outubro 30, 2013

a natureza da narrativa

"Red Dead Redemption" foi jogo do ano em 2010, tendo ganho os mais diversos prémios da indústria e crítica. Na altura não me senti propriamente atraído, confesso que para isso contribuiu a fraca experiência de “Gun” (2005) e a minha saturação com o género cinematográfico de western. Passados 3 anos, reconheço o meu erro, e confesso que Red Dead Redemption (RDR) é tudo aquilo que poderíamos esperar do tema western explorado pelo media dos videojogos. Mais ainda, RDR tem potencial para demover quem nunca gostou, ou como eu se cansou, do tema no cinema.


O mais interessante de RDR no campo do tema é a forma como atualiza o western, como consegue casar os mundos clássicos do western americano de John Ford e Howard Hawks, com os mundos do anti-herói enigmático e emocional do “spaghetti western” de Sergio Leone e Sergio Corbucci. As enormes pradarias e a longa busca em equipa pela vingança, acaba por dar lugar a uma busca solitária e desinteressada, totalmente anti-heróica. Mas ao mesmo tempo que John Marston ganha densidade, as referencias cinematográficas vão-se descolando, e este vai ganhando o seu lugar na galeria do género.

The Searchers (1956) de John Ford

Django (1966) de Sergio Corbucci

Red Dead Redemption (2010) da Rockstar

RDR é um videojogo, mas antes disso é um western, e para todos os efeitos será como tal que ficará preservado nas nossas memórias. A Rockstar prova com RDR mais uma vez que os videojogos são um excelente meio de comunicação e expressão artística, extremamente eficazes na capacidade de construção de universos ficcionais. Poderia ter sido um filme, um livro, ou uma banda desenhada. Mas então o que o distingue desses outros meios? Chegados aqui, esta é a grande questão que me coloco.

O que é que eu prezo mais, o modo como chego até ao universo ficcional e o apreendo, ou o modo como ele gera uma experiência memorável e inesquecível dentro de mim? Eu poderia dissertar aqui sobre todas as diferenças formais, entre jogar, ler e ver. Mas isso será mesmo relevante? Vou mais longe ainda, será mesmo relevante escolher o melhor medium, como venho defendendo nos últimos anos, para a história que se quer contar?

Serão mesmo diferentes, para nós, seres-humanos dotados de um poder de imaginação admirável, a teia de ideias gerada a partir do rádio-drama “The War of the Worlds” (1938) de Orson Welles, da banda desenhada “The Walking Dead” (2003) de Robert Kirkman, do filme “The Shawshank Redemption” (1994) de Frank Darabont, do livro “Perfume” (1985) de Patrick Süskind, do videojogo “The Last of Us” (2013) de Neil Druckmann? A resposta, talvez seja que não. Não existe diferença, porque essa teia, não é mais do que o modo como criamos sentido a partir do mundo que nos rodeia. Essa teia de ideias, é o modelo narrativo, que fomos obrigados a imprimir em todos os media que fomos criando com as tecnologias que fomos desenvolvendo.

A cada novo medium, entramos em devaneios sobre as suas novas possibilidades formais, sobre o modo como pode contribuir para mudar o modo como vemos o mundo. Mas quando a tecnologia, e o conhecimento sobre o seu uso estabiliza, percebemos, que não passámos de crianças deslumbradas com o novo. Inevitavelmente voltamos sempre ao mesmo modo de fazer, porque é só através desse modo de contar, que conseguimos fazer explodir ideias na imaginação de quem nos ouve, lê, vê ou joga. Isto são ideias que me perseguem há vários anos, para o qual os avanços na neurociência muito contribuíram, e aos poucos me foram convencendo da sua veracidade. Sobre isto aconselho vivamente a leitura do texto de Pedro Monteiro “On Defense Of A Biological Link Between The Human Brain And The Narrative Form” (2013) no qual ele realiza um exercício de demonstração da biologia da teia narrativa.
“most universal human cultural creations are made as a reflection of the way human minds work – what this concept represents is that brains don’t have to evolve to accommodate new cultural creations, since those creations are but a mirror of the old brain way of working.”
Tudo isto para dizer que de certo modo estamos na recta final da busca por um modo próprio de contar histórias nos videojogos. Ao longo dos últimos 10 anos, já nos dedicámos mais a criar os artifícios da gramática narrativa do meio, do que a tentar inovar o modelo de contar histórias. A estabilização epistemológica deste aparelho não é uma coisa má, em si. Se é verdade que perde algum encanto científico, porque o lado exploratório aproxima-se da total desvelação, também é verdade que o meio amadureceu, e é hoje capaz de expressar-se de uma forma muito mais completa.


