De certa forma e em termos processuais a arte do glitch é a mais pura forma de experimentação, de subversão do expectável, a base fundamental da criação artística. Já no campo da análise estética, glitch é uma espécie de neo-grotesco pós-moderno e abstracto.
setembro 05, 2012
OffBook #25: The Art of Glitch
A série Offbook traz-nos um dos mais interessantes episódios, The Art of Glitch, que vai aos limites da fronteira da arte para discutir a emergência de novas possibilidades de expressão e comunicação. O glitch é uma manifestação electrónico-digital não manipulável, com a qual se pode experimentar mas que dificilmente se pode dominar. Onde alguns veem frustração outros encontram beleza, onde alguns veem destruição, outros encontram reconstrução.
De certa forma e em termos processuais a arte do glitch é a mais pura forma de experimentação, de subversão do expectável, a base fundamental da criação artística. Já no campo da análise estética, glitch é uma espécie de neo-grotesco pós-moderno e abstracto.
De certa forma e em termos processuais a arte do glitch é a mais pura forma de experimentação, de subversão do expectável, a base fundamental da criação artística. Já no campo da análise estética, glitch é uma espécie de neo-grotesco pós-moderno e abstracto.
setembro 04, 2012
Making is Connecting (2011) de David Gauntlett
Making is Connecting: The social meaning of creativity, from DIY and knitting to YouTube and Web 2.0 (2011) de David Gauntlett é um livro fundamental na corrente atual de livros (ex. livros de Clay Shirky ou Charles Leadbeater) sobre os efeitos da nova criatividade potenciada pela internet e mais especificamente pela web 2.0.
David Gauntlet forma o seu discurso na base de que as pessoas deixaram de lado o tempo que perdiam com a TV para passarem a criar, a nova era do DIY. E justifica essa vontade de criar com base em dois autores do século XIX que vale a pena ler ou reler William Morris e Jonh Ruskin. Estes acreditavam que o processo industrial de produção em massa era desumanizador porque impossibilitava as pessoas de criar, de experienciar a criação e sentir os efeitos da sua realização, eliminando o pensamento que antes se construía enquanto se fazia.
Em consonância com a discussão da Revolução Industrial surgiram os movimentos que separaram a arte do artesanato, mas Gautnlet vem agora defender que esta separação não faz sentido, e eu concordo integralmente. A arte é fruto da materialização de ideias, se a materialização e as ideias são boas, só depois o saberemos, à partida são ambas iguais. O artesanato não é um processo industrial como se quis fazer crer, é um processo manual através do qual o criador se constrói enquanto pessoa. Fazer e pensar são inseparáveis.
Gauntlett repesca também Ivan Illich há muito adormecido, e opõem-se a Chris Anderson. Esta sua oposição foi uma das mais interessantes, pois depois de ler Free quase que acreditei, ou quis acreditar que seria tudo assim simples como Anderson nos dita. Mas a realidade é que todos precisam de sobreviver, sem pagamento pelo trabalho criativo, deixaremos de ter trabalho de qualidade, porque as pessoas apenas o poderão fazer nas horas livres. E por isso mesmo a cultura do gratuito porque é digital é desprovida de sentido e apenas sustentável numa lógica de "copia dos outros, mas não a mim".
Uma das coisas que menos acredito em todo este discurso da nova criatividade, é que é muito fácil de construir numa cultura de pessoas com formação superior, mas quando os níveis de literacia baixam, torna-se muito difícil sustentar toda esta cultura produtiva de ideias, porque as ideias não germinam no ar. A Taxonomia de Bloom apesar de dizer respeito à aprendizagem, vista num modelo hierárquico, continua a ser bastante elucidativa sobre o modo como evolui a nossa capacidade para inovar. Não querendo com isto dizer que não existem excepções, basta ver Saramago, mas são excepções, ou melhor extraordinárias excepções.
Gauntlett criou um excelente sítio de acompanhamento do livro que está carregado de informação adicional, extractos do livro e vídeos de conferências suas muito interessantes. Deixo aqui abaixo uma das conferências que tão bem resume todo o seu pensamento. Entretanto no número 22 da revista Comunicação e Sociedade do CECS, dedicado às Tecnologias Criativas e que estou a editar com o Pedro Branco, sairá uma recensão alongada do livro por Elisabete Ribeiro.
