dezembro 11, 2013

Remember Me, história e arte visual

Remember Me é um dos videojogos mais relevantes de 2013 no domínio da arte visual. Se dúvidas houvesse quanto ao quão visionário foi o trabalho feito por Ridley Scott dirigindo Syd Mead (ilustrador), Lawrence Paul (designer) e David Snyder (diretor de arte) em Blade Runner (1982) aqui elas desaparecem. Remember Me não só apresenta uma das melhores histórias de ficção científica dos videojogos, capaz de ombrear com Philip K. Dick e William Gibson, como o faz atualizando todo um imaginário visual criado há mais de 30 anos. Remember Me sintetiza-se assim em dois grandes vetores, a história e a arte visual.



Ou seja, fundamentalmente é um jogo para quem gosta de ficção científica que discute aspectos da memória, registos, modos de acesso e preservação de memórias, assim como todos os problemas decorrentes destas tecnologias. Por outro lado é um rasgo visual de excelência capaz de encantar qualquer apreciador de concept art, ou visualizações do mundo no futuro.

Criado por um novo estúdio, o Dontnod Entertainment, composto por pessoas oriundas da EA, Ubisoft, etc, apresenta-nos um novo mundo, e um possível novo universo ficcional para a área. Fugindo ao cânone do herói masculino, enfrentou dificuldades de financiamento, algo que poderia ter subvertido facilmente com a fuga para o FPS já que o jogo foi desenhado em Unreal. Mas ainda bem que não o fizeram, porque acredito que a história e  jogo funcionam muito melhor com uma personagem feminina. O modo como esta evolui, e vai re-adquirindo as suas memórias, como ela vai compreendendo o que está por detrás de toda a instituição que regula as memórias em todo o mundo é feito, apesar das lutas, de um modo bastante sereno e preocupado com as relações humanas. Visto através de um olhar masculino, dificilmente se poderia elevar a última parte do jogo a um tão alto ponto emocional e de reconhecimento do impacto negativo que todas aquelas tecnologias podem ter sobre a humanidade.

Remember Me não foi propriamente muito bem recebido pela crítica, que não dizendo totalmente mal do jogo, o crucifica pela sua componente gameplay. Concordo que este apresenta problemas, por vezes graves ao nível do design de navegação e manipulação, assim como no excesso de lutas e repetições redundantes. A grande evidência desses problemas é a constante necessidade de apontar o caminho a seguir, a navegação é pouco intuitiva, o excesso de arte acaba por vezes por se intrometer na funcionalidade do design. Por outro lado, a necessidade de agradar a um público mais alargado faz com que o jogo se perca em lutas e mais lutas, para assim alongar a experiência e também criar algumas sensações básicas fortes. De qualquer modo acredito que Remember Me pode vir a tornar-se num jogo de culto com o passar dos anos, veremos. Todos os problemas de gameplay que temos são largamente compensados pela história e estética do jogo.



Muita da imprensa deu destaque para os combos de luta, que eu particularmente não gostei. Obrigar-me a definir o tipo de combos de luta não é propriamente o tipo de interatividade que procuro num jogo. Contudo algo que não só gostei, mas me pareceu verdadeiramente genial em termos de design de interação, foram as sequências de alteração das memórias. Inicialmente parece estranho, mas depois de compreender o sistema, torna-se extremamente envolvente. Ou seja, cada memória é apresentada como um filme em flashback e nós podemos aceder à mesma, como se de uma cassete de imagens se tratasse, em que podemos bobinar e rebobinar, alterando pequenos eventos no seu interior, que por sua vez provocarão alterações no jogo. É uma ideia de design de manipulação brilhante, porque permite um contato muito próximo e detalhado da ideia de memória, assim como atribui muito maior sentido a todo storytelling que envolve o jogo.

Apesar de perder no game design muitos dos seus potenciais jogadores, é um jogo de que nos vamos lembrar daqui a muitos anos ainda.

dezembro 10, 2013

Luxuria Superbia, interatividade sensorial

Luxuria Superbia (2013) é um videojogo experimental criado pelo coletivo Tale of Tales que procura testar os limites da estimulação sensorial por meio de quatro vetores: movimento hipnótico, a cor, a música, e o toque proporcionado pelas interfaces tablet. Ao contrário de muito experimentalismo é fácil envolver-se com o mundo de Superbia, e a razão para tal prende-se com os objetivos estipulados pelo coletivo desde o início, a busca pelo belo (como nos disseram na Videojogos 2013). Este trabalho acaba por me marcar bastante, nomeadamente porque me fez recordar e refletir sobre várias coisas que tenho feito ao longo dos anos na área dos media interativos.


