março 15, 2014

O que faz um storyteller?

Acabei de ver Saving Mr. Banks (2013) um filme que retrata o modo como Walt Disney convenceu Pamela Travers a ceder os direitos de adaptação de Mary Poppins ao cinema. Tom Hanks e Emma Thompson formam uma dupla brilhante na encenação do drama dos criativos. Tudo aquilo que criamos está ligado a algo que vivemos no passado, algo só nosso, e por isso é tão difícil por vezes desprender, desligar, deixar que outros tomem conta de algo que é parte de nós. O melhor do filme é servido num diálogo entre Disney e Travers, em que Walt Disney fala da sua infância, e expressa o que entende ser a sua missão,
“Because, that's what we storytellers do.
We restore order with imagination.
We instill hope, again and again and again.”
Saving Mr. Banks (2013)

março 14, 2014

"The Art of Immersion: How the Digital Generation Is Remaking Hollywood, Madison Avenue, and the Way We Tell Stories" (2011)

Para ser muito sincero, não sei como cheguei ao final deste livro. Julgo que tanto hype em seu redor me obrigou a ler até ao final, não com a expectativa de poder vir a aprender algo, mas antes para tentar perceber o razão do seu sucesso. Como é possível escrever um livro como se os capítulos não passassem de artigos de revista estendidos, no qual se cometem erros, se dizem banalidades, se atiram especulações ao ar!? A ideia central do livro é apresentar o conceito "transmedia" como uma das maiores invenções da atualidade, apenas possível graças à internet, algo que está a revolucionar totalmente o mundo do entretenimento! Mas é possível tanta ingenuidade? E é possível que tanta ingenuidade apresente tantos seguidores? Mas afinal quem são estas pessoas?

“The fundamental premise of broadcast television was the ability to control viewers… but this control began eroding with the VCR… and was blasted away entirely by the Web.”
Pensando um bocado, percebe-se quem são os que escrevem e os que fazem boas análises deste livro, não são criativos, menos ainda artistas, são marketeers, deliciados com as manobras discursivas que lhes permitirão dar novos saltos no engajamento com os clientes. Sim clientes, aqui não existe público, não existe audiência, menos ainda espectadores, leitores ou jogadores, aqui existem apenas e só os produtos e os seus clientes. Depois de começar a ler este livro concluí algo sobre uma ideia que já me andava a incomodar há algum tempo, o transmedia para uma grande parte dos actores é apenas e só uma estratégia de marketing!

Aliás o transmedia acaba aqui sofrendo o mesmo drama que sofre a gamification, ambos muito badalados, amplamente discutidos por pessoas de fora das áreas, acabando por ambos serem também extremamente enaltecidos pelo mesmo grupo, os marketeers. Eu não tenho nada contra os marketeers, mas é verdade que me começa a incomodar esta intromissão, ou melhor invasão de áreas alheias. Eu até percebo que lhes interessem os conceitos, mas podiam criar os seus próprios, sem tentar rentabilizar conceitos que devem ser olhados de uma perspectiva criativa e não mercantilista.

Por outro lado todo o discurso de Rose acaba sofrendo de alguma esquizofrenia. Se por um lado passa o tempo a falar em lucro de milhões, por outro passa o tempo todo a tentar explicar que o público deixou de ser um mero consumidor, para passar a ser autor, um participante criador. Aliás Rose elabora toda uma teoria para explicar que abandonámos a metáfora do "couch-potato" para abraçar a do “otaku”! Segundo ele passámos a viver num mundo de gente obsessiva, os ultra-fãs, dispostos a tudo para expandir os universos das séries, dos filmes, dos jogos. O público deixou de ser controlado pelos media, passando ele a controlar os media, apesar disso continuam a gerar receitas bilionárias para as grandes empresas, trabalhando de graça!

O que é mais ingénuo em tudo isto é o assumir de que a internet revolucionou o mundo, e não mudou apenas o storytelling mudou toda a nossa maneira de ser! Acreditar que hoje somos "otakus" é tão ridículo como acreditar que ontem éramos meros "couch potatos". O mundo não gira apenas em redor de um aparelho de televisão ou de um computador, cada um de nós tem muitos mais interesses além dos media, tirando os casos patológicos que se convertem em transtornos obssessivo-compulsivos, a grande maioria das pessoas saudáveis gere uma miríade de interesses, sem se deixar afectar por isso. Já o fazia antes da internet, e continua a fazê-lo hoje, assim como já antes da internet existiam pessoas mais sensíveis que se deixavam enredar completamente por estes universos, existiam também grupos de partilha de interesses que se juntavam em cidades, criavam associações, criavam fanzines, interagiam. A internet só tornou a comunicação mais fácil, mas acima de tudo tornou tudo isto mais visível para quem antes nunca se tinha dado ao trabalho de tentar compreender que esta realidade sempre fez parte daquilo que somos, seres sociais, altamente sedentos de confirmação pelos outros.

Segundo Rose passámos de uma geração "couch potato" a uma geração "otaku" que produz e controla, será?

Se o livro resulta num amontoado de capítulos soltos sem uma direcção nem um objectivo, existem alguns que são absolutamente impressionantes de ocos que são. No terceiro capítulo, “Depth”, Rose passa o capítulo inteiro a prestar vassalagem a James Cameron, e às suas capacidades extraordinárias para criar universos ficcionais (!!!), isto a propósito das alegadas grandiosas ideias para "Avatar". Diz Rose que Avatar is “not just a movie. It’s a world.”, indo ao ponto de afirmar que a arte do cinema “has not created an original universe since Star Wars.” (!!!). Mas talvez Rose até tenha razão, na verdade Lucas e Cameron são verdadeiras máquinas de criação de propriedade intelectual marketizável. Mas ser um grande vendedor está longe de ser um grande criador de mundos ficcionais. Reconheço que um não passa sem o outro, mas não confundamos as competências.

