maio 03, 2014

“Papo & Yo” (2012)

A última parte de “Papo & Yo” deixou-me com um nó no estômago. Já tinha jogado quando saiu, mas não tinha terminado. Conhecia bem a história, tinha lido várias análises ao jogo e entrevistas com o criador, Vander Caballero, sabia que esta era a sua história pessoal. Ou seja, não foi a história em si que me bateu, foi o videojogo que me levou a estas emoções fortes, que perto do final estabeleceu uma ligação entre mim, Quico, a sua namorada e o seu pai. No final o videojogo conseguiu fazer-me sentir toda a ambivalência emocional que sente Quico na resolução do dilema, ajudar o seu pai ou desistir e conduzi-lo à destruição...


“Papo & Yo é sobre mim e sobre meu pai, um homem bom, mas também um mal. Como muitos, ele usou álcool e drogas para lidar com uma vida difícil, e eu fui pego no meio dele. O núcleo emocional do jogo é basicamente uma fábula sobre o meu relacionamento com meu pai.” Vander Caballero
Para produzir uma experiência com este alcance, “Papo & Yo” teve de desenvolver um conjunto de metáforas que se encarregaram de traduzir as acções, mas também os personagens e os sentimentos desta história melancólica. A meio do jogo as mecânicas começam a descolar da história, o seu carácter padronizado ainda que sempre muito bem contextualizado com imaginário perde-nos, mas mais perto do final tudo volta a encaixar-se. A duração da obra dá-nos tempo para reflectir sobre a relação que vamos vivendo com aquele Monstro. Quando chega a altura de tomar uma decisão sobre o futuro da relação, a fasquia emocional é colocada bem lá em cima por Caballero, mas posso dizer que é superada de forma magistral. Muito contribui para esta superação, a música e o bom controle da atmosfera do jogo, mas acima de tudo o conhecimento da linguagem de interatividade, o saber colocar o jogador no lugar de actor, levando-o a tomar partido, a querer agir.

"Papo & Yo" mostra como se podem discutir assuntos complexos e profundamente humanos, através de um videojogo. Como é possível usar a interactividade de modo expressivo, lançando os jogadores na indagação e questionamento, não apenas sobre aquilo que se presencia, mas sobre aquilo que se faz. Porque apesar do videojogo me ter conduzido a fazer, de forma linear, senti que o fazia, sinto que o fiz, porque o jogo me ajudou a tomar a decisão antes. Ou seja, no final estou com Quico, e quero fazer o que tem de ser feito...

maio 02, 2014

"Ni no Kuni: Wrath of the White Witch" (2013)

“Ni no Kuni” é uma experiência de encantamento, produzida com recurso aos imaginários coloridos e doces das fantasias de criança. Posto isto, devo dizer que não sou fã de RPG, menos ainda de JRPG. Obriguei-me a jogar “Ni no Kuni” apenas por este ser, em parte, criado pelo Studio Ghibli. De modo genérico, posso dizer que as primeiras duas horas são muito boas com a introdução da arte e storytelling, depois das 3 às 10 horas entramos no modo tutorial alargado, no qual se aprendem as mecânicas, se absorve muita informação, e se tem de suportar muitos diálogos redundantes. Quero por isso mesmo agradecer aqui ao Vítor Alexandre da Eurogamer, porque foi a sua análise que me deu forças para continuar até às 10 horas. A partir desse ponto entranha-se verdadeiramente o design do jogo, e começa-se a sentir a sua gratificação.




Qualquer pessoa que goste do trabalho de animação do Studio Ghibli, o estúdio de Miyazaki, irá gostar de “Ni no Kuni”, mas este não é um trabalho exclusivamente seu. Aliás a ideia original é de Akihiro Hino, o CEO da Level-5, empresa responsável por dezenas de títulos, grande maioria RPGs, como "Dark Cloud" (2000), "Dark Chronicle" (2002), "Dragon Quest VIII" (2004) ou ainda a série de enorme sucesso da Nintendo DS, o “Professor Layton”. Ou seja, temos por um lado um estúdio habituado a produzir arte de animação ao mais alto nível, e por outro uma empresa de jogos habituada a criar RPG de elevada qualidade, não sendo assim de estranhar que a primeira incursão do Studio Ghibli nos videojogos, resulte numa pequena jóia. Mais sobre isto pode ser visto no Making Of sobre o jogo (Parte 1  e Parte 2).

