Depois de ver o filme e ler o
press release, fico contente de saber que Lars não pretende que o filme seja mais do que aquilo que nos mostra. O filme é bastante simples, e com pouco enquadramento é possível chegar à simplicidade do que está em questão. Existe aqui apenas uma pequena condição, é que o filme irá dar-se muito melhor com quem já sofreu algum dia de depressão. O nome do filme define ao que vimos, a Melancolia, e a raiz nasceu de uma afirmação do psicanalista de Lars,
"My analyst told me that melancholiacs will usually be more level-headed than ordinary people in a disastrous situation, partly because they can say: 'What did I tell you? But also because they have nothing to lose."
Algo que me faz recuar no tempo, lembro-me de ter afixado na parede do meu quarto uma frase que tinha retirado do cd
Bloody Kisses (1993) dos Type O Negative,
No Hope = No Fear
E é isso que o filme nos trás, de forma singela e plasticamente perfeita. Uma das irmãs, Justine (Kirsten Dunst), sofre de uma profunda depressão, ou estado de melancolia, enquanto a outra irmã, Claire (Charlotte Gainsbourg), representa o contra-ponto, a regularidade, e a aceitação da vida. Assim numa primeira parte vemos o desmoronar de Justine, enquanto Claire tenta dar suporte à sua irmã, no enfrentar da normalidade, dos rituais da vida. Na segunda parte, com a aproximação do fim do mundo, os papéis invertem-se, e a melancolia torna-se mais forte, e é ela agora quem dá suporte a quem desespera.
Lars assume claramente que o personagem de Justine é decalcado da sua pessoa, o que não é difícil de perceber, enquanto Claire é supostamente a encarnação da pessoa normal, sem problemas do foro depressivo. Lars não se cansa de dizer que o filme é menos árido que
Antichrist (2009), que é muito mais polido, o que é verdade.
Melancholia é todo ele um objeto que se dá sem esforço, sem complexidade, que não se esconde por detrás de incertezas de sentido. Mas é apenas à primeira impressão, porque quando mergulhamos em profundidade no tema, damo-nos conta que Lars nunca tinha utilizado um tema tão limite, porque não existe limite para além deste.
If it could happen in an instant, the idea appeals to me. As Justine says: Life is evil, right? And life is a wicked idea. God may have had fun at creation, but he didn't really think things through... So if the world ended and all the suffering and longing disappeared in a flash, I'm likely to press the button myself. If nobody would be in pain. Then people might say: how nasty, what about all the lives that wouldn't be lived? But I can't help seeing it all as a mean streak.
Nem mais. E agora podemos perceber muito melhor o que se passou na
conferência em Cannes.
Em termos estilísticos, e
à semelhança do que já acontecia em Antichrist, temos um objeto tecnicamente muito perfeito. Embora possa dizer desde já, que de tudo o que menos gostei foi do constante tremer da câmara, percebo a necessidade de contraste com o classicismo do resto da representação, mas acho que contrasta em demasia. Por vezes só me apetecia sorver o que está dentro do enquadramento e não ser incomodado com as tremuras, mas também percebo que talvez sem elas teríamos voado para outras paragens que não eram as do interesse deste filme. A magnífica imagem do filme ficou a cargo de Manuel Alberto Claro que fez uso de uma Arri Alexa e uma Phantom, e os efeitos visuais foram desenvolvidos pela polaca
Platige Image. No campo da música, é muito interessante que apesar de ser o filme de Lars mais musicado, é-o fazendo uso quase apenas e só do prelúdio de
Tristan und Isolde (1865) de Richard Wagner, que serve para engrandecer e embelezar, carregando em força no classicismo.
O filme foi feito com recurso a muito improviso, e isso está em total sintonia com a câmara ao ombro, sente-se por vezes que os atores voam livremente, recebem apenas algumas instruções prévias aos takes e depois são lançados na personagem. Ainda bem que a Penélope Cruz não pôde fazer o filme, e ficou para a Kirsten Dunst. Lars refere que ficou admirado com o seu largo espectro de nuances, e isso pode ser comprovado neste filme.
Em termos de proximidades, senti durante a primeira parte uma pequena colagem a
Festen (1998) do seu colega Thomas Vinterberg, mas sem dúvida que a grande colagem aqui vai para
Solaris (1972) de Tarkovsky. Apesar do contraste que falei acima, o classicismo apresentado, a música, o ritmo, as paisagens verdes e abertas, o algo maior (ou ausente) que a humanidade, segue uma veia poética muito próxima de Tarkovsky.