Teria preferido que "The Lost Legacy" fosse um DLC já que não nos dá mais do que isso e porque as expectativas teriam sido mais baixas. Eu sei que a sua duração não é compatível com um DLC e que a dimensão do trabalho executado mais do que justifica fazer do mesmo um tomo de qualquer série de videojogos. O problema é que "Uncharted" não é uma qualquer série, e basta olhar para o que escrevi sobre os anteriores tomos, em particular o mais recente, "Uncharted 4" (2016), para perceber isso mesmo. "Lost Legacy" é, para mim, apenas um DLC, não diferindo de "Left Behind" (2014) para com "The Last of Us" (2013). Deste modo não aprofundarei a análise, farei apenas alguns reparos sobre a narrativa e o design.
Na história, temos uma extensão de "Uncharted 4", a história estende alguns dos personagens não principais, o que sendo interessante por abrir dimensões menos exploradas em toda a série, nomeadamente a perspectiva feminina, falha em inovação. Não posso dizer que não seja interessante a afirmação do duo feminino, todo o humor envolvido e subtileza com que nos vão conduzindo pela trama, mas senti tudo muito colado aos grandes estereótipos do género: não é Nate, mas mudar para Lara Croft e a sua relação com o pai, e dar-lhe um sentido de humor à la Nate, revela muito pouca imaginação. E não é apenas a proximidade entre Lara e Chloe que me lembra "Tomb Raider", é o pior de Tomb na comparação com Uncharted, o exagero narrativo. Talvez eu já esteja demasiado velho, mas encontrar cidades inteiras feitas de ouro e jóias, quase uma por capítulo, destrói qualquer sensação de surpresa. Por muito que se queira crer no mundo-história, acaba fazendo que tudo se desmorone, pois se um El Dorado é bom, muitos é uma banalidade.
Para agravar a banalidade do excesso do cenário narrativo, temos que a arte desenvolvida para "Lost Legacy" fica bastante aquém de "Uncharted 4". Apesar do jogo incentivar tirar fotografias, foram raras as vezes que o fiz, porque os cenários apenas pareciam ser fantásticos, faltando-lhes todo o detalhe e estudo a que "Uncharted 4" já nos tinha habituado. Depois de provar um café com natas, darem-nos mero café sem açúcar, não é que seja mau, mas é bem diferente em termos do que nos pode fazer viajar experiencialmente.
Por último, li várias excelentes resenhas sobre o jogo, nomeadamente sobre o design, com o que tenho de discordar. Não sendo mau, elogiar "Lost Legacy" parece-me completamente despropositado. A experiência de jogo é altamente afunilada, o sentimento de agência, mesmo nas grandes secções de condução do jipe é reduzida, não comparável ao que já nos tinha dado a série. Posso até aceitar que a sequência do comboio supera a de "Uncharted 2" (2009), mas apenas porque se passaram muitos anos, e se nota que houve um cuidado particular com toda esta sequência no jogo. Ainda assim, se o design funciona muito bem, nem por isso a narrativa que envolve a sequência faz mais sentido. De uma forma geral, o design de jogo é muito fechado e completamente arrastado pela linearidade narrativa, não gerando qualquer surpresa.
Joga-se como um DLC, apesar de vendido como jogo independente, e apesar da crítica ter oferecido os mais elogiosos louvores e defendendo essa opção de lançamento independente, não passa disso mesmo, de um DLC. Ou seja, a jogar por quem tenha jogado "Uncharted 4" e queira estender um pouco a experiência, sabendo que o aqui vai encontrar é café sem natas, nem açúcar.
outubro 08, 2018
outubro 05, 2018
Portugal em 1941 segundo a literatura
Não é um grande livro, mas é uma grande obra. “Esteiros” foi publicado em 1941, como primeiro e único romance de Soeiro Pereira Gomes, num país em que a produção cultural era um luxo reservado a poucos, criava-se muito pouco e o que se criava focava-se mais na arte pela arte do que na realidade. A isso não era também alheio o facto de se viver sob um regime ditatorial que controlava a elite intelectual e todos os canais de veiculação cultural. Deste modo, se artisticamente podemos apontar várias falhas estilísticas à prosa de Soeiro, a sua audácia e inovação no plano nacional assim como o resultado que se imprime na leitura, fazem deste livro mais do que um documento vivo de um tempo da nossa história.
Saliento que Soeiro tinha até à data apenas escrito pequenos contos e crónicas para jornais. O estilo realista foi construindo-o pela escrita praticada para esses jornais, mas um romance não é mera crónica, é preciso algo mais do que o simples relato do que se vê. Por outro lado, Soeiro já tinha tido uma má experiência com um relato demasiado rente à realidade com o conto “O Capataz” (1935) proibido pela censura de então. Daí que “Esteiros” acabe por não se agarrar aos gritos de pobreza, nem às ideologias que a provocava, mas antes se fixe num grupo de crianças que viviam por sua conta, apontando aos seus sonhos sem contudo deixar de ilustrar o mundo e as condições em que viviam. O resultado é um romance neorrealista, uma tradição artística muito em voga na época, tanto na literatura como no cinema, e que procurava dar a ver e sentir a realidade mas do ponto de vista das comunidades mais pobres, ou sem voz na produção cultural. Uma espécie de tentativa de abrir uma janela sobre uma realidade que a sociedade em geral ignorava de forma consciente e muitas vezes até sem qualquer noção da sua existência.
Soeiro viria a ingressar no Partido Comunista Português pouco depois, daí que o partido sempre se tenha achado no direito de usar a obra em defesa dos seus valores, contudo “Esteiros” está longe de ser um panfleto partidário. A obra vale por si, desenvolve todo um mundo próprio, dotado de uma visão pessoal do autor, sem laivos de luta ideológica, algo que Soeiro poderá ter feito para evitar a censura. Na verdade, o romance apesar de dotado de um sentido de missão, socorre-se de todo o convencionalismo estético que define um romance, desde a definição dos personagens e sua progressão, aos conflitos vitais para a construção do clímax, e aos cenários que tudo acompanham e enchem de densidade a viagem na imaginação do leitor. Soeiro segue o movimento neorealista da época, que ia beber ao realismo da pintura e ao naturalismo de Zola, forçando agora o sentimento realista pela forma. Enquanto o cinema italiano neorealista usava pessoas reais em vez de atores, Soeiro trabalha a escrita das falas dos personagens de modo a aproximarem-se da pronúncia efetiva, perdendo em qualidade escrita do português mas ganhando, pelo efeito realista, maior proximidade do sentir daquelas crianças.