Começando pela arte visual, o melhor elemento do jogo, tenho de dizer que inicialmente fiquei um pouco decepcionado com a transição entre cutscenes 2d e gameplay 3d, porque a qualidade do 2d é muito superior. Digo inicialmente, porque à medida que o jogo avança as cutscenes em 2d são cada vez menos e menores. Deste modo as primeiras duas horas de jogo servem um pouco de introdução à transição do mundo 2d, marca de autor da Ghibli, para o mundo 3d. Ao longo do jogo podemos ver como a Ghibli se soube adaptar ao 3d, e trazer para esta abordagem gráfica muito daquilo que a torna singular. “Ni No Kuni” apresenta-se como universo formado de várias ilhotas, e vários reinos. Circulamos nas ilhas a pé, entre elas de barco ou dragão. Uma das particularidades da arte visual, mais interessantes, é o facto dos reinos serem apresentados como miniaturas, quando ali chegamos somos muito maiores que o reino, entrando as dimensões ganham a proporção normal. É um detalhe, mas encantador, capaz de conferir uma enorme graciosidade à fantasia do universo, mergulhando-o num imaginário infantil. Depois o tratamento dado à apresentação da natureza, como é comum no trabalho Ghibli, é todo ele soberbo, não apenas pela imaginação mas pela beleza e doçura com que é representado. Ainda no campo estético, não podemos esquecer a banda sonora, que ficou a cargo de Joe Hisaishi, o compositor habitual dos filmes da Ghibli (ver making of da música). Se o mundo gráfico é doce e belo, a música segue o mesmo tom, enfatizando e exponenciando ambos esses adjectivos.


E se a arte é de excelência, a história não lhe fica atrás. Somos Oliver, um miúdo de 13 anos que acaba de perder a mãe, e para quem a mais leve hipótese de a poder reencontrar e trazê-la de novo à vida, serve para seguir atrás e acreditar no mundo mais fantasioso alguma vez encontrado. A narrativa é linear, como se de um filme se tratasse, e por isso acaba não diferindo muito dos filmes da Ghibli que já conhecemos. Mundos paralelos, mundo real versus mundos imaginários, viagens entre mundos, criaturas imaginárias, duplos de almas, magia e feitiços, amigos, companheiros, príncipes e princesas, respeito pelo outro, pela natureza, muito carinho e ternura. A história vai progredindo à medida que vamos avançando, surpreendendo-nos sempre, mantendo-nos interessados em descobrir mais sobre os porquês, e o que vai acontecer a seguir. O final apresenta vários twists narrativos, alguns mais surpreendentes que outros, mas sempre muito envolventes. É uma história com valor universal, que qualquer pessoa deveria experienciar, capaz de elevar os valores sobre a nossa condição.

No design de jogo, surgem as piores partes do jogo, isto para quem como eu não for fã de JRPG (RPG Japonês). Assumo que apesar de atribuir nota máxima ao jogo, preferiria ter visto o jogo trabalhado enquanto acção/aventura, porque se os jogos RPG são objectos exigentes, um JRPG é ainda mais exigente. No fundo temos todo o trabalho da Ghibli e Hisaishi enredado por um enorme e complexo conjunto de regras, desenhadas com uma perfeição matemática, mas profundamente condicionadoras da experiência. Basta dizer que as primeiras 10 horas de jogo são passadas em modo tutorial, para assimilarmos a quantidade de regras que temos de aprender. Desde uma enorme quantidade de competências, feitiços, metamorfoses, armas, comidas e ingredientes que podemos usar para elevar as competências dos jogadores, até às regras do mundo que passam pela busca de corações, caça recompensas, ou recolha de selos que permitem aceder a novas competências, sem falar num número gigantesco de familiares (+300) que nos acompanham nas lutas, ao género de Pokemon, Skylanders ou Invizimals. Toda esta informação vem detalhada num livro de 300 páginas, o "Wizard's Companion" que o jogador vai conquistando ao longo do jogo, ou pode ser adquirido como livro físico na versão de colecionador do jogo.


Uma das regras mais estranhas, porque em termos psicológicos profundamente penalizadora, é o facto de perdermos 10% do nosso dinheiro sempre que queremos voltar ao jogo depois de  perdermos uma luta. Não bastava os “Saves” terem de ser realizados “inGame” e serem esparsos, ainda somos confrontados com a retirada de dinheiro caso queiramos permanecer no ponto mais próximo para voltar a tentar! Mas o pior acaba sendo mesmo o facto da Level-5 ter optado por seguir algumas das mais duras convenções dos JRPG, nomeadamente de “grinding” e “levelling” (combates repetitivos que elevam as competências dos nossos personagens, a XP), assim como de “dungeons” com “bosses” inultrapassáveis sem a XP adequada. Estes foram per se os principais responsáveis por ter desejado desistir do jogo várias vezes, ao longo das primeiras 10 horas.

Apesar de apontar estes problemas, sei que estão relacionadas com o género e não com qualquer problema de design concreto. Aliás o jogo parece um relógio em termos de design, nomeadamente no que toca à progressão, temos uma curva ascendente praticamente perfeita. Mesmo os problemas que tenho visto apontados à IA dos companheiros nas lutas, me parecem sem sentido, já que elas nada mais fazem do que reflectir o estado de XP que temos à chegada a cada dungeon. Se este não for adequado o sistema simplesmente não nos ajuda. Diga-se que todo o sistema de combate é bastante elaborado, fundindo o turn-based com real-time, assim como a luta física com a magia, o que nos obriga a trabalhar para aprender e dominar o sistema, mas que mesmo assim de pouco nos serve a cada momento sem a XP adequada.

