“A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo” (2008) de Martin Page é um livro adorável, aconselhável a qualquer português, ou a qualquer cidadão do mundo que se sinta português. Page, citando Mário Soares, diz-nos que “A língua é o vínculo, falar português é ser português.”
“A Primeira Aldeia Global” é um livro escrito por um inglês que veio para Portugal viver os seus últimos anos de vida, e por este país se apaixonou. Jornalista do "The Guardian", cobriu várias guerras pelo mundo, atravessou continentes e muitos países. Experimentou
in loco muito do que se dizia ter ali chegado através de marinheiros portugueses. Resolveu, nos últimos anos que viveu, já cego, pesquisar e escrever sobre a história de Portugal, sobre os seus feitos, sobre o seu povo e posição geográfica. Page criou um livro que eleva o orgulho português aos mais altos patamares. Dificilmente poderia este livro ter sido escrito por um português, sem ser ridicularizado pelo excesso de vanglória e ostentação. Como inglês disserta sobre a visão que os ingleses faziam de Portugal, como ajudaram a criar mitos como Infante D. Henrique, ou como foram grandes responsáveis pelo fim da monarquia em Portugal, os nossos eternos "amigos de Peniche". Page faz um trabalho de desmontagem de alguns personagens, mitos de hoje, como o Infante D. Henrique, Cristovão Colombo, ou o Marquês de Pombal. E não deixa incólume José Hermano Saraiva, e as suas tentativas de branqueamento do Estado Novo. Ainda assim este livro de Page é mais romance do que livro histórico. Está muito mais preocupado em romancear a história, do que em analisar a sua factualidade. Page apaixonou-se por Portugal, e este seu livro é uma carta de amor escrita como legado ao país, em que decidiu passar os seus últimos anos de vida.
Page recua aos tempos em que a região em que Portugal hoje se situa, era denominada de Lusitânia pelo Império de Roma, e enche o texto de detalhes apaixonantes, como o facto de Julio Cesar ter sido governador da Hispânia Ulterior, e nessa altura se ter dedicado a conquistar a Lusitânia, local de onde extrairia o ouro, nomeadamente no Alentejo, que lhe iria devolver o respeito de Roma e abrir caminho para se tornar no Cônsul da República de Roma. É esta forma de descrever a história, que torna o livro tão estimulante, carregado de detalhe explicado causalmente, ainda que por vezes não seja suportado em evidência científica (ex: a insistência no “Arigato”), mas que dão um sentido, uma lógica ao que aconteceu no passado. Apesar de nos levantarem dúvidas, alguns dos relatos que nos vai fazendo, é verdade que Page recorre a um manancial muito interessante de fontes exteriores a Portugal, capazes de ajudar a complementar muito daquilo que temos lido na história nacional. Escrevendo assim, jornalisticamente, Page ajuda-nos a criar uma ideia narrativa, coerente e consistente, que facilmente entendemos e registamos.
É fascinante toda a discussão que Page faz sobre a presença dos Árabes em território nacional, tudo o que nos trouxeram e que por cá deixaram, em termos de conhecimento, nomeadamente o conhecimento da Grécia antiga que nos chegou por sua via. Assim como todo o sentido fluído com que vai dissertando sobre cada rei de Portugal, os seus feitos, conquistas, os seus contributos para a Europa e o mundo. Mas lendo Page percebemos como Portugal, a seguir a cada grande momento de grande riqueza, teria sempre um grande momento de pobreza. Por isso se hoje vivemos com problemas de
rating no crédito internacional, isso não é novidade para nós. Já vivemos o mesmo problema em 1557 (p.177), pouquíssimos anos depois de termos sido o país mais rico do globo. E voltámos a viver o mesmo com o fim do produto proveniente do Brasil, após a sua independência, e que levaria ao colapso em 1926, que levaria ao surgimento de Salazar para implementar uma austeridade brutal, e assim reganhar o respeito dos mercados. Fica a ideia que ao longo de 900 anos de história, vivemos ao sabor da sorte, daquilo que o além-mar nos poderia trazer. Se fomos um Império, como Page e outros atestam (wikipedia), foi mais por conta de tudo o que conseguimos trazer de outras partes do mundo. Apenas com um milhão de habitantes, a geografia do país, ou quem o habitava, nunca conseguimos fazer grande coisa dele.