No entanto, sente-se a falta de alguma uniformização discursiva, desde logo a narração apresenta momentos de descrição muito elaborada, quase poética, que se opõem aos diálogos bastante mais rasos das gentes. Por outro lado, o português mal-falado escrito parece elaborado um tanto ad-hoc sem estrutura nem padrão, denotando alguma falta de estudo e análise da linguagem que se tenta captar e apresentar. Juntam-se ainda algumas dificuldades de ligar quadros narrativos ou cenas inseridas sem relação no tempo da obra, que por vezes nos deixam pendurados sem perceber para onde ou porque se moveu o narrador. Mesmo a interessante divisão em quatro secções marcadas pelas estações do ano, são exclusivamente usadas para definir a cronologia das ações, servindo pouco a estética narrativa não se sentindo na escrita nem nos modos descritivos. Tudo isto não nos surpreende tendo em conta ser uma primeira obra, e num cenário histórico como o descrito acima.
Voltando ao histórico e político, Salazar não é parte do romance, mas está lá na figura do Sr. Castro, sempre condescendente com os mais fracos, mas levando as suas ideias por diante, porque assim tinha de ser, o progresso económico assim o exigiria. Não incorro, contudo, no facilitismo de atirar para as costas de Salazar todas as condições de vida dos personagens do texto. Em 1941, o mundo ao tentar sair de uma terrível crise económica, 1929 (compare-se estes personagens com o de “As Vinhas da Ira” (1939) de Steinbeck), tinha chegado ao auge de uma devastadora 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945), o nosso principal parceiro económico e vizinho, a Espanha, acabava de sair destroçada de uma Guerra Civil (1936-1939), e por isso por mais "mago de finanças" que fosse Salazar e pela neutralidade advogada, só podia contar consigo e com o que ia extorquindo às colónias. Foram tempos terríveis em toda a Europa, e Portugal não teria sido exceção com qualquer outro governo. O que teria sido exceção foi o que se seguiu, pois a seguir ao final da 2ª Grande Guerra Mundial, a Europa, graças ao Plano Marshall, entrou em total ebulição para repor muito do que tinha sido destruído, e renovar a esperança num mundo novo, mas Portugal fechado na ideologia do “Orgulhosamente Sós” permitiu que o Chefe de Estado conduzisse o país para um fosso inimaginável.
“Esteiros” é um relato imensamente importante por colocar o dedo na ferida aberta na Educação. Portugal era pobre, mas tinha por sua conta colónias dotadas de grande valor pelas matérias-primas que possuíam, no entanto Salazar em vez de apostar na massa cinzenta do país, acreditou que a salvação estava na indústria e na facilitação da sua edificação. Cerceou a liberdade a quem se opôs, fomentou o crescimento de quem se subjugou, e esqueceu o resto do povo, assim conduziu o país sob a sua visão única durante quatro décadas A leitura desta Obra de Soeiro mostra que não havia alternativa, nem sequer para o Gaitinhas que era excelente aluno e os pais tanto queriam que fosse “doutor”. O único trabalho que sobrava para quem nada sabia fazer era o temporário e de força bruta. Como crianças sem proteção familiar ou de qualquer outra ordem e num país em que o Estado se coibia de impor qualquer regulação laboral, eram submetidas a tratamento escravo, do qual não podiam escapar por precisarem desesperadamente do pouco que ganhavam.
* As fotos pertencem a uma reportagem da revista Life feita em Portugal a convite de Salazar. A reportagem é completamente submissa, apresentando Salazar como o líder visionário que salvou o país da bancarrota, indo a ponto de afirmar que "a maioria do que é bom no Portugal moderno deve-se a Salazar", já o povo português não passa de uma cambada de "sonhadores" e "incapazes" que gostam de "negros" e "vinho". Uma reportagem encomendada, feita de interesses de parte a parte, aos EUA também interessava criar e manter boas relações com Portugal para ter acesso facilitado à Europa.
“Esteiros” (1941) relata a história de cinco meninos, entre os 10 e os 12 anos, na zona ribeirinha do Tejo, que deixam a escola para trabalhar e ajudar à sobrevivência familiar.
Saliento que Soeiro tinha até à data apenas escrito pequenos contos e crónicas para jornais. O estilo realista foi construindo-o pela escrita praticada para esses jornais, mas um romance não é mera crónica, é preciso algo mais do que o simples relato do que se vê. Por outro lado, Soeiro já tinha tido uma má experiência com um relato demasiado rente à realidade com o conto “O Capataz” (1935) proibido pela censura de então. Daí que “Esteiros” acabe por não se agarrar aos gritos de pobreza, nem às ideologias que a provocava, mas antes se fixe num grupo de crianças que viviam por sua conta, apontando aos seus sonhos sem contudo deixar de ilustrar o mundo e as condições em que viviam. O resultado é um romance neorrealista, uma tradição artística muito em voga na época, tanto na literatura como no cinema, e que procurava dar a ver e sentir a realidade mas do ponto de vista das comunidades mais pobres, ou sem voz na produção cultural. Uma espécie de tentativa de abrir uma janela sobre uma realidade que a sociedade em geral ignorava de forma consciente e muitas vezes até sem qualquer noção da sua existência.