Um outro ponto a favor é o mundo completamente aberto, que permite que circulemos por este com uma enorme sensação de liberdade, algo que se vai intensificando à medida que vamos tendo acesso a mais meios de transporte. A liberdade não dá apenas conta do nosso controlo sobre o mundo, mas do acesso à beleza e atmosfera que o jogo desenvolve gerando em nós a vontade de nos perdermos por entre aquelas ilhas ao longo de longas horas. Por outro lado o "levelling" em conjunto com as lógicas próprias dos mundos abertos acaba por produzir um jogo que requer de nós um investimento mínimo de 40 horas para se ver o fechamento da história principal. E sendo aberto, depois de terminarmos o jogo, somos convidados a voltar a entrar no chamado pós-jogo onde nos esperam mais de 100 sidequests, com mais alguns bosses, fora os vulgares tesouros e troféus e que facilmente poderão oferecer mais 20 horas de jogo. Como vi várias pessoas dizer na rede, todas estas horas de jogo seriam uma delícia quando tínhamos 10 anos, mas em adulto torna-se muito complicado gerir tanto tempo. Eu precisei de 3 semanas para colocar 45 horas no jogo, além de que dava para ter visto quase 20 filmes.

Para fechar o design, sente-se que o jogo vive demasiado das lutas, que por sua vez quebram a relação jogo/narrativa, mas esta quebra é por sua vez compensada por todo um sistema de mecânicas paralelo às lutas, que assenta em quests orientadas à busca de "tipos" de corações, que precisamos de obter e oferecer aos personagens que se encontram com os "corações partidos". Uma mecânica que revela a essência narrativa do jogo, que nos liga profundamente à história, e que assim enreda vigorosamente jogo e narrativa.

Em jeito de síntese, a história é bastante apelativa, apesar de nunca deixarmos de ter de realizar lutas para fazer "leveling up", sendo o melhor a arte (visual e musical). O todo gera uma atmosfera que inspira pura imaginação e fantasia, a viagem completa é uma experiência inesquecível.


Links de interesse
Ni No Kuni guide: 20+ essential tips to get you started, in Destructoid
Before You Start... Tips For Playing Ni no Kuni The Best Way, in Kotaku

maio 01, 2014

A amizade nas curtas de animação

Interessante como nos últimos tempos, nomeadamente no ano de 2012, o conceito de amizade se tornou motivo de várias curtas de animação. “The Reward” (2012) foi o primeiro a chegar à rede, no início de 2013, pouco depois de ser criado no Animation Workshop (Dinamarca). Já no início deste ano vimos “Junkyard” (2012) chegar à rede, depois ter passado mais de um ano a conquistar prémios em vários festivais. Entretanto agora chega-nos “Left” (2012), o filme de graduação de Eamonn O'Neill, realizado no Royal College of Art (UK). A abordagem de "Left" não tem propriamente a ver com a de “Reward”, estando no entanto muito próxima de “Junkyard”, apesar disso julgo que formam os três uma espécie de hino da animação aos valores da amizade, falando sobre o que a fortalece, assim como sobre aquilo que a faz sucumbir.



Como filme, "Left" apresenta-se através de uma ilustração minimal, tanto no ambiente como na expressividade dos personagens, que conjuntamente com as performances de voz conferem um carácter intimista ao trabalho, funcionando para a criação de uma atmosfera que questiona o espectador, o faz recordar e recuperar memórias do seu passado, gerando momentos ricos de introspecção.

Left” (2012) de Eamonn O'Neill

abril 30, 2014

"The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity"

Bruce Hood, professor de psicologia da Universidade de Bristol, traz-nos uma discussão profundamente filosófica, e tão antiga como a nossa consciência, na qual se discute “o que somos, de que é feito “aquilo” a que chamamos EU?”. Hood trabalha essa discussão a partir das mais recentes descobertas da neurociência e psicologia. Apesar da abordagem ser feita pelo lado interno do ser humano, das pesquisas sobre o funcionamento do cérebro, “The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity” (2012) acaba por apresentar a sua proposta fundamentada no reconhecimento da relevância do social, como indica o próprio sub-título.

The Self Illusion: How the Social Brain Creates Identity” (2012)

Sobre o livro em si, dizer que pode ser muito interessante para quem não acompanha a área dos estudos da psicologia, psicologia social ou neuropsicologia, mas para quem segue o assunto, o livro pode tornar-se algo aborrecido, já que grande parte dos exemplos e estudos apresentados foram já amplamente debatidos por muitos outros autores. Hood faz uma resenha ao longo de todo o livro dos estudos mais importantes na área para suportar a ideia central e conclusiva do seu livro. Nesse sentido, o melhor do livro acaba sendo o início do capítulo “Why Our Choices Are Not Our Own e todo o último capítulo, “Why You Can’t See Your Self in Reflection” de síntese das ideias e conclusões. Desta forma, podemos dizer que temos material para um paper longo, digamos de 20 a 30 páginas, mas não temos propriamente material para um livro, a não ser que queiramos encarar o mesmo como uma introdução à área.