Assim e começando pelas recordações, Superbia fez-me recuar mais de 15 anos no tempo, aos meus primeiros trabalhos com a interatividade, nomeadamente uma obra que realizei como trabalho de curso, denominada "Sonhar o Real, com Emoção" (1998). Nesse trabalho procurava desenvolver um ambiente tridimensional animado, com camadas de interatividade, que pudessem estimular emoções específicas nos utilizadores. O objetivo como diz o título, era estimular um impacto sensorial forte, ao ponto de fazer as pessoas sonharem acordadas. Nessa altura tive imensas dificuldades para levar o conceito até ao fim, primeiro técnicas, e depois conceptuais. O 3d que podia produzir em 1998, com a qualidade final que queria e em tempo-real, era de todo impossível, por outro lado as ideias para levar avante o objetivo foram sempre muito difíceis de conter e domesticar num âmbito encerrado de narrativa com três atos. Olhando para Superbia posso dizer que este encarna tudo aquilo que eu gostaria de ter feito para esse trabalho. A facilidade com que nos envolve por meio do movimento e estética visual, cria progressão e gera um mundo próprio sempre em total consonância com a interação e narração atmosférica, é extraordinário.

"Sonhar o Real, com Emoção" (1998) de Nelson Zagalo e Luís Mouta

Nesta busca experimental pela estimulação do belo puro, capaz de nos levar ao orgasmo estético, como nos disse Samyn em Coimbra, os Tale of Tales acabam por evocar os elementos principais e fundamentais do ser feminino. A noção de beleza que emerge da sua busca assenta totalmente na sensualidade feminina, e esta abordagem mais uma vez não me é de todo alheia. Quando andei a desenvolver o meu protótipo Emotion Wizard, no final dos estudos que fiz sobre a estimulação de emoção humana percebi porque razão a publicidade recorreu, recorre e continuará a recorrer a uma estética altamente sexualizada. Porque se queremos produzir em alguém uma forte sensação emocional, e uma sensação positiva de êxtase face ao que se está a experienciar, a forma conceptual mais concreta e por outro lado formal mais simples de o fazer, é por via da estimulação da libido. A razão é simples, a necessidade sexual está no patamar das necessidades humanas mais básicas, ao nível da alimentação, e por isso tudo o que estimule essa vertente provocará reações fortes, e assim inesquecíveis nos receptores.

Neste sentido, o uso da sexualidade per se teria pouca relevância já que a poderíamos catalogar como grau zero da estimulação estética, mas o que ganha verdadeira importância é o modo abstrato e invulgar como os Tale of Tales o conseguem fazer. O desenho do prazer feminino é feito com base numa componente visual interativa que assenta num túnel que se movimenta em profundidade e continuamente ao longo de todo o jogo, obrigando o jogador a interagir com este, simulando uma espécie de interação masturbatória feminina. Para credibilizar esta interação, uma camada de narração ou incitação atmosférica é sobreposta às nossas ações, que nos leva a agir, a manter a ação, e por sua vez ilumina o sentido da gratificação e recompensa do jogo.

Luxuria Superbia cria um espaço virtual constituído por vários pilares que simbolizam cada um dos jardins nos quais podemos entrar e completar os objetivos propostos. Completado cada jardim, a cor preenche o pilar e chão adjacente. O jogo termina quando todo o espaço virtual estiver pintado.

Superbia poderia ter sido tudo isto mantendo-se completamente experimental, mas os Tale of Tales preferiram optar por criar um enquadramento de videojogo com níveis definidos, objetivos de curto, médio e longo prazo, para assim desenvolver uma linguagem mais convencional e reconhecida pelos jogadores. Se por um lado esse enquadramento está bem executado, julgo que acaba por fazer o jogo perder em termos emocionais, e assim em termos conceptuais. Isto porque a partir do momento em que sentimos que estamos a interagir para atingir mais um objetivo proposto pelo jogo, a ligação sensorial esmorece, e a nossa emocionalidade dá lugar à racionalidade. Nesses momentos, a imersão falha e o artefacto como mero objecto digital emerge. De qualquer modo não censuro o coletivo já que criar uma experiência deste género. sem um enquadramento concreto, obrigaria a criar um objeto sem contornos definidos para o utilizador, o que contribuiria para diminuir a importância da obra como um objeto coeso e uno.