***SPOILER******
Voltando a RDR em concreto, não posso deixar de discutir uma sequência relevante em termos do design de interactividade. O modo como está desenhada a morte do personagem principal deixa algo a desejar. A razão para o meu descontentamento prende-se com o facto de terem desenhado a sua morte como qualquer uma das outras mortes que experienciámos ao longo de todo o jogo. Ou seja, quando morro o impacto que sofro, não é aquele de uma narrativa com toda a carga já construída por RDR, mas antes, a morte normal dos videojogos, em que em vez de nos deixarmos levar pela perda, nos começamos a questionar “como é que tenho de sair do celeiro, para evitar ser morto?” Até que percebemos que não há segunda chance, que estamos mesmo mortos. Se senti algum impacto maior foi mais porque já estava de pré-aviso para algo de grande impacto no final do jogo. Mas o Dan Houser perdeu aqui a oportunidade de criar uma das cenas mais memoráveis de toda a história dos videojogos. A interactividade tem um potencial estético enorme em termos de responsabilização quando agimos, e de impotência quando nos é retirada. Esta cena final merecia mais, muito mais em termos de design de interacção.
*******************

Para fechar, apenas dizer que RDR é uma experiência inesquecível, os personagens, o ambiente e os eventos formam um todo muito completo, coerente e esteticamente muito aprazível. RDR será uma referência não apenas na cultura dos videojogos, mas do western, durante muitos anos.



Nota: Muitas das ideias que lanço neste texto sobre a narrativa e os aspectos formais do videojogo, são ideias com que venho trabalhando, mas estão longe de se apresentar num forma definitiva. Agradeço todos os comentários que queiram partilhar sobre o assunto. E para adensar a discussão vejam a média-metragem feita por John Hillcoat fazendo uso do mundo do jogo, Red Dead Redemption: The Man From Blackwater (2010) .

outubro 29, 2013

efeitos da multidisciplinaridade entre ciência e arte

Faz-nos falta esta visão americana do ensino, em que a multidisciplinaridade é verdadeiramente aceite, e vista como uma mais valia para o sujeito. Xiangjun Shi acaba de se licenciar no Programa Dual Brown-RISD (parceria entre a Brown University e o Rhode Island School of Design) em Física e em Animação. Ou seja, foi possível combinar aqui uma ciência dura com uma arte que ainda nem sequer aparece no panteão das Belas Artes. Isto seria impensável na Europa, menos ainda em Portugal. Os resultados, estão à vista, vejam abaixo Why Do I Study Physics? (2013).


É claro que esta multidisciplinaridade não é para todos. Só uma minoria pode almejar realizar este tipo de cruzamentos que apresenta exigências altamente diversas, com caminhos difusos, e ainda por trilhar. Isto requer não apenas uma enorme motivação, mas enorme proactividade e humildade por parte do aluno. Mas também é por aqui que podemos vir a criar novos caminhos, novo pensamento, e assim incrementar a nossa criatividade.

Aliás, o filme de Xiangjun Shi é um contributo essencial para sociedade em termos de dar a conhecer o mundo mais abstracto da Física. O que podemos experienciar neste filme, só muito dificilmente poderia ser feito por alguém sem estes dois backgrounds. Conseguir transformar em imagem, ideias e conceitos tão distantes das metáforas que facilmente reconhecemos, em algo tão acessível e facilmente compreensível por nós, leigos em Física. Vejam mais trabalhos de Xiangjun Shi na sua página.

Why Do I Study Physics? (2013) de Xiangjun Shi

outubro 28, 2013

singularidade e semelhança social

Before Midnight (2013) está longe de ser apenas uma sequela, menos ainda uma mera terceira parte. Para todos os que se encontram no limiar da idade do protagonista (40 anos), e viram os dois filmes anteriores também quando saíram no cinema, esta série é um universo quasi-real, que de tanto evoluir sincrónica e paralelamente connosco, passou a ser parte de nós próprios. Se já nos tínhamos identificado aquando do primeiro filme, a possibilidade de envelhecer com eles e voltar a descobrir os seus sentires, em intervalos de 9 anos, cola-nos inevitavelmente aos seus destinos. Não admira assim a "aclamação universal" da crítica, isto é um dos experimentos cinematográficos mais bem sucedidos na simulação do processo existencial.


