maio 15, 2012

Disney: educação para a morte

Education for Death: The Making of the Nazi é um filme da Walt Disney de 1943 que explica o fenómeno Nazi de uma forma altamente simplificada, mas verdadeiramente impactante. Percebe-se aqui claramente como é que foi possível germinar num país, toda uma sociedade cega de valores e moral. Em que o estatuto é apenas dado aos mais fortes, aos mais aptos, e em que todos os outros são desprezados.


Impressiona ver este filme que segue uma estética Disney, e que de repente nos mostra a anti-tese da moral a que a Disney nos habituou. Aliás interessante para que se possa apreciar como toda a cinematografia Disney, apesar de simples, está ela própria carregada de ideologia e valores morais societais. Nada ali é neutro, como não poderia deixar de ser, nenhum Media o é.


Sem compaixão, sem complacência, dos fracos não reza a história. Sente-se aqui um Hitler inspirado por pensadores como Nietzsche, as suas discussões em redor do super-homem, dos mais fortes. A sua abominação da moral, como algo criado pelos fracos para se unirem contra os fortes. Em que todos os males advinham dos mais fracos, e que eram estes que impediam os mais fortes de prosperar. Nietzsche sonhava com o super-homem, e esse não podia emergir dos fracos.


Mas se Nietzsche cria todo este discurso em termos teóricos e abstracos de análise de uma natura humana optimizada. Hitler não se fica por aí e passa à prática, define o recorte entre fracos e fortes segundo os seus parâmetros pessoais e põe mãos à obra. Este salto gigantesco, entre a discussão filosófica da moral e a tentativa de a operacionalizar está belissimamente representada no filme do Hitchcock, Rope (1948). Por sinal um dos meus filmes de sempre, e o melhor sem dúvida de Hitchcock.

maio 12, 2012

jogar dentro das nossas memórias

Mais um interessantíssimo jogo, Souvenir, criado por estudantes de mestrado - Robert Yang, Mohini Dutta e Ben Norskov. Desta vez são alunos do mestrado em Design and Technology da conceituada Parsons School. O jogo foi criado em Unity com a versão de estudante, e pode ser feito o download gratuito para PC e Mac no site.


Souvenir apresenta a seu favor: uma arte de excelência, um interessante game design, e ainda uma narrativa bastante atractiva ainda que difusa. O jogo consiste em deambular por um estranho mundo em primeira-pessoa, em busca de cartas com memórias de infância.


O objectivo dos autores foi criar um gameplay que de algum modo simulasse o nosso mundo de memórias, um mundo confuso e complexo de navegar. Para isso desenharam um sistema de multi-gravidade com a direcção da gravidade a variar em função do posicionamento no mundo.


No site dos autores podemos encontrar as seguintes influências "VVVVVV + Proteus + Dear Esther + a bit of Portal". A verdade é que no final, temos aqui uma delícia de jogo.  Só é pena os bugs que por vezes nos deixam em loop e impossibilitam de retomar o jogo.

desenhar matematicamente

Desenhar de modo recursivo, ou seja fazendo uso dos recursos previamente criados de modo infinito. É esta a ideia que Toby Schachman está trabalhar na sua tese para o Interactive Telecommunications Program da NYU. Antes tinha feito Matemática e Computação no MIT. Aliás a sua ideia é um pouco mais abrangente, ele pretende desenvolver um novo ambiente de programação orientado ao espaço. Algo que segundo este se baseia nas ideias da linguagem Context Free, e que já agora valem também a pena ser exploradas.

esboço criado no Recursive Drawing

Fez-me lembrar o componente MoGraph do Cinema 4D, que permite através das suas ferramentas Cloner fazer coisas muito parecidas, mas em 3d e com animação. Vejam o vídeo aqui abaixo explicando em maior detalhe como funciona o sistema, e depois podem explorar uma versão online.

 

Maio negro

Estamos a um terço do mês e contamos já com 5 mortes de relevo na cena da arte e cultura nacionais e internacionais. Alguns eram já monumentos vivos - Fernando Lopes, Maurice Sendak e Vidal Sassoon - outros - Adam Yauch e Bernardo Sassetti - tinham ainda muito para dar ao mundo em termos criativos. E se é verdade que a morte é uma condição do ponto de vista racional perfeitamente natural, emocionalmente continua a afectar-nos. Aqui fica uma pequena homenagem, porque apesar de terminadas, as suas vidas continuarão a dar muito a todos nós.

"Dying Gaul", do bronze original de Epigonus 230-220 A.C.