Soeiro viria a ingressar no Partido Comunista Português pouco depois, daí que o partido sempre se tenha achado no direito de usar a obra em defesa dos seus valores, contudo “Esteiros” está longe de ser um panfleto partidário. A obra vale por si, desenvolve todo um mundo próprio, dotado de uma visão pessoal do autor, sem laivos de luta ideológica, algo que Soeiro poderá ter feito para evitar a censura. Na verdade, o romance apesar de dotado de um sentido de missão, socorre-se de todo o convencionalismo estético que define um romance, desde a definição dos personagens e sua progressão, aos conflitos vitais para a construção do clímax, e aos cenários que tudo acompanham e enchem de densidade a viagem na imaginação do leitor. Soeiro segue o movimento neorealista da época, que ia beber ao realismo da pintura e ao naturalismo de Zola, forçando agora o sentimento realista pela forma. Enquanto o cinema italiano neorealista usava pessoas reais em vez de atores, Soeiro trabalha a escrita das falas dos personagens de modo a aproximarem-se da pronúncia efetiva, perdendo em qualidade escrita do português mas ganhando, pelo efeito realista, maior proximidade do sentir daquelas crianças.
No entanto, sente-se a falta de alguma uniformização discursiva, desde logo a narração apresenta momentos de descrição muito elaborada, quase poética, que se opõem aos diálogos bastante mais rasos das gentes. Por outro lado, o português mal-falado escrito parece elaborado um tanto ad-hoc sem estrutura nem padrão, denotando alguma falta de estudo e análise da linguagem que se tenta captar e apresentar. Juntam-se ainda algumas dificuldades de ligar quadros narrativos ou cenas inseridas sem relação no tempo da obra, que por vezes nos deixam pendurados sem perceber para onde ou porque se moveu o narrador. Mesmo a interessante divisão em quatro secções marcadas pelas estações do ano, são exclusivamente usadas para definir a cronologia das ações, servindo pouco a estética narrativa não se sentindo na escrita nem nos modos descritivos. Tudo isto não nos surpreende tendo em conta ser uma primeira obra, e num cenário histórico como o descrito acima.
Voltando ao histórico e político, Salazar não é parte do romance, mas está lá na figura do Sr. Castro, sempre condescendente com os mais fracos, mas levando as suas ideias por diante, porque assim tinha de ser, o progresso económico assim o exigiria. Não incorro, contudo, no facilitismo de atirar para as costas de Salazar todas as condições de vida dos personagens do texto. Em 1941, o mundo ao tentar sair de uma terrível crise económica, 1929 (compare-se estes personagens com o de “As Vinhas da Ira” (1939) de Steinbeck), tinha chegado ao auge de uma devastadora 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945), o nosso principal parceiro económico e vizinho, a Espanha, acabava de sair destroçada de uma Guerra Civil (1936-1939), e por isso por mais "mago de finanças" que fosse Salazar e pela neutralidade advogada, só podia contar consigo e com o que ia extorquindo às colónias. Foram tempos terríveis em toda a Europa, e Portugal não teria sido exceção com qualquer outro governo. O que teria sido exceção foi o que se seguiu, pois a seguir ao final da 2ª Grande Guerra Mundial, a Europa, graças ao Plano Marshall, entrou em total ebulição para repor muito do que tinha sido destruído, e renovar a esperança num mundo novo, mas Portugal fechado na ideologia do “Orgulhosamente Sós” permitiu que o Chefe de Estado conduzisse o país para um fosso inimaginável.
A Mocidade Portuguesa numa saudação Nazi e a cruz das Cruzadas, por Bernard Hoffman* em 1940
Alegadamente até os pobres iam à escola, como se vê nesta imagem de Bernard Hoffman* de 1940, mas o livro de Soeiro mostra todo um outro cenário.
* As fotos pertencem a uma reportagem da revista Life feita em Portugal a convite de Salazar. A reportagem é completamente submissa, apresentando Salazar como o líder visionário que salvou o país da bancarrota, indo a ponto de afirmar que "a maioria do que é bom no Portugal moderno deve-se a Salazar", já o povo português não passa de uma cambada de "sonhadores" e "incapazes" que gostam de "negros" e "vinho". Uma reportagem encomendada, feita de interesses de parte a parte, aos EUA também interessava criar e manter boas relações com Portugal para ter acesso facilitado à Europa.
outubro 03, 2018
Manual dos Inquisidores
"O Manual dos Inquisidores" (1996) surpreendeu-me, agarrou-me desde o início e foi subindo em envolvimento até bem perto do final. Na forma, temos o virtuosismo imparável de ALA que não escreve histórias, modula mundos-história para os quais nos transporta. O tema é o Estado Novo, ou melhor, o povo português e a sua relação com a ditadura e seus principais atores, como via e sentia, como moldava os seus próprios seres e costumes na submissão àquela realidade política. Ajuda o facto de Antunes ter optado por um registo de comédia, ainda que muito negra, que contribui para criar um olhar distanciado sobre uma realidade muitas vezes imprópria para os mais sensíveis.
Começando pela forma, o mais impactante do livro tem que ver com a dimensão tempo que está praticamente ausente. Existe enquanto cronologia, marcos temporais que oferecem bóias a que nos podemos agarrar de tempos a tempos, mas os discursos surgem independentemente destes, podem começar num passado e a seguir já estarem no futuro, e depois no presente, trocam de lugar como quem sai de casa ou olha pela janela. E ao mesmo tempo, ainda que possa causar alguma fricção, não deixa de se conseguir assimilar, não deixa de conseguir fazer-nos sentir, porque os índices e os informantes, assim como as suas redundâncias, estão lá, são continuamente agitados por Antunes para nos manter no trilho, ou melhor, nos múltiplos trilhos. Porque Antunes não conta uma história, ele cria um universo com o seu texto, para onde nos transporta, nos faz viver e sentir, e encarrega-nos de decidir o que retirar da experiência. A moral, a lição, o mote da leitura da obra não é saber o que aconteceu a A ou B, não são as consequências ou os efeitos das causas, dos conflitos infligidos. Não é o fim, porque é o processo, porque é do processo que se cria mundo, mundo-história, que nos envolve e nos faz sentir naquela realidade, como se por lá tivéssemos passado, como se tudo fossem memórias guardadas, em parte esquecidas ou apagadas pelo tempo, fiapos de visões de uma realidade histórica, que para muitos de nós só faz parte do imaginário.