No livro de Page, tudo nas conquistas além-mar portuguesas são glórias. Não existe uma linha para discutir criticamente o período. Como apontamento sobre isto, deixo apenas esta gravura "Europe supported by Africa and America" (1796) de William Blake.
Page não reflecte criticamente sobre a problemática da riqueza conquistada, Page limita-se a apontar Portugal, e os portugueses como um dos principais povos a trilhar a comunicação internacional. Neste campo Page eleva os Portugueses ao alto, citando e atestando, sobre a amabilidade, abertura, e empatia dos portugueses para com os outros povos. Desde os Árabes inicialmente, aos povos em África, e aos Judeus que viveram na Europa até ao modo como os Portugueses acolhem ainda hoje. Page não o diz, mas este poderá ter sido o elemento central em toda a criação do Império Português, a sua facilidade de comunicação com o outro, o modo como se dava rapidamente, se adaptava a cada lugar diferente, e se deixava ficar criando raízes. Ainda hoje se refere que os portugueses terão sido responsáveis pela criação da raça de mestiços, ao fundir-se desde o início com as outras raças e credos, que ia encontrando, de forma aberta e sem tabus.
A capacidade e empenho nas viagens além-mar levou a que Portugal se tivesse concentrado no desenvolvimento de tecnologia que lhe permitiria ligar todo o mundo por via marítima. Desde tecnologia de orientação, a tecnologia de navegação, a tecnologia de guerra. Portugal inventou, criou, desenvolveu e implementou todo um arsenal capaz de permitir abrir caminhos desconhecidos, estabelecendo rotas marítimas periódicas que passaram a transportar o conhecimento entre todos os pontos do chamado Império Português. Durante o auge, o português chegou a ser Língua Franca no comércio e navegação. E é exatamente aqui que encalha o meu título para esta resenha.
Portugal foi o Google, em todos os sentidos. Arrisco dizer “todos”.
Primeiro porque abriu caminho, onde este não existia.
Segundo, porque deu a conhecer o que antes era desconhecido.
Terceiro porque se tornou global, rico e poderoso.
Quarto, o mais importante para mim, porque conseguiu tudo isto sem verdadeiramente criar nada. Criar, no sentido de produção de cultura, definidor do saber-fazer de um povo, aparte a tecnologia já descrita.
Tal como a Google, Portugal limitou-se a inventar tecnologia para abrir caminhos e dar a conhecer. Ambos, nunca se preocuparam em criar conhecimento e cultura para legar aos seus sucessores. Portugal enriqueceu enquanto dominou os caminhos de acesso às especiarias e ouro, tal como a Google enquanto dominar as pesquisas online. Portugal limitou-se a fazer passar de mãos conhecimento, tendo participado muito pouco ativamente na criação desse conhecimento. Com o que trazia de um lado, podia adquirir tudo o que queria do outro. (Um exemplo disto é bem evidenciado por Saramago, na descrição da construção do Convento de Mafra no seu
"Memorial do Convento" (1982)). Tal como a Google, com a abertura dos caminhos da pesquisa, tem gerado somas de dinheiro astronómicas em publicidade, que lhe têm servido para criar mais tecnologias de transmissão. Quando acabar o auge das pesquisas Google, esta acabará por se afundar, como afundou o Império Português logo após a morte de D. Manuel, aquele que ficou conhecido na Europa como o “Rei Merceeiro”.
Page vai citando alguns exemplos de notáveis cabeças e invenções nacionais, mas convenhamos, que em quase mil anos de história, tudo o que é citado pode ser encontrado num único século de vários países da Europa. Só isto por si, pode demonstrar o nosso problema, e talvez explique a nossa forma de estar enquanto cidadãos do mundo, somos provavelmente pouco ambiciosos.
Fica o livro de Page, um livro fluído, sobre uma história fluída, de um povo fluído.