abril 05, 2013

a criança e o brinquedo

"Nestas idades, todos eles são mais ou menos iguais. Eles querem apenas brincar." É esta a conclusão de Gabriele Galimberti ao fim de 18 meses passados a fotografar crianças junto dos seus brinquedos preferidos. Ainda assim Galimberti diz que se podem notar diferenças no modo como brincam.

Niko - Homer, Alaska
"As crianças mais ricas, eram mais possessivas. No início, não queriam que eu tocasse nos seus brinquedos, e eu precisava de mais tempo até que elas me deixassem brincar com eles. Nos países pobres era muito mais fácil. Mesmo que apenas tivessem dois ou três brinquedos, elas não se importavam. Na África, as crianças brincavam essencialmente com os amigos fora de casa."
Mais interessante, é a conclusão de Galimberti a propósito daquilo que se pode extrair em termos associativos. Ele sentiu no seu trabalho que de algum modo aqueles brinquedos refletiam também as ambições e mundos dos pais de cada criança. A mãe da Letónia que guiava um taxi e enchia o filho de carrinhos. O agricultor italiano cuja filha orgulhosamente exibia ancinhos, enxadas e pás de plástico. Os pais do Médio Oriente e da Ásia que quase empurravam os miúdos para serem fotografados, mesmo aqueles que não estavam muito dispostos a isso. Enquanto os pais da América do Sul estavam muito mais relaxados e diziam que podia fazer o que quisesse, desde que o seu filho não se importasse.

Os brinquedos são uma parte extremamente importante da cultura humana. Nesta imagem podemos ver um brinquedo grego do Século IV A.C. [Brinquedo em exposição no Museu Arqueológico de Atenas. Fonte]

Do meu lado, o que mais me impressionou neste retrato internacional, foi a obsessão do ser humano pelos conjuntos de peças, de diferentes formas e cores. Como se existisse uma necessidade constante de juntar mais ao que já temos, uma espécie de colecionismo processado ao nível mental. Repare-se na menina da Zambia e os seus óculos de sol, ou no menino do Texas com os seus aviões. Impressiona-me em termos cognitivos, porque se reflete ao longo de toda a nossa vida. Aquilo que buscamos nos brinquedos, de algum modo não se diferencia muito daquilo que vamos procurar mais tarde, na nossa vida. Não me refiro concretamente ao tema dos brinquedos, mas à nossa relação possessiva e coleccionista com estes.

Empatização e Sistematização (Baron-Cohen, 2003: 178)

Sobre os temas, apesar de toda a influência circundante, própria de seres em construção e modelação, o que mais me impressiona é a reiterada clivagem entre meninas e meninas, e uma tão clara afirmação e peso das bonecas para meninas e de carros para meninos. Apesar de podermos encontrar excepções, maioritariamente e independentemente do continente, podemos dizer que universalmente as meninas brinca com bonecas e peluches, enquanto os meninos brincam com carros, comboios e aviões. Sei bem que se levantam muitos contra esta diferença, afirmando que é meramente criada pela sociedade. Do meu lado o que vejo aqui, é aquilo que venho falando, baseado nos trabalhos de Baron-Cohen (ver imagem acima). As meninas recorrem às bonecas porque elas estimulam a imaginação no campo da empatia e do relacionamento social. Já os rapazes recorrem aos carros porque estes evocam a sua motivação para compreender como é que os sistemas funcionam. Isto não quer dizer que não existam homens mais empáticos, e mulheres mais orientadas aos sistemas, mas como podemos ver nesta série fotográfica são mais excepção do que regra.

