setembro 11, 2013

electricidade e o mito Frankenstein

Enquanto via o filme Frankenweenie (2012) de Tim Burton, dei-me conta pela primeira vez que a única coisa que estava em jogo no processo de dar vida ao Frankenstein era a eletricidade. Daí que me tenha questionado sobre as razões para o sucesso de uma premissa tão simples. Depois acabei por tombar sobre um texto que discutia os tempos do surgimento da eletricidade. Foi aí que descobri que em 1803 Giovanni Aldini, sobrinho de Luigi Galvani (daí o termo "galvanismo"), terá aplicado electricidade sobre corpos de assassinos, gerando reações musculares, descrevendo-as assim, como momentos de “pré-resussuscitação”.

Ilustração dos experimentos de Aldini com cadávers. Nas notas de George Foster ficou registado que “the jaw began to quiver, the adjoining muscles were horribly contorted, and the left eye actually opened … The action even of those muscles furthest distant from the points of contact with the arc was so much increased as almost to give an appearance of re-animation … vitality might, perhaps, have been restored, if many circumstances had not rendered it impossible.” (citado in Mary Shelley: Her Life, Her Fiction, Her Monsters)

Neste contexto, uma história como Frankenstein faz todo o sentido surgir em 1818. E é muito interessante viajar a esses tempos e imaginar, o encanto e magia que a electricidade terá representado para os nossos antepassados, ao ponto de poderem começar a sonhar com a ressurreição. Ideia que acaba por ser muito mais central em Frankenweenie do que em Frankenstein.

setembro 10, 2013

Google, o braço direito do governo americano?

Estive quase para desistir de “The New Digital Age” (2013) logo após a leitura da introdução. Dei uma segunda hipótese e li o primeiro capítulo, mas mesmo aí a minha vontade de deixar de ler não se desvaneceu. Um texto carregado de especulações banais, baseadas em banalidades da atualidade, um texto que pretende prever o futuro, e nos fala quase sempre do agora e do futuro imediato, cinco ou dez anos, completamente incapaz de ver além dos muros do real atual. Um livro que fala da vida humana, e dos seus condicionamentos, como trivialidades.

"Ruined online reputations might not lead to physical violence by the perpetrator, but a young woman facing such accusations could find herself branded with a digital scarlet letter that, thanks to the unfortunate but hard-to-prevent reality of data permanence, she’d never be able to escape. And that public shame could lead one of her family members to kill her."
Porque não parei então? A razão é simples, por causa dos autores. Não pelo conhecimento que detêm, que o livro dá bem conta, mas antes pelo poder que detêm. Logo ao abrir o livro, damos de caras com esse poder, quando vemos quem assina as mais elogiosas recomendações ao livro - Henry Kissinger, Bill Clinton, Tony Blair, Madeleine Albright, Michael Hayden, ex-diretor da CIA. Pouco depois de encomendar o livro, veio a público o projeto PRISM, revelado por Edward Snowden. A Google, e estes dois senhores estão no centro de todo este problema, por isso é importante perceber para onde nos querem levar, ainda que tenhamos de ler nas entrelinhas daquilo que escrevem.
"Identity will be the most valuable commodity for citizens in the future, and it will exist primarily online. Online experience will start with birth, or even earlier. Periods of people’s lives will be frozen in time, and easily surfaced for all to see. In response, companies will have to create new tools for control of information, such as lists that would enable people to manage who sees their data."
Ao longo de todo o livro, não existe a mais pequena referência ao PRISM, nem a qualquer outro projeto, ou programa, que possa apresentar qualquer similaridade com este. O livro começa com a banalidade das previsões futuras sobre as tecnologias da comunicação, e avança para algo que não podia ser pior, o terrorismo, os terroristas, os maus e os bons. Cheguei a questionar-me se estava a ler um livro escrito por dois responsáveis de uma das empresas de tecnologias de comunicação mais poderosas do planeta, ou se um livro do governo americano. Ou ainda, um livro escrito por estagiários que fazem o seu melhor, através da visão simplista, e tão formatada, que ainda detêm do mundo. A narrativa é tão decalcada, que parece quase existir apenas um mundo, e nada mais, tão simples, tão claro e tão esquematizável, que os autores parecem dizer, “como todos não conseguem ver o mundo como nós?”.
“By 2025, the majority of the world’s population will, in one generation, have gone from having virtually no access to unfiltered information to accessing all of the world’s information through a device that fits in the palm of the hand.”
"the printing press, the landline, the radio, the television, and the fax machine all represent technological revolutions, but all required intermediaries (..) [the digital  revolution] is the first that will make it possible for almost everybody to own, develop and disseminate real-time content without having to rely on intermediaries."
Aceder a “toda” a informação?!! Disseminar informação sem intermediários?!! Mas... é de ficar sem palavras com tanta barbaridade junta. Aceder a toda a informação, talvez se refiram ao PRISM, porque não vejo como se pode afirmar tão assertivamente coisas destas. Quanto aos intermediários, estes senhores esquecem que são eles próprios neste momento os intermediários, ou será que por proferirem o mantra “do no evil”, serão transparentes?!!
“the promise of exponential growth unleashes possibilities in graphics and virtual reality that will make the online experience as real as real life, or perhaps even better.”

