maio 22, 2015

o engenho humano

Le Gouffre” (2015) é uma animação 3d criada por 3 jovens animadores de Montreal, ao longo de dois anos completos, suportados por um financiamento obtido no Kickstarter. O filme de 10 minutos segue toda a cartilha emocional do cinema de ação, conseguindo assim impor-se sobre as nossas ânsias enquanto explora momentos de verdadeira inspiração humana.




Apesar de ter gostado bastante do resultado final, não gostei da iluminação que acaba toldando demasiado o ambiente, falta-lhe vida expressiva, capacidade de trabalhar com aquilo que não se vê. O excesso de luz, em minha opinião, deve-se a uma certa vontade realista por parte dos autores, que acaba por ela própria reduzir a qualidade estética final. Porque se a luz sofre de um problema de excessiva vontade de tudo mostrar na perfeição, a animação dos personagens é ela própria demasiada realista e homogénea, faltando-lhe identidade, pessoalidade na linguagem não-verbal de cada personagem.

Contudo, não posso deixar de apontar o imenso trabalho realizado por apenas 3 pessoas, e na generalidade de elevada qualidade. Apesar dos problemas que aponto, temos muito boa ilustração e modelação. É tudo imensamente fluído, as acções dos personagens são credíveis, o ambiente é sumptuoso e a história acaba funcionando muito bem.

"Le Gouffre" (2015)

Por fim, referir que mais uma vez a amizade entre dois jovens serve de inspiração a uma produção de animação, um tema que já aqui tinha dado a conta a propósito de um conjunto de outros filmes de animação.

maio 21, 2015

Definições e exemplos do storytelling interativo

Mark Brown é autor da série Youtube "Game Maker's Toolkit", dedicada a dissecação do design de videojogos. O último episódio, "Telling Stories with Systems", foi dedicado ao modo como os videojogos mesclam jogo e narrativa, ou seja como introduzem interatividade nas histórias, ou criam o chamado storytelling interativo.




Ao longo de 7 minutos Brown disserta sobre as 4 grandes possibilidades do uso da narrativa - linear, árvore, multilinear e emergente - e apesar de não lhes atribuir estes nomes em concreto, acaba fazendo um belíssimo trabalho de levantamento de casos exemplo que demonstram cada uma destas possibilidades. Brown centra-se sobre aquilo que podemos designar por histórias-sistema, que não são mais do que as narrativas emergentes, que são aquelas que verdadeiramente maior potencial têm, contudo como ele acaba reportando, são também aquelas que maiores riscos, de serem incapazes de gerar envolvimento, correm.

Ainda que não mencionado, aproveito para apontar dentro da lógica emergente ou história-sistema, o videojogo "Papers, Please" (2012) como um dos melhores exemplos, nomeadamente por ser um caso em que tanto a produção como a jogabilidade são bastante simples, dando assim conta do facto de não ser necessário avançar para estruturas altamente elaboradas e complexas para se produzir uma experiência poderosa, capaz de se dar a cada jogador num ciclo de interatividade real.


Para descobrir mais sobre as narrativas interativas podem ler o meu livro "Emoções Interactivas" que está disponível gratuitamente em versão digital. Para ler especificamente sobre as várias estruturas de narrativa interativa, sigam para a página 217.

maio 19, 2015

Consciência, Multimedia e Inteligência Artificial

Consciousness and the Brain: Deciphering How the Brain Codes Our Thoughts” (2014) de Stanislas Dehaene oferece-nos um excelente trabalho de divulgação da investigação científica que se tem realizado nas últimas décadas à volta do conceito de 'consciência'. A abordagem escolhida por Dehaene é a de simplificar o domínio, libertando dos tabus a que a área foi votada pelos próprios investigadores. O domínio dos estudos da consciência foi sempre bastante frágil, à semelhança do estudo das emoções, por ser considerado não apenas complexo, mas impossível de vergar ao método experimental. Desta forma este livro de Dehaene funciona quase como uma lufada de ar fresco na desmistificação e facilitação de acesso àquilo que designamos de consciência.