Em síntese a trilogia Before… expressa ideias, externaliza sentires, emoções, dilemas, e dramas… Before… não tem um enredo, porque o enredo é a própria vida indefinida, nunca começada, nunca terminada, sem plano, nem previsões possíveis.


Quando em 1995 vi pela primeira vez Before Sunrise, lembro-me que andava a estudar na Universidade, vi o filme com alguns dos meus amigos mais próximos, e as nossas reações foram muito parecidas entre nós. Aquilo que ouvi ao longo dos 90 minutos marcou-me. As interrogações que aqueles dois personagens atiravam contra a tela, poderiam ter saído da minha própria boca. Eu sentira tudo aquilo de que eles ali discutiam, e as minhas conclusões sobre esses sentires eram estranhamente muito parecidas. É verdade que os nossos 20 anos são talvez os momentos mais marcados pelo existencialismo, e tanto aqueles personagens como nós, estávamos ali prontos a fazer render a dialéctica. 

Before… mereceria vários estudos em profundidade, são várias as perspectivas de análise aqui possíveis, desde as raízes filosóficas mais profundas, discutindo aquilo que nos torna humanos, até à discussão sobre a estética do próprio meio cinematográfico. Nesta última abordagem Before… atira uma pedra no charco daquilo que define a linguagem cinematográfica. Before… demonstra que o cinema pode ser tal como a literatura, a arte de contar, e não apenas de mostrar, sempre que o faça com um propósito capaz de captar a atenção dos seus espectadores. São três filmes, são quase 6 horas de cinema baseadas apenas em diálogo e monólogos. Os personagens aqui são exatamente aquilo que dizem, e não aquilo que fazem, porque nada fazem, para além de falar. 

Before… demonstra os problemas que temos sempre que no mundo das artes procuramos definir regras ou limites conceptuais. As artes não são ciências, como tal não são passíveis de se encerrar sob definições acordadas entre um qualquer grupo de eruditos. As perspectivas sobre os meios de expressão, desde os mais abstractos aos mais concretos, são obrigatoriamente múltiplas. Não existem formas corretas nem incorrectas, cada obra encerra em si mesmo, os seus limites e as suas regras. Os padrões ainda que existam, são sempre difusos, e não limitadores. Não é por acaso que uma das mais evidentes diferenças entre arte e ciência, é que a ciência não existe sem replicação, enquanto a arte não sobrevive à replicação.

Dos três filmes, o que menos gostei foi o segundo, provavelmente porque surgiu numa fase desencontrada. As discussões nesse segundo filme aquando da estreia no cinema, já tinham sido ultrapassadas pelos eventos da minha vida. Tive dificuldade em aceitar que aqueles que eu tinha acompanhado ainda se encontravam numa encruzilhada, incapazes de se decidir, um pouco em fase de negação da passagem à vida adulta. Mas passados 10 anos, voltamos a reencontrar-nos, Jesse e Celine vivem vidas que pouco se distinguem da minha, os seus dilemas são os meus, as suas dúvidas são as nossas.

Apesar de todo o meu discurso sobre a multiplicidade discursiva das artes, não deixa de me surpreender que a série Before… consiga apresentar um discurso tão familiar. A indicação imediata desta homegeneidade discursiva sobre o mundo, é que aquilo que é dito aqui, é o mesmo que eu sinto e penso, assim como é o que sentem críticos e muitas outras pessoas por esse mundo fora. Na arte passamos todo o tempo a lutar por um rasgo de originalidade, por evitar seguir as pisadas do que veio antes de nós, mas quando nos sentamos para analisar o que fizemos neste mundo, o que sentimos e porque sentimos, acabamos concluindo que não somos assim tão diferentes dos demais colegas e amigos que nos rodeiam. Isso é mau? Não, de todo, é antes a constatação de que somos seres sociais, partilhamos sentires e contagiamo-nos uns aos outros a todo o instante, gostamos da diferença, mas amamos a semelhança.

outubro 24, 2013

Literatura Histérica

"Histerical Literature" (2012) de Clayton Cubitt é um trabalho de videoarte absolutamente fascinante. Eu diria que é uma intervenção artística com um potencial de leitura enorme, e que me interessou particularmente pelo que representa em termos das noções científicas de corpo, razão, emoção e consciência. Aliás o próprio nome dado à obra aparece intimamente ligado a um fenómeno médico, da época vitoriana, designado por Histeria Feminina.