“On the world stage, the most significant impact of the spread of communication technologies will be the way they help reallocate the concentration of power away from states and institutions and transfer it to individuals.”
Impressiona-me como foi possível escrever um livro desta forma, onde estavam os editores? Como se podem afirmar coisas sobre o futuro, ainda que imediato, como se de certezas se tratassem. Mas pior ainda, como se podem afirmar certezas num parágrafo, para na página, ou capítulo, seguintes, de imediato se contradizerem. Aonde pára a coerência discursiva? Ou isto são apenas umas ideias soltas atiradas para umas folhas em branco? É o que mais me parece. Ideias interessantes, que vamos discutindo com os amigos, mas que tratam assuntos complexos, com divergentes perspectivas, e que hoje podemos defender de um lado, e amanhã do outro. Mas se isso funciona no discurso oral, em construção contínua, não funciona num livro, ou não deveria funcionar. Um livro deveria traduzir um discurso reflectido, meditado, maturado, estruturado, e não uma monte de ideias engraçadas. Morozov explica muito bem como terá sido escrito o livro,
“In the simplicity of its composition, Schmidt and Cohen’s book has a strongly formulaic —perhaps I should say algorithmic— character. The algorithm, or thought process, goes like this. First, pick a non-controversial statement about something that matters in the real world —the kind of stuff that keeps members of the Council on Foreign Relations awake at their luncheons. Second, append to it the word “virtual” in order to make it look more daring and cutting edge. (If “virtual” gets tiresome, you can alternate it with “digital.”) Third, make a wild speculation—ideally something that is completely disconnected from what is already known today. Schmidt and Cohen’s allegedly unprecedented new reality, in other words, remains entirely parasitic on, and derivative of, the old reality.”
Mas fica tudo muito claro quando se percebe quem são verdadeiramente as pessoas por detrás deste livro, de onde vieram, como se encontraram, e o que é realmente pretendem com este livro.
“We two first met in the fall of 2009, under circumstances that made it easy to form a bond quickly. We were in Baghdad, engaging with Iraqis around the critical question of how technology can be used to help rebuild a society.”

“Eric confirmed his feeling that the technology industry had many more problems to solve, and customers to serve, than anyone realized. In the months following our trip, it became clear to us that there is a canyon dividing people who understand technology and people charged with addressing the world’s toughest geopolitical issues, and no one has built a bridge. Yet the potential for collaboration between the tech industry, the public sector and civil society is enormous.”
Cá está o que eles se propõem fazer com este livro, estabelecer a ligação entre os produtores de tecnologia e os clientes da política. Não é por acaso que um dos autores, Jared Cohen, o atual diretor da Google Ideas, foi o consultor de Condoleezza Rice para as questões das relações internacionais com o Médio Oriente, e é ainda consultor do Centro Nacional de Contraterrorismo dos EUA. Isso explica, porque razão a palavra “Iraque” aparece no livro mais de meia centena de vezes, assim como se podem encontrar abundantemente as palavras – “Paquistão”, “Afganistão”, “Irão”, “Israel”, “Somália”, “Terrorismo”, “Al-Qaeda”, “Assange”, “China”, “Coreia do Norte”. Mas, o que é a Google afinal!?