Dividiria o livro em três grandes partes, a introdução ao conceito e sua sustenção evolucionária, que ocupam os primeiros capítulos, simples e cheios de metáforas que se percebem muito bem, e que nos garantem uma noção bastante concreta do que é a consciência. A segunda parte, um pouco mais densa, nomeadamente por se procurar sustentar as ideias com muitos estudos realizados no campo e que acabam dedicando demasiado tempo a tecnicismos do cérebro, perdendo por vezes a nossa atenção. E depois o capítulo final no qual se aponta ao futuro da área, com dados e especulações extremamente instigantes. Deste modo quero deixar apenas algumas notas sobre a definição do conceito, e depois dedicar algumas linhas à projecção para estudos futuros.

Comecemos pela definição de consciência que Dehaene apresenta :
“consciousness is brain-wide information sharing. The human brain has developed efficient long-distance networks, particularly in the prefrontal cortex, to select relevant information and disseminate it throughout the brain. Consciousness is an evolved device that allows us to attend to a piece of information and keep it active within this broadcasting system. Once the information is conscious, it can be flexibly routed to other areas according to our current goals. Thus we can name it, evaluate it, memorize it, or use it to plan the future.” (abertura do Capítulo 5)
Isto levaria-nos a questionar de que serve então a consciência, porque não funcionamos apenas por meio de processos não-conscientes? E é nesse sentido que se torna interessante analisar o processo em termos evolucionários, que Dehaene define assim:
“consciousness supports a number of specific operations that cannot unfold unconsciously. Subliminal information is evanescent, but conscious information is stable — we can hang on to it for as long as we wish. Consciousness also compresses the incoming information, reducing an immense stream of sense data to a small set of carefully selected bite-size symbols. The sampled information can then be routed to another processing stage, allowing us to perform carefully controlled chains of operations, much like a serial computer. This broadcasting function of consciousness is essential. In humans, it is greatly enhanced by language, which lets us distribute our conscious thoughts across the social network.”
Isto é um processo que me interessa particularmente, porque o conceito de hipertexto é fundamentalmente baseado no mesmo. Se Vannevar Bush procurava emular a nossa capacidade de pensamento associativo, ou seja de processamento de múltipla informação, em paralelo, que ocorre no não-consciente, fundamental em termos de agilidade cognitiva, pelo meio ficou esquecido o problema do consciente, ou seja, o modo como filtramos a informação do exterior, como consolidamos a informação e a transportamos para o não-consciente, via processos em série. Este problema agravar-se-ia depois ainda mais com o surgimento do hipermedia/multimedia, em que os documentos passavam não apenas a apresentar diversidade não-linear de informação, mas modelada por meios distintos.

Por isso aceder a um documento multimedia, em que o conteúdo que se pretende transmitir, é espartilhado em vários objectos distintos de media a tempos não-lineares, torna a compreensão mais difícil do que aceder a um documento linear e num único meio. A ideia de que os objectos distintos se reforçam mutuamente acaba por não funcionar já que os múltiplos meios obrigam de imediato a um consumo maior de consciência. Usando linguagem informática, poderemos descrever o processo da seguinte forma: quanto mais meios distintos utilizar numa mensagem, mais software tenho de fazer o receptor carregar para o consciente, para conseguir descodificar cada meio, sobrando menos capacidade para descodificar a essência do que se quer comunicar. Ou seja, não lemos um texto, uma foto, um vídeo ou sons da mesma forma, precisamos de usar recursos apreendidos em experiências anteriores, para descodificar cada um desses sinais. Nesse sentido - um texto, ou um vídeo, ou um áudio - permitem ao receptor concentrar-se quase exclusivamente na mensagem, assumindo o meio quase como transparente.


