui acontece, Bloom revela uma profunda obsessão com a obra de Shakespeare, citando-o num livro tão pequeno mais de 200 vezes. Não conseguindo libertar-se do mesmo, arrisca a dizer que depois deste nada mais de original foi criado na literatura!
Último ponto, o que verdadeiramente me fez perder a vontade de algum dia mais voltar a ler Bloom, tem que ver com o tipo de crítica realizada às obras. Bloom segue a linha de muitos outros académicos estudiosos de artes narrativas, como os dos estudos fílmicos, que é a de limitar a análise das obras às suas histórias, o que é dito pelo texto, deixando de fora as suas formas, ou seja o como o texto diz. Ora isto não é limitador, é uma autêntica amputação artística, que acaba tendo como efeito principal uma análises estética profundamente deficitária. Não dando conta do contributo artístico do texto, não é possível dar conta da real experiência da obra, a sua estética. Uma pessoa que limite a sua experienciação de uma obra à mensagem passada, à ideia veiculada, e não atenda ao modo como essa ideia é construída, arrisca-se a passar ao lado da arte em si.
Ora isto é tanto mais grave quando se trata de um livro que deveria apontar o "como" e o "porquê" de lermos literatura. Se o "porquê" se limita às histórias, existem histórias por todo o lado, porque razão haveriam as pessoas de investir vidas inteiras na leitura apenas para conhecerem uma história que podem conhecer num filme de duas horas?! Quanto ao "como", Bloom limita-se a listar o seu cânone, e para ele fica explicado o como fazer, basta ler aqueles livros por si indicados. Para além de ser muito pouco, é mesmo contraproducente, acreditar que vamos cativar pessoas para investir na literatura, não fazendo uma pedagogia mínima, não apenas sobre os ganhos efetivos da literatura, mas também sem explicar as complexidades que a leitura de determinadas destas obras contêm, dos requisitos que elas tomam como adquiridos pelo leitor, tudo isto é mau demais.
Fico mais descansado depois de ler a análise de Terry Eagleton no The Guardian, percebendo que não estou sozinho nesta ideia negativa da obra e do autor.
"How Apple Is Giving Design A Bad Name" é um texto fundamental, escrito por duas das mais importantes figuras internacionais do Design de Interação, Don Norman e Bruce Tognazzini, sobre os problemas de que hoje enferma o design da Apple. Aliás, o texto é tão bom e detalhado que merecia ter sido pago, e bem pago, pela Apple como consultoria externa. Vale a pena ler todo o documento, e refletir não apenas naquilo em que a Apple se transformou, mas também aquilo que continua a ser a essência do Design de Interação.
Vou começar pelo final do texto, o momento em que Norman e Tognazzini identificam aquela que eu acredito ser a origem do problema, e que está na seguinte frase:
“Industrial design is primarily concerned with materials and form, and this is the area in which Apple excels. Graphic design is supposed to be about aesthetics and communication, but Apple has emphasized appearance to the great detriment of the communication component.”
Ou seja, a Apple é hoje uma marca de excelência em Design Industrial, deixou de o ser em Design Gráfico, no sentido em que se perdeu no Design de Interação. Porque aconteceu isto? Julgo que a resposta dá pelo nome de Jonathan Yve. Durante anos Jobs vendeu-nos Yve como um visionário, mas eu só percebi concretamente quem era Yve quando li o livro “Jony Ive: The Genius Behind Apple's Greatest Products“ (2013). Foi aí que percebi de onde vinha, e ao que vinha, o que o motiva verdadeiramente. Nada tenho contra Yve, mas a sua filosofia de design é totalmente distinta da de Jobs, acima de tudo porque a base de Yve é o industrial. Aliás esta diferença entre os dois ficou patente quando Jobs morreu e Yve assumiu as funções máximas dentro da Apple, sendo que uma das suas primeiras ordens foi ditar o fim das metáforas nas interfaces, o esqueumorfismo que Jobs tanto idolatrava, propondo em seu lugar o "flat design”.
A Apple sempre teve problemas com o design de interação, principalmente porque como qualificou Dan Saffer em "Designing for Interaction", optou por uma abordagem centrada no Génio. Ou seja, uma pessoa iluminada capaz de ter ideias suficientemente empáticas que todos os outros vão desejar ter. Isto acontecia com Jobs muitas vezes, apesar de não ser infalível, mas está longe de ser o terreno de Yve, que é antes de mais um designer industrial. É alguém muito bom para desenhar o hardware da Apple, como temos visto desde que ele está na Apple, mas não é a pessoa indicada para estar à frente de todo o design, mais concretamente do de interação do OS.