Um livro escrito pelo Chairman da Google, Eric Schmidt, e pelo diretor da Google Ideas, Jared Cohen, com o nome “The New Digital Age”, não deveria ser um livro sobre o futuro das tecnologias digitais? Não deveria ser um livro sobre o futuro da conectividade? Não deveria ser um livro sobre as inovações de fundo das tecnologias de comunicação? Ainda que pudesse, e devesse, falar dos seus impactos sociais e potenciais alterações antropológicas, e porque não até psicológicas nos campos emocional e cognitivo, porque é que haveria de se concentrar sobre o terrorismo, e apenas na sua leitura política (americana)?!

Porque dos sete capítulos, apenas os primeiros dois se dedicam aos impactos gerais na sociedade. São dedicados cinco capítulos completos à discussão do impacto das tecnologias da comunicação ao nível da política global, americana. Ou seja, mais de três quartos do livro são passados a discutir ideias soltas, sem rumo, sem estrutura organizativa, veiculadas apenas pela narrativa vigente da supremacia da política americana, alegadamente democrática, e de imposição de uma alegada democracia, pela força, ao resto do mundo!!! No final somos servidos com o antídoto que todos os problemas resolverá,
 "The best thing anyone can do to improve the quality of life around the world is to drive connectivity and technological opportunity. When given the access, the people will do the rest. They already know what they need and what they want to build."
Se ainda assim não estiverem convencidos do quão rasteiro este livro é, aconselho vivamente a leitura da extensa análise realizada por Morozov, que começa de modo irónico, brincando com a incongruência e infantilidade da escrita do livro, para depois atacar em maior profundidade os erros ao nível do uso da tecnologia em contextos de geopolítica. E se ainda tiverem paciência leiam a resposta de Assange aos autores.

setembro 09, 2013

somos feitos de histórias

Aproveito para deixar aqui algumas notas sobre duas interessantíssimas TED Talks sobre as histórias, e o cinema que conta histórias. Tudo fica dito pelas palavras do título da comunicação de Shekhar Kapur, "Nós somos as histórias que contamos…", reafirmado por Beeban Kidron, "há indícios de que o ser humano de todas as idades e de todas as culturas cria a sua identidade em alguma forma narrativa."


O que fica aqui explícito é que o mais importante para o ser humano são as histórias, e não o meio. Não interessa se acedem aos mundos das histórias através da literatura, do cinema ou dos videojogos, interessa apenas que lhe acedam. Que sintam as "contradições" que nos apresentam, e sigam em busca das "harmonias do mundo", para utilizar as palavras de Shekhar Kapur.

Porque o poder da narrativa, das histórias que nos contam, está na sua capacidade para instigar o questionamento. Como vai dizendo Beeban Kidron, mentora do projecto FILMCLUB em Inglaterra que levou o cinema às escolas, obtendo resultados estrondosos, com as crianças a elevarem a sua auto-estima, a sua motivação para ir a escola, e principalmente aguçar a sua curiosidade.
"Quem estava certo, quem estava errado? O que fariam sob as mesmas condições? A história foi bem contada? Havia uma mensagem escondida? Como é que o mundo mudou? Como poderia ser diferente? Um tsunami de perguntas sairam da boca de crianças que o mundo pensava não estarem interessadas. As próprias não sabiam que se importavam. Conforme escreviam e debatiam, em vez de verem os filmes como artefactos começaram a ver-se a si próprias." Kidron
Kidron fala sobre algo com que nos debatemos desde os anos 50 do século passado, o valor do cinema face à literatura. Algo que os videojogos só agora começaram a trilhar.
"Se honramos a leitura, porque não honrar visualizar com a mesma paixão? Considerem "O Mundo a Seus Pés" tão valioso quanto Jane Austen. Concordem que "A Malta do Bairro", assim como Tennyson, oferece uma paisagem emocional e uma compreensão enriquecida que se complementam. São ambos um objecto de arte memorável, ambos, um tijolo na construção de quem somos." Kidron
Porque a essência é a história, é esta que activa a nossa mente, desencadeia o processamento mental, e nos ajuda a descobrir-nos a nós mesmos de cada vez que acedemos a uma nova história,
"Quando estas pessoas chegam a casa, após a visualização de "Janela Indiscreta" e olham com atenção para o prédio ao lado, têm as ferramentas necessárias para questionarem quem, para além deles, está ali e qual é a sua história." Kidron

