Ao iniciar a leitura deste último volume ganhava uma consciência mais clara das motivações de Proust no encetar desta colossal obra, mas ao chegar a meio do livro as minhas explicações eram não apenas confirmadas, mas aprofundadas pelo próprio Proust que resolve dedicar 20 páginas a explicar o sentido da própria obra. Surpreendeu-me, porque não deixa espaço à interpretação, é muito claro e honesto. Proust arranja uma forma muito directa de explicar o sentido do texto, o sentido da arte, e o sentido de toda a sua vida. É um momento magistral, de reconhecimento do todo, em que as páginas se convertem num espaço-tempo de realidade, deixam de ser mero papel, deixam de ser mera história contada, e passam a fazer parte da nossa vida, enquanto realidade verdadeiramente vivida, porque num tempo resgatado por três mil páginas. É o pináculo de “Em Busca do Tempo Perdido”, em que percebemos o que é o "Tempo Perdido", e com o qual nos "Reencontramos". Muito sinceramente não pensei sequer que pudesse ser explicado, que houvesse mesmo essa necessidade, ou vontade por parte de Proust, mas ali de frente àquelas palavras, tudo ganha uma dimensão nova, uma conexão de enorme pureza com o autor, e que imbuído do facto de já não se encontrar entre nós, gera uma carga de enorme melancolia.
Escrevia então eu, antes de chegar àquele momento de rasgo elucidativo, que Proust vai amiúde deixando as suas notas sobre o valor da arte, nomeadamente a pintura, mas cada vez mais a literatura, da sua relevância enquanto registo e ênfase da realidade vivida de todos os dias. Nesse sentido percebe-se que Proust almejava com esta sua obra criar uma espécie de diário literário do seu mundo, para assim se poder dedicar a “pintar” imagens do mundo em que vivia, legando-as a quem viesse depois. Mas não é um registo de autobiografia que se procura aqui, até porque se vamos sabendo muito sobre a psicologia do autor, nada se diz sobre os seus conhecimentos em concreto, o que sabemos dessa parte está apenas implícito no texto, não sendo atribuído ao narrador/personagem principal, Marcel, mas que sabemos pertencer a quem escreve, ou seja Proust.
Neste sentido quando se procura analisar a obra de Proust, em busca de chaves descodificadoras ou pólos de ênfase, podemos dizer que o principal será mesmo a relação do sujeito, do "Eu", com o mundo que o rodeia, a "Sociedade". Daí que o título da obra busque isso mesmo, a análise do tempo dessas relações, já que elas apenas existem no tempo. As memórias são assim relevantes, mas mais do que elas são o seu registo. Proust tinha receio de morrer sem terminar a obra, porque provavelmente sentiria uma necessidade de passar a registo aquilo que lhe ia no fluxo da consciência e memória, sabendo que depois de morrer, tudo se esvairia, e que a escrita era a única que poderia permitir que aquelas ideas, aquele tempo, continuassem vivos, além da própria vida.
Quando chego então ao miolo do livro, e Proust começa a dissertar sobre o que diferencia as memórias voluntárias das involuntárias, quando ele assume uma franqueza desmedida e se abre sobre o fundamento de todos aqueles tomos escritos, caio a seus pés, a minha sintonia era plena, e Proust propiciava-me ali um dos momentos mais belos de reconhecimento do devir. Acreditando ser aqui que desemboca toda a leitura, o sentido da "Busca", marco os excertos e explicações, que se seguem como potencial spoiler, a ler por quem já leu, ou tem muitas dúvidas que algum dia lerá, ou procura uma motivação para empreender a "tarefa".