"This is a book about what happens when people make things." (p.1)
O fosso não criativo criado no século XX pela TV
Em consonância com a discussão da Revolução Industrial surgiram os movimentos que separaram a arte do artesanato, mas Gautnlet vem agora defender que esta separação não faz sentido, e eu concordo integralmente. A arte é fruto da materialização de ideias, se a materialização e as ideias são boas, só depois o saberemos, à partida são ambas iguais. O artesanato não é um processo industrial como se quis fazer crer, é um processo manual através do qual o criador se constrói enquanto pessoa. Fazer e pensar são inseparáveis.
DIY Arduino helicopter
Gauntlett repesca também Ivan Illich há muito adormecido, e opõem-se a Chris Anderson. Esta sua oposição foi uma das mais interessantes, pois depois de ler Free quase que acreditei, ou quis acreditar que seria tudo assim simples como Anderson nos dita. Mas a realidade é que todos precisam de sobreviver, sem pagamento pelo trabalho criativo, deixaremos de ter trabalho de qualidade, porque as pessoas apenas o poderão fazer nas horas livres. E por isso mesmo a cultura do gratuito porque é digital é desprovida de sentido e apenas sustentável numa lógica de "copia dos outros, mas não a mim".
Uma das coisas que menos acredito em todo este discurso da nova criatividade, é que é muito fácil de construir numa cultura de pessoas com formação superior, mas quando os níveis de literacia baixam, torna-se muito difícil sustentar toda esta cultura produtiva de ideias, porque as ideias não germinam no ar. A Taxonomia de Bloom apesar de dizer respeito à aprendizagem, vista num modelo hierárquico, continua a ser bastante elucidativa sobre o modo como evolui a nossa capacidade para inovar. Não querendo com isto dizer que não existem excepções, basta ver Saramago, mas são excepções, ou melhor extraordinárias excepções.
Taxonomia de Bloom
Gauntlett criou um excelente sítio de acompanhamento do livro que está carregado de informação adicional, extractos do livro e vídeos de conferências suas muito interessantes. Deixo aqui abaixo uma das conferências que tão bem resume todo o seu pensamento. Entretanto no número 22 da revista Comunicação e Sociedade do CECS, dedicado às Tecnologias Criativas e que estou a editar com o Pedro Branco, sairá uma recensão alongada do livro por Elisabete Ribeiro.
setembro 03, 2012
Old School vs. New School
Old School vs. New School (2012) é o último trabalho de Freddie Wong que agora assina pela Rocket Jump. freddiew como é conhecido online criou há algum tempo um canal no YouTube que se tornou um sucesso de visualizações, cada nova curta tem sempre acima de um milhão de visualizações. freddiew trabalho num registo muito semelhante à dupla dos Corridor Digital, curtas que satirizam videojogos e filmes populares, com recurso a uma panóplia de efeitos especiais.
A particularidade de freddiew e Corridor Digital é que ss Fx são sempre muito bem conseguidos, ainda que por vezes se note o lado amador. Mas dá para perceber que tudo é feito com muito poucos recursos, e que raramente se diferenciam das grandes produções de hollywood, daí o sucesso.
O que esta curta Old School vs. New School traz de interessante é uma discussão atual mas aqui tornada visual, e que passa por uma guerra entre a conceptualização do gameplay dos jogos antigos e os conceitos de jogo nos jogos atuais Uncharted, Assassin's Creed, Halo ou Tomb Raider. Quem é mais forte, ou melhor quais são os verdadeiros jogos?
Podemos notar algumas influências na curta de uma outra curta de homenagem aos 8 bits, Pixels (2010) de Patrick Jean. Por outro lado julgo que a ideia do buraco no ceu pode ter sido retirada de Avengers (2012).
A particularidade de freddiew e Corridor Digital é que ss Fx são sempre muito bem conseguidos, ainda que por vezes se note o lado amador. Mas dá para perceber que tudo é feito com muito poucos recursos, e que raramente se diferenciam das grandes produções de hollywood, daí o sucesso.