Ver cada uma destas mulheres a realizar um esforço de golias para continuar a ler enquanto os seus corpos vibram e as hormonas do prazer procuram tomar conta de toda a esfera consciente, é extremamente impactante no que toca ao conhecimento de nós próprios. Cada uma das sessões coloca em evidência a nossa total incapacidade de controlo do corpo pela mente, e como o corpo consegue literalmente dirigir a nossa mente, subjugando-a às suas necessidades. Por breves momentos os corpos humanos parecem ali totalmente imbuídos de arbítrio próprio, incapazes de obedecer às ordens da mente, gesticulando através de espasmos e reações não planeadas. Dei-me conta entretanto que esta descrição que acabo de fazer, era a descrição usada para definir a pseudo-doença Histeria Feminina.

Noutros tempos diríamos que a emoção toma de assalto a razão, manietando-a e assumindo o total controlo da mente. Mas no século XXI este discurso é pouco correto, e diga-se que o novo conhecimento torna tudo isto ainda mais fascinante. Deste modo o que podemos ver aqui, são os processos não-conscientes que regulam o corpo e possuem acesso direto à nossa imaginação, a assumirem o controlo dos processos conscientes responsáveis por nos garantir o conhecimento da realidade que nos circunda a todo o momento. Ou melhor, assistimos a um desligar da consciência, uma espécie de blackout momentâneo, ou hi-jack, que assim impede o sujeito de continuar a atuar sobre as tarefas que estava a realizar.

Outra questão que se nos pode levantar ao ver estas sessões, é sobre o automatismo ou maquinismo do ser humano. A ideia de que o prazer sexual é ativado por meio de um mero botão físico! Como se não passássemos de marionetas, que podem ser controladas a partir desse tal botão apenas. Ora tudo isto seria assim, se desligássemos a emoção da razão. Mas a verdade, é que todo o processo do orgasmo é feito na maior intimidade entre mente e corpo. Na verdade o corpo não está sozinho no processo, mas entra antes num processo de pura simbiose com os processos mentais das áreas não-conscientes, criando assim as condições necessárias para que o processo atinja o seu objetivo final.

E é exatamente por toda esta ativação da imaginação que o orgasmo é tão importante. O orgasmo está longe de ser uma mera descarga de hormonas que dura breves segundos, mas antes atua sobre todo o nosso universo interior imaginativo. Julgo que esta performance para além de tudo o que disse acima, procura também colocar a sociedade a discutir o orgasmo feminino. Procura tornar a sociedade mais consciente do prazer sexual feminino.


Esteticamente o trabalho de Clayton Cubitt é perfeito. O minimalismo impera na imagem, vemos apenas a pessoa da cintura para cima, fora de plano encontra-se uma assistente que manuseia um vibrador. Por detrás tudo está escuro, e a fotografia opera sob um forte contraste preto e branco. Assim em cada vídeo somos levados a focar-nos completamente sobre a pessoa aí representada, não existindo dispersão com acessórios. Por outro lado o facto de se ter pedido às mulheres que assumissem o máximo de controlo da postura, impede que surjam imagens de pura lascívia que levaria toda a discussão em redor desta obra para outro campo. Aliás nesse sentido compare-se o que temos aqui com os cartazes de Nymphomaniac (2013) de Lars Von Trier.

Deixo-vos com a primeira sessão protagonizada por Stoya. Para ver as restantes e ler mais sobre a obra visite o site do trabalho.


"I hold out as long as I can. This section of the world that I’m inhabiting slows down, zooms in. Like a stretched rubber band it suddenly contracts, and I am lovingly punched with an orgasm…" Stoya


outubro 23, 2013

IA: "eles seremos nós"

Apenas um pequeno apontamento para deixar o último da série Shots of Awe em que Jason Silva entra pela discussão da problemática da Inteligência Artificial. Tenho a dizer que concordo com tudo o que ele aqui diz, porque é aquilo exatamente que já disse no primeiro post deste blog a propósito do filme Artificial Intelligence: AI (2001). Não há que ter medo, porque eles seremos nós.




"The human era we'll have ended, we'll have become our creations, they'll be our children, but they will be really us. There's no reason to fear this, this is just Evolution."

outubro 22, 2013

Entrevista com Nuno Plati, ilustrador da Marvel

Nuno Plati é mais um ilustrador nacional a obter reconhecimento internacional, trabalhando para empresas como a Marvel, a EA Games ou a Axis Animation. Frequentou Design Gráfico na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e trabalhou entretanto como ilustrador no design de personagens, para storyboards, e livros de banda desenhada. Em 2012 desenvolveu para a Marvel a mini-série “Marvel Universe: Ultimate Spider-man” e foi aí que fiquei a conhecer o seu trabalho. Desde então tenho seguido o seu trabalho, através do deviantArt e do seu Plati's Blog, o que me levou a considerar lançar-lhe algumas questões aqui no Virtual Illusion.