Como dizem os autores, não culpem a Bauhaus ou Dieter Rams, os princípios seguidos hoje pela Apple nada têm que ver com 10 princípios de Rams, e nem sequer com os princípios originais do design do Macintosh que foram centrais no suporte do chamado design de interação focado no génio, em vez de baseado nos utilizadores. Mas como se pode ver no quadro abaixo esses princípios basilares foram completamente deturpados, tudo em nome da obsessão estética, a forma acima da função.
Quadro comparativo dos princípios de design, entre 1995 e 2015
O que mais me choca neste interessantíssimo quadro, para além do reduzido número de princípios que sobraram, depois do desbaste motivado pela obsessão pela simplicidade, é a inversão de prioridades, com a Metáfora a trocar de posição com a Estética. Imperdoável, e Yve sabe tão bem isto, contudo com o tempo claramente que foi perdendo o contacto com a realidade. Mesmo em termos de design industrial, veja-se o último Mac apenas com uma entrada/saída, apesar de ser um feito de design e engenharia, é-o totalmente à custa da funcionalidade e dos seus utilizadores. Yve, ou melhor a Apple, precisa de compreender que não está a desenhar uma jóia mas uma ferramenta de trabalho.
Problemas identificados por Norman e Tognazzini
“A woman told one of us that she had to use Apple’s assistive tool to make Apple’s undersize fonts large and contrasty enough to be readable. However, she complained that on many app screens, this option made normal fonts so large that the text wouldn’t fit on the screen. It’s important to note that she did not have defective vision. She just didn’t have the eyesight of a 17-year-old.”
“So often, the user has to try touching everything on the screen just to find out what are actually touchable objects.”
“the inability to recover after an undesired action. One way to do that is with undo, the addition of which to the original graphical user interfaces was brilliant. Not only did it allow for recovery from most actions, it gave users the freedom to try new actions, confident of their ability to recover if the result was not to their liking. Alas, Apple, in moving to iOS, initially discarded this essential element of system design (..) So guess what happened? People complained. En masse. So they put undo back in, sort of: All you have to do to undo is to violently shake your phone or tablet. But undo is not universally implemented, and there is no way to know except by shaking.”
“Apple products deliberately hide complexity by obscuring or even removing important controls. As we often like to point out, the ultimate in simplicity is a one-button controller: very simple, but because it has only a single button, its power is very limited unless the system has modes. Modes require a control to take on different meanings at different times, leading to confusion and errors.”
Diferenças entre formação de designers, segundo Norman e Tognazzini
“In the design arena, interaction designers trained in psychology know the principles of conceptual models, clarity, and understandability, while those trained in computer science may not, and those from the graphic design field seem to think that interaction design means websites, and they often fail to understand either programming niceties or human-computer interaction.”
O que se perdeu no processo, segundo Norman e Tognazzini
O segundo ponto aqui destacada, da perda do feedback é um autêntico tiro no pé da Apple. Como é possível extrair o feedback, se ele não apenas é central na interação, como é a base de qualquer processo de comunicação? Claramente um indicador de que a Apple não pretende mais comunicar, mas apenas transmitir. Outro princípio fundamental é o 5º, a Apple deixou de encorajar o crescimento das pessoas, está apenas focada na transmissão, como tal no consumo por parte das pessoas (iTunes, iPad, Apple TV, etc.) e não no que elas possam criar.
“Good design encourages people to learn and grow, taking on new and more complex tasks once they’ve learned the basics. Snapshot takers grow to become photographers, personal journal writers become bloggers, and children try programming and end up seeking careers in computer science. For decades, encouraging learning and growth was the life blood of Apple, a principle so important that it was universally internalized and understood.”
Matthew Inman criou sozinho um dos sites de cartoons mais visitado da web, The Oatmeal, sendo capaz de gerar mais de quatro milhões de visitas ao longo de um mês. A banda desenhada de hoje, "It's going to be okay" é baseada na história real de uma personalidade bem conhecida dos amantes de séries de ficção científica televisivas. Se a personagem é um ícone e a história profundamente inspiradora, o mais interessante para mim acabou sendo a belíssima arte sequencial criada por Inman.