O que esta curta Old School vs. New School traz de interessante é uma discussão atual mas aqui tornada visual, e que passa por uma guerra entre a conceptualização do gameplay dos jogos antigos e os conceitos de jogo nos jogos atuais Uncharted, Assassin's Creed, Halo ou Tomb Raider. Quem é mais forte, ou melhor quais são os verdadeiros jogos?
Podemos notar algumas influências na curta de uma outra curta de homenagem aos 8 bits, Pixels (2010) de Patrick Jean. Por outro lado julgo que a ideia do buraco no ceu pode ter sido retirada de Avengers (2012).
Filmes de Agosto 2012
Mês de Agosto como sempre fica repleto de bons filmes, passo o ano a guardar filmes para os quais não consigo disposição para ver durante as fases de maior trabalho. Depois no verão dá para relaxar e ver obras mais pesadas, difíceis ou antigas. Nas notas máximas nada de especial a assinalar, tirando a primeira obra de Haneke, todas as outras são referências clássicas do cinema mundial. Depois nas quatro estrelas, um belíssimo filme Turco, e uma repescagem de Carlos Saura. Já nas três estrelas só filmes atuais, nada de especial a dizer, talvez ainda escreva sobre Cabin in the Woods sobre o seu modelo narrativo e o trabalho do género. Já nas duas estrelas aparece um filme que me surpreendeu pela negativa, de tanto ouvir falar em Hunger Games, esperava algo, não que fosse uma revolução estética, mas pelo menos algo novo na história, afinal traz-nos aquilo que já tantas vezes vimos, sem nada de novo.
xxxxx Seventh Continent 1989 Michael Haneke Austria [Análise]
xxxxx La Notte 1961 Michelangelo Antonioni Itália
xxxxx L'Avventura 1960 Michelangelo Antonioni Itália [Análise]
xxxxx Germania anno zero 1948 Roberto Rossellini Itália
xxxxx Roma, Città Aperta 1945 Roberto Rossellini Itália [Análise]
xxxx Once Upon a Time in Anatolia 2011 Nuri Bilge Ceylan Turquia
xxxx Silent Souls 2010 Aleksei Fedorchenko Russia [Análise]
xxxx My Voyage To Italy 1999 Martin Scorsese Itália [Análise]
xxxx Ponette 1996 Jacques Doillon France
xxxx Cria Cuervos 1976 Carlos Saura Espanha
xxxx L'eclisse 1962 Michelangelo Antonioni Itália
xxxx Paisà 1946 Roberto Rossellini Itália
xxx Avengers 2012 Joss Whedon EUA
xxx Madagascar 3: Europe's Most Wanted Eric Darnell EUA
xxx The Cabin in the Woods 2011 Drew Goddard EUA [Análise]
xxx Le Havre 2011 Aki Kaurismaki Finlândia
xxx Machine Gun Preacher 2011 Marc Forster EUA
xxx Headhunters 2011 Morten Tyldum Noruega
xxx My Week with Marilyn 2011 Simon Curtis UK
xx The Hunger Games 2012 Gary Ross EUA
xx The Raid Redemption 2011 Gareth Evans Indonesia
[Nota, Título, Ano, Realizador, País]
xxxxx Seventh Continent 1989 Michael Haneke Austria [Análise]
xxxxx La Notte 1961 Michelangelo Antonioni Itália
xxxxx L'Avventura 1960 Michelangelo Antonioni Itália [Análise]
xxxxx Roma, Città Aperta 1945 Roberto Rossellini Itália [Análise]
xxxx Once Upon a Time in Anatolia 2011 Nuri Bilge Ceylan Turquia
xxxx Silent Souls 2010 Aleksei Fedorchenko Russia [Análise]
xxxx My Voyage To Italy 1999 Martin Scorsese Itália [Análise]
xxxx Ponette 1996 Jacques Doillon France
xxxx Cria Cuervos 1976 Carlos Saura Espanha
xxxx L'eclisse 1962 Michelangelo Antonioni Itália
xxxx Paisà 1946 Roberto Rossellini Itália
xxx Avengers 2012 Joss Whedon EUA
xxx Madagascar 3: Europe's Most Wanted Eric Darnell EUA
xxx The Cabin in the Woods 2011 Drew Goddard EUA [Análise]
xxx Le Havre 2011 Aki Kaurismaki Finlândia
xxx Headhunters 2011 Morten Tyldum Noruega
xxx My Week with Marilyn 2011 Simon Curtis UK
xx The Hunger Games 2012 Gary Ross EUA
xx The Raid Redemption 2011 Gareth Evans Indonesia
[Nota, Título, Ano, Realizador, País]
[x - insuficiente; xx - a desfrutar; xxx - bom; xxxx - muito bom; xxxxx - obra prima]
setembro 02, 2012
Sete Pecados por Dali
A Divina Comédia (1308- 1321) de Dante Alighieri faz parte da história religiosa da Europa, como tal tem servido de pano de fundo aos mais diversos trabalhos e aos mais diversos artistas. Desde Bosch a William Blake, de Gustave Doré a Rodin, e mais recentemente de David Fincher à Visceral Games, muitos têm trabalhado Dante.