A experiência é curta, mas para quem ande à procura de novas experiências nos videojogos é mais do que recomendada. De qualquer modo aconselha-se vivamente que o façam em tablet, já que a interação está completamente desenhada para uma manipulação direta com os dedos.

dezembro 09, 2013

Através do tempo, vistos pelo cinema

Poderoso. Mais uma vez Kogonada a abrir os nossos horizontes cinematográficos, a ampliar os sentidos daquilo que vimos, ouvimos e retemos. Desta vez Kogonada centrou-se sobre o trabalho de Richard Linklater, nomeadamente sobre a sua magnífica trilogia "Before…" que ainda há pouco tempo aqui analisei. Em contra-ponto com a minha análise, e a da grande maioria, Kogonada verbaliza mais uma vez a sua análise através do audiovisual, e não do mero texto. Kogonada é simplesmente brilhante, e a continuar assim poderá vir a tornar-se numa das mais importantes referências da crítica cinematográfica. Porque é todo um novo mundo para a crítica, já que se realiza a partir do mesmo meio que critica, e isso satisfaz-me imensamente, porque vai totalmente de encontro ao que venho defendendo em termos de literacia.


Em "Linklater // On Cinema & Time" (2013) Kogonada resume em 8 minutos o âmago da trilogia "Before...", trabalhando outros títulos de Linklater como "Slacker" (1991) e "Waking Life" (2001). Mas mais do que isso, aponta um caminho para compreendermos melhor porque nos ligámos tanto ao três filmes dessa trilogia. É algo que verdadeiramente não se pode explicar em texto, e Kogonada faz-nos o favor de o explicar em imagens e sons. Os sentimentos que percorrem a trilogia "Before...", apesar de assentarem no diálogo apenas, parecem não se suportar quando expressas em mero texto. Aqui temos o movimento, o som, a música, as vozes e os seus timbres, a linguagem corporal, tudo num misto capaz de transmitir uma ideia profunda de contemplação do tempo. Do tempo que passou e do que ainda nos resta, o tempo e nós...
"If cinema is also the art of time passing, then Linklater is proving to be one of its most actively engaged and thoughtful directors. Unlike other filmmakers often identified as auteurs, Linklater’s distinction is not found on the surface of his films, in a visual style or signature shot, but rather in their DNA, as an ongoing conversation with cinema, which is to say, a conversation about time passing." [Texto de Kogonada na Sight & Sound]

"Linklater // On Cinema & Time" (2013) de Kogonada

dezembro 06, 2013

"Brothers: A Tale of Two Sons" (2013)

Uma experiência sublime! Ao terminar o jogo, senti um frisson tocar-me o coração, e uma lágrima saiu. Sem dúvida um dos jogos mais emocionais que alguma vez joguei. Resolvi então aprofundar a razão deste sentimento, descrevendo o design por detrás do jogo, num artigo para a revista VIRAL.


Podem ler "Interatividade expressiva no storytelling de 'Brothers'", artigo completo online. Vale a pena ainda visitar a página do fotógrafo Dead End Thrills com arte do jogo.

dezembro 05, 2013

Entrevista sobre o livro "Videojogos em Portugal"

Dei uma entrevista para a revista Eurogamer Portugal a propósito do livro "Videojogos em Portugal. História, Tecnologia e Arte". Nesta falo um pouco do livro, do processo da escrita, dos objetivos, do público alvo e de alguns dos problemas da criação de jogos em Portugal. Podem ver aqui.

dezembro 04, 2013

Portal 2, problemas da narrativa com primeira-pessoa

Portal 2 (2011) é o sucessor de um dos jogos mais inventivos da primeira década de 2000. Em 2007 a Valve lançava Portal com uma mecânica completamente nova, a arma de portais. Portal 2 pega na mecânica e mantendo-a no centro transforma-a profundamente com a adição de novos elementos que permitem além do portal, a propulsão, a repulsão, o aumento de velocidade, ou a criação de pontes aéreas. Portal 2 apresenta assim um conjunto de mecânicas bastante mais evoluído capazes de estabelecer puzzles bastante mais intrincados e estimulantes que no primeiro episódio.