Allenah - El Nido, Philippines

Abel - Nopaltepec, Mexico

Bethsaida – Port au Prince, Haiti

Chiwa – Mchinji, Malawi

Cun Zi Yi – Chongqing, China

Davide - La Valletta, Malta

Elene - Tblisi, Georgia

Farida - Cairo, Egypt

Arafa e Aisha – Bububu, Zanzibar

Jaqueline - Manila, Philippines

Julia – Tirana, Albania

Kalesi - Viseisei, Fiji Islands

Li Yi Chen - Shenyang, China

Keynor – Cahuita, Costa Rica

Lucas - Sydney, Australia

Maudy - Kalulushi, Zambia

Naya - Managua, Nicaragua

Noel - Dallas, Texas

Norden – Massa, Morocco

Orly - Brownsville,Texas

Pavel – Kiev, Ukraine

Puput - Bali, Indonesia

Shaira – Mumbai, India

Ragnar - Reykjavik, Iceland

Ralf - Riga, Latvia

Reanya - Sepang, Malaysia

Ryan - Johannesburg, South Africa

Stella – Montecchio, Italy

Taha - Beirut, Lebanon

Talia - Timimoun, Algeria

Tangawizi – Keekorok, Kenya

Tyra - Stockholm, Sweden

Alessia – Castiglion Fiorentino, Italy

Botlhe – Maun, Botswana

Enea - Boulder, Colorado

abril 04, 2013

"Civil War", extenso e desaproveitado

Finalmente acabei de ler um dos arcos narrativos da Marvel mais badalados da última década, Civil War, e um dos maiores, espalhado por mais de 100 livros e 3000 páginas. Já não lia comics com esta continuidade desde os anos 1990, e se o fiz agora novamente, deve-se essencialmente ao iPad e ao acesso online. Se existe conteúdo para o qual o iPad parece ter sido desenhado propositadamente, é o dos comics. O brilho e o tamanho do ecrã, e a usabilidade deste, tornaram-no num perfeito leitor de comics. A PSP tinha um ecrã demasiado pequeno, o Kindle era monocromático, o iPad abriu uma nova janela para o meu passado!

Civil War (2006-2007), atravessa mais de 100 livros, num total de mais de 3000 páginas

Civil War tornou-se um arco de peso capaz de saltar as fronteiras dos comics, dado que o assunto de fundo tratado tem uma relação directa com o momento da história em que vivemos. É inevitável comparar o fundamento de todo o conflito, o Superhuman Registration Act (registo governamental de todos os que detém super-poderes) com toda a paranóia e nova legislação que atenta contra a liberdade individual nos EUA, o Patriot Act, criada na sequência dos ataques do 11 de Setembro 2001. Se logo após o 11/9 a comunidade aceitou que o governo usasse de todos os poderes para garantir a segurança, com o passar dos anos começou a questionar-se sobre o que é que o governo andava a fazer com tanto poder conferido. Com Guatanamo a manter pessoas indefenidamente prisioneiras sem acusação, com a invasão do Iraque sem fundamento, com milhares de deportações dos EUA por meras razões raciais/religiosas. A ideia de proteção a qualquer custo começou a deixar de ter o sentido que aparentemente parecia ter. Deste modo a Marvel aproveitou todo este sentimento generalizado na comunidade para lançar o arco da Civil War em 2006 que se estendeu até 2007.


Civil War centra-se num conflito extremamente simples, o choque entre dois grupos de heróis, um por e outro contra o registo de todos perante o governo. Os problemas começam com as implicações da descoberta de identidades que isso tem sobre a vida de cada um, o que vai servir de mote para discutir muito mais sobre a informação e controlo da informação em sociedade e pelos governos. Do lado por, o grupo é liderado pelo Homem de Ferro, do lado contra, é liderado pelo Capitão América. Neste evento acaba por ser envolvido praticamente todo o universo de heróis Marvel, mesmo alguns que tinham entretanto desaparecido, regressam ao mundo dos vivos para dar o corpo e surpreender. Assim como vários heróis acabam por perder a vida ao longo desta saga, servindo assim a dramatização de tudo o que vai acontecendo. Em termos de nós principais, estes estão centrados sobre um grupo mais reduzido de personagens, num primeiro plano temos Homem de Ferro, Capitão América, Homem-Aranha e Reed Richards (Senhor Fantástico). Num segundo plano temos ainda Pantera Negra, Thunderbolts, os Novos Vingadores, Namor e os Atlantes e Wolverine.