Daí que o enfoque comunicativo do multimédia não possa ser a multimedialidade mas antes a interatividade, como tenho defendido ("Media Criativos e Interactivos" (2010), Jornalismo 'Interactive Storytelling'? (2015)). Porque aquilo que diferencia os novos media dos tradicionais é apenas, e só, a interatividade, já que a união de diferentes media vem desde os anos 1930 sendo feita pelo cinema. E quando falo de interatividade, não falo de um processo aberto, ou rizomático, de acesso a múltiplas fontes de informação, mas antes de um processo cíclico de interacção - conversacional - entre o artefacto e o receptor. Daí que pensar, desenhar e construir um artefacto a partir do seu potencial de interatividade, seja totalmente distinto de o fazer a partir do potencial de junção de diferentes media.


No último capítulo são várias as questões e desafios apresentados para os quais ainda não temos respostas, e que se revelam de enorme importância, das quais escolho aqui discutir duas:

1: "Can we figure out whether a monkey, or a dog, or a dolphin is conscious of its surroundings?"

Neste ponto Dehaene discute os vários estágios do conhecimento científico porque passámos em termos do que separa o homem dos animais, sendo que no mais recente estágio se assumia que o que determinava esta diferença estava na capacidade do homem poder reflectir sobre si mesmo, algo que nos estudos mais recentes se tem demonstrado, com grande evidência, que vários animais são também capazes de fazer, ou seja, os animais possuem consciência. Deste modo Dehaene procura elaborar uma ideia que demonstre a linha que nos separa dos animais, e fá-lo usando uma abordagem cognitiva assente nos processos de linguagem, com a qual concordo inteiramente:
“although we share most if not all of our core brain systems with other animal species, the human brain may be unique in its ability to combine them using a sophisticated “language of thought.” René Descartes was certainly right about one thing: only Homo sapiens “use[s] words or other signs by composing them, as we do to declare our thoughts to others.” This capacity to compose our thoughts may be the crucial ingredient that boosts our inner thoughts. Human uniqueness resides in the peculiar way we explicitly formulate our ideas using nested or recursive structures of symbols (..) in agreement with Noam Chomsky, language evolved as a representational device rather than a communication system—the main advantage that it confers is the capacity to think new ideas, over and above the ability to share them with others. Our brain seems to have a special knack for assigning symbols to any mental representation and for entering these symbols into entire novel combinations (..) The recursive function of human language may serve as a vehicle for complex nested thoughts that remain inaccessible to other species. Without the syntax of language, it is unclear that we could even entertain nested conscious thoughts such as He thinks that I do not know that he lies. Such thoughts seem to be vastly beyond the competence of our primate cousins.”
2: "Could we ever duplicate them in a computer, thus giving rise to artificial consciousness?”

Para o o final Dehaene deixa um assunto, semelhante ao do ponto anterior, mas numa direcção diferente. Se no caso dos animais, estamos focados em tentar perceber o que nos coloca em planos diferentes, no caso da Inteligência Artificial, estamos interessados em perceber se será verdadeiramente possível criar um processo matemático que simule a consciência. Um tópico que me tem preocupado nos últimos anos, por causa da minha investigação na área de emoções, e que discuti aqui já a propósito de um livro de Oliver Sacks e de uma talk de António Damásio.
“I have no problem imagining an artificial device capable of willfully deciding on its course of action. Even if our brain architecture were fully deterministic, as a computer simulation might be, it would still be legitimate to say that it exercises a form of free will. Whenever a neuronal architecture exhibits autonomy and deliberation, we are right in calling it “a free mind” — and once we reverse-engineer it, we will learn to mimic it in artificial machines (..) Our neuronal states ceaselessly fluctuate in a partially autonomous manner, creating an inner world of personal thoughts. Even when confronted with identical sensory inputs, they react differently depending on our mood, goals, and memories. Our conscious neuronal codes also vary from brain to brain. Although we all share the same overall inventory of neurons coding for color, shape, or movement, their detailed organization results from a long developmental process that sculpts each of our brains differently, ceaselessly selecting and eliminating synapses to create our unique personalities. The neuronal code that results from this crossing of genetic rules, past experiences, and chance encounters is unique to each moment and to each person. Its immense number of states creates a rich world of inner representations, linked to the environment but not imposed by it. Subjective feelings of pain, beauty, lust, or regret correspond to stable neuronal attractors in this dynamic landscape. They are inherently subjective, because the dynamics of the brain embed its present inputs into a tapestry of past memories and future goals, thus adding a layer of personal experience to raw sensory inputs. What emerges is a “remembered present,” a personalized cipher of the here and now, thickened with lingering memories and anticipated forecasts, and constantly projecting a first-person perspective on its environment: a conscious inner world.”