Mas Portal 2 não é feito apenas de design de jogo, a sua componente de storytelling foi extremamente desenvolvida. Portal 2 apresenta uma lógica narrativa para introduzir o cenário principal do jogo, e conduz-nos ao longo da narrativa fazendo-nos sentir que contribuímos através da nossa participação para o desvelamento do problema apresentado pela história. Para densificar o sentimento narrativo, Portal 2 utiliza duas estratégias já clássicas, a narração e o companheiro de viagem. Ao longo do jogo a história vai sendo dramatizada pela voz de um narrador explícito, que é depois ainda complementada pelos monólogos do nosso companheiro de missões (Wheatley/Glados). A história em si não inova no género da FC, mas o toque de humor e a introdução de alguns elementos inesperados como a troca de identidades dos nossos companheiros faz com que a experiência seja bastante refrescante.

É muito interessante perceber que apesar de Portal 2 se ter originado e centrado no design acabou sendo o seu lado narrativo a conferir-lhe a maior aclamação crítica com vários prémios. Na verdade, a história é responsável por nos manter interessados ao longo de toda a experiência, já que o design é incapaz de se apresentar como uma experiência global. Assim, e apesar da aclamação universal, julgo que é inevitável apresentar vários problemas em Portal 2.

Podemos dizer que o macro-flow de Portal 2 é totalmente desenhado pela narrativa, ficando o design quase resignado ao micro-flow. Ou seja, apesar daquilo que nos move globalmente ser um objectivo narrativo e de design, escapar do interior de uma fábrica em colapso, esse objectivo acaba sendo mais estabelecido pela necessidade narrativa do que pela necessidade do design.

Explicando melhor, quase todo design de jogo está focado nos puzzles de cada sala ou nível. Se inicialmente as várias salas se interligam, porque apresentadas como um caminho evolutivo de aprendizagem e teste do nosso personagem, quando entramos no segundo terço de jogo, percebemos que não há ali mais nada para nós neste campo, a não ser uma sucessão de salas com diferentes puzzles para resolver. E é aqui que o jogo perde o encanto. Cada sala assume-se como uma folha em branco que temos de resolver para avançar para a seguinte, sem ligação com a que acabámos de fazer, nem com a que faremos a seguir. As mecânicas são uma delícia, mas deixamos de jogar pela história, deixamos de jogar pelo objectivo global do videojogo, e passamos a jogar para resolver os puzzles apenas e só.

Podemos dizer que se retirássemos a narrativa e os personagens, Portal 2 não seria muito diferente. Claro que não teríamos os momentos cómicos, nem teríamos a progressão narrativa, mas continuaríamos a ter os mesmos puzzles, e continuaríamos a escapar de um espaço que nos aprisionava. Mesmo os puzzles de tão elaborados, acabam por nos retirar alguma liberdade de ação no mundo, porque para muitos deles apenas uma única e específica sucessão de passos e ações pode conduzir-nos à resposta.

É-me inevitável comparar Portal 2 com ICO. Pode parecer algo estranho, mas é inevitável comparar os objectivos centrais em ambos, escapar de uma fábrica gigante, e escapar de um castelo gigante. Ou seja, o ponto de partida para o design espacial de ambos os videojogos foi concebido da mesma forma. O problema é que a comparação termina aqui. Em ICO os espaços estão desenhados para que a sua inter-relação seja percepcionada, não apenas do ponto de vista visual e de atmosfera, mas também do ponto de vista do design de navegação. Os espaços agem uns sobre os outros, não apenas tornando possível o acesso entre os diferentes espaços, mas criando interdependências entre os mesmos. O nível de detalhe colocado no design de espaço de ICO comparado com Portal 2, é assombroso. Claro que além do espaço, e apesar de ICO ter sido feito 10 anos antes, a IA colocada na personagem que nos faz companhia consegue ser mais evoluída do que aquela que está colocada no companheiro em Portal 2. Isto tem implicações profundas no desenvolvimento da relação entre jogo e narrativa.