Fernando Lopes, 2 Maio 2012 [1935]

Excerto de "Fernando Lopes, Provavelmente" (2008), de João Lopes

"A Abelha, à sua maneira, no conjunto do Cinema Novo português, é o primeiro gesto radicalmente moderno do cinema português"

"Sou um realizador improvável porque, como diria o O'Neill, estou onde não devia estar. Nada na minha vida indicava que eu podia vir a ser um realizador de cinema. Vim de uma aldeia, em fuga, passando por aventuras várias, em Lisboa e fora de Lisboa. No fundo, o que estava previsto era que eu fosse um camponês da Várzea, alguém que trabalhasse a terra… e depois acabei a trabalhar imagens e sons."


Adam Yauch, 4 Maio 2012 [1964]

"Fight For Your Right (Revisited)" (2011) [Completo]

Fight for your Right (Revisited) foi realizado pelo próprio Adam Yauch para comemorar os 25 anos do vídeo original e que conta com a participação de actores como Elijah Wood, Susan Sarandon, Stanley Tucci, Ted Danson, Roman Coppola, Steve Buscemi entre muitos outros


Maurice Sendak, 8 Maio 2012, [1928]

"TateShots: Maurice Sendak" (2011)

"I do not believe that I have ever written a children's book. I don't know how to write a children's book. How do you write about it? How do you set out to write a children's book. It's a lie."


Vidal Sassoon, 9 Maio 2012, [1928]

Trailer de "Vidal Sassoon: The Movie" (2010)

"My idea was to cut shape into the hair, to use it like fabric and take away everything that was superfluous"


Bernardo Sassetti, 10 Maio [1970]

"Homecoming Queen" (6:34), Motion, de Bernardo Sassetti Trio

"Quando se vive muito intensamente a música, a música que vive cá dentro, que vem cá de dentro a fervilhar, o grande segredo para a sua transmissão e partilha é o acto contido sobre o que temos e encontramos no fundo de nós."

"A representação artística das coisas, e do que nós vivemos tem um sem número de interpretações. Eu posso olhar para uma imagem e reparar em coisas que para outra pessoa são completamente secundárias. Eu, por exemplo, gosto de uma certa estranheza, de um certo mistério nas imagens. E preocupo-me pouco com as coisas mais objectivas nas imagens."

maio 11, 2012

arte e cognição na arqueologia

2012 está a ser um ano de excelência para a arqueologia especialmente no que toca a componente artística e cognitiva. A arte que podemos encontrar nas paredes de antigas caves podem ajudar-nos a perceber como evoluímos enquanto espécie, assim como podemos compreender melhor as anteriores civilizações, se compreendermos como regulavam o seu tempo.

Calendário Maia (+-  séc. IX)

Começando pelo evento que está hoje em todos os media, o calendário Maia publicado hoje na revista Science datado do século IX. William Saturno da Boston University terá encontrado o primeiro calendário sobrevivente desta altura. Era sabido que eles teriam existido mas não existiam provas concretas. Este pequeno vídeo da National Geographic dá mais detalhes sobre o assunto.


Entretanto já em Fevereiro deste ano, a partir de um trabalho coordenado por José Luis Sanchidrián da Universidad de Córdoba, tinham sido reveladas seis pinturas na cave de Nerja (Málaga). Pinturas que parecem ser focas, e que nos primeiros testes de datação realizados nos EUA apontam para entre 43 000 e 42 000 anos.

Focas (+- 42 000 anos), Caverna de Nerja, Málaga, Espanha

A confirmar-se irá obrigar a rever alguns princípios nomeadamente no que toca às capacidades cognitivas dos Neandertais, predecessores do Sapien. Até agora temos acreditado que apenas os Sapiens tinham sido dotados de pensamento complexo, suficientemente evoluído para desenvolver valores estéticos e gerar arte. Claramente que estas imagens de focas estão muito longe da complexidade estampada nas caves de Chavet, em cavalos, rinocerontes e ursos.

Imagens das paredes das Caves de Chavet

As mesmas caves recentemente filmadas em 3D por Werner Herzog, Cave of Forgotten Dreams (2010), e que os estudos davam como datadas de há 20 000 anos, aparecem agora aos olhos das mais recentes descobertas com novos meios de datação, como podendo ter sido criadas entre 28 000 a 40 000 anos atrás.

maio 07, 2012

o Prazer de ler

Acabo de descobrir uma obra de grande valor, Como um Romance (1992) de Daniel Pennac (edição ASA). Foi-me recomendada pelo João Cardoso, um aluno meu de mestrado, não pelo conteúdo, mas pela forma. O livro desenvolve-se em pequenos capítulos de 2 a 3 páginas, criando no leitor um amplo sentimento de progressão, que facilita per se o acto de leitura.