Rose passa todo o tempo a falar em milhões, quantos milhões cada estratégia rendeu, através do suposto transmedia, algo que segundo ele só aconteceu pela primeira vez nos anos 1970 (!!!). E fala sem qualquer suporte sobre o impacto que cada estratégia produz. Já quando não há impacto, esquece-se de falar. O exemplo mais grotesco é do próprio Avatar, seguindo as teorias de Rose, o videojogo de Avatar deveria ter sido catapultado pelo gigantesco sucesso do filme, mas isso não aconteceu. Aqui a abordagem transmedia falhou, mas em vez de o reconhecer, Rose parte para acusações ridículas, diz ele que o problema foi que a Ubisoft utilizou como motor de jogo o Cry Engine 2, o mesmo de Far Cry 2, e que já estava desactualizado. Resumindo, para Rose Avatar filme terá tido sucesso porque inovou imenso na tecnologia 3D, como no jogo se limitaram a usar tecnologia preexistente, o jogo não vendeu (!!!) Então mas não passou páginas e páginas a falar de Cameron, o mago criador de universos ficcionais? Não esteve páginas e páginas a falar no poder mágico do transmedia, que contamina tudo à volta? Então e no final do capítulo é que se lembra de falar da tecnologia?

A verdade é que devia ter parado de ler logo no início quando Rose diz que “estamos perante a emergência de uma nova forma narrativa que é nativa da internet”. Que obsessão e ao mesmo tempo limitação. Quer-me parecer que o otaku aqui é Rose, que se deixou inebriar pelo “poder” ou “encanto” da rede, capaz de tudo transformar e tudo resolver. E o mais ridículo é que Rose até fez um pequeno esforço para ir lá atrás perceber que o seriado é algo que vem de há muito, não é nenhuma novidade, quando fala do exemplo de Dickens que seguia as reacções das pessoas para ir transformando as histórias que contava nos episódios seguintes do seu romance “The Pickwick Papers” (1836), tal como sempre fizeram todos os contadores de histórias. A internet não inovou nada aqui, aliás bastante antes desta, já no Brasil os guionistas seguiam a audiometria da TV para gerir as histórias da novela das 20h. Quanto ao transmedia surgir nos anos 1970, o que dizer dos parques temáticos da Disney surgidos nos anos 1950? E o que dizer de toda a tradição secular transmedia operada pelas religiões para controlar e manipular o seu grupo de seguidores?

Este livro é um amontoado de nada, nada de novo é dito, e quando se aventura a elaborar, é para cair em banalidades e falsidades. O próprio nome do livro é um autêntico engodo, verdadeira estratégia marketeer, fazendo uso de um conceito amplamente usado no contexto das tecnologias de realidade virtual, para falar de transmedia. Pelo meio vai falando atabalhoadamente de videojogos, dos blogs e do “revolucionário” twitter, chega até a falar do Holodeck. Mas o que me parece é que Rose está acima de tudo interessado em oferecer consultoria às grandes empresas de produção de conteúdos, e daí que o transmedia seja algo muito mais palpável e fácil de prometer. Aliás o nome em francês do livro é muito mais correcto e digno do que o logro do título original, simplesmente “Buzz”.

Existe aqui um deslumbramento com o potencial da internet, e o facto do seriado se ter tornado mainstream na televisão com “Sopranos” (1999) ou “Lost” (2004), mas isto foi há mais de 10 anos. Rose não diz nada que vá além, ou sequer se aproxime daquilo que Steven Johnson já disse em “Everything Bad Is Good for You” (2005) a propósito da evolução da narrativa na televisão. Aliás foi em 2006 que escrevi um artigo sobre estas mesmas questões "Television Drama Series’ Incorporation of Film Narrative Innovation: 24". Vir dizer que a não-linearização da narrativa no cinema, como acontece em “Inception” ou “Pulp Fiction”, aconteceram por influência dos videojogos é de uma ingenuidade, ou melhor falta de visão cultural atroz. Quanto a tudo o resto que nos é dito, nada é acrescentado a “Convergence Culture: Where Old and New Media Collide” de Henry Jenkins. E ainda que eu tenha reservas quanto ao trabalho de Jenkins, que também tem vindo a dirigir-se para os domínios do branding e marketing, o seu cuidado nas afirmações que faz coloca-o num patamar completamente diferente do sensacionalismo bruto de Rose.
“a new type of narrative is emerging — one that’s told through many media at once in a way that’s nonlinear, that’s participatory and often game-like, and that’s designed, above all, to be immersive.”
Esta afirmação é a síntese do que Rose pretende apresentar com o livro, é uma síntese bem escrita, que à superfície é coerente e parece espelhar a realidade do momento. Mas não passa de um conjunto de ideias colocadas num mesmo cesto com o objectivo de se tornarem atractivas, mas essencialmente incapazes de responder aos reais desafios da narrativa e storytelling da atualidade, menos ainda aos anseios das empresas a quem Rose espera vender os seus dotes. Rose promete a essas empresas a solução para todos os seus problemas, que passa por deixarem de criar spots publicitários de tv, deixarem de criar longas ou livros, para se apostar tudo na criação de “universos ficcionais” espartilhados e participativos. Passa a interessar apenas o franchise, a propriedade intelectual por detrás da história, que por sua vez se encarregará de gerar todo um mundo de oportunidades comerciais, nomeadamente através dos batalhões de "otakus" na rede dispostos a trabalhar de graça para passar a palavra.

Tudo isto não passa de um conjunto de intenções, acima de tudo de um bom discurso de marketing. Porque os “universos ficcionais” com esta capacidade de se tornarem centros aglutinadores são raros, a grande maioria apenas cria a ideia, limitando-se depois a impingir um amontoado de produtos paralelos, que já não são fruto criativo da narrativa, mas antes fruto estratégico de merchandising. E esses, assim como surgem, rapidamente desaparecem. Criar uma boa história continua a ser algo bastante complexo, muito longe de poder seguir uma mera formula criativa com garantias de sucesso. O cerne de todo este problema é que para que um “universo ficcional” se crie, nos moldes que Rose deseja, é preciso primeiro criar uma história que funcione, e é isso que Rose aqui ignora por completo.