Na verdade as conclusões de Hood não são novas, muito do que é aqui dito pode ser encontrado anteriormente em Platão (Filósofo), Espinoza (Filósofo), William James (Psicólogo), Erwin Goffman (Sociólogo), Douglas Hofstadter (Físico) ou mesmo Philip K. Dick (autor de ficção científica). A diferença é que Hood apresenta fundamento científico para suportar as suas afirmações. Anteriormente tínhamos especulação filosófica sobre o modo como funcionamos, hoje podemos ter um pouco mais de certezas sobre os processos, porque temos mais evidência empírica. Por outro lado Hood não se fica pelas evidências, e avança por questões profundamente filosóficas adentro, trazendo para o centro da mesa a problemática do determinismo, discutindo-o nos fundamentos que suportam o EU, incorrendo nos mesmos problemas dos autores anteriores, a ausência de evidência. Aliás, por isso se diferencia totalmente do trabalho de Damásio no campo da consciência, já que este limita o seu discurso ao que é demonstrável. Damásio apresenta as suas dúvidas, e deixa as questões para quem quiser continuar a investigar, enquanto Hood se deixa levar pela ânsia de dar respostas.

Indo directo a esta diferença com Damásio, Hood não se limita a declarar que o nosso EU é uma ilusão porque construída na base das experiências sociais vividas. A partir desta constatação Hood afirma que na verdade não existimos enquanto EU, porque somos e fazemos apenas aquilo que o sistema em que estamos inseridos nos permite. Ou seja, Hood assume uma perspectiva do mundo determinista, e esquece por completo o que dá origem ao processo de consciência. Mas na verdade, como Damásio afirma no seu último livro, continuamos a não saber o que produz o processo de consciência em nós. A única coisa que sabemos é que “somos feitos” de frágeis memórias, vividas, sentidas e experienciadas, nada somos sem elas. Por isso nos choca tanto doenças como o Alzheimer, quando estas atacam, o nosso corpo continua vivo, mas o nosso EU desaparece. Ou seja, sabendo que não existe nenhum fantasma, alma ou homunculus dentro de cada um de nós, falta-nos perceber como damos sentido a um amontoado de memórias, representações mentais feitas de imagem, som, cheiro e textura. Damásio diz-nos que somos feitos de um fluxo autobiográfico, mas falta perceber como se forma este fluxo, no fundo como emerge a consciência.

Dizer que somos aquilo que o universo nos permite, que fazemos apenas aquilo que as nossas experiências nos permitem, é dar um salto nas etapas de análise do problema. Porque se não sei como emerge a consciência, torna-se muito complicado afirmar que esta simplesmente faz o que lhe é permitido. É verdade que de um ponto de vista determinista, tudo aquilo que fazemos é fruto de condições anteriores, a grande questão que se coloca, é quem para além de nós pode conhecer certas condições anteriores, se não apenas a nossa consciência. Por isso é que só ela pode tomar certas decisões, ainda que saibamos que estas dependem de um conjunto de pressupostos que a condicionam.

Seguindo ainda nesta discussão entre Damásio e Hood discordo completamente das assunções que Hood retira do “experimento do botão” e da sua relação com o livre-arbítrio. Deixo um resumo do experimento, retirado do livro,
“Imagine that I ask you to push a button whenever you feel like it. Just wait until you feel good and ready. In other words, the choice of when you want to do it is entirely up to you. After some time, you make the decision that you are going to push the button, and low and behold you do so. What could be more obvious as an example of free will?…

Of course, in making a decision, we also experience a conscious intention or free will to initiate the act of pushing the button about a fifth of a second before we actually begin to press the button. But here’s the spooky thing. Libet demonstrated that there was a mismatch between when the readiness potential began and the point when the individual experienced the conscious intention to push the button…

Libet established that adults felt the urge to push the button a full half second after the readiness potential had already been triggered. In other words, the brain activity was already preparing to the press the button before the subject was aware of his own conscious decision…

One might argue that half a second is hardly a long time but, more recently, researchers using brain imaging have been able to push this boundary back to 7 seconds. They can predict on the basis of brain activity which of two buttons a subject will eventually press. This is shocking.”
Isto na verdade não apresenta nada de chocante, pelo menos em 2010, depois de tudo o que já descobrimos sobre a ausência de qualquer dualidade mente/corpo. Damásio foi o primeiro a colocar o dedo na ferida, mas depois dele muitos outros o corroboraram. Não existe EU etéreo, o EU é feito de memórias vividas, mas essas estão registadas no nosso corpo. Para além da questão corpo/mente, temos ainda a questão do consciente e não consciente. Sabemos que o nosso córtex pré-frontal mantém acessível à consciência apenas excertos de tudo aquilo que está espalhado pelo nosso cérebro e corpo, e ainda bem, não conseguiríamos lidar com tanta informação simultaneamente. Deste modo é natural que o processo de tomada de decisão de apertar o botão ocorra bastante antes de eu ter a consciência clara de que o desejo fazer, porque antes disso, ocorre todo um processo interno de acesso a memórias espalhadas pelo cérebro, e emoções espalhadas pelas nossas vísceras. A decisão forma-se no corpo, o não consciente ganha ideia de que o deve fazer, e só depois o consciente recebe a informação para avançar, já depois dos músculos do dedo a terem recebido.