Tal como definida por Eisner e McCloud a arte sequencial delimita-se no conjunto de imagens desenvolvidas em sequência para contar uma história, normalmente mais ligada à banda desenhada, mas podendo aplicar-se ao cinema e cinema de animação, já que estes não passam de 24 imagens por segundo, criando na nossa mente uma mera ilusão de movimento. No caso da banda desenhada, a sequência pode surgir de qualquer forma, na vertical, horizontal, direita para esquerda, esquerda para direita, sendo apenas relevante que exista sequência entre as imagens.
Ora a sequência apresentada nesta banda desenhada acontece na vertical e em quadros únicos, o que pensado de raiz pelo autor, abre espaço a toda uma potenciação do storytelling, nomeadamente na gestão da informação e expectativas que se vão criando na cabeça do leitor. Isto não tem nada de novo, o que aqui se releva é antes a mestria com que Inman geriu toda a sequência de imagens e textos, controlando a história e as nossas emoções com um ritmo absolutamente perfeito.
Uma animação literalmente sumptuosa. Toda a direcção de arte trabalha de forma soberba a luxuria da relação de sangue em questão, criando todo um universo, que não sendo propriamente inovador é altamente eficiente e consistente na criação do sentimento que subjaz à personagem principal. Mais um belíssimo trabalho de alunos da escola francesa de cinema e animação George Méliès.
Temos todo um conjunto de cenários barrocos, cheios de folhos e formas curvas, cobertas por contrastes de luz intensa e volumosa, tudo toldado por tons de vermelho sangue. As personagens assumem uma caracterização particular, autoral, fina e detalhada, de grande coerência entre si.
O menos conseguido, ainda que falemos de uma curta de 3 minutos, acaba sendo a história, pelo cliché, assim como pela tentativa gorada de sugestão, que acaba por passar mais como explicação. Ainda assim a narrativa trabalha em consonância com toda a restante arte, acabando por funcionar como a necessária cola e justificação da criação do universo.
"Les Liens de Sang" (2015) de Sophie Kavouridis, Manon Lazzari, Marion Louw, Simon Pannetrat e Thomas Ricquier
Nos últimos anos temos assistido à automação de tarefas um pouco por todas as esferas da atividade humana. Qualquer atividade que requeira repetição de passos, sem grande variabilidade, é rapidamente sujeita a processos de informatização que permitam a sua automação por máquinas. Ora se existe área onde isto não parece fazer muito sentido é na criação artística, já que aquilo que se espera neste domínio é sempre a criação de novo, diferente, original. Contudo parece que já nem sempre assim é.
O mais recente exemplo surgiu esta semana no campo da criação de ambientes virtuais em tempo real, para usar na plataforma Unreal. Trata-se do Landscape Auto Material criado pela VEA Games, e que permite criar todo um ambiente florestal, altamente original de cada vez, porque personalizado em termos de posição e dimensão, assim como elementos e texturas. Basta arrastar o rato para rapidamente criar um trilho com ervas, pedras, arbustos, riachos, assim como criar relevos. É o mais próximo que já vimos da criação artística através do clique de um botão.
Como dizíamos acima isto não é novo, em 2010 tínhamos visto a Adobe apresentar a ferramenta Content Aware que faz algo muito parecido em fotografia 2d no Photoshop. Estamos no fundo a falar de algoritmos que conseguem usar informação sobre objetos pré-existentes para criar novos. Aliás o próprio mundo do webdesign já imensamente fustigado pelas gigantescas bases de dados de templates, começa também agora a conhecer ferramentas deste tipo, com IA que se adapta às necessidades mais específicas de cada utilizador. Por um lado tudo isto parece em certa medida ficção científica, por outro começa mesmo a parecer o início do fim das artes, mas será mesmo?
Na verdade não. Primeiro, porque falamos de atividades criativas altamente repetitivas, profundamente orientadas a um objetivo, ou mesmo tarefa. Nada nestes processos é muito criativo, tendo em conta a quantidade de objetos semelhantes criados antes. Ou seja, de que modo podemos separar hoje o desenho de um website, ou de um terreno florestal 3d, do esculpir de uma caneca de barro? Na verdade nada, e por isso mesmo é que estas ferramentas surgem, e cada vez teremos mais. Mas isto não quer dizer que deixaremos de precisar de criadores de universos de paisagens virtuais, ou de criadores de websites.