Ler mais:
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma 
Musicophilia (2007), música e consciência

maio 18, 2015

Mestrado em Media Interativos 2015/2016

Abre hoje a primeira fase de candidaturas ao Mestrado em Media Interativos 2015/2016. Este ano contamos com uma novidade; depois de termos começado, em 2010, com o Adobe Flash e Actionscript; na segunda série termos passado pelo Processing; este ano iremos iniciar uma nova abordagem, que esperemos que se prolongue pelos próximos anos, e que assenta na adopção da plataforma Unity.


O Unity como plataforma de criação interativa apresenta uma versatilidade muito superior a qualquer uma das plataformas anteriormente utilizadas, e por isso vai permitir-nos não só servir a parte de introdução à programação, na UC de Programação Interativa, como vai depois servir o desenvolvimento 3d, na UC de Animação e Ambientes Virtuais, podendo ainda, caso os alunos assim o entendam, uma vez que é de escolha livre, servir a realização dos projetos finais da UC de Design de Videojogos.

A todos os interessados, nomeadamente licenciados em Comunicação, Multimedia, Design, Videojogos, assim como áreas afins, podem obter mais informação sobre o mestrado na sua página. Esta primeira fase estará aberta de 18 de Maio 2015 a 12 de Junho 2015.

maio 17, 2015

A criatividade digital na encenação de "Marvel vs. DC"

Trago mais um brilhante exemplo de criatividade digital proporcionado pelas tecnologias criativas, um trabalho ficcional que seria impossível de criar apenas há alguns anos atrás, por apenas uma pessoa e em apenas três meses. Saruhan Saral criou um filme de animação que coloca em cena uma batalha tantas vezes imaginada por todos aqueles que seguem o universo dos super-heróis, Marvel ou DC, apesar de ter sido representada em 1996 na série "DC vs. Marvel".





Saral cruzou o melhor que o universo digital tem para oferecer e criou toda a sua própria plataforma criativa. A partir de vários videojogos, nomeadamente "Marvel vs. Capcom 3" (2011) e "Injustice: Gods Among Us" (2013), obteve materiais previamente criados por outros: modelos e animações 3d de vários personagens Marvel e DC; assim como várias excertos audio de vozes. A estes juntou depois cenários, efeitos, e novas animações criadas no Blender. Por fim integrou e compôs tudo no After Effects, para assim poder contar a história que pretendia.

Capa do nº1 da série "DC vs. Marvel" (1996)

Este filme de animação não é um machinima, porque não foi produzido apenas com recurso a materiais a correr em tempo-rela em sistemas de jogo, assim como também não é uma regular animação 3d, é antes fruto da mescla de ambos. Saral não se limita a remisturar materiais pre-existentes, ele recorre a estes para colmatar a dificuldade de modelar personagens tridimensionais de personagens conhecidos, assim como a impossibilidade de criar vozes credíveis, e sobre estes cria de raiz todo um conjunto de novas camadas de materiais, que depois de integrados funcionam como um todo.