Dizer que isto configura ausência de livre-arbítrio é no mínimo estranho. Segundo Hood isto incomoda-nos porque “We want to believe that we are more than fleshy computing devices that have evolved to replicate. We are not simply meat machines.”. Pois é verdade que as pessoas desejam isso, a religião é a maior prova desse desejo, mas a ciência tem feito o seu caminho e demonstrado que é apenas isso que somos, máquinas biológicas. Máquinas que operam condicionadas pela sua própria forma, assim como pela forma do sistema em que estão inseridas. O livre-arbítrio é reduzido, e no fundo podemos apenas dizer que ele se limita ao nosso pensamento, mas existe, ele representa aquilo que chamamos de consciência, o problema é que não percebemos ainda o que é no fundo a consciência.


Links de interesse
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma, in Virtual Illusion

abril 28, 2014

Matemática e animação 3d

Com o advento da informática a matemática tornou-se o centro de praticamente tudo aquilo que fazemos, já que pouco fazemos hoje que não requeira o processamento de um computador. Como os computadores não percebem outra linguagem além da matemática, necessitamos cada vez mais de saber dialogar neste registo. Para demonstrar isto mesmo trago dois pequenos filmes, um sobre a modelação 3d, e outro sobre a animação 3d.




O primeiro filme é produzido pela TEDed e chama-se "Pixar: A Matemática por detrás dos Filmes". Neste podemos ver Tony DeRose, director de investigação da Pixar, explicar como é usada a matemática básica da escola, no dia-a-dia da criação de filmes de animação 3d na Pixar. Ou seja, como é graças a ela que podemos ver os personagens mover-se, e como é também graças a ela que temos conseguido criar personagens cada vez mais "fofos" (com formas curvas).

PIXAR: The Math behind the Movies (2014)

No segundo filme, Morr Meroz, da Bloop Animation, explica a diferença entre o processo de animação 2d e 3d. O interessante neste contexto é percebermos como a transição da animação 2d para a animação 3d operou transformações profundas no processo de criação, que inevitavelmente obrigou a uma maneira de estar diferente no mundo da animação. [Atualização: o filme de Meroz deve ser visto com algumas cautelas, já que contém algumas incorreções, tais como afirmar que a interpolação matemática surge apenas com o 3d. Nesse sentido teria sido mais sensato intitular o filme como As Diferenças entre a animação Analógica e Digital. Por outro lado no que toca ao trabalho de animação 3d, existem outras valências além, da composição a partir de funções matemática, que um animador precisa de conhecer.]

The Difference Between 2D and 3D animation (2013)

A matemática foi sempre vista como o lado oposto das artes, dos processos criativos, mas o que podemos ver nestes dois pequenos filmes, é que nos dias que correm, andam ambas de mãos dadas. Daí que assim como a engenharia tem assumido que precisa das artes para abrir novos mundos conceptuais, as artes precisem de assumir que precisam das tecnologias e matemática para aceder a novos modos de se expressar.

abril 26, 2014

a interacção é a mensagem

A empresa Guy Cotten, especializada em roupas para trabalho no mar, produziu um anúncio de serviço público (PSA) a propósito da necessidade do uso de coletes em alto mar, simplesmente brilhante. O anúncio só pode ser acedido online, uma vez que o centro da sua mensagem só é compreensível através da interactividade. O conceito foi desenvolvido pela agência CLM BBDO, sendo a produção feita pela Wanda Productions e dirigido por Ben Strebel. Se ainda não experimentaram o mesmo, façam-no agora, antes de continuar a ler, em Sortie en Mer (em ecrã pleno e som alto).



O brilho deste trabalho advém do modo como se trabalhou a linguagem de interactividade para expressar o sentir da mensagem. Ou seja, temos um filme com um excelente cenário que nos transporta para uma atmosfera calma, preparando-nos para um choque, mas quando esse choque chega, deixamos de ser meras testemunhas do mesmo, passamos a agir, a participar, e com isso a sentir o choque de forma muito mais memorável. 

Mas não se fica por aqui, tudo isto poderia ter sido desenhado apenas para nos colocar no lugar, mas a forma como a interacção foi concebida, não nos coloca apenas no lugar, vai muito mais longe do que isso, porque nos faz sentir a principal sensação que sente o protagonista, o cansaço. Não conseguindo transmitir a sensação de frio do mar, o facto de termos de desesperadamente continuar a fazer scroll para nos mantermos à tona, exerce sobre nós uma pressão que aos poucos nos vai aproximando mais e mais da realidade do evento. Se juntarmos a isto o facto da experiência ser bastante aberta, ou seja a morte não chega para todos, nem de todas as vezes, ao mesmo tempo, e o tempo que investimos a resistir ser recompensado em progressão narrativa, torna este trabalho num dos melhores anúncios interactivos que alguma vez experienciei.