Mas o que descobri no seu conteúdo deixou-me ainda mais encantado. Neste livro de 1992 Pennac já diz muito daquilo que hoje discutimos em redor das palestras de Ken Robinson. Neste ensaio defende o valor da leitura, não pela sua necessidade mas antes pelo seu prazer. Critica fortemente as práticas pedagógicas que fazem da leitura uma tortura e com isso retiram o prazer de ler às crianças.

Autor desconhecido

Pelo meio apercebi-me de algo que comentei aqui sobre o livro The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (2010), é que esta coisa de os alunos e as pessoas não gostarem de ler não tem nada que ver com a Internet. Este ensaio é de 1992, tem 20 anos, e aponta exactamente os mesmos dramas no incentivo à leitura nos liceus franceses. Por isso hoje quando nos dizem que as crianças têm muitas outras atracções, é verdade, mas não é por causa disso que não lêem. Cabe-nos a nós descobrir a forma de os ajudar, e não apenas resignar-nos. Este livro de Pennac é um excelente ponto de partida para encontrar formas de o fazer.


Pennac relembra os pais de que mais importante do que compreender as histórias que lhes leram, é que as crianças tenham prazer com esses momentos. Não posso concordar mais, assim como tenho de concordar com a sua ideia de exame final de liceu em Português, que deveria passar não por exigir a análise de um texto, mas antes por contar sobre os livros que leu.

Ao longo do livro Pennac demonstra com vários exemplos como a análise vem pouco a pouco, à medida que se vai lendo mais e mais, e que não se aprende apenas porque é ensinada de modo obrigatório. Pennac faz do objecto um prazer, e não uma tortura, dessacralizando a leitura e elevando o amor à leitura. Trabalha a arte da leitura como algo que nos deve tocar profundamente o coração, em vez de nos colocar a debitar respostas. E para isso fecha o livro com os fantásticos 10 direitos do leitor:
1. O Direito de Não Ler
2. O Direito de Saltar Páginas
3. O Direito de Não Acabar Um Livro
4. O Direito de Reler
5. O Direito de Ler Não Importa o Quê
6. O Direito de Amar os «Heróis» dos Romances
7. O Direito de Ler Não Importa Onde
8. O Direito de Saltar de Livro em Livro
9. O Direito de Ler em Voz Alta
10. O Direito de Não Falar do Que se Leu
Com um discurso bem disposto e convincente, quase que me consegue fazer sentir culpado. Culpado por ter deixado de ler romances. Uma decisão consciente que tomei há alguns anos. Porque não é possível dedicarmo-nos a todos os prazeres, deixei o lado do romance para o cinema. Mas por vezes, nomeadamente nas paragens mais longas do verão, ainda volto aos seus prazeres por breves passagens.


maio 06, 2012

Uncharted 3, incapaz de surpreender

O simples facto de ter demorado 5 meses a terminar Uncharted 3, quando demorei apenas 5 dias a terminar Uncharted 2, diz muito sobre cada um destes. A série Uncharted é sem sombra para dúvidas uma das grandes séries dos videojogos, e Drake ganhou desde já o seu lugar ao lado de Indiana Jones e Lara Croft. Mas como esses, sofre do problema do efeito do seriado, a repetição, a redundância, a incapacidade para surpreender e ir além do que nos foi dado antes.


Em 2009 deixei aqui uma análise extensa de Uncharted 2, manifestando a minha total surpresa com o jogo. Uncharted 3 não faz nada a menos do que Uncharted 2, aliás tecnicamente faz mais, tem muito mais cenas de acção narrativa interactiva. Mas perde por ter ampliado os níveis de acção. Ao fazê-lo damos conta que passamos uma grande parte do jogo aos tiros e a esconder-nos dos tiros dos outros. Exagero, e como tal quem perde é a narrativa.


No final do jogo, o fechamento tem pouco um nenhum interesse, mais uma cidade tesouro perdida que se afunda e assim acaba a nossa Quest. O isco no final da narrativa era apenas um pretexto para nos fazer jogar. Sabe a pouco, ou melhor não sabe nada, porque não retiro qualquer significado do meu jogo, a não ser o prazer de o ter jogado.


Numa nota mais subjectiva, era também difícil levar as areias do deserto do Yemen a superar as montanhas coloridas e verdejantes do Nepal!





pós-produção de Exotermia

Ognian Bozikov é formado pela Academia de Artes de Sofia, Bulgaria e é docente na área de pós-produção no Art Institute of Colorado, EUA. No ano passado o Instituto concedeu-lhe 3 meses de sabática que este aproveitou para dar vida ao projecto Exothermic.