Julgo que o primeiro plano funciona muito bem, mas o segundo é um mero aproveitamento narrativo para expandir o tema e o tornar maior do que aquilo que seria necessário, e assim também garantir mais história e mais vendas. Nesse sentido Civil War acaba por perder face a outros eventos do passado que conheço bem - Secret Wars - nomeadamente por se perder entre tantas ramificações. Um dos maiores problemas apontados pelos fãs foi exactamente a desarticulação do arco geral. Muitos dos livros que iam surgindo pareciam falhar na coerência com os eventos centrais, tanto em termos cronológicos como em termos de causalidade. Eu senti isso também mas era algo quase inevitável tendo em conta a dimensão, distribuição e a duração do arco. É preciso ter em conta que estão aqui em jogo várias equipas de escritores e desenhistas que normalmente trabalham nos seus projectos, seguindo as suas linhas temporais.

Aliás esse foi talvez o pior sentimento produzido pela série, as diferenças estéticas tanto na arte visual como na escrita. As abordagens são tão diferentes, e o modo como cada um toca certas cordas emocionais é muito distinta. Desse modo acaba por ser muito natural que estejamos a ler um dos livros, e adoremos pelos diálogos, e logo a seguir noutro apenas nos detanhamos sobre a arte gráfica.

Por outro lado passados mais de 6 anos sobre o lançamento de Civil War o seu mote continua imensamente atual. Aliás é muito relevante que a Marvel tenha ousado entrar numa discussão tão política e tão atual. A série começa por nos confrontar com discussões, por vezes profundas sobre o que está em causa. Nomeadamente as discussões sobre a luta pela Lei e a luta pelos Princípios é o melhor. A justificação para a tomada de posição a favor de Reed Richards é também muito boa. Mas depois o guião acaba por se perder na segunda parte, a luta mantém-se porque tem de se manter, e o conflito acaba porque tem de haver um fechamento. Esta série tinha potencial para se tornar em algo verdadeiramente inesquecível, algo capaz de elevar as qualidades humanas, mas acaba por falhar tudo isso. Claramente o seu escritor, Mark Millar, não consegue dar respostas, limita demasiado o alcance daquilo que está em causa, talvez com receio da falta de bagagem do seu público alvo. Falhou, porque tendo sido capaz de lançar-se numa jornada destas deveria ter sido capaz de a assumir até ao final.


Para quem quiser ler, não aconselho a leitura de todos os cento e tal livros, aconselho apenas os 7 livros principais, que podem ser encontrados num único tomo (TPB) Civil War. Se quiserem mais leiam também The Road to Civil War que dá detalhes sobre muitas das questões discutidas ao longo dos 7 livros. Para os fãs de cada personagem existem vários TPB que reúnem as histórias de cada herói relacionadas com o evento.

abril 03, 2013

a cultura dos indie

The Subculture of Indie Video Game Makers (2012) é um pequeno documento sobre a cultura indie dos videojogos, oferecendo entrevistas com vários actores da cena indie internacional presentes no Indie Cade 2012 - International Festival of Independent Games. O filme foi produzido pelo Thrash Lab, um estúdio habituado a trabalhar com culturas underground.


No filme podemos ouvir John Romero, criador de Doom, falar do género nos indie, podemos ver jogos serem pensados para as mais diversas palataformas além do mero monitor, como por exemplo jogos para os siftables, ou ainda ouvir Jennifer Schneidereit falar do belíssimo Tengami. Podemos sentir uma vibração criativa que contamina o espírito de todos estes criativos, um desejo por criar algo que nunca ninguém antes experienciou ou sonhou experienciar.

Isto é no fundo a base da cultura indie, o espírito criativo é aquilo que diferencia um jogo indie de um jogo feito para o mercado. O que está em questão aqui, não é seguir um padrão, ou género, de como se fazem as coisas, é antes arriscar e fazer algo que nunca ninguém fez antes.