Beeban Kidron, A Maravilha partilhada do Cinema (2012)

setembro 06, 2013

e-David, detalhe e reflexão

e-David é mais um robô artista, mas tem uma diferença para com os seus antecessores, a qualidade técnica do resultado final. O detalhe e a execução do traço pode confundir e levar os menos atentos a acreditar que se trata de um trabalho realizado por um ser humano. A acrescentar à técnica, o robô vai ainda mais longe no "pensar" o trabalho que está a executar. Este é o caminho da IA, levar o robô a “questionar-se” sobre as tarefas que realiza.


O robô tem como objectivo criar uma imagem que lhe é dada, e à medida que vai processando o  desenho, vai fotografando o mesmo e comparando-o com a imagem final pretendida. Nas pinceladas seguintes, procede às correções do que ficou menos conseguido, e assim sucessivamente até atingir o melhor resultado final possível. No fundo trata-se de um processo de análise e contra-análise, um diálogo interno entre o robô e o papel.

Aqui a explicação da evolução dos passos realizados por e-David para conseguir recriar a imagem que lhe é dada. Mais informação no paper "Feedback-guided Stroke Placement for a Painting Machine" (2012)

É verdade que este robô não é autor da imagem, ele apenas a executa. Mas o que está aqui em questão, pelo menos numa abordagem artística, é um processo de robótica, e não um questionamento filosófico. Ou seja da automatização de um processo que requer competências muito detalhadas por parte de um ser humano. O robô não será o pintor dos nossos sonhos do futuro, mas poderá bem ser o pintor da cópia do Van Gogh que quisermos ostentar na nossa sala.

Claro que isto levanta numa segunda análise questões filosóficas do foro social, nomeadamente no campo do trabalho. Se um robô pode atingir este tipo de performance, o que nos reserva o futuro, em termos de competências? O que poderemos nós, humanos, desenvolver como competências que nos mantenham úteis e necessários à sociedade? Ou será tempo de começar a pensar a sociedade segundo outros modelos?

No vídeo podem ver o robô em acção, a minuciosidade da execução...

setembro 05, 2013

Wonderland | A Short Form Doc on Creative Commerce (2013)

O documentário, Wonderland (2013) de Terry Rayment e Hunter Richards, fala-nos dos diferentes sentires do criador no momento de criar um artefacto pessoal versus um produto comercial. Artistas, designers e criativos falam de dinheiro, de liberdade, de restrições, de ambições, dos egos, dos clientes e  de como se balanceia tudo isso no dia-a-dia.

"You can't predict the end result, and that's part of the process, the beauty in it."… "Trying to plan in the future, will not work… you've to live in the now… focus on doing things, not on the the end results… we have to focus on each step…"… "the goal is always to get better…"… 
Há umas semanas tive oportunidade de escrever um texto para a Eurogamer, sobre este assunto, a propósito de um texto de Adam Saltsman, em que este desabafa sobre os seus dilemas criativos na escolha dos próximos jogos a desenvolver. Dei ao texto um título bem ilustrativo Bipolaridade Criativa.