Em termos gerais, o anúncio situa-se no âmbito dos comuns PSA que usam o choque como prevenção. Temos visto trabalhos só em video, sem interactividade, que são capazes de ser mais aterradores que este. Mas é aí que julgo que estará a diferença deste anúncio, que não se preocupa com o mero choque ou terror, mas antes com o fazer passar pela sensação real, ainda que simulada. Apesar de curta, fico com a ideia de que quem passar por esta experiência dificilmente se esquecerá dela, nomeadamente quando da próxima vez estiver para entrar num catamarã para rumar ao alto mar. A simulação, a participação interactiva desenhada para atingir as nossas emoções, dificilmente descolará das nossas impressões somáticas nos próximos tempos.

Se ainda aqui estão, e ainda não experienciaram, sigam para Sortie en Mer

abril 21, 2014

Inovando o storytelling nos media interactivos

“CIA: Operation Ajax” é uma obra de leitura digital interactiva com uma forte base de banda desenhada (BD). Lançada em onze capítulos entre 2010 e 2012, não é propriamente uma novidade, mas posso dizer que é a melhor experiência que tive até hoje de BD digital. Através de uma lógica que vai para além do “motion comic” e do multimédia documental, faz um aproveitamento soberbo da plataforma tablet.



Ao contrário dos cd-roms dos anos 1990 “CIA: Operation Ajax” não se perde com deslumbramentos tecnológicos e multimédia, somos transportados para o reino da história que nos é contada, e tudo funciona em seu redor. Uma história centrada num evento político do século XX, o golpe de estado no Irão operado pela CIA em 1953. A obra é uma adaptação do livro “All the Shah's Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror” (2003) de Stephen Kinzer, acabando assim por trabalhar a realidade geopolítca atual que vivemos, em profundidade.

Nesta obra a narrativa é o cerne. Para isso contribui imenso a ideia de focalizar a estrutura narrativa na BD, servindo esta muito bem a progressão. Ou seja, a cada toque nosso sentimos o avanço no interior da estrutura de uma prancha, na verdade o conceito de prancha desaparece, o que temos é um “atravessar” das vinhetas, uma espécie de filme entrecortado, quadro a quadro, com animação e som, e a possibilidade de navegar para trás e para a frente. O conjunto cria uma sensação de leitura fluída, com o tempo controlado pelo leitor, mas com uma direcção narrativa capaz de imprimir ritmos e suspense. A isto adiciona-se ainda uma camada adicional de documentos fotográficos e vídeos de época que podem ser acedidos opcionalmente. Segundo Burwen o objectivo desta camada documental não era o mero aproveitamente técnico, mas tinha como objectivo aumentar o realismo narrativo,
"The features we provide will include anything we can find to augment the story we are telling, and to remind people that this stuff really did happen. That real people with personalities and families were making decisions that made a major impact on the way that we think and live today. To be able to be immersed in a narrative, and to have that narrative infused with evidence like photos or newspaper articles from the period in which the story took place, it adds an element of humanity to the drama and intrigue. I can’t go too far in revealing what we have planned, but I can say that I think it’s very exciting." [Link]
Componente documental multimédia

"Ajax" foi criado pela Cognito Comics, com a plataforma The Active Reader da Tall Chair, que funciona sobre Unity, e esteve 4 anos em produção. Parece exagero mas não é, se pensarmos que como livro de BD é desde logo enorme, com 212 páginas, a partir das quais foram produzidas 6 a 7 mil vinhetas animadas!

O que faz a diferença não é a plataforma, mas o facto da animação/interacção, de grande qualidade, ter sido desenhada quadro a quadro. Aquilo que a Marvel e outros têm tentado fazer, é criar um editor que permita rapidamente transformar pranchas em objectos navegáveis. O que temos aqui é um livro de 212 páginas, totalmente reconceptualizado, ou conceptualizado desde o início, para uma lógica de acesso interactivo, com movimento e som. A cada toque no ecrã avançamos um quadro, por vezes 2 ou 3, ou melhor avança-se uma cena. A progressão não está presa a quadros fechados, mas a ambientes que podem ocupar todo o ecrã (a antiga página) que podem desenvolver-se em vários quadros, ou um mesmo quadro no qual vão surgindo novos elementos, novos balões, etc. Não existem vozes, apenas sonoridade ambiente e música, a história continua a ser acedida através dos balões, base da linguagem BD. Ou seja, "Ajax" é todo um novo modo de contar histórias, porque não é livro nem BD, não é animação nem filme, não é site nem jogo, é um novo modo de contar histórias, é um modo integrado e interactivo, e por isso complicado de descrever sem se experienciar.

Três ecrãs que concorrem para criar uma cena, que é uma página completa.

Visão completa de uma cena que comporta vários quadros sobre um quadro geral.