Capa de "Amazing Spider-man Family" #8 (2009)

1 - Como é que se chega a ilustrador de um personagem principal da Marvel? De que depende mais? Tiveste de apresentar esboços ou fazer algum estágio?
:: Para se chegar à Marvel há várias maneiras. Podes apresentar o teu trabalho a editores indo a convenções, podes conseguir o contacto de algum editor e enviar-lhe um e-mail com um link para o teu trabalho, ou simplesmente ter uma presença forte na net em termos de portefólio, ou teres algum trabalho publicado que se destaque e que faça com que o editor te contacte a ti. Mas geralmente o processo mais habitual será apresentar o trabalho pessoalmente a um editor numa convenção, como mencionei anteriormente. Comecei a colaborar com a Marvel em 2007, 2008, e desde então tenho trabalhado esporadicamente com eles ao longo dos anos. No meu caso foi através da net e do meu portfolio online que comecei o contacto com Editores Marvel.

2 - Como é que funciona o processo, recebes um guião, desenhas as pranchas, pintas? E os balões?
:: Recebo o guião, que tem descrições painel a painel do que se passa na página, faço “roughs”, envio-os ao editor para aprovação, e a partir daí desenho sensivelmente uma prancha por dia, idealmente. Tive situações em que tive de desenhar mais do que uma por dia, mas também tive outras em que demorei 2 dois a desenhar algumas páginas. Até agora só tive um comic em que trabalhei pintado por outra pessoa. Não sou eu que faço os balões, é a Marvel.

Pranchas de "Marvel Universe: Ultimate Spider-man" #2 (2012)

3 - O que te dá mais gozo fazer em todo o processo e porquê?
:: Desenhar as páginas em si, talvez a fase do layout, que é onde defino o storytelling e o ritmo da prancha.

4 – E como é definido esse ritmo e storytelling?
:: Explicar o processo de construção de uma prancha é um pouco complicado, porque tem muito de intuitivo e subjectivo. Ou seja, se tiver uma prancha com 5 vinhetas e esta consistir de um diálogo entre uma mãe e um filho numa cozinha, a escolha dos ângulos da "câmara", e a abertura dos mesmos dependerá de cada desenhador. É claro que como é um diálogo, provavelmente a maioria dos shots serão os chamados "talking heads", planos próximos em que geralmente se estabelece um jogo de campo e contracampo, de pergunta e resposta, digamos assim. Mas se não tivermos estabelecido anteriormente a cozinha, provavelmente um dos shots será mais aberto, um establishing shot, que nos mostrará o "set" da cena. E como não se quer que os shots sejam demasiado repetitivos, (apesar de haver ocasiões, onde se quererá que eles sejam repetitivos, por culpa do ritmo do diálogo, por exemplo), provavelmente poderá haver um shot médio, em que se afasta a câmara e se mostram os dois protagonistas, possivelmente da cintura para cima, e por aí adiante, vamos shot a shot adaptando o que o guião quer ao nosso estilo e mesmo às nossas limitações artísticas, para tentar criar algo que nos satisfaça minimamente e sirva bem o guião e os personagens.

Prancha de "Alpha", #3, p.14 (Abril, 2013)

5 - Tens tido feedback à tua arte dos fãs? Tem sido bom, como é que lidas com isso?
:: Sempre tive bom feedback dos fãs, apesar de fazer a ressalva que sou "um nobody" no mundo dos comics. Ou seja, isso vale o que vale. É claro que como em tudo há quem goste do meu trabalho e há quem deteste. No caso particular da mini-série que fiz mais recentemente do Alpha, o infame "sidekick" do Spider-man, e devido ao "ódio" que havia relativamente ao personagem e às suas aparições anteriores, e provavelmente porque o meu trabalho não os agradou, tive um feedback particularmente negativo. Quando estava a meio da série e vi que havia muitos fãs que estavam a detestar o que estava ser feito fiquei bastante desmoralizado, porque honestamente acho que estava a fazer algum do meu melhor trabalho, e como tal deitou-me abaixo um pouco. No geral o feedback dos sites de comics e dos editores foi muito positivo, mas a raiva dos fanboys de vez em quando é um pouco avassaladora. E obviamente não têm em conta que se trabalhas sozinho, a desenhar 12 ou mais horas por dia, e lês criticas sem o mínimo de critério, ou sensibilidade, isso pode ser difícil de gerir.