Diagrama a partir da classificação de David Lewndowski em Wonderland

Neste documentário, David Lewndowski acaba por no meio da conversa dar uma possível classificação do impacto do dinheiro sobre a liberdade criativa de cada um. Converti a sua definição num eixo visual (diagrama acima), que de forma simples se poderia resumir por: “quanto mais dinheiro mais corrompida é a criatividade de um projecto”. Claro que as exceções existem,
"Sometimes there's total miracles… oh my God, did they just allowed me to create that, and they paid for that. My heart still flexes my creative muscles I can still feel alive when I express myself."

setembro 04, 2013

Portugal e a Google

“A Primeira Aldeia Global – Como Portugal mudou o Mundo” (2008) de Martin Page é um livro adorável, aconselhável a qualquer português, ou a qualquer cidadão do mundo que se sinta português. Page, citando Mário Soares, diz-nos que “A língua é o vínculo, falar português é ser português.”


“A Primeira Aldeia Global” é um livro escrito por um inglês que veio para Portugal viver os seus últimos anos de vida, e por este país se apaixonou. Jornalista do "The Guardian", cobriu várias guerras pelo mundo, atravessou continentes e muitos países. Experimentou in loco muito do que se dizia ter ali chegado através de marinheiros portugueses. Resolveu, nos últimos anos que viveu, já cego, pesquisar e escrever sobre a história de Portugal, sobre os seus feitos, sobre o seu povo e posição geográfica. Page criou um livro que eleva o orgulho português aos mais altos patamares. Dificilmente poderia este livro ter sido escrito por um português, sem ser ridicularizado pelo excesso de vanglória e ostentação. Como inglês disserta sobre a visão que os ingleses faziam de Portugal, como ajudaram a criar mitos como Infante D. Henrique, ou como foram grandes responsáveis pelo fim da monarquia em Portugal, os nossos eternos "amigos de Peniche". Page faz um trabalho de desmontagem de alguns personagens, mitos de hoje, como o Infante D. Henrique, Cristovão Colombo, ou o Marquês de Pombal. E não deixa incólume José Hermano Saraiva, e as suas tentativas de branqueamento do Estado Novo. Ainda assim este livro de Page é mais romance do que livro histórico. Está muito mais preocupado em romancear a história, do que em analisar a sua factualidade. Page apaixonou-se por Portugal, e este seu livro é uma carta de amor escrita como legado ao país, em que decidiu passar os seus últimos anos de vida.

Page recua aos tempos em que a região em que Portugal hoje se situa, era denominada de Lusitânia pelo Império de Roma, e enche o texto de detalhes apaixonantes, como o facto de Julio Cesar ter sido governador da Hispânia Ulterior, e nessa altura se ter dedicado a conquistar a Lusitânia, local de onde extrairia o ouro, nomeadamente no Alentejo, que lhe iria devolver o respeito de Roma e abrir caminho para se tornar no Cônsul da República de Roma. É esta forma de descrever a história, que torna o livro tão estimulante, carregado de detalhe explicado causalmente, ainda que por vezes não seja suportado em evidência científica (ex: a insistência no “Arigato”), mas que dão um sentido, uma lógica ao que aconteceu no passado. Apesar de nos levantarem dúvidas, alguns dos relatos que nos vai fazendo, é verdade que Page recorre a um manancial muito interessante de fontes exteriores a Portugal, capazes de ajudar a complementar muito daquilo que temos lido na história nacional. Escrevendo assim, jornalisticamente, Page ajuda-nos a criar uma ideia narrativa, coerente e consistente, que facilmente entendemos e registamos.

É fascinante toda a discussão que Page faz sobre a presença dos Árabes em território nacional, tudo o que nos trouxeram e que por cá deixaram, em termos de conhecimento, nomeadamente o conhecimento da Grécia antiga que nos chegou por sua via. Assim como todo o sentido fluído com que vai dissertando sobre cada rei de Portugal, os seus feitos, conquistas, os seus contributos para a Europa e o mundo. Mas lendo Page percebemos como Portugal, a seguir a cada grande momento de grande riqueza, teria sempre um grande momento de pobreza. Por isso se hoje vivemos com problemas de rating no crédito internacional, isso não é novidade para nós. Já vivemos o mesmo problema em 1557 (p.177), pouquíssimos anos depois de termos sido o país mais rico do globo. E voltámos a viver o mesmo com o fim do produto proveniente do Brasil, após a sua independência, e que levaria ao colapso em 1926, que levaria ao surgimento de Salazar para implementar uma austeridade brutal, e assim reganhar o respeito dos mercados. Fica a ideia que ao longo de 900 anos de história, vivemos ao sabor da sorte, daquilo que o além-mar nos poderia trazer. Se fomos um Império, como Page e outros atestam (wikipedia), foi mais por conta de tudo o que conseguimos trazer de outras partes do mundo. Apenas com um milhão de habitantes, a geografia do país, ou quem o habitava, nunca conseguimos fazer grande coisa dele.