abril 02, 2013

"Shadow of the Colossus", a perfeição do balanceamento de emoções

Tive uma noite inesquecível no Domingo, acabei pela primeira vez Shadow of the Colossus (2005). Tenho o jogo desde que saiu na PS2 em 2006 na Europa, mas nunca tinha chegado ao final. Tinha passado vários colossos na PS2, mas a falta de tempo nessa altura (fecho do doutoramento) não me deixou com cabeça para chegar ao final. Lembro-me bem da premissa, do mundo e dos personagens. Lembrava-me bem daquela entrada majestosa com a amada em braços e do altar. Mas confesso que os colossus não eram nada fáceis, e o facto de serem 16 assustou-me. Ao contrário de Ico (2001) aqui sabíamos exactamente quantos níveis faltavam para o final e isso de certo modo desmotivou-me, cada vez que acabava um, só pensava em todos os que ainda faltavam. Depois várias coisas aconteceram, pouco depois de comprar a PS3 fiquei sem a PS2, a falta de retrocompatibilidade colocou a possibilidade de chegar ao fim de Shadow ainda mais longe. Quando vi que ia sair a versão HD para a PS3 pensei de imediato que tinha de adquirir para poder pôr um ponto final no jogo. Todas as minhas recordações daquele universo eram de excelência, mas confesso que nada me tinha preparado para o que vivi no domingo às três da manhã.


O "meu" jogo continua a ser Ico mas descobri que Shadow of the Colossus está carregado da mesma fantasia, ao ponto de estarmos perante uma prequela. Lembro-de de quando saiu se ter falado vagamente nisso mas é algo que só se percebe claramente quando se chega ao final do jogo. Nesse sentido Ico e Shadow tornaram-se, na minha cabeça, em dois jogos inseparáveis. São gameplays muito distintos, mas o tema, o universo, os personagens e a arte provêm claramente da mesma mente brilhante, do criador Fumito Ueda.

Em Ico temos de encontrar o caminho que nos conduz ao exterior de um gigantesco castelo, temos algumas lutas mas muito poucas, é um jogo orientado aos puzzles espaciais, tem apenas um boss no final de todo o jogo. A emocionalidade é trabalhada na base da relação com Yorda, a companheira. Já em Shadow, Ueda foi à procura de outro tipo de emoções. Lembro-de de ler uma entrevista em que Ueda dizia que o impressionava toda a emoção que os jogadores desenvolviam dentro de si, sempre que chegava o momento de enfrentar um boss, a partir daí decidiu criar um jogo que fosse feito apenas de bosses. Um jogo em que passamos todo o tempo a lutar contra bosses, e a sentir essa mesma emocionalidade. Sabendo disto, sempre preferi Ico, nunca fui jogador de grandes lutas e confesso até que me decepcionou um pouco quando li a entrevista, pois se não gostava muito das emoções fortes dos bosses dos jogos, quando percebi que Shadow ia ser feito só disso, assustei-me. Agora, passados os 16 bosses, terminado o jogo, só posso dizer que Ueda tinha razão, os bosses que ele desenhou são capazes de despoletar autênticas explosões de emoção em nós. O medo de falhar, e ter de voltar a fazer tudo de novo, apodera-se de nós, constrói toda uma tensão que se liberta apenas após o espetar pela última vez da nossa espada nos sinais vitais do monstro. No final de cada luta, dá-se a libertação de toda a tensão acumulada, e uma enorme sensação de alívio apodera-se de nós. Foi para isto que Ueda desenhou os 16 bosses, para transportar o jogador através de uma gigantesca montanha russa de emoções. Gigantescas doses de tensão são contra-balançadas pela tranquilidade e beleza da imensidão do espaço por onde deambulamos no intervalo de cada luta. Em termos de design emocional, é simplesmente perfeito. O balanceamento é completo, e é isso que permite gerar uma experiência emocional como nenhum filme ou livro pode imaginar conseguir.