Mas não é só de forma que vive este livro de Antunes, é do muito que tem para dizer e do modo como indicia, desde o título aos personagens e seus adjetivos, o assunto que tem para revelar. Antunes parece com este livro querer dar uma aula a tantos portugueses que insistem em ver em Salazar e no seu tempo como o melhor de Portugal, como apesar da falta de liberdade, éramos tão mais felizes, e acima de tudo tínhamos um Estado rico. Antunes leva-nos pela mão até ao marco temporal do Estado Novo português, assistimos ao antes, depois e sua queda, vemos personagens do antes a viverem no depois, vemos as diferentes classes caricaturadas que formaram e ainda formam um povo. O ditador passa ao largo e ALA dá-o a sentir como se estivesse distante e ao mesmo tempo sempre presente. Se o título da obra quer ligar Salazar à Inquisição, não sou eu quem questionará tal, e não podendo dizer melhor sobre a comparação, deixo um parágrafo de um artigo escrito para uma revista brasileira de Estudos em Literatura, por Melo (2008):
Saraiva, José Hermano (1993), História de Portugal. Lisboa: Alfa
Começando pela forma, o mais impactante do livro tem que ver com a dimensão tempo que está praticamente ausente. Existe enquanto cronologia, marcos temporais que oferecem bóias a que nos podemos agarrar de tempos a tempos, mas os discursos surgem independentemente destes, podem começar num passado e a seguir já estarem no futuro, e depois no presente, trocam de lugar como quem sai de casa ou olha pela janela. E ao mesmo tempo, ainda que possa causar alguma fricção, não deixa de se conseguir assimilar, não deixa de conseguir fazer-nos sentir, porque os índices e os informantes, assim como as suas redundâncias, estão lá, são continuamente agitados por Antunes para nos manter no trilho, ou melhor, nos múltiplos trilhos. Porque Antunes não conta uma história, ele cria um universo com o seu texto, para onde nos transporta, nos faz viver e sentir, e encarrega-nos de decidir o que retirar da experiência. A moral, a lição, o mote da leitura da obra não é saber o que aconteceu a A ou B, não são as consequências ou os efeitos das causas, dos conflitos infligidos. Não é o fim, porque é o processo, porque é do processo que se cria mundo, mundo-história, que nos envolve e nos faz sentir naquela realidade, como se por lá tivéssemos passado, como se tudo fossem memórias guardadas, em parte esquecidas ou apagadas pelo tempo, fiapos de visões de uma realidade histórica, que para muitos de nós só faz parte do imaginário.
A obra de ALA nunca fala da Inquisição, e no entanto o título é uma alusão direta à mesma.
Mas não é só de forma que vive este livro de Antunes, é do muito que tem para dizer e do modo como indicia, desde o título aos personagens e seus adjetivos, o assunto que tem para revelar. Antunes parece com este livro querer dar uma aula a tantos portugueses que insistem em ver em Salazar e no seu tempo como o melhor de Portugal, como apesar da falta de liberdade, éramos tão mais felizes, e acima de tudo tínhamos um Estado rico. Antunes leva-nos pela mão até ao marco temporal do Estado Novo português, assistimos ao antes, depois e sua queda, vemos personagens do antes a viverem no depois, vemos as diferentes classes caricaturadas que formaram e ainda formam um povo. O ditador passa ao largo e ALA dá-o a sentir como se estivesse distante e ao mesmo tempo sempre presente. Se o título da obra quer ligar Salazar à Inquisição, não sou eu quem questionará tal, e não podendo dizer melhor sobre a comparação, deixo um parágrafo de um artigo escrito para uma revista brasileira de Estudos em Literatura, por Melo (2008):
“Lobo Antunes toca na ferida e desmascara toda a mediocridade moral da sociedade portuguesa contemporânea ao relatar que, mesmo com toda a repressão e autoritarismo de uma ditadura que cerceou toda a liberdade civil e intelectual da nação, o submisso povo lusitano aceitou ou, como vimos, idolatrou o regime salazarista, personificado em Francisco. Sobre esta passividade de aceitação de uma autoritária administração, podemos traçar outro paralelo com a Inquisição, quando Saraiva argumenta que: ‘A actividade inquisitorial pôde exercer-se sem fortes reacções internas, porque não existia uma classe média com independência económica e mental, e também esta situação lhe é anterior.’, (Saraiva, 1993:132)” (Melo, 2008).Melo, José Luciano, (2008), Lobo Antunes e os manuais dos inquisidores: Uma leitura comparativa entre a Inquisição e o salazarismo, Revista Crioula
Nota: Francisco, é um dos principais protagonistas, no papel de poderoso ministro de Salazar
Saraiva, José Hermano (1993), História de Portugal. Lisboa: Alfa
setembro 30, 2018
Mais um Dia de Vida
É uma ótima leitura para quem como eu conhece pouco sobre a guerra em Angola, porque funciona como espécie de relato documental do período que mediou entre a saída dos portugueses de Angola e o início da República de Angola (1974-1975). Não é um livro de digestão fácil, coloca o dedo sobre muitas feridas, com culpas de todos os quadrantes.
Aquilo que talvez mais me impressionou, ou não, foi o facto de um país tão distante e num tempo ainda tão pouco global, estar a mercê de tantos interesses internacionais e ideológicos, tudo apenas e só porque sob o seu solo existia ouro negro. É muito triste verificar que uma das regiões mais ricas do planeta não se consegue erguer, não apenas por falta de edificação de quem lá vive, mas também porque a quem está do lado de fora isso é o que menos interessa.
Para nós, portugueses, o livro tem particular interesse, porque escrito por um jornalista polaco sem interesses diretos no território, oferecendo-nos uma leitura dos impactos da nossa presença no país, e que nos obriga a refletir sobre aquilo que fomos e somos enquanto nação. Deixo algumas linhas:
Aquilo que talvez mais me impressionou, ou não, foi o facto de um país tão distante e num tempo ainda tão pouco global, estar a mercê de tantos interesses internacionais e ideológicos, tudo apenas e só porque sob o seu solo existia ouro negro. É muito triste verificar que uma das regiões mais ricas do planeta não se consegue erguer, não apenas por falta de edificação de quem lá vive, mas também porque a quem está do lado de fora isso é o que menos interessa.