Para fechar e em jeito de provocação, pergunto, se o mundo é agora totalmente participativo graças à internet, e se tudo pode ser explorado por via das maravilhas do transmedia, sendo a base do presente e futuro de toda a produção de conteúdos, porque é que Rose escolheu um dos meios e modelos (o livro) mais antigos para contar a sua história?

março 13, 2014

Narrativa e Motivação, "Bioshock Infinite" (Parte II)

Depois de ter analisado o tema e arte de Bioshock Infinite trago agora uma análise sobre o design de jogo e de narrativa. Bioshock Infinite soube trabalhar muito bem a gratificação narrativa com um final de jogo intensamente compensador. A impressão muito positiva criada no final conseguiu optimizar toda a experiência do jogo, isto porque as memórias de uma experiência estão mais ligadas aos momentos intensos e essencialmente ao modo como terminam.



Em termos de história partimos da ideia básica de “salvar a princesa”, mas à medida que avançamos percebemos que a premissa não passou disso mesmo, de um motivador. Bioshock Infinite apresenta uma das narrativas mais elaboradas que podemos encontrar nos videojogos, não sendo fácil de seguir, já que se socorre de uma não-linearidade à lá "Inception" (2010) permitida por uns portais de tempo, as “lágrimas” os "rasgões". Apesar da complexidade, o jogador acaba sendo conduzido pela mão, e apesar de nunca chegar a compreender plenamente tudo, tal como em Inception, aos pouco vai percebendo que foi enganado e instrumentalizado. Toda esta confusão narrativa bem balanceada contribui para que no último quarto do jogo a história atinja um clímax raramente visto em videojogos, permitindo uma total imersão no imaginário narrativo, ganhando-se apenas aí a compreensão do que representou aquela viagem. Se o jogo nos envolveu e conduziu por meio da visceralidade visual, a última hora é inteiramente liderada pela narrativa, que toma o controlo total da acção e gratifica intensamente o jogador por ter persistido e ter levado a aventura até ao final.

Para tudo isto contribui a IA de Bioshock Infinite, nomeadamente de Elizabeth da qual falei aqui antes. Embora tenha a dizer que Elizabeth desenhada quase 10 anos depois de Alyx (Half-Life II , 2004) ou 12 depois de Yorda (Ico, 2001) não conseguiu tocar-me tão profundamente como estas. Sinto Elizabeth demasiado distante, o facto do jogo ser em primeira-pessoa não ajuda, mas por isso mesmo no seu desenho deveriam ter sido incluídos olhares directos para nós, mais incisivos, como acontecem com Alyx. Sem corpo, resta-nos o olhar para criar a sensação de conexão humana, a empatia, algo que não se cria apenas com a forma e o diálogo. Depois julgo que o desenho do seu comportamento, nomeadamente em momentos de luta poderia ter sido desenhado de forma a criar maior proximidade, as ajudas dela são interessantes, mas no final do jogo sente-se a mecânica e perde-se a química. 

E é esta constatação de mecanicismo e repetição que me leva ao cerne deste texto para discutir as questões sobre o design de jogo, as opções sintácticas dos criadores para cruzar a narrativa e jogo. Porque mais uma vez tive de sofrer a angústia de me forçar a terminar o jogo, quando já nada em mim o queria fazer. As intermináveis batalhas, tiros e mais tiros, explosões e destruições a roçar o mecânico, repetitivo, vazio de significado ou propósito. Por isso mais uma vez me questionei sobre a dualidade expressiva dos jogos de Acção e Aventura. Daqui lanço várias questões: 

Porque temos de passar todo o tempo a matar? Porque apenas podemos sorver história quando entramos num momento de pausa? Porque não podemos interagir com a história? O que quer dizer interagir com a história? O que diferencia a interacção com a história da interacção com os tiros, as lutas, as mortes? E os tiros e as lutas não fazem parte da história?

No meu livro sobre Emoções Interactivas (2009), apresento um estudo no qual detectamos que a maioria dos jogos prima por explorar emoções negativas ativas - Raiva, Medo, Tensão, Nojo, Stress. Por outro lado no livro “Contagious” (2013) de Jonah Berger, os seus estudos demonstram que estas mesmas emoções são as mais capazes no que toca a conduzir as pessoas a partilharem mensagens online. Daqui podemos entender que uma parte do problema desta discussão assenta numa questão que já tinha levantado antes a propósito da tristeza nos jogos, e que lida com o Paradoxo da Emoção Interativa (Zagalo, 2009:299). Ou seja, para eu agir sobre o mundo, interagir, preciso de ser estimulado a isso, e o que verificamos é que as emoções negativas ativas são as mais eficazes. Já se estimularmos emoções negativas inactivas - Tristeza, Melancolia, Aborrecimento - as pessoas tenderão a não querer interagir.

Isto explica em certa medida porque os jogos tendem a propor-nos o acto de matar, ou  talvez melhor seja dizer, o acto de “não ser morto”. O que nos leva a querer interagir é a tensão criada pela avalanche de inimigos (obstáculos que temos de transpor) atirados sobre nós com o objectivo de nos eliminar. O que nos motiva é não morrer, não perder, para poder continuar dentro da história. O medo de morrer (ex. Medal of Honor) pode ser ainda explorado e potenciado pela raiva do que nos fizeram antes (ex. Max Payne), ou o nojo (ex. Silent Hill).