ICO (2001) e Portal 2 (2011)

Para fechar deixo aquele que é para mim um dos maiores handicaps atuais do género de ação-aventura, o uso da primeira-pessoa. Os problemas que derivam desta opção são mais do que muitos, no entanto os estúdios continuam a assobiar para o ar e a fazer de conta que não se passa nada. Para começar, nunca vejo a protagonista de Portal 2, a heroína com quem é suposto eu identificar-me e criar empatia. Ou seja, não se consegue criar qualquer empatia com alguém que só vejo de vez em quando no efeito de espelho dos portais. Aqui a história perde todo o potencial que poderia advir da situação de se estar preso naquele espaço. Em segundo lugar, a estética visual fica profundamente limitada a um ângulo de visão único sempre com a mesma abertura de campo, esteja num sala pequena, ou numa sala enorme (Zagalo, 2007, página 149). Em terceiro lugar, sempre que preciso de correr ou de saltar com precisão, tenho de o fazer através de tentativa-e-erro já que não consigo ter a menor noção proprioceptiva do meu corpo no ambiente virtual. Se virar a câmara para ver onde estão os meus pés, percebo que eles não existem.

Eu percebo que para os estúdios seja muito mais barato e simples fazer FPS, mas é tempo de nós os consumidores exigirmos mais. Chega de aceitar algo que está demonstrado ser um buraco sem fundo de problemas. Aliás não tive ainda coragem de explorar Bioshock Infinite (2013), exactamente por causa disto. Se quiserem ler mais sobre esta problemática aconselho o artigo de Jack Monahan, que agradeço ao Pedro Neves a partilha.

dezembro 03, 2013

Entrevista com Bruno Telésforo, e a pós-produção das Aranhas Gigantes

Há duas semanas correu na rede um pequeno filme que mostrava aquilo que parecia ser uma invasão de aranhas gigantes na cidade de Lisboa. O filme fazia-se passar por um noticiário de televisão recorrendo mesmo a um pivô reconhecido da televisão nacional (João Moleira). No final os espectadores descobriam que nem as aranhas nem o noticiário eram verdadeiros, já que não passavam de elementos de uma campanha de marketing montada para anunciar o lançamento do terceiro volume de “As Fantásticas Aventuras de Dog Mendonça & Pizzaboy” (2013) de Filipe Melo, Juan Cavia e Santiago Villa.


Na rede, o filme foi um sucesso gigantesco conseguindo mais de 2 milhões de visualizações nos vários canais em que foi mostrado. Por outro lado nos media, o filme foi amplamente discutido pelos problemas deontológicos que levanta, nomeadamente no campo das fronteiras entre jornalismo e publicidade. Não vou entrar nessa discussão porque apesar de conceder que elas foram aqui ultrapassadas, depois de analisado bem o filme vemos que o foram mas de uma forma bastante atenuada. Nesse sentido considero toda esta discussão uma hipocrisia, já que estas fronteiras vêm sistematicamente sendo ultrapassadas no nosso país, sem nunca se ver quaisquer responsáveis ou instituições da área fazerem algo para verdadeiramente procurar pôr cobro ao "vale tudo".


Assim o que me interessa é apenas e só discutir o filme em si, nomeadamente o seu trabalho de pós-produção, dada a sua enorme qualidade. O trabalho que foi realizado pela empresa nacional Irmalucia Visual Effects teve como responsável, para as áreas de animação, modelação, composição, rotoscopia e mattepainting, o Bruno Telésforo e foi com ele que estive à conversa.

Antes das perguntas, dizer que o Bruno Telésforo (30, Cascais) adora videojogos e foi por causa destes que se inscreveu num curso de animação 2D/3D de 2 anos na ETIC, tendo depois seguido para a licenciatura em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia da Universidade Lusófona. Este seu percurso fez então com que desviasse o seu interesse dos videojogos para o campo dos Efeitos Visuais (VFx). Este seu desvio acaba por não o ser propriamente, já que entra em sintonia com a atual convergência que se vive entre o cinema e os videojogos. Vejamos então o que nos disse o Bruno.