Não me interessa a discussão sobre os jogos como arte, mas Shadow é muito mais arte do que muito cinema e muita literatura. Passamos 12 horas de volta de um artefacto que constrói uma experiência que ficará marcada nas nossas mentes para sempre. Passado todo o sofrimento da luta contra os 16 gigantes, passadas todas as emoções estéticas sentidas pela magnificência do ambiente, chegamos ao fim e somos compensados com um final grandioso de 20 minutos que nos deixa estarrecidos. Compreendemos que aquele final é não só o que nos fez mover ao longo de todo o jogo, mas sabemos claramente que ver aquelas imagens está apenas ao alcance de quem tiver realizado todo aquele caminho, como nós realizámos. É uma sensação apenas comparável com o terminar de um livro de 500 páginas, quando chegamos ao final sentimos a compensação do investimento e esforço em devorar todas aquelas páginas, atingimos algo que apenas quem dedicar tanto esforço como nós, pode conseguir. O filme qualquer um pode ver, e chegar ao fim, no parque de diversões qualquer um pode pagar e entrar na montanha russa. Mas aqui, aqui não é possível sentar e esperar, ou pagar para ver, aqui é preciso atuar, é preciso uma dose de investimento e esforço pessoal que ninguém pode fazer por nós. Somos postos à prova, passada a prova, atingimos um novo estádio na nossa vida. Existe um antes e um depois de chegar ao final de Shadow of the Colossus.

A narrativa de Shadow funciona de um modo bastante literário, no sentido em que ela acaba por se estender tremendamente, apesar do enredo aparentemente simples. Tal como na literatura, o videojogo investe aqui bastante na descrição dos seus ambientes e dos seus personagens. Shadow demonstra que o videojogo enquanto arte narrativa está entre o cinema e a literatura, porque dá a ver como o cinema faz, mas descreve detalhadamente como só a literatura sabe fazer. Literalmente precisaríamos de 500 páginas para transmitir todo o detalhe sobre o universo e personagens de Shadow. A progressão narrativa é feita através da experiência do espaço, do encontro com cada colosso que vai desenvolvendo em nós um cada vez maior conhecimento sobre aqueles personagens e confiança no modo como lidar com eles. Nós crescemos como jogadores e atores do jogo, embora o nosso personagem, Wander, não evolua exteriormente com cada conflito com os colossos. A única vez que vemos os efeitos da luta sobre o corpo do nosso personagem é após a luta com o último colosso, as roupas rasgadas e o corpo ensanguentado, sentimos o efeito, como que projecta o nosso sofrimento depois de termos derrotado também todos aqueles gigantes. Por outro lado Shadow desenha uma progressão em crescendo do personagem no sua resistência e energia que acontece através da colecta de frutos e lagartos encontrados no espaço ao longo do jogo.

O design de interacção realizado em Shadow é absolutamente impressionante, mesmo para quem joga em 2013. Ao reler agora a crítica da Edge de 2005 fico espantado com a forma como atacam a complexidade do que foi aqui criado, rotulando-o de problema. Aliás a vantagem de ter terminado Shadow apenas em 2013 é que me permite analisar em perspectiva o que foi feito nos últimos anos, e compreender o quão importante é o trabalho de design aqui desenvolvido. Shadow evidenciava já o inicio da irrelevância da tecnologia no design de videojogos. Foi feito para a PS2, mas vai muito além do que foi feito entretanto para a PS3. Pegando em dois dos meus jogos preferidos na PS3, Uncharted 2 (2009) e Journey (2012), posso dizer que Shadow junta esses dois, e vai para além dos mesmos.
"the platforming control scheme that simply isn't always capable of attaching a moving person to a moving monolith; the camera that fails to match up to the prodigious challenge of keeping both wanderer and colossus in sight at the same time" [Edge, 2005]
Estes dois pontos destacados na crítica da Edge, podem até conter alguma razão, mas só o pode afirmar quem não tiver consciência do que está em causa. Falamos aqui de desenhar sequências de interactividade entre dois elementos tridimensionais em movimento, o que é apenas das situações mais complexas que temos de enfrentar em termos de design e programação. Aliás numa entrevista dada depois em 2006, o produtor Kenji Kaido dá detalhes sobre três modelos do design da interactividade entre Wander, os colossos e o cavalo.
  1. "Organic Collision Deformation" - O modo como o jogo detecta que Wander está a tocar no colosso, independentemente do seu tamanho, posição ou movimento. Ou seja, se o personagem está agarrado à perna ele terá de mover-se junto com esta. Se a perna se mover na horizontal, o personagem terá de poder correr sobre esta. 
  2. "Player Dynamics and Reactions" - Este modelo geria o modo como física do personagem deveria reagir sempre que está em movimento em cima do colosso também em movimento.
  3. "Motion blending and Posture control" - Este último tem a ver com o modo como as animações de movimento eram trabalhadas do ponto de vista da sincronia, e acção-reacção, de modo a tornar mais credível, toda a relação entre dois objectos em movimento em simultâneo.
No campo da câmara, já em Ico se tinha percebido que esta equipa não estava disposta a limitar a sua criação ao espaço como cenário, mas queria trabalhá-lo também na forma como era apresentado ao espectador, ou seja definir o ponto de vista. Nesse sentido tanto Ico como Shadow são dos jogos esteticamente mais conseguidos em termos de enquadramento. Claro que desenvolver modelos de controlo da câmara que garantam essa componente estética e ao mesmo tempo garantam sempre um posicionamento correcto face à acção que o jogador tem de executar, é extremamente complexo. Sim, por vezes torna-se complicado gerir a nossa acção, do ponto de vista sugerido pelo jogo, mas as vezes em que tive problemas, foram largamente suplantadas por todos os momentos em que se produziam à minha frente enquadramentos sublimes.