Neste projecto podemos ver em evidência a força da montagem e da pós-produção na construção do universo-história, e de atmosferas. Em termos técnicos, acho que para além do tracking e partículas 3d, o que mais me impressiona é a retexturização dos ambientes e a excelência da montagem. Para a construção deste filme Bozikov utilizou essencialmente o Nuke e Photoshop para a pós-produção, o Maya para o 3d, e ainda se socorreu do ZBrush e do PFTrack. Vejam o filme, e depois abaixo podem ver o making of.


Bozikov realizou entretanto um making of com 4 streams: previz, video raw, breakdown e final. Julgo que o previz não nos traz muita informação relevante e por isso preferia ver o breakdown em full. De qualquer modo é delicioso ver todo o trabalho em termos comparativos, entre o Raw e o Final.

maio 04, 2012

Nicholas Carr, a internet e o nosso cérebro

O livro de Nicholas Carr, The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains (2010) não é um grande livro, mas é um livro sobre a nossa condição actual, que nos fala das preocupações produzidas pela cultura contemporânea, nomeadamente a produzida pelos tempos da internet. Como tal é um livro que faz parte de um pensamento em construção, e que no futuro ele próprio fará parte desta história. E é por isso que faz sentido deter-nos um pouco sobre o que nos diz Carr. Não sendo propriamente um ludita, está longe de se apresentar como um defensor das tecnologias web. É um livro anterior à publicação do artigo da Science do ano passado de que falei aqui, mas que se foca sobre a mesma problemática das supostas alterações cognitivas despoletadas pelos novos modos de aceder à informação via internet.


O maior erro deste livro passa por assumir as teorias da neuroplasticidade como algo muito mais activo do que aquilo que realmente é. É verdade que fomos descobrindo que o nosso cérebro não pára de se adaptar aos 16 ou 17 anos, que continua a fazê-lo pela vida fora. Mas também é verdade que se o faz é a um ritmo bastante lento, e não em toda a sua extensão. Por isso procurar basear toda uma teoria no facto de que os nossos cérebros se alteram apenas com o contacto com a web é esperar demasiado desta nossa capacidade. Era bom que assim fosse, pois muitos outros problemas e patologias teria aqui muitas soluções.

Assim e passada a primeira grande metade do livro a discutir a neuroplasticidade, existem porém coisas a reter porque não são meras especulações, são trabalhos que temos feito e sobre os quais temos dados. Nesse sentido concordo com algumas das questões lançadas sobre a dispersão e fragmentação de mensagem que o hipertexto veio introduzir no discurso do Livro. É algo que transcrevo para aqui, porque é importante em termos de percepção sobre a Interactividade.
"Back in the 1980s, when schools began investing heavily in computers, there was much enthusiasm about the apparent advantages of digital documents over paper ones. Many educators were convinced that introducing hyperlinks into text displayed on monitors would be a boon to learning. Hypertext would strengthen critical thinking, the argument went, by enabling students to switch easily between different viewpoints. Freed from the lockstep reading demanded by printed pages, readers would make all sorts of new intellectual connections between diverse works. The hyperlink would be a technology of liberation.

By the end of the decade, the enthusiasm was turning to skepticism. Research was painting a fuller, very different picture of the cognitive effects of hypertext. Navigating linked documents, it turned out, entails a lot of mental calisthenics—evaluating hyperlinks, deciding whether to click, adjusting to different formats—that are extraneous to the process of reading. Because it disrupts concentration, such activity weakens comprehension. A 1989 study showed that readers tended just to click around aimlessly when reading something that included hypertext links to other selected pieces of information. A 1990 experiment revealed that some “could not remember what they had and had not read.”
Aliás isto mesmo é o que ainda hoje muitos continuam a pedir à Escola, que esta avance no sentido do ensino online por vias interactivas, quando essa não pode nunca servir de via substitutiva, mas apenas complementar. Esta questão do hipertexto e do ensino online, liga-se muito intimamente ao assunto do multitasking. Porque nestes discursos do ensino tecnológico, começamos a ouvir falar das novas gerações, dos nativos digitais. Jovens que não só sabem mais do que os professores como possuem capacidade para fazer várias coisas em simultâneo. Mas a realidade é que um pequeno teste, como o que se pode ver no vídeo aqui abaixo, em que pedimos a um jovem em 2012, ou seja um suposto nativo digital, para conduzir e mandar um SMS ao mesmo tempo, e o desastre é total. Simplesmente verificamos, que o milagre da Neuroplasticidade nas novas gerações não aconteceu, e que o Multistasking humano não é mais do que um mito.