A Divina Comédia é uma obra enorme, contém mais de 14 mil versos, está dividida em três livros - Inferno, Purgatório e Paraíso -,que por sua vez se subdividem em 100 cantos, cada um dos lugares de cada livro é constituído por nove círculos. Toda a obra é construída sob uma lógica matemática que sustenta a construção da narrativa de uma forma férrea. No livro do Purgatório existem sete círculos que são os mais conhecidos da obra, porque representam os chamados Sete Pecados Capitais Orgulho, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria.
Descobri recentemente que Salvador Dali foi comissionado em 1951 pelo governo Italiano para desenvolver um conjunto de aguarelas para a impressão comemorativa dos 700 anos. Entretanto a comissão foi cancelada por causa de controvérsias sobre as simpatias manifestadas por Dali para com o Fascismo, e ainda pelo facto de a Itália estar a recorrer a um espanhol para criar um marco histórico italiano. Ainda assim Dali completou 100 ilustrações até 1959 que foram nesse ano publicadas por Joseph Foret numa edição limitada (33) e assinada. Depois disso foram feitas outras edições limitadas, sendo a mais conhecida a da Les Heures Claires.
Entretanto foi através do Open Culture que encontrei o site da Lockport Street Gallery onde é possível ver todas as 100 ilustrações. Para este artigo resolvi seleccionar apenas os Sete Pecados, ainda que estes não sejam todos directamente rotulados, mas da pesquisa que fiz estes parecem aproximar-se o mais possível. O site da Lockport apresenta os títulos para cada ilustração, mas para confirmar cada título é melhor seguir o site da Sociedade de Salvador Dali, porque vários títulos no Lockport estão errados. Abaixo ficam as melhores imagens que consegui de cada uma das sete xilogravuras.
A Divina Comédia é uma obra enorme, contém mais de 14 mil versos, está dividida em três livros - Inferno, Purgatório e Paraíso -,que por sua vez se subdividem em 100 cantos, cada um dos lugares de cada livro é constituído por nove círculos. Toda a obra é construída sob uma lógica matemática que sustenta a construção da narrativa de uma forma férrea. No livro do Purgatório existem sete círculos que são os mais conhecidos da obra, porque representam os chamados Sete Pecados Capitais Orgulho, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria.
O Anjo Caído (gravura)
Descobri recentemente que Salvador Dali foi comissionado em 1951 pelo governo Italiano para desenvolver um conjunto de aguarelas para a impressão comemorativa dos 700 anos. Entretanto a comissão foi cancelada por causa de controvérsias sobre as simpatias manifestadas por Dali para com o Fascismo, e ainda pelo facto de a Itália estar a recorrer a um espanhol para criar um marco histórico italiano. Ainda assim Dali completou 100 ilustrações até 1959 que foram nesse ano publicadas por Joseph Foret numa edição limitada (33) e assinada. Depois disso foram feitas outras edições limitadas, sendo a mais conhecida a da Les Heures Claires.