Ou seja, em termos de experienciação estética, Shadow vai muito além de Journey, por várias vezes senti que Journey se limitava a uma pequena porção de tudo aquilo que se me apresentava aqui. Os riachos, as montanhas verdes, as árvores e os esquilos; o sol brilhante e por vezes ofuscante, capaz de queimar pradarias inteiras e de fazer sentir o calor tórrido do deserto; a chuva e as nuvens que pairam sobre nós por entre vales e montanhas que nos atiram para estados melancólicos; Argo o nosso companheiro e as pontes que temos de saltar com ele. Em certa medida Journey quase só tem a componente calma de Shadow, e nesse sentido não pode de forma alguma competir em termos de experiência emocional gerada. Porque para além de toda a fantasia dos universos de ambos os jogos, Shadow apresenta uma componente que o distingue de qualquer jogo que alguém tenha jogado até agora, um fortíssimo contraste de tamanho, entre os colossos e o nosso personagem. Este contraste não é meramente visual, é por si só gerador de enorme ativação emocional no jogador. E a forma como a câmara se vai posicionando insinua mais ainda este contraste, intimidando o jogador. Os colossos são absolutamente titânicos, e isso causa um deslumbramento estético impressionante.

Finalmente a arquitectura. O espaço arquitectónico em Ico já funcionava como personagem, o castelo gigantesco, de espaços infindáveis e fantasiosos, em Shadow reparte-se entre um ambiente aberto que mistura natureza e edifícios antigos que demonstram destruição e abandono. À medida que o jogo vai evoluindo vamos acedendo a áreas em que a arquitectura se vai assemelhando cada vez mais ao castelo de Ico, desde os tijolos ao desenho das áreas, das plataformas, dos acessos, portas e janelas. Houve alguns momentos que pareceu mesmo que tinha voltado ao castelo em que Ico estava preso, e na verdade a resposta a essa semelhança apareceria respondida no final, quando somos levados a compreender que Shadow é afinal uma prequela de Ico.

Claramente que Shadow tem outros atributos importantes, o final é tão poderoso, não apenas porque acabámos de atravessar 16 colossos, mas porque traz para cena, tudo aquilo que vivemos em Ico também. De repente, ao longo de 20 minutos, atravessamos experiências de jogo que estavam marcadas somaticamente em nós há muito tempo, e aqueles trechos cinemáticos funcionam como quem puxa cordelinhos de emoções, que nos agitam por dentro, e nos deixam ali, à mercê dos criadores. Inesquecível.


PS.1: Deixo imagens do storyboard e de algumas mecânicas retiradas do livro Shadow of the Colossus Official Artbook.




PS.2: Uma última nota, Shadow of the Colossus foi um dos poucos jogos a ser utilizado no cinema de forma brilhante como metáfora emocional. Podem ver a minha discussão sobre este assunto na análise ao filme Reign over Me (2007).