Simplesmente porque estas ferramentas são apenas e só tecnologias criativas, tecnologias que trazem embebidas em si, conhecimento de suporte à criação. Ou seja ferramentas que permitem a quem nada percebe do assunto rapidamente construir algo, e assim aceder ao universo em questão, encontrando-se em termos criativos. Assim como permitem a um criativo profissional rapidamente executar algumas das tarefas mais repetitivas, sem contudo deixar nunca de executar o seu trabalho, aquele pelo qual verdadeiramente é pago, a ideação e a comunicação, ou seja a capacidade de pensar de forma única, inovadora, e de transformar esse pensar, a imaginação, numa forma real e expressiva.
Por mais automação que venhamos a criar, a ideação e sua expressão são uma espécie de último reduto intransponível. Mesmo que venhamos a conseguir dotar máquinas de consciência um dia, aí passaremos a ter entidades por detrás dos processos de ideação, o que implicará que esses processos continuarão a não ser catalogados de automação, mas sim de criação, ainda que não sejam fruto de uma mente humana.
"UE4 Pack: Landscape Auto Material" (2015) da VEA Games
Li centenas de crónicas de António Lobo Antunes (ALA), contudo este é o seu primeiro romance que termino. Não que me tenha esforçado por ler outros, confesso que outros antes não me motivaram suficientemente, nomeadamente pelo surgimento constante do tema da guerra colonial, que me provoca algum distanciamento. Este perseguia-me quase desde que saiu, pois gostei imenso das primeiras páginas, o retrato que ALA ali desenha abre para uma espécie de cenário tipo do cinema português dos anos 1990: Urbano, melancólico, pausado, reflexivo, e profundamente introspectivo.
“Não É Meia Noite Quem Quer” vem dividido em três grandes capítulos, por sua vez divididos em 10 secções cada, em que cada capítulo representa um dia, sendo que a acção decorre de sexta a domingo, tudo distribuído por 450 páginas. A escrita de ALA não é simples, desde logo porque trabalha em fluxo de consciência, estamos todo o tempo dentro da cabeça da protagonista, com excepção apenas para duas secções, em que somos convidados a entrar na mente de uma amiga e noutra vez do irmão que tinha ido para a guerra. Deste modo temos uma escrita entrecortada e fragmentada, sem contudo deixar de nos seduzir pela beleza do ritmo e texto, quase por vezes a roçar o poético.
A acção decorre nos anos 1990, a protagonista tem 52 anos e é professora, ao longo do livro vamos ficar a conhecer os seus três irmãos: o irmão que foi para a guerra e voltou louco; o mais velho que se suicidou; e o irmão surdo que vive revoltado. A mãe e vizinhas, o pai e seus vícios, a sua infância e amigas, o encontro do marido, a perda de uma filha que não chega a nascer nem permite que outras nasçam, a perda do marido que se deixa levar por outra, até à perda de uma parte do seu corpo levada por uma mastectomia.
Se o primeiro capítulo (sexta-feira) nos leva como uma onda, parecendo difícil parar de ler, queremos não apenas conhecer mais quem nos fala, mas também deleitar-nos com a escrita do autor, no segundo capítulo (sábado) muito disto perde-se, voltando apenas a reencontrar-se no terceiro momento (domingo). Deste modo fica-me uma sensação, no final da leitura, de falta de edição, o que havia para contar, para nos fazer sentir, podia ter sido conseguido em muito menos páginas, nomeadamente obliterando muito daquilo que está no segundo capítulo, e algumas partes do terceiro e até primeiro.
São vários os momentos que perturbam a leitura, e criam distanciamento, por serem extemporâneos, dos quais o mais saliente acontece o final do segundo capítulo, com toda uma secção a ser ditada pelo irmão que foi para a guerra em África, na primeira pessoa. Passamos do universo que acima defini, para outro completamente distinto, não apenas porque em termos de cenário é tão longíquo, mas porque o tom se transforma radicalmente, passando da melancolia à violência brutal, sem que isso tenha uma implicação direta na personagem principal. Ou seja, a manutenção deste todo, aparentemente sem edição, resulta tão pouco homogéneo acabando por retirar força à obra.