No fundo os videojogos usam e abusam de todas as formas capazes de nos colocar sobre o fio da navalha do “Game Over” - inimigos, armas, plataformas, etc - sendo o medo de perder que nos mantém ativos, que nos mantém capazes de continuar a apertar botões, a empurrar sticks e a resolver puzzles. Aliás a motivação para a interacção nos videojogos de acção acaba sendo quase sempre feita com base em situações de morte eminente. Ou seja a situação de perda mais grave, no caso de existência de personagens envolvidos numa história.

Mecanicamente esta forma de desenhar um videojogo de acção difere muito pouco da forma como se desenha um qualquer jogo competitivo - futebol, corrida de carros, luta - porque no fundo falamos de mecânicas que motivam os humanos a agir. Se numa corrida tudo fazemos para manter o carro dentro da pista, é porque queremos ter hipótese de chegar ao final. Em Bioshock Infinite tudo fazemos para nos manter vivos, e assim chegar ao final da história. Se no futebol tudo fazemos para defender e marcar golo, é para não perder o jogo, assim como em Bioshock Infinite tudo fazemos para matar todos, para que não nos matem a nós, e não nos façam perder espaço ou itens já conquistados, para ganharmos e podermos continuar a avançar.

Mas aqui estamos apenas a falar das lutas, das batalhas, dos tiros, matar ou morrer, que acabam configurando um dos “modos de jogo” de um videojogo de acção. Porque quando as lutas acabam, iniciam-se diálogos, encontramos notas de leitura, vídeos explicativos que contam o que aconteceu ali, ou seja entramos no chamado “modo história”. E aí desaparece a guilhotina do game over, desaparecendo assim a tensão, consequentemente fazendo-nos entrar no modo relaxe, no modo passivo. Aliás se reflectirem o que acontece quando entramos nas cutscenes (interactivas ou não), é que relaxamos, são momentos desenhados no jogo exactamente para nos permitir respirar da tensão passada nos confrontos de Jogo.

Mas isto quer dizer que as histórias não podem gerar tensão? A questão que se deve colocar, é se as histórias conseguem gerar suficiente tensão para nos fazer agir fisicamente? Mentalmente sabemos que é suficiente, adoramos cinema e séries, sendo que o género mais popular é o Drama e não a Acção ou Horror. As histórias motivam-nos a agir mentalmente, apenas lançando problemas e questões que procuramos resolver mentalmente. Mas serão então, simples questões, suficientes para nos fazer agir fisicamente?

Talvez. O género específico de Aventura Gráfica viveu disso apenas. Myst (1993) não tinha mortes, nem tiros, não tinha sequer game over! O que nos motivava a agir era o mesmo que nos motiva a agir num livro ou filme, a busca de respostas às interrogações que o jogo nos colocava. Mas sabemos bem como as Aventuras Gráficas são menos dinâmicas que a Acção/Aventura. Mas será que tem de ser mesmo assim? Será que não conseguimos criar condições de perda como os inimigos ou o cair de plataformas, para avançar uma história de forma dinâmica?

Não julgo que nos falte descobrir um graal como continuamos a advogar sobre a relação jogo/história nos videojogos, julgo que o que é necessário são criadores com capacidade de usar as ferramentas à sua disposição para de modo equilibrado obter o melhor dos dois mundos. Conseguir obter a intensidade das emoções activas do jogo, e fundi-las com as emoções inactivas da narrativa. Temos bons exemplos disto mesmo, e sempre que os re-analiso - The Last of Us - verifico que dependem não de inovação técnica ou tecnológica, mas de Equilíbrio e Balanceamento. Apesar de geralmente encontrarmos o desequilíbrio a tender para o jogo, ou seja a competição com luta, tiros e morte, podemos encontrar o desequilíbrio contrário, em jogos como Heavy Rain (2010) ou Beyond Two Souls (2013), a tender para a história em detrimento do jogo.

Ou seja, respondendo às questões que me lancei quando acabei BioShock Infinite, podemos interagir com a história sim, e os tiros e as lutas podem fazer parte dessa história também, isso só requer equilíbrio por parte dos criativos. Essencialmente evitar prolongar áreas artificialmente apenas porque é possível tecnicamente, as áreas devem durar apenas a duração que a narrativa permitir. Se a narrativa não aguenta mais, e precisam de fazer durar mais o jogo, reescrevam a história, as histórias são tão elásticas como os jogos, basta olhar para o que é feito nas séries de televisão. Elas só precisam que lhe seja garantindo o timing, para que o seu significado tenha valor e compense o jogador. De certo modo talvez esteja a colocar o jogo ao serviço da narrativa, mas a narrativa organiza sentidos, compreensão, o jogo está mais focado em estimular a emoção. Não é por acaso que depois da montanha russa de batalhas Ken Levine necessite de quase uma hora de jogo em modo narrativo para dar sentido a tudo o que vimos, e recompensar os jogadores.


Parte 1 da análise a Bioshock Infinite

março 11, 2014

Criar mundos de ficção

O que é uma história? Como criamos uma história? Como criamos um mundo de ficção? Questões relevantes para quem escreve, desenha ou cria para videojogos, literatura, cinema, televisão, parques temáticos, cenografia, coreografia, etc. o storytelling está hoje por todo o lado, e por isso saber como nos devemos e podemos posicionar no uso das ferramentas narrativas, pode ajudar-nos em muitos momentos da nossa vida expressiva e de interacção com o mundo.


Kate Messner, numa curta mas muito interessante animação, explica de onde surge o poder das histórias, e como se constrói esse poder, por onde se começa a sua estrutura. A explanação está focada apenas no mundo ficcional, não entra na discussão da estrutura narrativa, contudo sobre essa podemos encontrar outras comunicações interessantes como a TED do Andrew Stanton. Assim o que temos aqui em poucos minutos é uma abertura sobre o mundo das histórias, sobre aquilo que as sustenta, aquilo que faz com que a audiência as consiga sentir e compreender, se envolva e se possa recordar no dia seguinte de as ter vivido.