"Marvel vs. DC - The Ultimate Crossover" (2015) de Saruhan Saral

O filme em si funciona bastante bem para o género, embora nem tudo me agrade nomeadamente a repetitividade na sucessão de batalhas individuais, que se percebe pela dificuldade que seria integrar múltiplos personagens num mesmo cenário. Os ambientes também não são propriamente muito elaborados. Contudo tendo em conta a metodologia empregue, os recursos humanos, e o tempo, podemos dizer que é um bom trabalho.

as tecnologias criativas

Esta semana saiu o resultado de mais um projecto do engageLab, o livro "Creativity in the Digital Age", dedicado a aprofundar as questões por detrás das tecnologias criativas. O livro foi publicado pela Springer e sucede a um número da revista Comunicação e Sociedade, nº22 (2012), também dedicado ao tema. O domínio das tecnologias criativas tem servido como um dos motores de ação no trabalho, que tenho desenvolvido conjuntamente com o Pedro Branco, no engageLab.


Este volume que agora editamos começou a ser preparado quando saiu o nº22 da revista Comunicação e Sociedade, ou seja teve um percurso de quase três anos até ver a luz. Na altura sentimos que ainda não tínhamos conseguido ir ao âmago da questão. É verdade que o domínio é em si extremamente abrangente, mas tínhamos algumas ideias bastante concretas do que queríamos aprofundar. Nesse sentido fomos trabalhando um position paper sobre o domínio, que tínhamos intenção de submeter a um journal, mas que acabou servindo de capítulo de abertura deste novo livro, sendo depois intitulado - "The Creative Revolution That Is Changing the World".

"Tecnologias Criativa", nº22 (2012)

As dificuldades de concretizar a temática deveram-se muito ao hype gerado em torno da ideia de criatividade nos últimos anos, de que fazemos menção no prefácio do livro, e que nos levou a recusar várias propostas, mesmo de pessoas que tínhamos previamente convidado a participar no projecto, por não se enquadrarem na abordagem que pretendíamos focar. Tudo isto arrastou a produção do livro, atrasando o seu fecho e submissão ao peer-review final dos editores da colecção Springer Series on Cultural Computing.

Dito isto, o resultado final satisfaz-nos bastante, julgamos que estão representados neste volume as áreas centrais do domínio das tecnologias criativas, e esperamos que este trabalho possa servir no lançamento de outras iniciativas, capazes de alavancar e sustentar o futuro da área.

maio 16, 2015

Subempregados

"Underemployed" (2015) é uma banda desenhada autobiográfica de Jackie Roche que aborda o impacto da Grande Recessão sobre os recém-licenciados, apontando a quase ausência de emprego qualificado, incapaz de dar conta de vidas cheias de sonho e energia.



"Underemployed" (2015) de Jackie Roche

A Grande Recessão nasceu do rebentar da crise imobiliária nos EUA, em 2007/2008, tendo um impacto muito para além da geografia dos EUA, atingindo praticamente todo o globo, a tempos diferentes. Juntamente com esta, o avanço tecnológico passou a funcionar como tábua de salvação na redução de custos, para empresas e instituições, gerando ondas sucessivas de diminuição de emprego desde então. Em breve estaremos a fazer 10 anos pós-início da crise, e esta não deu ainda quaisquer sinais de recuperação. Porque se até aqui quem detinha muito dinheiro ia investindo facilmente na bolsa, em bancos, em empresas e em países, agora com toda a economia em risco contínuo de colapso, em que as redes de dinheiro público foram também já esgotadas, quem tem muito dinheiro prefere investir na compra de "arte".

Daqui resulta o filme que podemos experienciar ao longa desta magnífica banda-desenhada de Roche, que nos dá conta de um casal com licenciaturas e mestrados, em boas universidades, e mesmo assim não vai além dos trabalhos temporários, sazonais, part-time, e por fim freelance. Isto corrói-me por dentro, porque não se está a passar apenas nos EUA, vejo isto em Portugal, para todo o lado que me viro. Vejo jovens altamente qualificados, com tanto para dar à sociedade, ao país, mas totalmente atados de pés e mãos, sobrando apenas a emigração, como se lá fora tudo se resolvesse por simples passe de mágica!