No livro de Page, tudo nas conquistas além-mar portuguesas são glórias. Não existe uma linha para discutir criticamente o período. Como apontamento sobre isto, deixo apenas esta gravura "Europe supported by Africa and America" (1796) de William Blake.

Page não reflecte criticamente sobre a problemática da riqueza conquistada, Page limita-se a apontar Portugal, e os portugueses como um dos principais povos a trilhar a comunicação internacional. Neste campo Page eleva os Portugueses ao alto, citando e atestando, sobre a amabilidade, abertura, e empatia dos portugueses para com os outros povos. Desde os Árabes inicialmente, aos povos em África, e aos Judeus que viveram na Europa até ao modo como os Portugueses acolhem ainda hoje. Page não o diz, mas este poderá ter sido o elemento central em toda a criação do Império Português, a sua facilidade de comunicação com o outro, o modo como se dava rapidamente, se adaptava a cada lugar diferente, e se deixava ficar criando raízes. Ainda hoje se refere que os portugueses terão sido responsáveis pela criação da raça de mestiços, ao fundir-se desde o início com as outras raças e credos, que ia encontrando, de forma aberta e sem tabus.

A capacidade e empenho nas viagens além-mar levou a que Portugal se tivesse concentrado no desenvolvimento de tecnologia que lhe permitiria ligar todo o mundo por via marítima. Desde tecnologia de orientação, a tecnologia de navegação, a tecnologia de guerra. Portugal inventou, criou, desenvolveu e implementou todo um arsenal capaz de permitir abrir caminhos desconhecidos, estabelecendo rotas marítimas periódicas que passaram a transportar o conhecimento entre todos os pontos do chamado Império Português. Durante o auge, o português chegou a ser Língua Franca no comércio e navegação. E é exatamente aqui que encalha o meu título para esta resenha.

Portugal foi o Google, em todos os sentidos. Arrisco dizer “todos”. Primeiro porque abriu caminho, onde este não existia. Segundo, porque deu a conhecer o que antes era desconhecido. Terceiro porque se tornou global, rico e poderoso. Quarto, o mais importante para mim, porque conseguiu tudo isto sem verdadeiramente criar nada. Criar, no sentido de produção de cultura, definidor do saber-fazer de um povo, aparte a tecnologia já descrita.

Tal como a Google, Portugal limitou-se a inventar tecnologia para abrir caminhos e dar a conhecer. Ambos, nunca se preocuparam em criar conhecimento e cultura para legar aos seus sucessores. Portugal enriqueceu enquanto dominou os caminhos de acesso às especiarias e ouro, tal como a Google enquanto dominar as pesquisas online. Portugal limitou-se a fazer passar de mãos conhecimento, tendo participado muito pouco ativamente na criação desse conhecimento. Com o que trazia de um lado, podia adquirir tudo o que queria do outro. (Um exemplo disto é bem evidenciado por Saramago, na descrição da construção do Convento de Mafra no seu "Memorial do Convento" (1982)). Tal como a Google, com a abertura dos caminhos da pesquisa, tem gerado somas de dinheiro astronómicas em publicidade, que lhe têm servido para criar mais tecnologias de transmissão. Quando acabar o auge das pesquisas Google, esta acabará por se afundar, como afundou o Império Português logo após a morte de D. Manuel, aquele que ficou conhecido na Europa como o “Rei Merceeiro”.