How to build a fictional world (2014) de Kate Messner

"Just like real life, fictional worlds operate consistently within a spectrum of physical and societal rules. That’s what makes these intricate worlds believable, comprehensible and worth exploring…

Authors of science, fiction and fantasy literally build worlds they make rules, maps, lineages, languages, cultures, universes, alternate universes within universes and from those worlds sprout story, after story after story…

Once you know your world, as well as you hope your reader will, set your characters free in it and see what happens."

março 10, 2014

Damásio fala da Criatividade e do Social

António Damásio esteve em Porto Alegre no Brasil a participar na conferência Fronteiras do Pensamento 2013, organizada pelo Instituto CPFL Cultura. Mário Mazzilli aproveitou a sua passagem pelo Brasil para lhe realizar uma interessante entrevista que foi entretanto vertida para um pequeno documento audiovisual e colocada online.


Ao longo dos 30 minutos que dura a entrevista, Damásio, de um modo muito calmo, vai discorrendo sobre vários temas que para muitos deveriam ser tratados separadamente mas que são impossíveis de dissociar quando queremos tratar as questões do cérebro e consciência. Falo do facto de Damásio ter um discurso fortemente contaminado pelas Artes e Ciências Sociais em conjunto com as Neurociências e a Biologia. Num tom académico e humilde Damásio consegue permear todas estas áreas, sem as sobrepor, num contínuo de coexistência e codependência, porque no fundo é como Damásio diz, quando falamos de cérebro, falamos de Vida.

Logo a abrir a entrevista, uma afirmação rápida deixou-me a reflectir, Damásio refere-se ao Teatro e ao Cinema como "artes complexas", em face das clássicas Pintura, Escultura e Música. Em parte isto deve-se ao facto de o Teatro e o Cinema serem artes de síntese das artes ditas clássicas, e por isso em termos de produção requererem conhecimento não apenas da arte em si, mas também das anteriores. Mas é interessante como continuamos ainda assim a assistir a algum desdém por parte do meio das artes clássicas face a estas. Julgo que pode estar relacionado com algum purismo face aos discursos, a singularidade de cada uma destas, e isso pode explicar também em certa medida a relutância em aceitar os videojogos como arte. Por isso escrevi aqui há algum tempo o texto “A singularidade da linguagem dos videojogos" e ainda por estes dias escrevi a propósito da multiplicidade de especialistas requeridos para se criar um jogo como "The Last of Us".

Ao longo da entrevista Damásio vai tocando o tema da criatividade, já que ele é director do Brain and Creativity Institute da USC. Gosto da abordagem que faz quando coloca a Criatividade a par da Memória e da Imaginação, defendendo que não existe criatividade sem memória, porque a criatividade emerge através de um processo de colagem, de "montagem cinematográfica", das memórias que preexistem em nós. Isto vem de encontro ao que ando a defender há muito, a propósito da ideia de que a criatividade se encontra no remix. E é por isso que quando leio algumas tiradas levianas como as de Umberto Eco, defendendo que não é importante as crianças saberem história porque o Google lhes diz quem fez o quê e quando e que o que é importante é saber filtrar a credibilidade de páginas web, me arrepio.
“a memória é absolutamente indispensável para que exista criatividade… é do facto de poder relembrar e manipular imagens que nasce a nossa fonte criativa… as memória são imagens, não visuais, são representações mentais…” Damásio na entrevista
Damásio defende a uma certa altura uma visão humanista da ciência. Uma ciência que se preocupa com a cultura humana, que para perceber o que temos hoje, investiga o que tivemos no passado, uma ciência que se preocupa com os problemas de forma longitudinal e em profundidade. Porque não quer uma ciência que apenas está preocupada em resolver problemas, em realizar avanços tecnológicos por realizar, porque como ele diz, nem toda a ciência é boa e “é possível fazer ciência que é horrível”.

Isto vem de encontro ao que Morozov tem defendido e vem apelando, que não se embarque na ideia do progresso inevitável da tecnologia, da obrigatoriedade de nos adaptarmos aos efeitos da tecnologia. Pode ler-se sobre isto no seu último livro, "To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism" (2013) (farei a análise do mesmo aqui em breve). Nesta sintonia entre Damásio e Morozov, que pode parecer complexa e paradoxal, defendermos que a ciência tem limites, ajuda-nos a relembrar que o mais importante é aquilo que defendemos enquanto seres humanos, e não ideias no abstracto por mais lógicas que nos possam parecer.

"Entrevista com António Damásio" (2013) por Fronteiras do Pensamento e Instituto CPFL

Na senda desta abordagem ao mundo e à ciência, Damásio fala dos problemas das "dores morais", ou da depressão, e relaciona-as com "a velocidade a que a informação e a cultura entram no nosso cérebro" nos dias de hoje, para nos relembrar que "não fazemos a mais pequena ideia se isto é bom ou mau", porque teremos de estudar as consequências de tudo isto ao longo dos próximos anos. Uma opinião de enorme sensatez, como seria de esperar, e que vem mais uma vez de encontro a algumas ideias que me venho interrogando muito sobre a questão da velocidade da sociedade de informação e comunicação.

Penso desta mesma forma porque quando me aproximo da ideia de culpar a velocidade atual a propósito do excesso de entropia, percebo que no passado as coisas não foram tão lentas como pensamos, porque não estamos a comparar realidades, mas antes a realidade que vivemos atualmente com representações da realidade que fomos construindo a partir da cultura sobre esse passado. Por outro lado, sabemos também que passámos por imensos estádios de desenvolvimento tecnológico, nomeadamente nos últimos 200 anos, mas que soubemos sempre adaptar-nos.