"E aí vi montanhas impressionantes de caixotes, empilhados até alturas perigosas, sem qualquer sinal de movimento, abandonados, como se não pertencessem a ninguém." p.37
Para nós, portugueses, o livro tem particular interesse, porque escrito por um jornalista polaco sem interesses diretos no território, oferecendo-nos uma leitura dos impactos da nossa presença no país, e que nos obriga a refletir sobre aquilo que fomos e somos enquanto nação. Deixo algumas linhas:
“Este país está em guerra há quinhentos anos, desde que os portugueses chegaram. Eles precisavam de escravos para o tráfico, para exportar para o Brasil, para as Caraíbas e para o outro lado do mar em geral. De toda a África, Angola foi a região que maior número de escravos forneceu para esses países. Por isso é que chamam ao nosso país a Mãe Negra do Novo Mundo. Metade dos camponeses brasileiros, cubanos e dominicanos descende de angolanos. Esta terra foi em tempos um país populoso, estabelecido, e depois esvaziou-se, como se tivesse havido uma praga. Angola continua deserta até aos dias de hoje. Centenas de quilómetros e nem uma única pessoa, como no Sara. As guerras de escravos continuaram durante trezentos anos ou mais. Era um bom negócio para os nossos chefes. As tribos mais fortes atacavam as mais fracas, faziam prisioneiros e punham-nos à venda. Por vezes, tinham de o fazer, para pagar os impostos aos portugueses. O preço de um escravo era determinado de acordo com a qualidade dos seus dentes. Eles arrancavam os dentes ou limavam-nos com pedras, para terem um valor de mercado inferior. Tanto sofrimento para serem livres. De geração em geração, as tribos viviam no receio umas das outras, viviam no ódio. As campanhas militares realizavam-se na época seca, porque as movimentações eram mais fáceis. Quando as chuvas terminavam, toda gente sabia que começariam os tempos da desgraça e de caça às pessoas. Na época das chuvas, quando o país se afogava em água e lamas, as hostilidades cessavam. Mas os chefes ocupavam o tempo a magicar novas campanhas e a arrebanhar novas forças. Tudo isto é recordado por toda a gente até aos dias de hoje, porque, no nosso modo de pensar, o passado ocupa mais espaço do que o futuro.", Kapuściński, “Mais um Dia de Vida - Angola 1975”, Tinta-da-China, Lisboa, p.54
Fotografia da escultura "Nkyinkim" de Kwame Akoto-Bamfo, instalada no The National Memorial for Peace and Justice, inaugurado em Abril 2018 em Montgomery, Alabama, EUA.
setembro 29, 2018
A psicologia por detrás de Fortnite
Celia Hodent é doutorada em psicologia e foi directora de UX (User Experience) da Epic Games (produtora de "Fortnite") entre 2013 e 2017. Autora de um dos livros mais relevantes sobre o uso das metodologias de UX em jogos, "The Gamer's Brain: How Neuroscience and UX Can Impact Video Game Design" (2017), e editora do blog Brains, UX & Games. Com esta breve introdução fica claro que Hodent sabe do que fala e que neste vídeo, "10 things you might not have noticed in Fortnite" para a Ars Technica, o que ela tem para nos contar sobre o UX e o Design de Experiência é algo que foi largamente estudado e testado, como o sucesso do próprio jogo atesta.
"Fortnite" transformou-se da noite para o dia num dos maiores sucessos internacionais no mundo dos videojogos, para o que o "free-to-play" e o multi/cross plataforma contribuíram bastante, assim como a inovação de juntar a um género já de mescla, o battle royal (survival e exploração com batalhas multiplayer online), o Sandbox Criativo (que permite criar e construir dentro do próprio jogo contribuindo para atrair os jogadores de "Minecraft"). Por outro lado, o design do jogo funciona de forma tão intuitiva e envolvente que o jogador se sente em casa jogando, cria-se uma sensação de conforto e prazer tão intensa que o jogador acaba por, quando fora do jogo, recordar o bom que é estar ali e desejar lá voltar. Hodent explica neste vídeo a psicologia por detrás de vários itens do design, assentes em muitos dos princípios daquilo que define o trabalho da UX, desde o HUD, feedback e acessibilidade à performance de atividades específicas no jogo assim como aos modos de scaffolding (progresso e aprendizagem das regras do jogo). O desenho emocional é chave, mas como podemos ver nesta pequena desconstrução de Hodent, muito do que contribui para o design é feito ao nível ainda da mera usabilidade, ou seja, do peso do esforço cognitivo exigido ao jogador.
"10 things you might not have noticed in Fortnite" (2018) com Celia Hodent
setembro 27, 2018
As 21 Lições de Harari
Adoro Harari. Adorei os dois primeiros livros — "Sapiens" (2011) e "Homo Deus" (2015). "21 Lessons for the 21st Century" (2018) é um livro diferente dos anteriores, nota-se que foi escrito de forma muito mais rápida, menos amadurecida, mais como resposta ou encomenda, o que ele próprio confirma quando diz que queria responder às perguntas que lhe foram fazendo nos últimos dois anos enquanto foi apresentando os anteriores livros pelo mundo fora. Na verdade este livro nada oferece de novo, lê-se como uma repetição dos argumentos já anteriormente esgrimidos, aos quais se adicionaram uns pózinhos de atualidade, e ainda uma ligeira variação do discurso, transformando o anterior tom especulativo num tom mais assertivo.
Quanto às respostas que Harari tem para as perguntas das pessoas, não posso dizer que tenha pena de não as dar, já que sempre considerei que aquilo que as pessoas perguntam nestes domínios não é para ser respondido, mas antes para servir de objeto de dialéticas. Aliás, é no mínimo estranho que Harari insista tanto em dizer que não sabemos como serão as nossas vidas em 2050, menos ainda em 2100, e depois aceite tentar dar respostas ao "Sentido da Vida". Se quisesse resumir as 21 respostas dadas por Harari, diria que se sintetizam em 3 grandes chavões:
"Aprender, Desaprender e Reaprender" (Teremos de aprender ao longo da vida)
"Mindfullness" (O caminho para enfrentar a velocidade da vida está na meditação)
A filosofia de Monti Python segundo Harari
Pois é, mesmo para alguém tão brilhante como Harari, dar respostas novas ou diferentes é difícil. Aliás, é um pouco como ele diz no início do livro, os filósofos andam há milhares de anos a tentar responder ao sentido da vida e até agora nada. Assim é também com Harari, ainda que tenha tentado responder baseado nos ditos dos Monti Python, mas era difícil ir além fosse por que via fosse, o que não tem mal algum, o que conta é a discussão. Neste sentido, recomendo vivamente a leitura a quem ainda não leu os anteriores dois livros, os restantes podem passar.