Como é que surge um objecto destes? O seu principal mentor veio da indústria dos videojogos, Daniel Burwen, que trabalhou na EA e Activision, na área da ilustração. Depois de ter estalado a guerra no Iraque, em 2002, e depois de ler o livro de Stephen Kinzer, Burwen encarou o projecto BD como uma forma de dar voz ao que sentia sobre o assunto. Nesse sentido convenceu Kinzer a avançar com a adaptação do seu livro para BD. Mas em 2010, com o anúncio do iPad, resolveu mudar para o formato digital. O guião ficou a cargo de Mike de Seve que depois foi adaptado para BD por Jason McNamara (The Martian Confederacy, Full Moon). Na ilustração as capas foram feitas por Steve Scott (conhecido por Batman Confidential, X-Men Forever), o design dos personagens foi criado por Jim Muniz (X-Men, Hulk), e Steve Ellis (Iron Man, Box 13, High Moon) desenvolveu um capítulo completo. Burwen refere a propósito da complexidade da integração,
“I think the hardest part was learning how to make comics. Ajax is entirely built off traditional comics, and it’s because the traditional compositions work in print that the animation and interactivity works in the iPad version. Figuring out how to create a compelling animation style that honored the print page legacy was key. It was very easy to over-animate the content, and I discovered it’s a fine line between creating a poor film experience versus a rich reading experience.” [link]
Fluxogramas do design de interacção (a qualidade não é a melhor)

Temos aqui um trabalho movido por uma forte vontade de fazer, de comunicar e expressar, e isso faz mover montanhas. Além disso tenho poucas dúvidas em afirmar que Burwen apresenta nesta obra um talento muito especial no que toca à direcção e design de narrativa e interacção. O trabalho contém uma miríade de componentes de grande qualidade, mas a singularidade da obra emerge da direcção, da forma como foi imprimido sentido narrativo e acesso interactivo ao todo.

O maior problema deste formato de contar histórias é que uma produção com este nível de detalhe e qualidade fica muito cara. Se a produção de BD já é hoje considerada cara e de difícil rentabilização, muito por conta do online (pirataria), quando entramos neste detalhe multimédia os preços disparam, tal como diz Don Norman, “What is the future of the book? Very expensive.” Inicialmente cada capítulo era vendido por $7,99 mas recentemente o projecto foi colocado na íntegra grátis na AppStore. Este projecto acaba demonstrando várias coisas, essencialmente que a criatividade e imaginação conseguem ir muito além daquilo que por vezes temos acesso no mercado, mas que a inovação por si só não chega, é preciso que o mercado esteja pronto para a receber.

Trailer

Podem descarregar a obra, para iPad e iPhone, completamente gratuita, na App Store (484 mb).


Links de Interesse
Do comic para a animação interactiva, in Virtual Illusion
Comunicação visual digital, in Virtual Illusion
Brandon Generator, animação interactiva online, in Virtual Illusion
Reinventing the Graphic Novel for the iPadpalestra de Daniel Burwen no SXSW 2012
Narrative Mechanics - The Elements and Spaces of Interactive Storytelling, [Slides] Palestra de Daniel Burwen na React 2013

abril 18, 2014

Videojogos no "Sociedade Civil"

Ontem passei pelo Sociedade Civil para participar numa mesa de discussão sobre o "vício" em videojogos, com Jorge Loureiro, editor da Eurogamer.pt, Rogério Ribeiro, fundador do Game Studio 78 e produtor de Hush, Maria Carmo Carvalho, professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Porto, moderada pela Eduarda Maio. O debate foi interessante e produtivo, apesar do potencial de polémica que o assunto encerra. Julgo que de uma forma geral se conseguiu passar informação no sentido da desmistificação do assunto.

Sociedade Civil: Nelson Zagalo, Rogério Ribeiro, Eduarda Maio, Maria Carvalho e Jorge Loureiro [17.4.2014]

Em síntese, procurei passar a ideia de que o "vício" em videojogos, apesar de real, não é diferente do "vício" em séries de televisão, ou em telenovelas. Existem no entanto algumas diferenças no acesso a este tipo de artefactos que contribuem para que a sociedade sinta que os jogos podem ser mais viciantes, nomeadamente o facto das pessoas não controlarem o tempo que podem estar a ver uma série ou telenovela. Quando acaba um episódio que está a passar na televisão, são obrigadas a desligar. Por outro lado quem já viu séries em caixas de DVD sabe bem o quanto custa parar de ver uns episódios atrás dos outros, muitas vezes pela noite dentro.

Este tipo de vício pode ser desenvolvido também com livros, e em menor grau com o cinema (o cinema tem uma menor capacidade para exercer este vício porque não se estende no tempo). Existem vários casos de miúdos que passam dias inteiros mergulhados em livros, mas aí as pessoas não recriminam, porque a atividade de leitura é vista pela sociedade como uma atividade nobre. E esse é o outro problema dos videojogos,  é que são ainda considerados um media menor. Duas questões concorrem para esta visão, a associação com a brincadeira de crianças, algo que os pais querem afastar dos filhos à medida que crescem, e por outro lado os jogos de casino ou de azar, vistos como um lado negro do ser humano.