Este discurso mais negativo sobre o Hipertexto, Hipermedia e Multitasking faz sentido e temos estudos que o suportam. Aliás sabemos disto quando partimos para a construção de narrativas em ambientes interactivos. Que se cedermos à vontade total da interactividade, e criarmos um jogo totalmente hipermediado, perdemos o nosso jogador, em termos narrativos. Ou seja a história fragmenta-se e no final do jogo, o jogador já não se lembra de onde partiu a história, menos ainda por onde andou. Por isso mesmo nos jogos mais interactivos, continuamos a forçar a linearidade narrativa, porque essa é o garante da construção de compreensão da mensagem. Sobre isto escrevi bastante em Emoções Interactivas.

Isto relaciona-se com várias coisas, nomeadamente com o modo como construímos as nossas memórias. Estas requerem altos níveis de atenção focada, por forma a dar tempo à criação de novas ligações, ou novas sinapses. Estas ligações só se conseguem com concentração mental, repetição e forte envolvimento. Isto é o que fazemos num livro, mantemos a atenção focada apenas naquela página, e naquele fio narrativo. O problema do objecto hipermedia ou internet é que este ao permitir saltitar entre assuntos, ou linhas narrativas, retira a focagem, logo diminui atenção, por sua vez diminui a solidificação de novas memórias. Carr vai pegar nisto para explicar que a web está a danificar as nossas capacidades de concentração, a diminuir as nossas memórias, e logo a diminuir as nossas capacidades cognitivas de aprendizagem e de crescimento enquanto seres.

How to focus... , de Leo Babauta

Ora isto não faz muito sentido, porque ninguém disse, quer dizer exceptuando os arautos do novo mundo tecnológico, que o multimedia, que a interactividade, ou que a internet, estava cá para substituir os livros, o cinema, o teatro ou qualquer outra forma de expressão e construção do Eu ou do Nós. Os Media Interactivos possuem muitas valências de relevo, nomeadamente a sua componente de interactividade que lhes permite gerar situações de pura simulação e experienciação e que com isso conseguem gerar aprendizagens mais eficientes e duradouras que um livro. Aliás basta ver o exemplo da diminuição drástica de acidentes de aviação após os pilotos terem deixado de aprender a pilotar ouvindo os pilotos mais experientes, e terem passado a treinar em simuladores, como nos relata Lehrer.


Mas este tipo de aprendizagem por acção, ou simulação de acção, não se aplica a tudo aquilo que nós somos enquanto espécie. Existe todo um mundo de acções externas as quais acredito que a internet e nomeadamente os artefactos interactivos desenhados para o efeito conseguem ultrapassar facilmente o livro na transmissão e construção de novas memórias. Mas depois existe todo um reino de inacções, de construção interna do ser, do indivíduo que não se consegue construir por aqui. Interactividade, significa acima de tudo acção e reacção que por sua vez está na antítese da empatia e da contemplação. Características essenciais na construção emocional, social e cultural do indivíduo.

Quanto às questões levantadas por Carr sobre a sua experiência pessoal de se sentir cada vez mais incapaz de concentrar, e de ter que se deslocar para as montanhas para conseguir escrever este livro. Nada de novo, isso já acontecia antes com diferença entre o ambiente citadino e rural. O problema da nossa concentração no dia a dia não é a internet, mas a quantidade de coisas em que nos envolvemos, e sobre as quais temos de aprender a dizer que não.

À la recherche du temps perdu (1913-1927), de Marcel Proust

E isto aplica-se também à questão do Deep Reading que Carr diz que está a desaparecer da sociedade, e que de algum modo o próprio Clay Shirky vem dizendo em alguns dos seus textos, argumentando que nos dias de hoje já ninguém quer saber de ler Guerra e Paz ou Em Busca do Tempo Perdido. Mas isto nada tem que ver com a internet basta pegar em qualquer jornal, revista ou livro que relate experiências escolares dos anos 1980 ou 1990 pré-internet para vermos como os alunos já fugiam da leitura. Livros grandes ou pequenos, a leitura sempre foi vista como a impossibilidade do acto de brincar livre, pela sua necessidade de absoluta concentração. Por isso mesmo a escola, continua a ser um lugar de esforço, de obrigatoriedades, em que não podemos fazer apenas aquilo que queremos. Sem esforço, não se consegue o deep reading, sem o deep reading, não se consegue a construção de conhecimento interno capaz de nos fazer evoluir enquanto indivíduos.