Deixo alguns excertos que achei interessantes:
“On 7 December 2017 a critical milestone was reached, not when a computer defeated a human at chess – that’s old news – but when Google’s AlphaZero program defeated the Stockfish 8 program. Stockfish 8 was the world’s computer chess champion for 2016. It had access to centuries of accumulated human experience in chess, as well as to decades of computer experience. It was able to calculate 70 million chess positions per second. In contrast, AlphaZero performed only 80,000 such calculations per second, and its human creators never taught it any chess strategies – not even standard openings. Rather, AlphaZero used the latest machine-learning principles to self-learn chess by playing against itself. Nevertheless, out of a hundred games the novice AlphaZero played against Stockfish, AlphaZero won twenty-eight and tied seventy-two. It didn’t lose even once. Since AlphaZero learned nothing from any human, many of its winning moves and strategies seemed unconventional to human eyes. They may well be considered creative, if not downright genius.
Can you guess how long it took AlphaZero to learn chess from scratch, prepare for the match against Stockfish, and develop its genius instincts? Four hours. “That’s not a typo. For centuries, chess was considered one of the crowning glories of human intelligence. AlphaZero went from utter ignorance to creative mastery in four hours, without the help of any human guide.”
“Human power depends on mass cooperation, mass cooperation depends on manufacturing mass identities – and all mass identities are based on fictional stories, not on scientific facts or even on economic necessities.”
“I am aware that many people might be upset by my equating religion with fake news, but that’s exactly the point. When a thousand people believe some made-up story for one month – that’s fake news. When a billion people believe it for a thousand years – that’s a religion, and we are admonished not to call it ‘fake news’ in order not to hurt the feelings of the faithful (or incur their wrath).
(..)
Again, some people may be offended by my comparison of the Bible with Harry Potter. If you are a scientifically minded Christian you might explain away all the errors, myths and contradictions in the Bible by arguing that the holy book was never meant to be read as a factual account, but rather as a metaphorical story containing deep wisdom. But isn’t that true of Harry Potter too?
(..)
On 29 August 1255 the body of a nine-year-old English boy called Hugh was found in a well in the town of Lincoln. Even in the absence of Facebook and Twitter, rumour quickly spread that Hugh was ritually murdered by the local Jews. The story only grew with retelling, and one of the most renowned English chroniclers of the day – Matthew Paris – provided a detailed and gory description of how prominent Jews from throughout England gathered in Lincoln to fatten up, torture and finally crucify the abducted child. Nineteen Jews were tried and executed for the alleged murder. Similar blood libels became popular in other English towns, leading to a series of pogroms in which whole communities were massacred. Eventually, in 1290 the entire Jewish population of England was expelled.
The story didn’t end there. A century after the expulsion of the Jews from England, Geoffrey Chaucer – the Father of English literature – included a blood libel modelled on the story of Hugh of Lincoln in the Canterbury Tales (‘The Prioress’s Tale’). The tale culminates with the hanging of the Jews. Similar blood libels subsequently became a staple part of every anti-Semitic movement from late medieval Spain to modern Russia. A distant echo can even be heard in the 2016 ‘fake news’ story that Hillary Clinton headed a child-trafficking network that held children as sex slaves in the basement of a popular pizzeria. Enough Americans believed that story to hurt Clinton’s election campaign, and one person even came armed with a gun to the pizzeria and demanded to see the basement (it turned out that the pizzeria had no basement).
As for Hugh of Lincoln himself, nobody knows how he really found his death, but he was buried in Lincoln Cathedral and was venerated as a saint. He was reputed to perform various miracles, and his tomb continued to draw pilgrims even centuries after the expulsion of all Jews from England. Only in 1955 – ten years after the Holocaust – did Lincoln Cathedral repudiate the blood libel, placing a plaque near Hugh’s tomb which reads:
'Trumped-up stories of ‘ritual murders’ of Christian boys by Jewish communities were common throughout Europe during the Middle Ages and even much later. These fictions cost many innocent Jews their lives. Lincoln had its own legend and the alleged victim was buried in the Cathedral in the year 1255. Such stories do not redound to the credit of Christendom.'
Well, some fake news lasts only 700 years.”
setembro 19, 2018
Aquilo Que Eu Amava (2002)
O meu primeiro livro de Siri Hustvedt fez-me ganhar respeito e admiração pela escritora. Não que a história seja magnífica nem que a escrita seja bela. O que me marca em Hustvedt é a sua capacidade de descamar, de modo subtil, as fachadas sociais de cada personagem até chegar ao âmago, os seus núcleos psicológicos da vontade e do sentir. A isto junta-se uma capacidade descritiva em modo narrativo, que nos vai apresentando torrentes de factos, à medida que vai relatando. E por isso se por vezes tendo a pensar em Philip Roth, pelo lugar de NY e a posição dos personagens, rapidamente descolo não só porque Roth tem uma escrita muito mais poética, mas porque Hustvedt é bastante mais elaborada e densa. Dito de outra forma, é mais fácil e prazeroso ler Roth, mas é bastante mais rico absorver as nuances dos mundos e personagens de Hustvedt.
O livro está dividido em três partes, e existe uma certa ideia, que vi nalgumas resenhas, de que o livro começa verdadeiramente com o início da segunda parte. Mas se a tragédia se inicia nesse ponto, nem por isso Hustvedt usa esse clímax negativo para transformar o livro num melodrama, o que poderia facilmente acontecer, e com certeza lhe teria granjeado muito mais público. Existe muita contenção, muito controlo e gestão da história no sentido de garantir um equilíbrio no leitor entre racionalidade e emocionalidade. Hustvedt não está interessada em fazer-nos sofrer ou sentir felizes, está bastante mais interessada em dar-nos a compreender o sentir de um conjunto de pessoas que passaram por momentos complexos, e como esses momentos afetam e alteram as suas vidas. Como e apesar de tragédias que marcam, as vidas prosseguem continuando a ser colocadas à prova, independentemente de tudo o que já viveram.