Page vai citando alguns exemplos de notáveis cabeças e invenções nacionais, mas convenhamos, que em quase mil anos de história, tudo o que é citado pode ser encontrado num único século de vários países da Europa. Só isto por si, pode demonstrar o nosso problema, e talvez explique a nossa forma de estar enquanto cidadãos do mundo, somos provavelmente pouco ambiciosos.

Fica o livro de Page, um livro fluído, sobre uma história fluída, de um povo fluído.

setembro 03, 2013

"Livro" de José Luís Peixoto

Conheço o trabalho do José Luis Peixoto (JLP) desde o seu primeiro romance, “Morreste-me” (2000), que me deixou logo apanhado pelo autor. Foi numa fase em que me dedicava a ler autores mais novos, procurava mundos mais próximos, e não tanto os clássicos que nos falam sob uma forma grandiosa, mas sobre realidades tão distantes no tempo, que dificilmente nos identificamos, ficando muitas vezes apenas pela forma, sem razões para acreditar no conteúdo. Apesar de ter adorado, nunca mais li nada seu, com a vida académica a não-ficção tomou o lugar da ficção, que ficou apenas reservada ao cinema e videojogos. De vez em quando pego num romance.

"Livro" (2010)

Em Agosto passei pela loja, vi os vários livros do JLP enfileirados, fiquei admirado por já ter publicado tanta coisa desde então, mas fiquei contente, pelo respeito que me mereceu desde então. Dos vários, o "Livro" foi o que menos me impressionou quando lhe peguei. Estou um pouco cansado de histórias sobre a emigração, apesar de saber que ainda nos falta muito dizer, muito enfatizar, sobre uma enorme fase da vida de Portugal. Mas depois de lidas as várias sinopses em cada contra-capa acabei por aqui voltar, e é verdade que o título me impressionou. Primeiro pensei, que pretensiosismo, mas respeitando o JLP, quis acreditar que não era de todo o seu estilo, e por isso trouxe-o comigo para casa.

Duas constatações prévias, JLP nasceu no mesmo ano que eu, é um filho de Abril que nunca conheceu o antes. Mais, é filho de emigrantes portugueses partidos para o centro da Europa num tempo em que não era permitido sair do país, que tal como os meus pais voltaram para Portugal para nos dar uma infância nacional, depois da revolução. Do que ele sabe, e eu sei, sobre esses tempos, foi ouvido em discursos diretos em casa, ao longo das nossas adolescências. Vivemos uma ruralidade na infância, sempre comparada com o exterior, que nos impregnou os sentidos do que é viver Portugal. Mais tarde, as cidades nacionais receberam-nos para que pudéssemos continuar os estudos, impulsionados por uma geração de pais que quis o melhor do mundo para os seus filhos, que quis que estes chegassem onde eles não conseguiram, sabendo que o único caminho para dali sair estava nos estudos. Talvez por tudo isto perceba e sinta tão de perto o que está neste livro.

Apesar de sentir o tema do livro de perto, quero dizer que a maior parte da leitura, digamos 4/5 foi feita sem esta sensação, já que se relata o antes. JLP começa em 1948, e nós só nascemos em 1974. Por isso aquilo que o livro constrói como seu universo expressivo, tocará a todos, mesmo quem não tenha tido qualquer experiência de emigração perto. Já que o que torna o livro, uma experiência estética tão poderosa, não é o tema em si, mas o tratamento que lhe é dado por JLP. Não me admirei, nem fiquei surpreso com o seu à vontade descritivo, nem tão pouco com as suas capacidades de gerar metáforas tão "perfurantes", em termos de sentido, ao ponto de nos darem “a ver” através de meros conjuntos de palavras. Porque como disse, já o admirava como escritor, apesar de ter apenas lido um livro seu antes, e várias crónicas em revistas.
"A Adelaide carregava no interruptor e as lâmpadas fluorescentes, depois de piscarem em cambalhotas de luz, acendiam-se uma a uma e faziam crescer um zumbido branco, que permanecia." (p.142)