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

abril 01, 2013

"Premier Automne" (2013), o romantismo do impossível

Premier Automne (2013) é mais um filme de animação 3d que deixa para trás o apelo 3d convencional de que venho aqui falando, mas socorrendo-se de todo o potencial do digital para criar um universo visual carregado de detalhe, texturas e partículas. O resultado final é um misto entre o digital e o artesanal, capaz de criar um universo único e belo. O filme foi dirigido pelo casal Carlos de Carvalho e Aude Danset de Carvalho, ambos ilustradores e formados na Supinfocom, e ambos colaboradores no estúdio francês independente Je Regarde.





Premier Automne é uma curta com ritmo melancólico, tratando o sujeito da impossibilidade de conciliação. A comunicação da narrativa funciona perfeitamente, e retribui a nossa atenção. Os dilemas do impossível sempre foram uma condição base do romantismo, e o tratamento é feito com muita elegância e savoir-faire. Mas é no campo estético que o filme se ultrapassa. Existe uma atenção ao detalhe, um trabalho nas camadas de elementos visuais que se misturam, inclusive todo o ambiente em redor da ação em movimento, como a neve e as goticulas, que impressiona, e é pouco comum.
Sinopse: "Abel vive no Inverno e Apolline no Verão. Isolados nas suas "naturezas", nunca se conheceram. Nem é suposto encontrarem-se. Assim, quando Abel cruza a fronteira e descobre Apolline, a curiosidade toma conta de si. O encontro torna-se rapidamente mais complicado do que eles poderiam imaginar. Ambos terão de aprender o compromisso para se protegerem um ao o outro..."
A selecção de cor é bastane sóbria, a condizer com as texturas carregadas de irregularidade e relevo. Por seu lado os shaders são muito difusos, ajudando a criar superfícies ricas e densas, mais uma vez a servir a criação visual num sentido mais artesanal e menos digital. A iluminação acaba por funcionar muito bem por conta dos shaders.


Premier Automne (2013) de Carlos de Carvalho e Aude Danset

Acredito que algumas componentes de partículas que se veem no filme, nomeadamente aquelas que voam constantemente à volta dos personagens tenham sido feitas em 2d no After Effects. Ainda assim muitas outras que cheguei a pensar que eram também 2d, foram feitas em 3d como podem ver no Making Of.

Entretanto descobri que toda esta estética que podemos ver em Premier Automne vem de trás. Um trabalho dos mesmos autores de 2007 revelava já muito do que podemos ver aqui. É um trabalho curtinho, mas que vale a pena sorver todos os segundos. Deixo-o aqui também porque vale a pena ver depois de Premier Automne.

L'Histoire de Rouge (2008) de Carlos de Carvalho

março 29, 2013

Off Book: "Can Hackers Be Heroes?"

Excelente documento da série OffBook que nos fala de algo que sabíamos, mas que os media se encarregaram de distorcer ao longo dos anos 1980 e 1990 ao ponto de termos deixado de acreditar no significado do conceito "Hack". Por outro lado nos anos 2000 com a evolução do DIY no campo da electrónica o conceito ressurgiu para re-significar aquilo que sempre tinha significado. Hoje podemos encontrar a palavra "hack" associada a todo o tipo de remix ou reconstrução de estruturas, como é por exemplo o caso dos Ikea Hackers.




De qualquer modo continua a passar a ideia que distingue o hack de software do hack de hardware. O hack de software continua a ser visto como algo invisível, complexo e incompreensível por isso é dado a uma visão mais esotérica, conotada com coisas menos positivas. Por outro lado o hack de hardware por ser visível e mais acessível em termos conceptuais, é aceite como algo positivo, porque se pode ver o processo e o fruto da criação. A pessoa é reconhecida por ter criado algo, algo tangível. O hacker de hardware é respeitado, é um fazedor, um criador. Já o hacker de software continua a ser rotulado como um salteador, alguém que não se mostra nem se identifica, que invade e se aproveita daquilo que é dos outros. Diga-se que toda a paranoia gerada em redor dos Anonymous nada tem contribuído para dissipar este rotulo.