6 - Desenhavas em miúdo, consideras um talento natural a arte de desenhar? Quantas horas desenhas por dia?
:: Desenho desde que me lembro, e frequentei a Faculdade de Belas Artes de Lisboa durante uns anos. Provavelmente há pessoas que terão um "dom" natural, não sei, mas falando por mim, apenas continuei a desenhar quando muitos dos meus amigos pararam. Quando tenho um comic para fazer desenho o dia todo, desde as nove da manhã até às 9, 10 da noite. Não desenho à noite, e tenho por norma não fazer directas.

7 - Já trabalhaste com a EA e a Axis Animation, trabalho similar, muito diferente? O tipo de exigência era o mesmo, que diferenças notaste?
:: Geralmente o trabalho ou envolve “character design” ou ilustrações relacionadas com a temática do jogo em si, como tal pode variar muito. Acabei de trabalhar num jogo dos X-Men em que basicamente tive de desenhar personagens em dois modos diferentes, um de acção, e outro em pose relaxada.

Cena de Marvel Girl #1 (2010)

8 - A Marvel é o topo da carreira de um ilustrador de BD? Gostarias de continuar a trabalhar para a Marvel ou tens outros sonhos relacionados com a área?
:: Não sei se é o topo. Num certo sentido, sim, porque no campo especifico dos comics americanos mainstream, trabalhar com a Marvel ou a DC é capaz de ser o topo, agora isso não quer dizer que seja onde farás o teu melhor trabalho.

9 -  Para terminar o que é o projecto Mia?
:: É um projecto “creator owned” com um amigo meu, o João Lemos, e que eventualmente verá a luz do dia.

Mia, Tales from the Lost Islands


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outubro 21, 2013

animação nacional: pedagogia e entretenimento

Ao longo do último ano surgiram em Portugal duas novas séries de animação nacional com qualidade para serem exibidas em qualquer país, falo dos Nutri-ventures e dos Visiokids. Ambas as séries assumem um posicionamento pedagógico, muito provavelmente por razões de financiamento, por ser mais fácil convencer quem investe.



Apesar destas imposições, que se colocam a quem tem de convencer outros a financiar primeiros projectos de carácter lúdico, tenho a dizer que comparando estes dois projectos com muitos outros projectos nacionais do passado - animação, multimédia ou videojogos - denota-se que já estamos num patamar distinto. No passado os trabalhos lúdicos nacionais que arriscavam integrar a educação no entretenimento acabavam por se perder no caminho, desistindo do entretenimento para assumir apenas a camada da educação. Mas Nutri-ventures e Visiokids conseguem a proeza de serem trabalhos profundamente pedagógicos, sem nunca deixarem de se assumir como objectos de puro entretenimento.

Nutri-ventures iniciou-se em Setembro de 2012, tendo conseguido ao longo de um ano chegar a mais de vinte países, incluindo o Brasil, Espanha e EUA onde foi já elogiada pela própria primeira-dama, Michelle Obama, exactamente pela sua componente pedagógica no campo da alimentação. O tema da nutrição tinha sido recentemente explorado também com bastante sucesso, pela islandesa Lazy Town (Vila Moleza). Nutri-ventures acaba ainda assim por conseguir ir além, porque consegue passar mais informação relevante no campo, mantendo sempre um carácter muito lúdico. Por outro lado o trabalho da Bang! Bang! está muito bem estruturado em termos de marketing, porque não se limita à série, traz consigo um pequeno jogo gratuito para iOS, os NV Runners, caixas de puzzles editados pela Science4You, e imensa informação dirigida às crianças e especialmente aos pais que pode ser acedida online.


Entretanto em Setembro deste ano saiu a Visiokids, estando para já ainda limitada ao território nacional, mas que a julgar pelo que vi, acredito que em breve poderemos contar também com a sua exportação para outros países. O seu foco é a ciência, daí o nome que está ligado ao parque de ciência nacional, o Visionarium. Em termos temáticos a série aproxima-se bastante da conhecida série americana, Sid, the Science Kid (Sid Ciência). Visiokids foi criada pela Insizium uma empresa especializada no campo da Realidade Virtual que conta com capital de uma das mais importantes empresas de RV americanas, a EON Reality. Ao contrário da Bang! Bang!, a Insizium tem um leque muito mais alargado de acção, o seu foco não é propriamente a arte da animação, mas antes as tecnologias 3d. Nesse sentido é natural que o resultado estético final, não consiga ombrear com Nutri-ventures. Apesar disso e como dizia, a série denota um interesse por manter o espírito lúdico, não se deixando levar pelo mero apelo educativo, o que é já por si uma vitória, tendo em conta o tema tratado.