Agora essa adaptação não quer simplesmente apenas dizer que a tecnologia seguiu o seu rumo, e nós aceitámos, e evoluímos, mas antes que soubemos adaptar o mundo, as tecnologias e nós próprios em função daquilo que seria melhor para a espécie. Ou seja, o tal processo de "homeóstase sociocultural" de que Damásio fala, em que muitos de nós podem contribuir para fazer evoluir e progredir a ciência e tecnologia, enquanto muitos outros contribuem para reflectir, criticar e chamar à razão sobre a mesma. Por isso mesmo é que não podemos apostar tudo apenas na Ciência e Tecnologia, precisamos das Artes e Humanidades para contrabalançar, precisamos de ouvir vozes dissonantes, de ouvir diferentes pontos de vista sobre cada inovação, sobre cada avanço, para podermos evoluir sim, mas de forma equilibrada.

março 09, 2014

Estética do Excepcionalismo Americano, "Bioshock Infinite" (parte I)

Comecei por escrever um texto sobre a experiência de Bioshock Infinite mas em virtude da quantidade de ideias e discussões que este despertou em mim, vi-me obrigado a dividir o texto em duas partes, tanto pela extensão como pelos assuntos a discutir. Assim apresentarei nesta primeira parte, um texto sobre a arte e tema, e numa segunda parte um texto sobre o design de jogo e de narrativa.




"Bioshock Infinite" (2013) de Ken Levine é uma montanha russa de emoções estéticas, principalmente geradas pelo cenário e toda a arte visual que suporta o jogo. A entrada em Bioshock Infinite assemelha-se à entrada num parque temático, perfeitamente construído, extremamente coerente, e fortemente atractivo. Toda a componente visual é levada ao extremo do detalhe, nomeadamente no campo da arquitectura e escultura, e ainda com um controlo de luz impressionante capaz de captar os menores brilhos do cenário.

Se no tempo somos atirados para 1912, no espaço somos introduzidos a um dos elementos mais impressionantes do jogo, a cidade flutuante. Uma cidade impossível que contribui para o desenho do imaginário central de Bioshock Infinite, capaz de realizar à nossa frente algo que conhecemos apenas dos mundos do fantástico. Toda a cidade, banhada por uma luz magnífica capaz de dar a ver os detalhes mais ínfimos, subjuga-nos à contemplação e ao êxtase.

Mas para se compreender completamente Bioshock Infinite é preciso compreender as raízes estéticas que alimentam todo o seu ambiente visual, sonoro e narrativo, e que se podem encontrar de forma concentrada debaixo de um movimento político designado de Excepcionalismo Americano. Não sendo uma corrente estética, orientou uma forma de estar no final do século XIX, fruto de vários eventos decorridos no seio dos EUA com um forte apoio de cultura oriunda de França. À medida que escavamos o tema encontramos mais e mais ligações estéticas, culturais e políticas, e é sobre elas que me irei deter neste texto sobre Bioshock Infinite.

Uma das melhores sínteses sobre o Excepcionalismo Americano pode ser encontrada, ainda antes do termo ter sido cunhado, em “Democracy in America” de 1840 por Alexis de Tocqueville,
“The position of the Americans is therefore quite exceptional, and it may be believed that no democratic people will ever be placed in a similar one. Their strictly Puritanical origin, their exclusively commercial habits, even the country they inhabit, which seems to divert their minds from the pursuit of science, literature, and the arts, the proximity of Europe, which allows them to neglect these pursuits without relapsing into barbarism, a thousand special causes, of which I have only been able to point out the most important, have singularly concurred to fix the mind of the American upon purely practical objects. His passions, his wants, his education, and everything about him seem to unite in drawing the native of the United States earthward; his religion alone bids him turn, from time to time, a transient and distracted glance to heaven. Let us cease, then, to view all democratic nations under the example of the American people.”
Neste texto podemos perceber o optimismo e o enfoque dos interesses da cultura subjacente a este período da história americana, e que serve quase de sinopse ao mundo ficcional que podemos visitar em Bioshock Infinite. Mas Bioshock Infinite eleva a sua abordagem ao extremismo político apresentando uma visão do mundo fortemente influenciada pelo chamado Manifesto do Destino do século XIX, defendido por uma facção política mais extremista, que assentava a sua visão em três pilares:
  • A Virtude do povo Americano e das suas Instituições
  • A Missão, espalhar a palavra e refazer o mundo à imagem dos EUA
  • O Destino traçado sob o desígnio de Deus
Esta visão mais extremista foi desencadeada por vários factores, nomeadamente a conquista do Oeste americano, que significou a chegada da civilização por meio da modernização - telégrafo, comboio e cultura - assim como pela própria independência dos EUA que passou a ser personificada pela figura de “Columbia”, nome criado a partir do nome do descobridor da América, Cristovão Colombo (Columbus) e da finalização “ia” do Latim para região, como Lusitania ou Britania. Assim Columbia passaria a significar os EUA, sendo uma figura que se pode ver espalhada por muita arte do final do século XIX e início do XX, tal como podemos ver aqui abaixo, e que é em Bioshock Infinite o nome escolhido para atribuir à cidadela aérea.

"American Progress" (1872) de John Gast. Neste quadro podemos ver a personificação de Columbia que carrega para o chamado Oeste Selvagem a civilização com as linhas de telégrafo, o comboio e a cultura dos livros.

Cartaz americano de apelo ao patriotismo durante a Primeira Grande Guerra. Columbia assume as cores da bandeira americana e apresenta os traços visuais que iriam imbuir toda esta estética. 

Mas Columbia não é apenas a personificação dos EUA, ao surgir neste período da história dos EUA, ligada ao descobridor das américas e à colonização do Oeste, acabaria por se transformar no símbolo máximo do Excepcionalismo Americano, com a ideia de avanço civilizacional permitido pelo desenvolvimento tecnológico da engenharia. Temos aqui assim o renascer de um confronto de movimentos surgidos no século XVIII com a transição do Iluminismo para o Romantismo, assumindo o lado da razão impulsionado pela ciência com o lado místico suportado pela emocionalidade.