1 - Que software foi utilizado para modelar as aranhas, e depois para a composição? E as imagens reais foram registadas com que máquina?
:: As aranhas foram modeladas, animadas e renderizadas em Autodesk Maya, a composição foi posteriormente feita em Adobe After Effects. A cãmara usada para captar as imagens foi uma Canon C300. Trabalhamos em HD 1080p.

2 - Quanto tempo levou o trabalho de pós-produção e como é que foi realizada a comunicação com o realizador Filipe Melo?
O período de pós-produção levou pouco mais de um mês entre toda a equipa da IrmaLucia. A execução da pós-produção de imagem estendeu-se por todo esse mês, sensivelmente. Durante esse período trabalhámos sob as indicações do realizador Filipe Melo. Os visionamentos com o realizador foram regulares, permitindo "desbloquear" certos aspectos criativos avançando na direção certa.

3 - O modelo de aranhas foi baseado numa espécie real ou é uma mistura de espécies, quais? 
:: O modelo das aranhas foi baseado numa tarântula comum. Adaptámos a cor do pêlo e usámos tamanhos diferentes para criar variações dentro da espécie. Podem parecer todas iguais, mas existem diferenças. Era esse o objectivo, que nenhuma em especial chamasse à atenção mas que houvesse espaço para variações.



4 - Temos apenas um modelo clonado, ou foram feitas várias com diferenças?
:: Tínhamos uma aranha principal que usámos várias vezes ao longo dos planos do filme e com ela também criámos algumas variações a nível do pêlo e do tamanho. No último plano vemos melhor a diferença de escalas.


5 - Como é que foi feito o processo de composição da iluminação? Foram feitas compensações na correção de cor para facilitar a composição, de que forma? 
:: As aranhas foram renderizadas em Autodesk Maya com "fake HDRI" extraído do plano original. Assim, simulámos a iluminação real na aranha que nos ajudou a integrá-la com o plano de imagem real. A sua iluminação é adaptada plano a plano e depois a iluminação é corrigida e “nivelada” ao longo dos planos.
Sim, houve compensações no final do filme nomeadamente na última sequência do filme: houve uma maior intervenção a nível de luz/cor para reforçar o aspecto dramático da história. Grande parte dos planos tiveram também o céu alterado para criar melhor a transição para a última sequência do filme.

6 - No plano final os helicópteros resultam muito bem, mas as colunas de fumo apesar de aproximadas na cor ao céu, parecem menos reais, alguma explicação?
:: As colunas de fumo passaram por várias fases de desenvolvimento até chegar a este ponto. Quem trabalha em 3D ou VFX sabe que integrar simulações de substâncias orgânicas é ainda uma coisa complicada de "vender" ao espectador. Isto porque dependem em grande parte de um detalhe ínfimo e uma escala gigante para parecerem realistas ao olho comum. São simplesmente coisas que fogem ao "natural", por isso são elementos difíceis de tornar credíveis com recursos limitados, sejam eles tempo ou capacidade de hardware. É algo que todos nós sabemos por instinto e experiência, e no “mundo” das imagens geradas em computador tornar algo visível e plausível é por vezes um desafio técnico e criativo.
Quando vemos, por exemplo, fumo ou água realista nos blockbusters que estamos habituados a ver, são fruto de um grande investimento em recursos técnicos e financeiros. A dificuldade está na escala que tínhamos que representar, porque quanto maior a escala do fumo, mais complexa é a simulação. Mas creio que dentro das nossas capacidades e limitações o resultado ficou bastante credível e cumpre o objectivo. Excelente trabalho do Luís Martins, residente na Irmalucia, que desenvolveu e integrou os efeitos de fumo na última sequência.


7 - Qual foi o plano mais complicado de criar, e porquê?
Pessoalmente foi o plano final. A intenção era criar destruição localizada ou que pudesse ser justificada pela ação das aranhas. Foi o plano mais elaborado de todo o filme e certamente foi o que teve mais atenção. Era preciso "encher" o plano com elementos para caracterizar a ação e a dificuldade era não "perder" tempo em coisas que não tivessem tempo para ser vistas. Foi então preciso sugerir linhas de olhar ao espectador e concentrar aí os nossos esforços de trabalho. Foi o plano que teve mais elementos conjugados e por isso mais tempo de render e “footage” para compor. Mesmo assim, pessoalmente, foi o plano que deu mais gozo por ter que destruir os prédios e sujar paredes. Idealizar e desenvolver estas situações foi algo que me deu bastante entusiasmo. O plano da queda da aranha foi também trabalhoso: foi complicado acertar a escala da aranha com as pessoas e fazer a rotoscopia das pessoas individualmente.