Efeitos desta falta de coerência acabam por resvalar e contaminar outros elementos, tais como a progressão narrativa, que se vai desvelando simplista porque previsível, nomeadamente dados os clichés que vão surgindo aqui e ali. Se a protagonista se caracteriza por via da caracterização dos demais, esses são por vezes tão óbvios que incomodam, como o irmão ensandecido que trouxe traumas da guerra, ou a mãe que engana o marido com o canalizador! Não se percebe a lógica de tão pobres construções, que acabam por se misturar e intensificar com o tom muitas vezes altivo, elitista, com que se vai descrevendo a “gentinha” ou os “pretos”, mesmo que sendo pela boca de personagens na primeira pessoa.
“Não É Meia Noite Quem Quer” acaba sendo uma obra a considerar, por ter o autor que tem, e consequentemente apresentar por várias vezes rasgos de escrita magistral, como a última secção do primeiro capítulo, toda num parágrafo que se prolonga por 15 páginas, que nos dá vontade de ler num único trago. Por outro lado, toda esta genialidade artística acaba por conferir toda uma dimensão de respeitabilidade que parece ter impedido a quem devia ter exercido o seu trabalho criticamente e assim contribuir para que o bom pudesse ter chegado a ser excelente.
Rishi Kaneria criou um belíssimo ensaio audiovisual, “Why Props Matter”, no qual dá conta da importância dos adereços no cinema. Apesar de focado no cinema, serve qualquer outra arte narrativa (teatro, literatura ou videojogos), uma vez que a análise se foca no modo como estes impulsionam o contar de histórias.
De forma geral os adereços servem de caracterização, ou melhor de exteriorização dos personagens. Ou seja, as artes narrativas visuais sofrem do problema de terem de traduzir em imagem sentimentos de pessoas, ações internas, o que é por si só todo um trabalho de concepção, desenho e escrita para chegar ao melhor modo de o conseguir. Como posso mostrar que uma pessoa está impaciente ou nervosa? Mostrando-a a olhar incessantemente para o adereço “relógio”. O adereço contém em si mesmo uma carga significativa suficiente para traduzir visualmente aquilo que vai na cabeça do personagem.
Claro que fazer isto com sentimentos universais é até simples, ou quando simplesmente queremos dar conta dos objetivos externos ou das ação necessárias para os conseguir, mas quando queremos ir ao fundo da psyche do personagem, quando precisamos de traduzir complexidade interna e elaborada como o remorso, a vergonha, ou dar conta do crescimento e amadurecimento de um personagem, tudo fica mais complicado, e os adereços começam a fraquejar.
Não é por acaso que muitos dos exemplos aqui dados são do cinema de hollywood, um cinema reconhecido pela acção, pela aposta nos problemas externos dos personagens das suas histórias. "Como diz Kaneria, os adereços são objetos com que qualquer pessoa se consegue relacionar."
Mas quando queremos compreender com que se debate internamente uma criança abandonada pelos familiares, uma jovem violada por um pai, ou uma mãe que perdeu um filho, temos de recorrer ao cinema alternativo, nomeadamente independente ou europeu. E aí os adereços continuam a ter relevo, mas dada a complexidade que representam, a sua leitura é muito menos direta, deixa de existir um acesso facilitado ao mundo representado, ficando tudo muito mais dependente daquilo que o espetador consiga fazer com eles. No fundo assistimos à transformação dos adereços como objetos de representação em objectos de simbolização.
Alguns desses símbolos podem até tornar-se ícones após o seu uso numa obra, por via do contexto narrativo que passa atribuir-lhe valor direto, mas inicialmente surjem numa forma puramente simbólica, sem qualquer objetivo icónico, como uma roda de charrete em "O Dia do Desespero" (1992) de Manoel de Oliveira, ou uma árvore num descampado em “The Sacrifice” (1986) de Andrei Tarkovski.
“Why Props Matter” (2015) de Rishi Kaneria
Agradeço ao Fernando Martins que teve a amabilidade de me fazer chegar este ensaio.
Tinha enormes expectativas em relação a “Assassin’s Creed Unity” essencialmente por retratar um dos períodos históricos que mais admiro, a Revolução Francesa. É um período fulcral da era moderna que ficou marcado pelo grito: “Liberté, Egalité, Fraternité”. Parece um simples mantra, mas foi imensamente relevante na mudança das nossas vidas, o destronar das hierarquias sociais, ainda que muito se tenha revirado novamente por via da economia de mercado, mas o mundo mudou e isso temos de o agradecer a quem lutou pela mudança, e que nos permite hoje gritar: “Viva a Liberdade”.