"A terra respirava. Quando a Adelaide saiu de trás do muro do chafariz, já uma vírgula iniciara o percurso em direcção ao seu útero" (p.202)
O livro vem dividido em duas partes. A primeira parte, o grande bolo do livro (ocupa 200 das 260 páginas) é realista, com um toque saramaguiano, enreda-nos, agarra-nos e não nos larga. Comecei pela manhã, e só parei no final do dia quando cheguei à última página. JLP descreve o rural português de uma tal forma que me fazia questionar, a todo o passo, sobre o nível de detalhe que consegue ali despejar, até parecia que ali tinha vivido, que ali tinha sentido. E na verdade só depois descobri que JLP tinha vivido numa aldeia portuguesa, como filho de emigrantes. Ainda assim, aquilo que descreve são as suas memórias transplantadas para um tempo antes de ter nascido.

Mas não é apenas o detalhe descritivo, o enredo construído sobre uma fragmentação do tempo, muito típica do pós-modernismo que atravessa o storytelling atual, é desenvolto e capaz de gerar momentos de puro "thrill", apesar de não se tratar de um "thriller". Logo a abrir o livro, temos um momento destes, um baque, que nos surpreende, nos intimida, e imediatamente nos agarra ao livro. Ao longo do texto, temos mais dois ou três momentos destes fortes, que servem para nos acordar do fio romanesco da história.

A segunda parte é um salto adentro da forma, um trabalho sobre os fundamentos da literatura. Se o tema é a emigração portuguesa, percebemos a breve trecho que este serviu apenas de motor para algo maior. O "Livro", poderia terminar no final das 200 páginas, e seria um muito bom livro, mas não seria o "Livro". O "Livro" abre-se a nós, e nós a ele, levando-nos para um novo nível de interação entre o texto, o autor e nós os leitores.

setembro 02, 2013

Eurogamer: artigos de Agosto

E depois dos filmes e livros, ficam os artigos de agosto escritos para a Eurogamer. Mês comprido, acabou por ficar com três textos. No primeiro texto do mês falei da crítica de videojogos, e tentei justificar alguns dos problemas que esta apresenta no momento atual. No segundo texto falei dos aspectos criativos, e seus dilemas, a partir de um texto de Adam Saltsman. E no último texto fui de encontro ao que instiga os criadores a desenvolverem um jogo, em termos de mensagem e ideia, dando conta de que os videojogos também podem servir a catarse autoral.

Filmes e livros de Agosto 2013

Julho tinha sido anormal no número de filmes vistos, por isso em Agosto tirei férias do cinema. Vi apenas 3 filmes e dediquei o resto do tempo à leitura. Finalmente consegui ver o primeiro filme de Malick, um filme impressionantemente maduro para primeiro filme. Já Oblivion deixou-me com um sabor agridoce, por um lado o design genial do ambiente e cenários, por outro uma história já vista sem grande novidade, e pior que tudo a inclinação para o show-off típico de Hollywood, com Cruise em mais uma MI. Na literatura, fiz algumas leituras mais leves de verão como Saramago, Peixoto ou Calvino, e outras mais pesadas como Sennett e Dutton. Deixo a lista, e no caso dos livros irei publicar ao longo de setembro uma resenha de cada um.

CINEMA

xxxx Badlands 1973 Terrence Malick USA

xxx Oblivion 2013 Joseph Kosinski USA

xxx Welcome 2009 Philippe Lioret France


ROMANCE
Livro (2010) de José Luís Peixoto [Análise]

Mudanças (2010) de Mo Yan

A Primeira Aldeia Global (2008) de Martin Page [Análise]

A Identidade (1998) de Milan Kundera

Palomar (1983) de Italo Calvino

Memorial do Convento (1982) de José Saramago


NÃO-FICÇÃO

The New Digital Age, (2013), Eric Schmidt [Análise]

Obras Primas da Arte Portuguesa - Pintura (2011) Dalila Rodrigues

Obras Primas da Arte Portuguesa - Século XX Artes Visuais, (2011), Delfim Sardo

The Craftsman, (2009), Richard Sennett [Análise]

The Art Instinct, (2009), Dennis Dutton

A Alma Está no Cérebro, (2006), Eduardo Punset

Modos de Ver, (1972), John Berger