8 - O que te parece o desenvolvimento da área de composição 3d em Portugal?
:: Hoje conseguimos ver bons exemplos nacionais de bons profissionais na área de Visual Effects para Cinema e Televisão. Temos resultados e qualidade que já fazem frente a grande parte de produções internacionais, no entanto a produção nacional é ainda parca.  O desenvolvimento na área de composição que acontece em Portugal tem vindo a aumentar na última década, mas ainda assim, e comparando com a produção internacional, a  produção nacional é ainda diminuta. Consequentemente, as produtoras optam por recorrer a orçamentos baixos, que destabilizam o mercado para as "casas de pós-produção" já estabelecidas, no entanto exigem uma qualidade exemplar à semelhança da produção internacional.
É necessário apostar em projetos nacionais e em profissionais certificados que tenham já demonstrado capacidade evolutiva no mercado audiovisual atual, competitivo e em constante mudança.
Quanto à formação, há muito mais opções do que havia quando comecei, mas continua a ser pouca a formação especializada e de qualidade. Por outro lado, há cada vez mais autodidatas devido à quantidade de pessoas interessadas em Visual Effects e a pouca disponibilidade financeira no geral. Em Portugal é normal a formação nesta área basear-se em conhecimento técnico mais generalista nas várias ferramentas e técnicas em vez de ser especializado apenas numa área só, como acontece na produção internacional de qualidade.


Para quem quiser saber mais sobre o Bruno, aqui fica o seu portfólio
Behance / Vimeo e o LinkedIn.

dezembro 02, 2013

O que é o Neorealismo?

Mais um trabalho brilhante de Kogonada sobre a linguagem cinematográfica, desta vez a propósito daquilo que define a estética da corrente neorealista dos finais dos anos 1940. Kogonada faz aquilo que considero ser a verdadeira arte de análise cinematográfica, centra-se na forma, centra-se nas imagens, e procura perceber como o autor comunica. O facto de o fazer por meio de ensaio audiovisual permite-lhe chegar aonde a crítica em formato de texto não consegue, por mais adjectivação que glose.


Neste ensaio de cinco minutos Kogonada realiza uma comparação minuciosa da montagem de um filme de Vittorio De Sica, criador do mítico Bicycle Thieves (1948), com a remontagem do mesmo filme, por David O. Selznick, produtor de Gone with the Wind (1939). O filme em questão é Terminal Station (1953, 89 minutos) de De Sica, tendo a remontagem para o mercado de hollywood por Selznick, recebido o nome Indiscretion of an American Wife (1953, 72 minutos). Ambas as versões podem ser encontradas no mesmo dvd da Criterion Collection.

Kogonada realizou este ensaio para a britânica Sight & Sound, procurando dar resposta à questão, o que é o neorealismo? E essa resposta podem encontrá-la no seu ensaio, de uma forma muito serena, clara e objectiva. No final fica ainda a reflexão inevitável sobre o poder da montagem.

What is neorealism? (2013) de  Kogonada

Fica o link para outros artigos aqui escritos sobre trabalhos de Kogonada, e o link para a sua página pessoal.

dezembro 01, 2013

Filmes de Novembro 2013, e a linguagem de Hollywood

Como estamos no fim do ano é natural que tenha passado grande parte do mês a ver quase só filmes de 2013, e por isso talvez também não me espante ter tantos filmes com notas médias. Uma grande parte do cinema atual apresenta elevada qualidade técnica, mas quando chega à questão da contribuição original espalha-se. É comum ouvir dizer que quem quer originalidade hoje tem de recorrer às séries de TV. Não concordando totalmente e aceitando que se encontra aí muito trabalho interessante, a verdade é que de cada ano apenas alguma obras serão recordadas, as restantes servem apenas para entreter o tempo.