------ Potencial spoiler ---------------------------
“A felicidade que acabava de experimentar era efectivamente a mesma que sentira ao comer a madalena, mas então adiara a procura das causas profundas dessa alegria. A diferença puramente material estava nas imagens evocadas; um azul profundo inebriava-me os olhos, impressões de frescura, de luz deslumbrante, giravam junto de mim e, no meu desejo de as agarrar, sem me atrever a mover-me como quando sentia o sabor da madalena tentando fazer com que viesse até mim o que ela me recordava…” p.187Este parágrafo marca o início do climax, seguindo depois para a distinção entre a memória voluntária e involuntária,
Voluntária: “contemplara [..] do pátio ensolarado da nossa casa em Paris, ora a Praça da Igreja de Combray, ora a praia de Balbec, como se ilustrasse a luz daquele dia folheando um caderno de aguarelas que representavam os diversos lugares onde estivera [..] a minha memória afirmava sem dúvida a diferença das sensações, mas não fazia mais do que combinar entre si elementos homogéneos” (p.193)
Involuntária: “Não se passara a mesma coisa com as três recordações que acabava de ter e em que, em lugar de exprimir uma ideia lisonjeira do meu 'eu', pelo contrário, quase tinha duvidado da realidade actual desse 'eu'." (p.193)
“basta um ruído ou um cheiro, já ouvido ou aspirado em tempos [‘sabor da madalena molhada’, ‘ruído metálico de colher a bater no copo’ ‘sensação debaixo do pé provocada por pedras desiguais’, ‘tinir de copos’], o sejam de novo, simultaneamente no presente [o lugar em que acontece a memória] e no passado [‘quarto da minha tia Octave’, ‘carruagem de comboio’, ‘baptistério de São Marcos’], reais mas não actuais, ideais mas não abstractos, e logo se liberta a essência permanente e habitualmente oculta das coisas, e o nosso verdadeiro “eu” (que, às vezes desde muito tempo antes, parecia morto, mas que não o estava por completo) desperta, anima-se ao receber o celestial alimento que lhe é trazido.” (p.193)Isto de que nos fala Proust, são no fundo as suas mais belas metáforas, mas que este acaba por admitir nesta passagem que só podem acontecer por recurso à memória, ou seja à experiência de vida. Não podem ser criadas, ou mesmo recriadas, acontecem de forma involuntária, surgem-nos à consciência pela sua intensidade e essência. Sãos os momentos vividos e únicos de cada um de nós, aquilo que nos torna subjectivos, auto-motivados, e dotados de consciência.
Proust segue depois para o questionar do como fazer para fixar estas memórias, impressões, que só se podem sentir desta forma, involuntária. Proust afirma que reviver as experiências de novo, aqueles lugares - Combray, Veneza, Balbec - não lhe traziam aquele sentir, porque na sua presença não era capaz de as sentir por completo. A presença, o momento em que se experimenta, não se sente verdadeiramente, e Proust compara com o que sentia o narrador com Albertine, que quando a tinha em seu poder, perto de si, nada sentia, apenas a sentindo completamente, quando ela estava fora do seu alcance. Deste modo Proust avança então com a explicação cabal da razão de ser do título, mas também da razão de ser todo este livro:
“A única maneira de saborear melhor era tratar de conhecê-las [as memórias involuntárias] mais completamente, onde se achassem, isto é, em mim mesmo, torná-las claras até nas suas profundezas.” (p.197) “tentando fazer sair da penumbra o que sentira, convertê-lo num equivalente espiritual [..] Ora este meio, que me parecera o único, que outra coisa seria senão fazer uma obra de arte? [..] “a sua característica primacial era a de que eu não era livre para as escolher [as memórias], de que elas me eram dadas tais quais eram. E sentia que isso devia ser a marca da sua autenticidade. Não fora eu a procurar no pátio as duas pedras da calçada irregulares em que tropeçara. Mas, justamente, a forma fortuita, inevitável, como a sensação fora reencontrada atestava a verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, visto que sentimos o seu esforço para subir até à luz, visto que sentimos a alegria do real reencontrado” (p.199)Ou seja, escrever sobre. Proust tinha dito lá atrás, noutro volume, que a arte era a única forma de recortar a experiência, já que o momento de cada experiência era demasiado abrangente e pouco profundo, e assim inexpressivo. Temos aqui a defesa da arte, mas a defesa de uma arte de essência, ou seja, uma arte que preserva, regista ou fixa em si as experiências mais pessoais que um ser humano pode sentir.