Ora os videojogos, apesar de serem relevantes para as crianças, não são um meio usado apenas por crianças. Tal como a banda desenhada, são meios que servem a comunicação humana, e a comunicação pode ser dirigida a qualquer faixa etária. No caso dos jogos, o seu público majoritário está neste momento situado na faixa dos 30 anos. Relativamente aos casinos, não existe qualquer relação, já que os videojogos se situam no terreno do chamado “círculo mágico”, ou seja aquilo que acontece ali não pode ter efeitos na realidade, como acontece num casino em que se pode perder ou ganhar dinheiro real.

No fundo, os videojogos devem ser vistos, como são vistas as séries de televisão, os filmes no cinema ou os livros da literatura. Se me preocupo com aquilo que os meus filhos veem na televisão, também tenho de me preocupar com aquilo que jogam. Se não quero que o meu filho passe o dia em caso fechado a ver filmes, também não devo querer que passe o dia jogar. Todos estes media/artes servem os seres humanos de forma fundamental, informando-os e agilizando-os socialmente, são importantes para a regulação da vida em sociedade, mas todos eles precisam de ser consumidos com moderação, e de forma suficientemente diversificada. Um livro não dá o mesmo que um jogo, nem um jogo dá o mesmo que um filme. Mas na vida, a maior parte daquilo que precisamos e aprendemos, é com os outros seres humanos, por isso os media devem ser usados com moderação, é preciso dar tempo aos que nos rodeiam, eles precisam de nós, mas nós também precisamos deles para crescermos.

O programa pode ser visto na íntegra no RTP Play.

"Monument Valley", estéticas do impossível

Uma obra-prima de design, tanto no design de jogo como no design gráfico. Monument Valley está carregado de influências, não num sentido intertextual, mas antes como raízes conceptuais criativas, que vão de M.C. Escher a Fez (2012), passando por Echochrome (2008) e Wonderputt (2011).



É evidente que não existiria Monument Valley sem MC Escher, um artista gráfico que tem servido de inspiração a muitos de nós pela força do seu trabalho. Escher demonstrou por via do grafismo como a realidade que vemos e que tanto sentido faz, é por vezes verdadeira ilusão. As suas dimensões impossíveis continuam a exercer forte encantamento sobre nós, pela forma como misturam o real e o virtual, criando uma espécie de caminhos para o possível.

Relativity (1953) M.C. Escher

Monument Valley serve-se dessa força encantatória do impossível para criar o seu mundo de jogo e para nos seduzir. Mas se fosse apenas por Escher, seria apenas mais um jogo como Echochrome (2008), entre múltiplos outros pequenos jogos que já tentaram explorar esta ideia. Muitos têm tentado explorar as lógicas visuais de Escher, porque quando olhamos para as suas obras sente-se uma tremenda vontade de lhes dar vida, de as colocar em movimento, de passear dentro delas. Mas a verdade é que muitos dos trabalhos que se têm socorrido deste universo visual ficam-se pela sombra de Escher, não conseguindo ir além daquilo que já temos nas telas.

Echochrome (2008) Sony Japan

Por isso quando tomei conhecimento de Monument Valley fiquei logo algo receoso de ser apenas mais uma mera tentativa de gamificar os mundos de Escher. Mas quando começamos a jogar percebemos que é claramente mais do que isso, uma das primeiras evidências surge com o design gráfico e a atmosfera, que seguem o minimalismo do trabalho de Escher, na evolução visual das suas obras pela cor, movimento e som. Cada um dos níveis possui uma atmosfera bem delineada, e acima de tudo muito coerente em si e no conjunto dos 10 níveis. Todos os elementos — cor, movimento e traço — trabalham para solidificar o universo de jogo, transformando-o num espaço imensamente atrativo e envolvente.

Mas se Monument Valley fosse apenas um conjunto coerente de universos audiovisuais envolventes, seria apenas uma interessante animação. O design de jogo é ele próprio brilhante, no sentido em que serve o universo impregnando-o de interesse, motivando-nos assim a perscrustar cada detalhe de cada ecrã, muito na linha de Wonderputt (no meu Top 10 2011). Porque o design não se limita à resolução dos espaços impossíveis, ele é servido por um conjunto de personagens muito relevantes, que conferem uma camada adicional de valor e envolvência ao espaço, gerando narrativa e jogabilidade, tal como temos em Fez (no meu Top 10 2012).

Wonderputt (2011) de Reece Millidge

Fez (2012) de Phil Fish

De forma geral, podemos dizer que o design é progressivo e bastante balanceado. A cada novo nível, novos elementos são trazidos para o espaço de jogo, e apesar de sentirmos que o jogo espera mais de nós, cognitivamente na sua resolução, nunca nos sentimos presos num espaço por tempo demasiado. Ou seja, a dificuldade foi algo muito bem balanceado, demonstrando que os autores estavam mais interessados em criar um universo interativo que fosse gerador de emoções estéticas do que de resolução de problemas. Aliás a demonstrar esta vontade de criar uma experiência estética, e não uma fórmula de puzzles, é o facto de o jogo conter apenas dez níveis, preocupados em desenhar uma experiência única — com um princípio, meio e fim — longe do mero sucedâneo de níveis sem fim.


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