O contexto não será o mais universal, temos duas famílias, cada uma com um filho, cada uma com as suas separações e acoplamentos de madrastas e padrastos, mas todos estes vivendo numa cidade de elite e trabalhando nas esferas artísticas e culturais — das artes, crítica, e ambientes universitários. Os pais e mães encontram-se e atravessam um longo período de crescimento e afirmação social até que os filhos, ao começar a erguer-se e de formas completamente distintas, abrem rasgos nos vários adultos à volta, que por sua vez produzem aproximações e separações sobre as relações existentes e que Hustvedt muito habilmente vai explorando.
A estrutura segue uma lógica próxima dos livros de memórias (“memoir”) com o personagem principal, já no fim da sua vida, a recitar as suas memórias em primeira-pessoa, oferecendo-nos os momentos e simultaneamente a análise crítica em perspetiva dos mesmos. “Aquilo que eu Amava” é assim uma viagem no tempo da consciência, em que a realidade já se consolidou e nos é oferecida uma janela para ver do melhor ponto de vista possível, no que ao escrutinar do pensar e sentir se refere. Ao optar por este caminho, Hustvedt abriu para si uma via mais fácil de apresentação das introspeções do principal interveniente nos eventos relatados, explicando também a riqueza do relato psicológico e ao mesmo tempo a densidade analítica apresentadas pela obra.
Tive apenas um pequeno apontamento que me desgostou, o modo como se constrói o suspense à volta de Mark, nomeadamente o arrastar da revelação do seu carácter, camaleónico, ainda que tenha de aceitar que o carácter escolhido para o mesmo era tudo menos fácil de definir ou fechar em meia-dúzia de páginas. Este arrastamento é atenuado com algum apimentamento de caráter criminal da louca cena artística de Nova Iorque que acaba por contribuir para o incremento do suspense, mas que pouco contribui para a essência da obra, acabando por, tudo junto, me desconectar em vários momentos dos personagens e relações centrais do livro.
O livro está dividido em três partes, e existe uma certa ideia, que vi nalgumas resenhas, de que o livro começa verdadeiramente com o início da segunda parte. Mas se a tragédia se inicia nesse ponto, nem por isso Hustvedt usa esse clímax negativo para transformar o livro num melodrama, o que poderia facilmente acontecer, e com certeza lhe teria granjeado muito mais público. Existe muita contenção, muito controlo e gestão da história no sentido de garantir um equilíbrio no leitor entre racionalidade e emocionalidade. Hustvedt não está interessada em fazer-nos sofrer ou sentir felizes, está bastante mais interessada em dar-nos a compreender o sentir de um conjunto de pessoas que passaram por momentos complexos, e como esses momentos afetam e alteram as suas vidas. Como e apesar de tragédias que marcam, as vidas prosseguem continuando a ser colocadas à prova, independentemente de tudo o que já viveram.
O contexto não será o mais universal, temos duas famílias, cada uma com um filho, cada uma com as suas separações e acoplamentos de madrastas e padrastos, mas todos estes vivendo numa cidade de elite e trabalhando nas esferas artísticas e culturais — das artes, crítica, e ambientes universitários. Os pais e mães encontram-se e atravessam um longo período de crescimento e afirmação social até que os filhos, ao começar a erguer-se e de formas completamente distintas, abrem rasgos nos vários adultos à volta, que por sua vez produzem aproximações e separações sobre as relações existentes e que Hustvedt muito habilmente vai explorando.
A estrutura segue uma lógica próxima dos livros de memórias (“memoir”) com o personagem principal, já no fim da sua vida, a recitar as suas memórias em primeira-pessoa, oferecendo-nos os momentos e simultaneamente a análise crítica em perspetiva dos mesmos. “Aquilo que eu Amava” é assim uma viagem no tempo da consciência, em que a realidade já se consolidou e nos é oferecida uma janela para ver do melhor ponto de vista possível, no que ao escrutinar do pensar e sentir se refere. Ao optar por este caminho, Hustvedt abriu para si uma via mais fácil de apresentação das introspeções do principal interveniente nos eventos relatados, explicando também a riqueza do relato psicológico e ao mesmo tempo a densidade analítica apresentadas pela obra.
Tive apenas um pequeno apontamento que me desgostou, o modo como se constrói o suspense à volta de Mark, nomeadamente o arrastar da revelação do seu carácter, camaleónico, ainda que tenha de aceitar que o carácter escolhido para o mesmo era tudo menos fácil de definir ou fechar em meia-dúzia de páginas. Este arrastamento é atenuado com algum apimentamento de caráter criminal da louca cena artística de Nova Iorque que acaba por contribuir para o incremento do suspense, mas que pouco contribui para a essência da obra, acabando por, tudo junto, me desconectar em vários momentos dos personagens e relações centrais do livro.
setembro 15, 2018
Discursos e realidades no caso do aumento da Extrema-Direita
Dizem-me que o aumento da extrema-direita nos anos recentes — do Brexit a Trump, passando pela França, Itália, Hungria, Holanda, Suécia — tem que ver com o modo como esta conseguiu tomar contar dos media, e criar um discurso beligerante sem oposição. Que nos tornámos demasiado passivos e passámos a aceitar tudo como Liberdade de Expressão. E que o caminho é abandonar a civilidade e reagir na mesma moeda, atacar, se não quisermos voltar a sofrer as atrocidades que a Europa viveu há 70 anos. Mas eu pergunto, porque é que vivemos aquelas atrocidades há 70 anos? Porque é que aquele líder chegou ao poder? A mesma pergunta devemos fazer agora, porque é que Trump, Orbán e Salvini chegam ao poder?