“Unity” tem imensos problemas, ainda assim e não desiludindo os fãs da série, habituados a muitos desses problemas, consegue impactar fortemente todos aqueles que tenham um mínimo de gosto por História, já que é nesse campo que o artefacto brilha, com o mais intenso poder da simulação virtual. É impossível entrar no jogo com indiferença, porque facilmente sentimos ter regressado a 1789, toda a técnica e tecnologias de simulação foram trabalhadas ao mais alto nível da representação artística visual, gerando-se um espaço, ainda que virtual, verdadeiramente único.
A Simulação,
Existem dois componentes na simulação que é "Unity", que facilmente nos fazem abrir a boca de espanto, o detalhe arquitectónico da cidade e a vida que a habita. A Ubisoft não se poupou a esforços, e apresenta neste jogo um mapa realizado à escala real, a partir da Paris real. Podemos caminhar da Sorbonne ao Louvre ou Notre-Dame dentro do jogo, como se o fizéssemos em Paris, como se estivéssemos no Google Maps, com a diferença de que tudo aquilo que nos rodeia diz respeito a uma cidade de há 200 anos atrás. Não se ficando apenas pelas fachadas, como acontecia nas gerações anteriores, mas indo ao detalhe no desenho dos interiores que são também navegáveis, em muitos dos edifícios monumento, mas também bares, casas, quartos, etc. Existe todo um trabalho de análise histórica e artística que teve de ser realizado e que é absolutamente espantoso.
Por outro lado, todo este cenário, toda esta cidade é habitada por milhares de “pessoas” com os mais diversos guarda-roupas da época, ocupando as mais diversas profissões - agricultores, lenhadores, pescadores, sapateiros, vendedores, barmen, padres, políticos, militares, prostitutas, ladrões, magistrados, etc. - e dos mais diversos estratos sociais, do rei ao vagabundo de rua. A dinâmica gerada em todo o mapa é absolutamente impressionante, criando uma verdadeira impressão de orgânico, de um sistema vivo.
Esta simulação é o melhor do jogo, disso não tenho a menor dúvida, pecando apenas por uma interatividade mais limitada à navegação, permitindo pouca manipulação e quase nenhuma participação. Contudo esta limitação acontece apenas na relação direta com o mundo, sendo totalmente colmatada pela resposta ultra-abundante de missões alternativas espalhadas por toda a cidade, com grande variação de tipologia (enigmas, salvamentos, assassinatos etc.), assim como de grau de dificuldade, e ainda algumas com a variante de jogo em modo cooperativo.
A Arte,
A simulação só é o melhor de "Unity" porque tem ao seu serviço uma das melhores equipas de artistas 3d de toda a indústria, liderada pelo fantástico Raphael Lacoste. O brilho desse trabalho começa por surgir logo com o sistema climatérico, que opera sempre nuns tons quentes. A chover ou a fazer sol o clima serve para adornar e intensificar a sensação de vida, por via da luz que trabalha na produção de sombras com sol, ou nos rasgos e brilhos dos reflexos da água quando um céu nublado. Claro que este sistema funciona assim porque tudo é extremamente trabalhado e filtrado em termos de correcção de cor, o que garante não só a uniformidade e coerência da composição, mas garante acima de tudo uma saturação intensíssima, ainda que sem nunca ultrapassar a fina linha do espalhafatoso.
Por baixo do clima e cor, surge então o trabalho mais árduo de texturas e shaders, que garantem o realismo, e aqui em concreto o sentimento de ter viajado no tempo, estar em Paris 200 anos antes. São as paredes brancas sujas, de madeira ou simplesmente pedra pesada, é o chão e as suas terras batidas de vários tons, com água ou levantando pó, é a natureza com as suas diferentes árvores, flores, jardins, ervas ou palha seca, são as roupas de cada personagem que perfazem um guarda-roupa assombroso, são os próprios tons de pele e cabelo. Na sua generalidade tudo isto é estático, mas uma parte considerável é animada, e quando o é, nada é deixado ao acaso - andar, baixar, saltar, mergulhar, nadar, apanhar, rodopiar - tudo se move com enorme leveza mas grande credibilidade. Claro que tendo tanto para mostrar, é preciso encontrar a melhor forma de o fazer, e nisso também "Unity" faz muito bem, a câmara está sempre, de forma inteligente, à procura da melhor composição da ação, sem no entanto descurar o impacto estético do seu enquadramento.