Em termos gerais julgo que em Portugal ainda temos caminho a fazer. Porque lidar com produtos como a animação, cinema ou videojogos não é propriamente compatível com a sobreposição com outras linhas de acção empresariais. São domínios com exigências de competências alargadas, e em profundidade. Em Portugal por falta de meios, temos vindo a optar por tentar este formato, de 2 ou 3 em 1, mas a verdade é que isso complica muito as nossas possibilidades no mercado internacional. Além disso a Insizium começa também por assumir um risco mais elevado, ao desenvolver os Visiokids em 3d, que por tratar-se de um produto para televisão tem exigências nos timings de produção, muito limitativas. É verdade que já vamos encontrando muitas séries internacionais em 3d, e com bastante qualidade, mas estamos a falar de investimentos maiores, que permitem ter equipas muito mais alargadas, muitas vezes contando com apoio de outsourcing da China e/ou India.

Apesar de tudo, é com muito prazer que vejo ambas as séries nas nossas televisões, e a serem exportadas para outros países. Também é muito bom ver que começamos a saber lidar com toda a cadeia de marketing em redor destes produtos, e não nos deixamos ficar apenas pela excelência do produto em si. Seja como for, muito sucesso para ambas as equipas que estão por detrás destas séries, e que muitas mais possam surgir nos próximos tempos. Acredito que existe talento e empreendedorismo para o fazer por cá. É verdade que nos últimos 3 anos muito desse talento foi obrigado a sair do país, mas este pode ser o caminho para o trazer de volta...

outubro 19, 2013

ilusão e compositing analógico

Elgin Park é o nome de uma cidade americana ficcional, criada por Michael Paul Smith. Paul Smith (1950) dedicou os seus tempos livres, nos últimos 25 anos, à paixão pela criação de modelos em escala. Com um pano de fundo baseado na sua obsessão pela atmosfera americana dos anos 1950, a cidade impossível foi surgindo através de diferentes edifícios e muitos carros. Um detalhe, esta cidade inexistente, tornou-se famosa, não pelas maquetas, mas pelas fotografias criadas a partir desses modelos, que contribuíram com um grau de realismo tal, capaz de nos fazer duvidar da não existência de Elgin Park.



Paul Smith é de base um ilustrador, tendo trabalhado na ilustração de livros assim como na direcção de arte de espaços para museus e lojas, assim como maquetista de arquitectura. Como tal o seu hobby, a construção da cidade Elgin Park, revelou-se o ideal por estar em total sintonia com o seu trabalho e a sua vida diária.

O que mais me impressionou e levou a falar aqui deste trabalho, foi sem dúvida o enorme realismo que podemos experienciar a partir das suas imagens, criadas com as maquetas. Um realismo particular, porque aquilo que podemos aqui ver é conseguido através de um método especial de construção da representação da realidade na fotografia. O método não é propriamente complexo, nem novo, mas suficientemente eficaz, para que as pessoas se ponham a questionar sobre a realidade da representação. Aliás, o método é tão simples que as pessoas depois de o conhecerem, duvidam mesmo que possa ser apenas tal como descrito por Paul Smith.

O que temos aqui então, é como dizia o colega Leonardo Pereira, e muito bem, uma espécie de "compositing analógico". Uma composição, uma construção, da imagem final a partir da mistura de um pedaço fotografado da realidade - luz, atmosfera, partes de arquitectura real - misturado com um pedaço de irrealidade - as maquetas. Tudo isto é composto num espaço físico, sem qualquer trabalho de iluminação artificial, e fotografado com uma câmara fotográfica básica, compacta, sem qualquer tipo específico de objectiva, inicialmente com apenas 6MP. A imagem que sai da máquina, é o que vemos aqui, não existe qualquer tratamento fotográfico sobre as imagens, não existe qualquer Photoshop, e isso impressiona, e muito.