“Assim, chegara já à conclusão de que de modo algum somos livres diante da obra de arte, de que não a fazemos à nossa vontade, antes, sendo, como é, preexistente a nós, devemos descobri-la, simultaneamente por ser necessária e oculta, e como se se tratasse de uma lei da natureza [..] a nossa verdadeira vida, a realidade tal qual já a sentimos.” p.201Assim, temos que o “sentido artístico” é “a submissão à realidade interior” p.203, que se realizava “quando estava sozinho” quando assim “mergulhava a maiores profundidades” p.204. Nestas profundidades do seu ser, Proust, fala em reencontrar os seus outros Eus, Eus de então, como por exemplo "o menino" a quem a mãe lia "François Le Champi", um romance de George Sands (esta passagem, na página 205, que não transcrevo, é magistral de sentimento). Para logo a seguir reconhecer o seu medo de perder o cristalino desses Eus, memórias que pelo revisitar das mesmas, se recalcam e transformam, perdendo-se no interior de nós mesmos p.209.
“Um determinado nome lido em tempos num livro contém entre as suas sílabas o vento rápido e o sol brilhante que fazia quando estávamos a lê-lo (..) um livro que lemos não fica apenas ligado para sempre ao que havia à nossa volta; fica ligado com a mesma fidelidade ao que nós éramos então, já não pode tornar a ser experimentado senão pela sensibilidade, pela pessoa que nós éramos então.” p.206
---- FIM SPOILER ---------------------------
Este volume final dá conta do quão obcecado Proust se tornaria com a construção da sua obra, de como ela se tornaria no fundamento completo de toda a sua "raison d'être". Trabalhando apenas à noite, quando Paris dormia, para que não fosse incomodado, e num quarto com paredes isoladas por cortiça que impediam os ruído exteriores, para assim se imiscuir totalmente em introspecção, na pesquisa das memórias de si.
“Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso”. p.217Era a arte que Proust almejava, não um mero registo das suas memórias, voluntárias ou involuntárias. E assim se explica que a primeira página da "Busca" (de que transcrevo o primeiro parágrafo abaixo), tenha sido encontrada pelo biógrafo Jean-Yves Tadié, reescrita 12 vezes. Tadié diria que teria ficado imensamente contente apenas com a primeira versão.
“Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire : « Je m’endors. » Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil m’éveillait ; je voulais poser le volume que je croyais avoir dans les mains et souffler ma lumière ; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier ; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage…” Primeira página do Volume 1, no original, 1913
“Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar: “Vou adormecer.” E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava…” Tradução de Pedro Tamen, 2003
Tudo isto faz deste livro um artefacto único, continuando a ser um romance, senão “o romance”. Porque não se confunda o fundamento desta obra, tão pouco a sua forma, com a sua extensão, comparando-se com obras seriadas de aventuras, como os, também, 7 volumes de “Harry Potter” de JK Rowland, ou os vários volumes de “As Crónicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin.
“Em Busca do Tempo Perdido” não é um livro difícil em termos de enredo, e é verdade que assusta pela sua extensão, mas torna-se verdadeiramente difícil pela escrita imensamente delineada e trabalhada, mais particularmente na forma como Proust constrói parágrafos longos, fazendo uso de todas as formas possíveis de orações subordinadas, que obrigam a memória de curto prazo do leitor a trabalhar arduamente. Mas a sua leitura, a experiência que se constrói em nós e nos transforma, supera facilmente muitas daquelas viagens que sonhámos fazer ou fizemos. A "catedral" que Proust sonhou um dia construir, emerge agora dentro de mim, com campanários que cintilam na lembrança de cada um dos seus personagens - Swann, Odette, Marcel, Gilberte, Oriane, Albertine, a Avó e a Mãe, a Sra. de Villeparisis, Vinteuil, Elstir, Berma, Bergotte, os Guermantes, os Verdurin, Charlus, Cottard, Morel, Rachel, Saint-Loup, Françoise ou Jupien.
[Marcel Proust, (1927), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VII - O Tempo Reencontrado”, Relógio D'Água, ISBN 9727088244, trad. Pedro Tamen, 2005, p. 384]
Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII
Actualização 21/06/2015
Entretanto encontrei um pequeno vídeo, "Literature - Marcel Proust" (2015) de Alain de Botton, que tinha já escrito um livro de autoajuda sobre Proust, e que apresenta aqui, de forma sintética, uma possível chave para a compreensão da obra completa.
Actualização 25/06/2015
Actualização 25/06/2015
Abro este ponto apenas para deixar o link para resenha que realizei do livro "Monsieur Proust", um belíssimo memorial da sua governanta, a pessoa que mais tempo e mais próxima de Proust esteve durante os seus últimos 10 anos de vida, os mesmos que levou a escrever toda a obra.