Assim foi Criada a Terra (gravura)
Entretanto foi através do Open Culture que encontrei o site da Lockport Street Gallery onde é possível ver todas as 100 ilustrações. Para este artigo resolvi seleccionar apenas os Sete Pecados, ainda que estes não sejam todos directamente rotulados, mas da pesquisa que fiz estes parecem aproximar-se o mais possível. O site da Lockport apresenta os títulos para cada ilustração, mas para confirmar cada título é melhor seguir o site da Sociedade de Salvador Dali, porque vários títulos no Lockport estão errados. Abaixo ficam as melhores imagens que consegui de cada uma das sete xilogravuras.
A Vaidade
A Inveja
A Ira
A Preguiça
A Avareza
A Gula
A Luxúria
Viagem pela Rússia
Silent Souls (2010) de Aleksei Fedorchenko evoca uma etnia milenar desaparecida, os Merja, que foi entretanto transformada pelos Eslavos, chegando à Rússia moderna apenas sob a forma de alguns costumes e tradições nas zonas de Rostov, Jaroslavl, a norte de Moscovo.
Mesmo não sabendo que o primeiro trabalho de Fedorchenko se tratava de um falso documentário, First on the Moon (2005), é difícil não nos questionarmos sobre a veracidade do que nos é apresentado em Silent Souls. Não os costumes e as tradições apresentadas, mas a hipótese de eles prevalecerem numa sociedade moderna, com o controlo e a legislação que nos rege. Seria possível transportar um corpo num carro comum embrulhado numa manta ao longo de vários quilómetros sem ninguém querer saber, e mesmo a polícia achar normal?
Mas isto é apenas a superfície da realidade que serve de ponto de partida à narrativa mágico-realista de Fedorchenko. O que o filme nos traz vai muito para além desses detalhes, e joga-se no mundo do espiritual, expondo a nu o modo como os Merja conceptualizam a vida, sob um olhar muito distinto dos grandes padrões religiosos da Europa ocidental. Aqui tudo é "água", e a nossa vida é apenas uma passagem no grande rio.
Se na história se evocam temas profundos adocicados pela magia de diferentes visões do mundo, na estética temos magia cinematográfica. Desde o ritmo calmo e sereno mas sem delongas à fotografia absolutamente magistral criada por Mikhail Krichman, tudo contribui para a criação de uma aura de transcendência da vida. Krichman recebeu a Osella de ouro em Veneza para esta fotografia, mas nada que surpreenda depois de ter assinado as magistrais fotografias dos três filmes de Andrey Zvyagintsev.
Silent Souls mexe connosco e questiona-nos, não dá, nem pretende dar respostas, é melancólico sem ser propriamente dramático, é uma viagem através de lugares frios e distantes, com costumes distintos mas que falam ao nosso interior. É um poema audiovisual.
Mesmo não sabendo que o primeiro trabalho de Fedorchenko se tratava de um falso documentário, First on the Moon (2005), é difícil não nos questionarmos sobre a veracidade do que nos é apresentado em Silent Souls. Não os costumes e as tradições apresentadas, mas a hipótese de eles prevalecerem numa sociedade moderna, com o controlo e a legislação que nos rege. Seria possível transportar um corpo num carro comum embrulhado numa manta ao longo de vários quilómetros sem ninguém querer saber, e mesmo a polícia achar normal?
Mas isto é apenas a superfície da realidade que serve de ponto de partida à narrativa mágico-realista de Fedorchenko. O que o filme nos traz vai muito para além desses detalhes, e joga-se no mundo do espiritual, expondo a nu o modo como os Merja conceptualizam a vida, sob um olhar muito distinto dos grandes padrões religiosos da Europa ocidental. Aqui tudo é "água", e a nossa vida é apenas uma passagem no grande rio.
Se na história se evocam temas profundos adocicados pela magia de diferentes visões do mundo, na estética temos magia cinematográfica. Desde o ritmo calmo e sereno mas sem delongas à fotografia absolutamente magistral criada por Mikhail Krichman, tudo contribui para a criação de uma aura de transcendência da vida. Krichman recebeu a Osella de ouro em Veneza para esta fotografia, mas nada que surpreenda depois de ter assinado as magistrais fotografias dos três filmes de Andrey Zvyagintsev.