Do todo criado pela arte, emergem inevitavelmente os monumentos parisienses, a sua recriação numa escala 1:1, o que trabalhado sob este manto de mestria artística acaba por tornar o mundo de jogo algo monumental. Poder ver de cima de telhados, passear em redor, escalar aos seus pontos mais altos, entrar e escrutinar todos os seus cantos, é algo imperdível para quem quer que alguma vez tenha visitado, ou tenha desejado visitar Paris. Desde a magnificente catedral de Notre Dame, ao Palácio de Montmartre, passando pela Sorbonne, o Jardim das Tuileries, o Panthéon, ou o Louvre até ao próprio Palácio de Versailles, é toda uma viagem turística e educativa ao mesmo tempo que profundamente gratificante. Neste plano "Assassin’s Creed II" era até agora imbatível, mas aqui foi ultrapassado, não sé pelo que a tecnologia permite, mas também por todo o empenho colocado na sua criação.
A Narrativa,
No campo formal da narrativa nada de novo, temos uma estrutura linear que não dá qualquer hipótese de participação ao jogador, recorrendo às cutscenes para contar e fazer progredir a história. Esta é uma estrutura que apesar de limitada em termos de possibilidades e escolhas para o jogador, continua a servir os propósitos da grande indústria, garantindo um maior controlo autoral do fluxo emocional da história.
Em termos da história que Unity conta, temos um bom arranque, mas que rapidamente se perde sem nunca mais nos conseguir verdadeiramente entusiasmar. O início em Versailles com Arno criança, enfrentando a morte do seu pai é inspirador, prometendo muito, mas depois disso acabamos por assistir a uma mera sucessão de eventos de vingança, em que cada assassinato vai desvelando, por via das memórias, um novo culpado escondido, tal boneca russa, o que acaba por nos desligar do personagem. Os grandes momentos da Revolução, apesar de servirem de linha condutora a todo o jogo, raramente envolvem em profundidade o que estamos a fazer, raramente somos levados a sentir aquilo que se sentia naquelas ruas, algo que contrasta fortemente com tudo o que vinha sendo anunciado nos trailers cinemáticos (abaixo). Alguns dos melhores momentos acabam por acontecer, tal como noutros AC, quando surgem figuras emblemáticas, neste caso Marquês de Sade, Madame Tussaud ou Napoleão Bonaparte.
Uma das melhores inovações na história de "Unity" foi o facto da Ubisoft ter ouvido os jogadores, e ter praticamente eliminado a Abstergo e a realidade virtual da equação. Em Unity raramente saímos do ambiente histórico, e raramente somos recordados de que estamos a jogar uma simulação. As poucas vezes em que acontece, serve mais para mostrar Paris em épocas diferentes.
O Jogo,
Apesar de ter sido acusado em várias críticas por nada se ter alterado, não é bem assim. É verdade que em traços gerais continuamos a jogar um Assassin’s Creed, mas existem dois elementos que foram alterados em profundidade e que levam a série numa direcção nova, para além do que tínhamos. O primeiro, menos relevante, é que o jogador é manifestamente recompensado quando opta por jogar furtivamente. Ou seja, não só o modo de combate continua a apresentar bugs, como é muito mais duro e difícil, o que nos leva a optar muitas vezes por ser furtivo. Por outro lado em termos de pontos internos do jogo, para progredir no ranking de assassino, somos mais recompensados quando agimos pela calada. As próprias competências que podemos ajustar no nosso personagem à medida que vamos progredindo, dão mais relevo ao “stealth” do que ao “melee”, com por exemplo a capacidade para percepcionar as pessoas através de paredes tal como em “The Last of Us”, ou ainda a possibilidade de assumir a identidade de outros personagens, à lá “Dishonored”.
O segundo elemento, tem que ver com o design das missões, e segue mais uma vez uma lógica “Dishonored”. Os grandes assassinatos decorrem em grandes edifícios, nesses existem vários pontos possíveis de entrada, que por sua vez se desdobram em várias possibilidades de se chegar ao indivíduo, o que abre todo um modo interativo que eleva o patamar narrativo do jogo, permitindo que seja o jogador a desenhar o modo como cada um dos sujeitos morre. Ou seja, podemos decidir entrar por uma janela lateral, pelo telhado, pelas catacumbas, ou por uma porta lateral fechada a cadeado, cabe a nós encontrar o melhor acesso ao grande puzzle espacial, parar para olhar o todo e encontrar a melhor solução. Não sendo revolucionário, é um enorme passo em frente na série, na direcção de maior autonomia e participação, e que em certa medida compensa o lado mais linear da narrativa.