Ora para Paul Smith conseguir obter este resultado final através de uma qualquer máquina fotográfica, e sem pós-produção, existe apenas uma condição para chegar a esta qualidade, a composição criada no mundo real tem que ter uma qualidade incrível. Falo nomeadamente do detalhe das maquetas, da forma como estas são justapostas aos ambientes reais, e claro sem dúvida do ângulo e momento de luz da realidade escolhida para fotografar. Numa entrevista, à Fstoppers, Paul Smith dá mais detalhes sobre a ciência por detrás do efeito, e mais à frente nessa entrevista explica os problemas por detrás de se fotografar com demasiada resolução:
"The whole forced perspective process was used extensively in early movie making back in the 1920′s. Because it was too expensive to create massive full size sets outside, detailed models were created and placed at the correct distance behind the actors to create the illusion of a city or some fantasy location. It was a very effective special effect.The use of models in Cinema is still happening today. As a matter of fact, audiences are tiring of CGI and model making is getting a resurgence. The actual math that is involved to create a consistently good forced perspective shot is something I can’t figure out because I am math challenged.  Over the years I’ve been doing this, I’ve developed a sense of how far I have to be away from any given background to make the scene work. There are still times when I have the shot set up, look through the camera and discover the distance is incorrect. In a very unprofessional way, I drag the table with the diorama on it until the scene lines up correctly.
What I have found is that 14 megapixels is almost too much for what I need to take convincing diorama shots. There is too much information being recorded which makes every little detail show up in the photographs. When working with miniatures, at least for myself, too much detail distracts from the total scene. Also, to capture a “retro” feeling, there needs to be a blur of sorts. If you go through old photos there is a slight lack of clarity to them. I think psychologically it gives them some emotional distance." 


Impressiona o nível de detalhe do trabalho aqui executado. Demonstra que a paixão por algo pode conduzir à criação de obras que por vezes nos transcendem. Por outro lado, olhando para a carreira de Paul Smith, percebemos que não se chega aqui apenas porque se gosta, mas porque se investiu nesta atividade toda uma vida. Que o investimento em produção criativa ao longo do tempo, nos pode conduzir a um grau de mestria, por vezes único.





Mais fotografias podem ser vistas nas contas SmugMug e Flickr do autor.

outubro 18, 2013

storytelling sem costuras

The Chaser (Chugyeogja), de Hong-jin Na, é um filme sul-coreano de 2008, brilhante em termos de storytelling. Para quem está habituado a consumir as recentes séries de TV (como "The Walking Dead", "Homeland", etc), está já muito habituado a todo este artesanato do storytelling, que por vezes faz lembrar a perfeição da arte da costura sem deixar marcas visíveis. Ainda assim aquilo que poderão ver em The Chaser vai para além do que estamos habituados a ver na ficção tradicional ocidental, porque é um trabalho que inova, conseguindo ser original.


The Chaser tem a capacidade de nos ligar emocionalmente a personagens que à partida não nos diriam muito. Aliás até meio do filme, parece que estamos meramente a ser empurrados pelo enredo, mas é a partir do meio do filme que os personagens se tornam familiares para nós, e em que a nossa empatia começa a funcionar. A uma certa altura, deixamos de seguir as tropelias do enredo, para nos fixar apenas no destino dos personagens. E aí The Chaser brilha, porque apresenta um domínio total da mestria de gestão das nossas expectativas. A história vai-se desvelando, mas passo a passo vamos sendo surpreendidos, pelo não usual, pelo não cliché, pelo não estereótipo. E quando aos poucos acreditamos que os esterótipos parecem começar a fazer sentido, em que conseguimos compor tudo na nossa cabeça, e que tudo se vai fechar como em mais um filme americano, é-nos tirado o tapete.

Hitchcock não teria feito melhor, estamos perante um magistral exercício de manipulação das audiências. A informação é-nos dada, ficamos a saber mais do que os nossos personagens, e isso joga contra nós, e contra as nossas emoções, como muito bem sabia Hitchcock.

O filme é violento, apesar disso não existem tiros, não existem explosões, mas o lado naturalista na representação da violência, confere-lhe um grau ainda mais duro pela crueza e proximidade à nossa realidade. As perseguições a pé e as lutas são bastante realistas, com um design de som capaz de nos faz sentir ali mesmo, ao pé daquelas pessoas, naqueles lugares. Esta capacidade de fazer parecer tudo tão natural, os polícias, as perseguições, os acidentes de carro, as dificuldades de encontrar a que casa pertence um molho de chaves, tornam tudo muito mais familiar, mais cognoscível para o espectador. Não existe aqui um distanciamento criado pelo espetáculo antes pelo contrário, isto acaba funcionando na criação de uma maior imersão no universo apresentado.