Silent Souls mexe connosco e questiona-nos, não dá, nem pretende dar respostas, é melancólico sem ser propriamente dramático, é uma viagem através de lugares frios e distantes, com costumes distintos mas que falam ao nosso interior. É um poema audiovisual.
A minha viagem ao Alaska
Legend of a Suicide de David Vann é uma obra poderosa de ficção assente em pormenores da vida do autor que lhe permitiram levar o romance a um nível de qualidade literária raramente vistos. O facto de se passar no Alaska e abordar a solidão humana em conjunto com o suicídio de um pai, ajuda a construir o cenário para uma viagem perfeita, mas é na escrita, e na narrativa que está o detalhe do trabalho de Vann.
O livro contém uma espécie de cinco contos que falam sobre o mesmo mas com diferentes abordagens, seja no tempo, no espaço, ou mesmo nos eventos. O livro consegue encantar-nos porque nos transporta para um universo próprio do autor, não é o Alaska, mas é o Alaska de Vann, é Roy e Jim, pai e filho. E a uma determinada altura somos levados ao engano, e o livro parece dar uma volta de 180º, e não queremos parar de ler, porque queremos saber, queremos perceber como é que a narrativa permitiu que aquilo acontecesse. Temos uma espécie de twist a meio do livro e ficamos há espera que outro twist aconteça no final, mas esse twist vai dar-se dentro de nós, quando começamos a encaixar todos os cinco contos, e a estrutura global narrativa começa a fazer sentido e somos capazes de dar sentido a tudo o que ali se passou.
O livro tem sido descrito como uma espécie de exorcismo para Vann, e bem parece, como que se pudesse através da arte literária não só libertar-se de um peso, mas ao mesmo tempo jogá-lo para o outro lado da rede. O próprio Vann define à posteriori o conto central como uma espécie de vingança sobre o seu pai, mas acredito mais que Vann se tenha deixado levar pela escrita, e que este tenha sido o seu grito literário. Um grito forte inaudível mas muito pesado emocionalmente. Sem dúvida, que toda a arte tem o poder de nos desenterrar, de nos elevar, mas fazer o que Vann faz não está ao alcance de todos.
A narrativa é experimental mas está de acordo com o atual modo de escrita, algo influenciada pelos modelos narrativos cinematográficos de deslinearização do enredo (veja-se Memento ou Inception). Uma tentativa de fazer discorrer a narrativa num modo associativo de ideias e não meramente encadeado cronologicamente. Não é a toa que Vann chega a ser comparado a Virginia Woolf. Diria que estamos perante uma nova corrente na criação ficcional, uma espécie de neo-estruturalismo, em que se busca maravilhar o leitor não pelo que se diz, mas pela forma como se diz. A arte pela arte.
Algumas notas mais.
a) Não leiam a sinopse do livro que está no sítio do autor pois fala tangencialmente do twist central.
b) A capa da Penguin é magistral, e em papel funciona ainda melhor porque o peixe vem imprimido em papel brilhante que contrasta fortemente com o amarelo da capa.
c) A obra original tem um inglês elaborado, nomeadamente os primeiros contos e os últimos. Para quem não esteja totalmente à vontade, aconselho a tradução portuguesa da Ahab.
5/5
O livro contém uma espécie de cinco contos que falam sobre o mesmo mas com diferentes abordagens, seja no tempo, no espaço, ou mesmo nos eventos. O livro consegue encantar-nos porque nos transporta para um universo próprio do autor, não é o Alaska, mas é o Alaska de Vann, é Roy e Jim, pai e filho. E a uma determinada altura somos levados ao engano, e o livro parece dar uma volta de 180º, e não queremos parar de ler, porque queremos saber, queremos perceber como é que a narrativa permitiu que aquilo acontecesse. Temos uma espécie de twist a meio do livro e ficamos há espera que outro twist aconteça no final, mas esse twist vai dar-se dentro de nós, quando começamos a encaixar todos os cinco contos, e a estrutura global narrativa começa a fazer sentido e somos capazes de dar sentido a tudo o que ali se passou.