Os problemas,
Os bugs, problemas com cadeiras, mesas, muros, problemas com entradas em janelas, com suspensão. São inúmeros os NPCs que vão desaparecendo e reaparecendo, que ficam suspensos no ar, que param em loop e não reagem. Tudo isto torna-se mais irritante quando acontece no modo combate, invalidando muitas das nossas ações, frustrando as expectativas. Por outro lado os “loadings” ao longo de todo o jogo - sempre que acaba uma memória, fazemos uma fast travel, ou reentramos no jogo - são demasiadamente longos, muitas vezes mais de um minuto, perturbando a jogabilidade e narrativa.
Na generalidade,
“Assassin’s Creed Unity” é uma experiência única, poder vivenciar uma simulação da Revolução Francesa com estes níveis de extensão e profundidade, faz deste um dos jogos obrigatórios desta geração. Dentro da série e por este motivo, ombreia com o melhor, "Assassin's Creed II" que nos tinha dado acesso ao belíssimo mundo da Renascença Italiana, perdendo em parte na jogabilidade e história.
Já aqui falei antes de "Middle-earth: Shadow of Mordor" e também da Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, mas agora venho dar conta da ligação entre ambos, estabelecida por Michael Plater, CEO da Monolith Studios, numa talk dada na DICE este ano, "Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World", na qual desvelou um pouco mais do véu sobre o sistema que suporta a jogabilidade e que ficou conhecido como Nemesis.
No essencial Plater vem dizer que a base de trabalho para o desenho do jogo partiu da teoria de Deci e Ryan, ou seja, do triângulo motivacional suportado pela Competência, Autonomia e Ligação. Deste modo, em vez de se limitarem a seguir os vagos e ambíguos desígnios do Fun ou Flow, agarraram-se a uma teoria com parametrização clara, e procuraram a partir daí conceber toda a experiência do jogador. Para tornar a base de Deci e Ryan mais diretamente presente no desenho de jogos, conectaram-na com a teoria dos RPGs, a GNS (Gamist, Narrativist, Simulationist), uma teoria que vem sendo desenvolvida por Ron Edwards. A ligação resultou na essência do design de "Middle-earth: Shadow of Mordor":
Competence <-> Gamist (jogo e mecânicas)->
Autonomy <-> Simulationist-> (estratégia e credibilidade)
Relatedness <-> Narrativist-> (foco na história)
Assim temos de um lado a autodeterminação do jogador e do outro o seu resultado em termos concretos do artefacto. Plater não vai ao detalhe que gostaríamos nesta triangulação, focando-se mais sobre os dois aspectos mais salientes do sistema: memória e emergência. Ou seja, a forma como eles conseguiram desenvolver o,
“Empowering players to tell stories, not us telling them (..) We had to give people detailed anchors so their imagination would fill in the gaps (..) We had to understand how much was enough to give…”
Isto foi conseguido por meio da criação de estruturas de memória de eventos passados, que permitiam aos jogadores sentir a ligação com os personagens, e desse modo exponenciar a sua motivação. Plater apresenta um vídeo de um jogador a jogar, no qual podemos ver como a memória de conflitos anteriores cria a ligação, e como esta acaba sendo responsável pelo enorme envolvimento deste com o jogo.
Por outro lado o modo como os designers suportaram a sistematização das memórias, apesar de se referir a base narrativa, não foi baseada numa lógica como a literatura, o cinema ou a televisão, mas antes no desporto, nomeadamente nas histórias que se criam à volta deste. Não deixa de ser algo com que não nos tenhamos já debatido, já que um jogo não é um filme, mas tem muito deste, assim como não é um desporto, mas também tem muito desse. Dessa forma as memórias, sendo bastante simples diga-se, acabaram por se servir de uma lógica desportiva, que trabalha numa base de conflitos de hierarquia, domínio e tribalismo.
Uma das questões levantada por Plater que surge por via desta repescagem de eventos passados no âmbito de um jogo em mundo aberto e sua recolocação em jogo, foi o da necessidade de improvisar on-the-fly argumentos para responder ao jogador, daí que tenham recorrido para o design, a um conjunto de técnicas de stand-up e teatro de improviso para dar suporte à credibilidade dos NPCs.
"Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World" (2015) Michael de Plater