Muito interessante perceber como uma parte forte deste choque se suporta na divisão entre as culturas Inglesa e Francesa que estarão também presentes no nascimento de Columbia. É em Inglaterra que o Iluminismo tem a sua maior expressão com Isaac Newton, Francis Bacon e John Locke, embora de França também venha Voltaire, entre outros, mas é em França com a emergência da Revolução Francesa em 1792 que se recupera o humanismo e daí o enfoque no sujeito e emoção, deixando de lado a frieza da lógica da ciência. Por outro lado a circularidade da história não deixa de ser surpreendente, já que a própria grande Revolução Francesa acabaria por surgir como um reflexo do povo francês ao levantamento do povo americano contra a monarquia Britânica. Tudo isto é bastante mais complexo que esta síntese que aqui faço, mas é um resumo que dá conta do que me interessa para definir o mundo ficional de Bioshock Infinite.

Assim no final do século XIX vamos ter um conjunto de obras francesas fruto destes movimentos do final do século XVIII que acabarão por traçar o fundamento daquilo que podemos hoje definir como Estética do Excepcionalismo Americano. Entre estas obras estão,

  • Voyages Extraordinaires, conjunto de histórias de Jules Verne de 1863 a 1905
  • Estátua da Liberdade, 1886, de Auguste Bartholdi, oferecida pela França aos EUA
  • Torre Eiffel, de Gustave Eiffel, construída em França em 1889
  • Estátua da República, 1893, de Daniel Chester French, na Chicago Columbian Exposition
  • Ferris Wheel, 1893, de George Ferris, na Chicago Columbian Exposition
Estas obras acabariam por convergir todas no evento que se pode considerar o lugar de nascimento do Excepcionalismo Americano, a Expo 1893 em Chicago, EUA, que receberia o nome The Chicago Columbian Exposition, a partir da ideia de comemoração dos 400 anos da chegada de Cristóvão Colombo à América. Em resposta à grande exposição de Paris, e a sua Torre Eiffel, Chicago verá surgir a primeira Roda-Gigante, a Ferris Wheel, que acabaria por ser depois imitada e seguida por quase todos os parques temáticos até aos dias de hoje. Assim o que temos nesta altura é por um lado o desenvolvimento tecnológico capaz de apresentar as suas maiores conquistas, quase como resposta aos anseios imaginários revelados por Jules Verne, e por outro lado a emergência estética de um classicismo, que ficaria conhecido como Neoclassicismo. Este movimento fundava-se no iluminismo, na razão e busca académica, e ao mesmo tempo primava pela busca da perfeição lógica e visual nos clássicos gregos da filosofia e escultura, conseguindo unir o mundo da lógica e emoção, numa visão de um mundo optimista, limpo, saudável, uno e coerente.

Claro que se tudo isto servia para criar um mundo melhor, à semelhança do melhor que a ciência conseguia revelar sobre os avanços realizados pelos nossos antepassados, falharia na capacidade de corrigir erros do passado, nomeadamente na criação de elites, de classes dominantes e classes subservientes. Ainda hoje continuamos a socorrer-nos dos escritos de pensadores como Sócrates, Platão e Aristóteles, mas hoje temos consciência do mundo em que viveram, e das suas limitações sociais. Sabemos que a sociedade que objectivavam era diferente daquilo que acreditamos ser hoje uma sociedade ideal. E o mundo ocidental evoluiu, não conquistámos todo o imaginário de Verne, mas andamos lá perto, contudo e apesar de tudo isso em 2014 continuamos a sofrer dos mesmos problemas que seccionavam a sociedade, que a dividiam entre os que tudo podem e os que apenas se podem submeter.

Hoje já não temos uma guerra entre a Monarquia e o Povo, hoje temos uma guerra entre os CEO das grandes empresas e bancos, cotados em bolsa, e o Povo. Os vários movimentos Occupy que surgiram nos EUA nos últimos anos e se vêm espalhando um pouco por todo o mundo, dão conta desta divisão, nomeadamente do 1% que ganha tanto como os restantes 99% juntos. E é por isso que se vem falando que se sente no ar o aproximar de uma Nova Revolução Francesa, que pode não acontecer nos próximos anos, mas acabará por acontecer cedo ou tarde, se nada for feito para alterar o rumo do desenvolvimento.

Cartaz do movimento internacional Occupy

E é exactamente nesse plano que Bioshock Infinite se coloca, colocando-nos no centro de um mundo ficcional avançado tecnologicamente, recorrendo a uma estética de projectar o futuro do final do século XIX, recuperando uma cruzada política de então, que continua a manter-se. Ken Levine consegue assim tocar na especificidade de uma realidade americana, que é também internacional, criticando o chamado movimento Tea Party, e ao mesmo tempo a candidatura de um chefe da igreja mórmon e empresário detentor de uma enorme fortuna, ganha na especulação financeira, Mitt Romney, a presidente dos EUA.

Cartaz de propaganda política de promoção das políticas xenófobas dos fundadores de Columbia em Bioshock Infinite. O cartaz acabou sendo utilizado pelo Tea Party na sua página do Facebook.

Bioshock Infinite critica de forma assaz inteligente o estado da sociedade, em que uma Vox Populi luta pela liberdade da tirania, opressão e de expressão, apresentando um mundo que de tão belo choca brutalmente com a ausência de direitos das pessoas que o habitam. Um mundo capaz dos maiores avanços tecnológicos, mas incapaz de viver em paz e harmonia, impondo a lei pela força, de forma ditatorial e aberrantemente teocrática. Elevando o coeficiente de interpretação, poderíamos dizer que o aspecto teocrático de Bioshock Infinite serve de crítica àquele que é na sociedade atual o governador de todas as acções, o dinheiro. A detenção de mais e mais dinheiro parece prometer o paraíso, a Columbia, e para isso tudo deve ser feito, nem que seja à custa de passar por cima dos outros ou privando-os de direitos.