Esta é uma banda-desenha que bate forte porque não fala de algo no passado, de algo que aconteceu à sociedade, com alguém que teve a pouca sorte, mas que relata o presente, o aqui e agora, duro como a vida que precisa de continuar a ser vivida, dia após dia.

Ler e ver a obra completa.

Em Busca do Tempo Perdido - Volume IV

O quarto volume, “Sodoma e Gomorra”, foi o que mais me custou ler, nomeadamente pela repetição de conversas de vários personagens, ainda que apresentados de novos ângulos mas sempre muito focados na comédia de costumes, que não é o meu forte, sendo que no miolo deste volume entrei mesmo em saturação, com o tédio a apoderar-se da leitura, contudo no final Proust abre um pequeno capítulo que fecha de forma tão sublime e deliciosa, impossibilitando-me desgostar deste volume.


Neste quarto livro Proust dá largas ao tratamento da homosexualidade fazendo-o com profundidade e recorrendo às teorias da psicologia de então, tudo surge com bastante naturalidade o que deve ter gerado forte impacto na época, contudo hoje é algo que se lê sem choque, dada a modelação entretanto ocorrida na sociedade. Proust não diferencia o género, tendo tanto homossexualidade masculina (Sodoma), como feminina (Gomorra), às quais vai juntando para intensificar o choque no leitor, o tratamento dado aos judeus em França na época.
"Raça [os homossexuais] sobre a qual pesa uma maldição e que tem de viver o seu desejo na mentira e no perjúrio, visto que o sabe ser considerado punível e vergonhoso, inconfessável; (...) excluídos até, salvo nos dias de grande infortúnio em que a grande maioria se une em torno da vítima, como os Judeus em torno de Dreyfus, da simpatia - e às vezes do convívio - dos seus semelhantes, aos quais causam repugnância de verem o que são pintado num espelho..."
Mas para mim o melhor continua sendo os momentos de introspeção, de análise profunda dos estados internos do narrador, quando se interroga de si para si. Como já tinha dito antes a 'epopeia' de "Em Busca do Tempo Perdido" vai-se alternando entre estes momentos e os diálogos e apontamentos de crítica da alta-sociedade, e é interessante verificar nas várias análises online, como as pessoas se dividem entre os dois registos, existindo os que se apaixonam pelo lado da comicidade e outros, em que me incluo, que seguem Proust mais pelas suas escalpelizações do Eu. Deixo dois dos melhores registos deste livro:
Mas mal consegui adormecer, naquela hora, mais verídica, em que os meus olhos se fecharam para as coisas do exterior, o mundo do sono (em cujo o limiar a inteligência e a vontade momentaneamente paralisadas já não me podiam disputar à crueldade das minhas impressões verdadeiras), reflectiu, refractou a dolorosa síntese da sobrevivência e do nada na profundidade orgânica e agora translúcida das vísceras misteriosamente iluminadas. Mundo de sono em que a consciência interna, colocada sob a dependência das perturbações dos nossos órgãos, acelera o ritmo do coração ou da respiração, porque uma mesma dose de pavor, de tristeza, de remorso, actua, com um poder centuplicado se for assim injectada nas nossas veias; mal, para percorrer as artérias da cidade subterrânea, embarcámos nas ondas negras do nosso próprio sangue como um Letes interior de sêxtuplos meandros, logo nos aparecem grandes figuras solenes, que nos abordam e nos abandonam, deixando-nos desfeitos em lágrimas.” p.168  
Mas o que é uma recordação de que não nos lembramos? Ou então vamos mais longe. Não nos lembramos das nossas recordações dos últimos trinta anos; mas estamos mergulhados inteiramente nelas; porquê então ficar pelos trintas anos, porque não prolongar para além do nascimento essa vida anterior? Uma vez que não conheço toda uma parte das recordações que estão atrás de mim, uma vez que elas me são invisíveis, que não tenho a faculdade de as chamar a mim, quem me diz que nessa massa para mim desconhecida não haverá umas que remontem a muito para além da minha vida humana? Se posso ter em mim e em torno de mim tantas recordações de que não me lembro, esse olvido (pelo menos, olvido de facto, visto que não tenho a faculdade de ver o que quer que seja) pode conduzir a uma vida que vivi no corpo de outro homem, e até noutro planeta. Um mesmo olvido apaga tudo (..) O ser que eu serei depois da morte não tem mais razões para se recordar do homem que sou desde que nasci do que este para se recordar do que fui antes de nascer.” p. 388
[Marcel Proust, (1922), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume IV -Sodoma e Gomorra”, Relógio D'Água, ISBN 9727087566, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 544]