Aleutian Islands, Alaska (Hawkfish)
O livro tem sido descrito como uma espécie de exorcismo para Vann, e bem parece, como que se pudesse através da arte literária não só libertar-se de um peso, mas ao mesmo tempo jogá-lo para o outro lado da rede. O próprio Vann define à posteriori o conto central como uma espécie de vingança sobre o seu pai, mas acredito mais que Vann se tenha deixado levar pela escrita, e que este tenha sido o seu grito literário. Um grito forte inaudível mas muito pesado emocionalmente. Sem dúvida, que toda a arte tem o poder de nos desenterrar, de nos elevar, mas fazer o que Vann faz não está ao alcance de todos.
A narrativa é experimental mas está de acordo com o atual modo de escrita, algo influenciada pelos modelos narrativos cinematográficos de deslinearização do enredo (veja-se Memento ou Inception). Uma tentativa de fazer discorrer a narrativa num modo associativo de ideias e não meramente encadeado cronologicamente. Não é a toa que Vann chega a ser comparado a Virginia Woolf. Diria que estamos perante uma nova corrente na criação ficcional, uma espécie de neo-estruturalismo, em que se busca maravilhar o leitor não pelo que se diz, mas pela forma como se diz. A arte pela arte.
Algumas notas mais.
a) Não leiam a sinopse do livro que está no sítio do autor pois fala tangencialmente do twist central.
b) A capa da Penguin é magistral, e em papel funciona ainda melhor porque o peixe vem imprimido em papel brilhante que contrasta fortemente com o amarelo da capa.
c) A obra original tem um inglês elaborado, nomeadamente os primeiros contos e os últimos. Para quem não esteja totalmente à vontade, aconselho a tradução portuguesa da Ahab.
5/5
setembro 01, 2012
o fim do nada
The Seventh Continent (1989) de Michael Haneke é forte, muito forte, e é estranho, ou nem por isso, como a obra que se me chama a coacção é Every day the Same Dream (2009) da Molleindustria. Apesar de serem média diferentes, a mensagem aproxima-se, claro que sem o poder emocional do cinema, mas aqui apenas e só por causa do realismo fotográfico, da ausência de comicidade, e do facto de não ser dado à experimentação nem ao nosso controlo. No filme é assim, e nada podemos mudar para ser diferente.
O filme toca num ponto fundamental da nossa existência, e por isso é impossível sairmos indiferentes da experiência. Alguns pensarão que é um exagero, mas sendo baseado num caso real, tudo ganha outro contorno. Poderíamos nós chegar àquele estado? Todos queremos acreditar que não, mas… Não existe ali crise que explique, e esse é o grande problema de todo o filme e que Haneke trabalha de forma brilhante, apresentando sem propor causas, nem explicações.
Em termos estéticos, tal como diz Haneke, numa entrevista de 2005, a Serge Toubiana, uma das coisas mais impressionantes no filme é o ritmo a que decorre. Como uma composição musical, somos levados pelo ritmo audiovisual, sentimo-nos a progredir na história até que percebemos para onde estamos a ir, e não queremos acreditar que estamos a ser levados para ali.
O filme toca num ponto fundamental da nossa existência, e por isso é impossível sairmos indiferentes da experiência. Alguns pensarão que é um exagero, mas sendo baseado num caso real, tudo ganha outro contorno. Poderíamos nós chegar àquele estado? Todos queremos acreditar que não, mas… Não existe ali crise que explique, e esse é o grande problema de todo o filme e que Haneke trabalha de forma brilhante, apresentando sem propor causas, nem explicações.
Em termos estéticos, tal como diz Haneke, numa entrevista de 2005, a Serge Toubiana, uma das coisas mais impressionantes no filme é o ritmo a que decorre. Como uma composição musical, somos levados pelo ritmo audiovisual, sentimo-nos a progredir na história até que percebemos para onde estamos a ir, e não queremos acreditar que estamos a ser levados para ali.
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