Voltando à estética e apenas para fechar esta primeira parte da análise de Bioshock Infinite deixo uma dica para quem quiser experienciar este universo visual, façam uma visita à Disneyland Paris, e visitem toda a área da Discoveryland, e depois passem pelas Discovery Arcade e Liberty Arcade, duas ruas cobertas paralelas à Main Street, poderão assim mergulhar no mundo visual de Bioshock Infinite.

Discoveryland, Disneyland Paris, área do parque dedicada à ficção científica

Um dos vários cartazes que se podem encontrar na Discovery Arcade, Disneyland Paris

 Mural na Liberty Arcade, Disneyland Paris, apresenta a história da Estátua da Liberdade


Parte 2 da análise a Bioshock Infinite

março 04, 2014

Filmes de Fevereiro 2014

Mês de fevereiro com alguns clássicos, nomeadamente com o revisitar de Buñuel e Hitchcock. A primeira vez que vi Los Olvidados foi há mais de 20 anos, a impressão foi forte, mas depois de o rever este mês percebi que nessa altura atingi apenas uma parte da mensagem da obra de Buñuel. Los Olvidados é um filme denso, carregado de subtextos, requer abertura e enquadramento. Los Olvidados demonstra todo o poder do Cinema como arte, colocando-o de pleno direito ao lado da Literatura. Por outro lado Notorious, como Hitchcock sempre afirmou, não tem propriamente vontade de apresentar uma mensagem forte, capaz de nos questionar, mas todo o seu aspecto estético formal é capaz de elevar a linguagem do Cinema a limites nunca antes explorados. Se Buñuel nos toca com o que tem para nos dizer, Hitchcock toca-nos com a forma como nos diz. Se Hitchcock tem pouco para dizer, Buñuel limita-se a um uso simplista da linguagem do cinema. São duas abordagens distintas a uma mesma arte, cada uma importante à sua maneira. Podemos pensar que o ideal estará na fusão de ambas, mas não é propriamente fácil a um realizador criar uma marca da sua pessoalidade numa arte, sem se dedicar de corpo e alma à especialização numa das múltiplas áreas que o cinema aborda.

E é por isso que considerei aqui ontem que Gravity foi o vencedor dos óscares, porque é irrelevante se a sua história não consegue tocar o nosso ser como 12 Years a Slave, o que é relevante é o que cada obra faz no seu domínio específico. Esperar que cada obra seja a melhor em tudo, é não saber apreciar uma arte em toda a sua multidimensionalidade.

xxxxx Los Olvidados 1950 Luis Buñuel Mexico

xxxxx Notorious 1946 Alfred Hitchcock USA


xxxx Nebraska 2013 Alexander Payne USA

xxxx Circles 2013 Srdan Golubovic Serbia

xxxx Short Term 12 2013 Destin Cretton USA

xxxx The Armstrong Lie 2013 Alex Gibney USA

xxxx Barefoot Gen 1983 Mori Masaki Japan


xxx Los amantes pasajeros 2013 Pedro Almodovar Spain
xxx The Fifth Estate 2013 Bill Condon USA
xxx The Book Thief 2013 Brian Percival USA/Germany
xxx The Way Way Back 2013 Nat Faxon, Jim Rash USA
xxx The Garden of Words 2013 Makoto Shinkai Japan
xxx Le fils de l'autre 2012 Lorraine Lévy France
xxx Tout un hiver sans feu 2004 Greg Zglinski Switzerland
xxx Tigerland 2000 Joel Schumacher USA

xx Filth 2013 Jon S. Baird UK
xx Ender's Game 2013 Gavin Hood USA

março 03, 2014

a noite de Gravity

A lista dos Óscares 2014 poderia ter sido apenas mais do mesmo, mas não foi, com a excepção de melhor filme para o ultraclássico “12 Years a Slave”, a surpresa da noite foi mesmo "Gravity" que conseguiu arrecadar Melhor Realizador, e acumular um total de 7 óscares.


"Gravity" leva 7 óscares: Best Director, Film Editing, Cinematography, Original Score, Visual Effects, Sound Editing, e Sound Mixing.

"Gravity"que aqui analisei, mereceu plenamente os 7 óscares, não sendo o típico clássico acabará por se encaixar, daqui a muitos anos, nos chamados filmes de culto. Não há dúvidas que o trabalho estético feito em torno da montagem, cinematografia, e efeitos visuais e sonoros superou tudo o que até aqui conhecíamos, e por isso Gravity é um justo vencedor.

"Her" vence Original Screenplay

A juntar a Gravity fiquei muito contente também com o óscar de Melhor Argumento Original entregue a Spike Jonze pelo belíssimo argumento que apresentou com Her, do qual também já aqui falei.

De resto fiquei desiludido com o óscar de melhor animação, Frozen não merecia este prémio, assim como fiquei triste por Daniel Sousa não ter conseguido o óscar para o seu "Feral", de que aqui também falei.

fevereiro 27, 2014

universo interior animado

"Cyclope" (2013) é uma belíssima curta de animação de Marine Duchet, produzida pelo Octopus Collective. Como primeiro projecto do colectivo, foi realizado com apoio financeiro do CRRAV Nord-Pas-de-Calais e do CLAP of Armentières, duas entidades francesas que dão suporte ao audiovisual em França.




O seu aspecto visual oferece-nos um acentuado cintilar de cores, próprio do ruído criado pelas variações entre os desenhos criados à mão, que contribui ainda mais para enfatizar a componente onírica da jornada que nos é apresentada. Apesar do lado manual, Cyclope recorre a todo um conjunto de media que garantem a criação de universos visuais originais e muito particulares, como se pode ver num dos making ofs criado pela equipa de produção.


No campo narrativo, o meio da animação serve o ideal de poder dar a ver algo que existe apenas no seio do imaginário humano, garantindo-lhe uma forma plástica que permite a partilha com o mundo de visões interiores.

"Cyclope" (2013) de Marine Duchet