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

maio 11, 2015

Jornalismo 'Interactive Storytelling'?

O projecto Future NYT é fruto da cadeira “The Future of the New York Times”, criada este ano por Jay Rosen na Universidade de Nova Iorque e seguida por 12 alunos, e que tem servido de palco a uma revisão académica do que tem sido feito pelo NYT para renovar o jornalismo em tempos de online digital. Os trabalhos aí publicados são realizados por alunos, por isso não se espera amplitude e profundidade, contudo dão conta do estado do jornalismo digital, e mais ainda do sentimento de quem o consome. E foi exactamente motivado por este último ponto que resolvi escrever este texto.



Elif Koc, estudante de Jornalismo e Informática, escreveu o texto "Review of Interactive Storytelling at the New York Times", publicado ontem, no qual realiza uma revisão dos formatos multimedia utilizados pelo NYT. Este texto que poderia não passar de uma mera listagem e comparação dos diferentes trabalhos multimedia do NYT, acaba por revelar em si mesmo, um dos maiores problemas destes novos formatos.

A autora começa desde logo por analisar alguns trabalhos multimedia qualificando-os, erradamente, como Interactive Storytelling (IS), um erro que não lhe atribuo, já que este termo tem sido usado pelos colegas do jornalismo para etiquetar o simples uso de diferentes media numa mesma peça. Segue então para uma breve análise de alguns trabalhos recentes do NYT, nomeadamente o mais famoso, "Snow Fall" (2012), apontando depois os problemas de produção, incompatíveis com os custos e timings jornalísticos. Mas o melhor surge na segunda parte do texto, em que Koc resolve fazer um pequeno estudo junto de colegas, para perceber do impacto e envolvimento gerado pela experiência de um simples texto longo do The Atlantic contra uma peça multimedia do NYT, e acaba por receber um feedback de 7 contra 3, com explicações qualitativas do que motiva as pessoas a preferir o texto longo.

Contudo, nos seus Pensamentos Finais, a autora praticamente descura os factos que tinha apontado como problemáticos em termos de produção, mas pior do que isso ignora totalmente o pequeno estudo que realizou perante um grupo de sujeitos reais, leitores e utilizadores. Este discurso não é novo, é o claro discurso de quem faz, de quem cria, a querer impor a sua visão sobre os outros, acreditando que, enquanto criadores vemos além, e sabemos melhor o que os outros precisam. Ora isto vem contra tudo aquilo que se ensina em Interacção Humano-Computador (IHC), o design da interacção não pode ser feito contras os utilizadores, mas antes de mais com eles, e para eles.

Isto denota uma total ausência de conhecimento não apenas dos princípios fundamentais da IHC mas de tudo aquilo que torna a linguagem interactiva relevante, o que fica desde logo claro pela incorrecta utilização do termo IS. A interactividade é central no mundo do online digital, mas não é um mero atributo, é toda uma nova linguagem. Escrever um texto jornalístico não é, nem tem que ser, o mesmo que escrever um artefacto interactivo. Deste modo colar peças multimedia sobre um texto jornalístico não beneficia em nada esse mesmo texto, antes pelo contrário. Daí que não me admire com o resultado do pequeno estudo realizado pela aluna, que se fosse ampliado em número continuaria a dar os mesmos números, porque não diferem dos que temos obtido ao longo dos últimos 30 anos.