"Uma História de Amor e Fúria" (2013) de Luiz Bolognesi, Brasil

The Great Gatsby surpreendeu-me, um filme que nem queria ver, acabei deslumbrado mais uma vez pela genialidade de Luhrmann, o cineasta mais barroco de que há memória. Por sua vez o Brasil presenteou-nos com uma magnífica longa de animação, que nos conta a história do Brasil, desde o passado ao presente, projetando o futuro próximo, tudo num raio de 600 anos. Estreou em Portugal no Cinanima 2013, e é um dos trabalhos obrigatórios deste ano.

Quando falava da competência técnica de Hollywood, referia-me a trabalhos como "Hunger Games", "Man of Steel", "After Earth", "Star Trek" ou ainda "Jobs", "Disconnect" ou "Killing Season". Nada podemos repreender a estes filmes, a não ser a falta de identidade, de visão pessoal, de autoria. Todos estes filmes são obras coletivas de grande feito. Todos eles falam de assuntos, uns mais outros menos, relevantes. Mas todos eles falam da mesma forma, como se as ideias tivessem sido passadas por um filtro de homogeneização, capaz de eliminar as especificidades, diferenças e estranhezas. No final temos uma espécie de hambúrguer com garantia de qualidade alimentar, mas que sabe igual, seja comido em Lisboa, Paris ou Hong-Kong.

No meio de tudo isto, a minha maior desilusão foi mesmo para Jobs (2013), o filme que nunca devia ter existido. Sendo uma biografia, pedia-se que estivesse à altura do biografado. Se Jobs fosse vivo tudo teria feito para impedir que este filme alguma vez fosse exibido! Não por maltratar a sua imagem mas pela incapacidade de retratar tanto a pessoa como os seus feitos. Demasiada ligeireza e superficialidade. Um filme sem ângulo nem perspectiva, sem qualquer noção do que quer dizer, limitando-se a meia dúzia de notas de rodapé.

O filme de Jobs é um bom exemplo do atual paradigma de Hollywood. Todos têm que entender tudo o que se passa no ecrã, seja em Madrid, São Paulo ou Moscovo, seja canalizador, futebolista, ou informático. Dada a complexidade de explicar aquilo que preocupava Jobs no seu trabalho a não especialistas em design de interação e tecnologia, foge-se disso, e introduz-se apenas e só as suas relações humanas. Mas como estas são um dos seus piores legados, elas aparecem de forma avulsa na tela, como se se quisesse falar delas, sem verdadeiramente falar delas. É isto o cinema de Hollywood hoje. Não interessa nunca o assunto, sejam as alterações climáticas em "Day After Tomorrow" seja um meteorito que se aproxima da terra em "Armaggedon", seja a fome e a revolução em "Hunger Games". Os produtores de hollywood assumem, e talvez com razão, que a grande maioria não vai entender do que se está a falar e por isso centram-se apenas e só sobre as relações humanas, sobre aquilo que é familiar e compreensível por todos, seja de que estrato for, país, ou profissão. E é por isso que no final não sobra nada, para além do discurso de consumo rápido sobre os valores culturais da família "ideal" de classe média americana.

xxxx À Velocidade da Inquietação 2012 António José de Almeida Portugal [Análise]

xxxx Uma História de Amor e Fúria 2013 Luiz Bolognesi Brasil

xxxx The Great Gatsby 2013 Baz Luhrmann Australia

xxxx Mud 2012 Jeff Nichols USA


xxx The Hunger Games: Catching 2013 Francis Lawrence USA

xxx After Earth 2013 M. Night Shyamalan USA


xxx Europa Report 2013 Sebastián Cordero USA

xxx Star Trek Into Darkness 2013 J.J. Abrams USA

xxx Man of Steel 2013 Zack Snyder USA

xxx Jobs 2013 Joshua Michael Stern USA

xxx The Internship 2013 Shawn Levy USA

xxx Disconnect 2012 Henry Alex Rubin USA

xxx Zozo 2005 Josef Fares Sweden


xx Killing Season 2013 Mark Steven Johnson USA

xx Adore 2013 Anne Fontaine USA

xx Starlet 2012 Sean Baker USA

Para ver as notas dadas nos meses anteriores podem seguir a etiqueta FilmeMês. Para acompanhar as notas que vou dando ao longo do mês, ou ver a listagem de notas dos últimos anos, podem visitar a minha folha de notas online.