A respostas estão na nossa frente, crises económicas, instabilidade financeira que produz insegurança e induz medo intenso e fobias. E quando temos uma população acossada, com receio do amanhã para os seus filhos — veja-se as cidades inteiras de rulotes nos EUA, e os milhares de pessoas que vivem em carros, veja-se as reportagens da Grécia e passeie-se pela Europa profunda — qualquer arauto que prometa um jardim seguro, mesmo com pouco, será sempre visto como estando a oferecer mais do que os outros que oferecem nada. Aqui a extrema-direita vence facilmente, não precisa de dizer nada de especial, basta a sua ideologia — o discurso baseado no melhor para cada um e não no melhor para todos — que apela ao que sentem verdadeiramente estas pessoas, já que no mundo em que vivem ninguém quer saber delas, por isso estão também prontas a não querer saber de mais ninguém.
No entanto, quando se discute o problema da extrema-direita, vejo falarem apenas de falta de educação, de brutidão, de emigração e de refugiados, de individualismo, de egoísmo, de machismo e até de alterações climáticas. Dizem-me que o problema da subida da extrema-direita está na normalização destes discursos. Seguindo por aqui, bastaria mudar o discurso nos media, calar os arautos da extrema-direita, e tudo voltaria a ficar bem!!!
Só não vejo propostas para lidar com o forte desemprego que se sente, que vem baixando porque os estados têm criado programas e mais programas para manter as pessoas ocupadas. Que os empregos que vão surgindo, pagam metade daquilo que as pessoas recebiam antes. Que a segurança, ou manutenção no tempo, desses programas estatais e desses empregos recém-criados é absolutamente nula, e que até lhe dão um nome, "flexigurança". Que muitos pais e mães de famílias arranjaram segundos e terceiros empregos para continuar a manter o barco a flutuar. Que durante a crise os mais abastados continuaram a aumentar os seus rendimentos, enquanto famílias inteiras perdiam tudo. Que aqueles que provocaram a crise não só não foram castigados, como continuam a agir exatamente da mesma forma como antes. Que nada se alterou, e que todos os dias somos brindados com notícias da possibilidade de crise idêntica no futuro próximo.
Pedimos às pessoas para que acreditem, para que façam um esforço pelo planeta, salvem o clima, a única proteção real de todos, enquanto 1% do planeta arrecada tanto como os restantes 99%. Pedem àqueles que pouco têm e nada têm, que pensem nos que tudo têm e tudo querem. Pedem-lhes que mantenham o ecossistema vivo, para que nada mude, e tudo se mantenha como está.
Não, isto não é um problema de ideologias de extrema-direita, nem de discursos. Isto é um problema de grandes desequilíbrios, de fortes injustiças, de receio perfeitamente justificado pelo amanhã. Sim, existe sempre quem está muito pior, e os emigrantes e refugiados que fogem de cenários de guerra, vivem incomparavelmente pior que um americano numa rulote. Mas não podemos pedir às pessoas que vivam com base em abstrações, porque elas não vivem no pensamento e nas imagens que lhes chegam pelos media, elas vivem com base na realidade em que estão inseridas, em que são todos os dias confrontadas com a comparação entre a sua indigência e a opulência de quem simplesmente os ignora.
Podemos discursar sobre os problemas maiores que podem advir, que podem cair numa guerra ou ficar sem planeta, mas estaremos a usar medo sobre medo, as mesmas armas que os senhores feudais e monarcas usaram tanto tempo para se manter acima dos demais. O problema é que esse medo sobre medo, abstração completa, só funcionava pela força, não porque realmente nele os súbditos acreditassem. Enquanto isso, vai-se perdendo por completo a ligação com estas pessoas que ficam à deriva até que outros com elas se conectem, mesmo que com propostas utópicas, mas que por momentos lhes apresentem caminhos de saída, confiança num qualquer futuro.
Atualização de links 2.10.2018:
Here’s the science behind the Brexit vote and Trump’s rise, 17.09.2018
Saving liberal democracy from the extremes, 25.09.2018
A respostas estão na nossa frente, crises económicas, instabilidade financeira que produz insegurança e induz medo intenso e fobias. E quando temos uma população acossada, com receio do amanhã para os seus filhos — veja-se as cidades inteiras de rulotes nos EUA, e os milhares de pessoas que vivem em carros, veja-se as reportagens da Grécia e passeie-se pela Europa profunda — qualquer arauto que prometa um jardim seguro, mesmo com pouco, será sempre visto como estando a oferecer mais do que os outros que oferecem nada. Aqui a extrema-direita vence facilmente, não precisa de dizer nada de especial, basta a sua ideologia — o discurso baseado no melhor para cada um e não no melhor para todos — que apela ao que sentem verdadeiramente estas pessoas, já que no mundo em que vivem ninguém quer saber delas, por isso estão também prontas a não querer saber de mais ninguém.
No entanto, quando se discute o problema da extrema-direita, vejo falarem apenas de falta de educação, de brutidão, de emigração e de refugiados, de individualismo, de egoísmo, de machismo e até de alterações climáticas. Dizem-me que o problema da subida da extrema-direita está na normalização destes discursos. Seguindo por aqui, bastaria mudar o discurso nos media, calar os arautos da extrema-direita, e tudo voltaria a ficar bem!!!
Só não vejo propostas para lidar com o forte desemprego que se sente, que vem baixando porque os estados têm criado programas e mais programas para manter as pessoas ocupadas. Que os empregos que vão surgindo, pagam metade daquilo que as pessoas recebiam antes. Que a segurança, ou manutenção no tempo, desses programas estatais e desses empregos recém-criados é absolutamente nula, e que até lhe dão um nome, "flexigurança". Que muitos pais e mães de famílias arranjaram segundos e terceiros empregos para continuar a manter o barco a flutuar. Que durante a crise os mais abastados continuaram a aumentar os seus rendimentos, enquanto famílias inteiras perdiam tudo. Que aqueles que provocaram a crise não só não foram castigados, como continuam a agir exatamente da mesma forma como antes. Que nada se alterou, e que todos os dias somos brindados com notícias da possibilidade de crise idêntica no futuro próximo.
Pedimos às pessoas para que acreditem, para que façam um esforço pelo planeta, salvem o clima, a única proteção real de todos, enquanto 1% do planeta arrecada tanto como os restantes 99%. Pedem àqueles que pouco têm e nada têm, que pensem nos que tudo têm e tudo querem. Pedem-lhes que mantenham o ecossistema vivo, para que nada mude, e tudo se mantenha como está.
Não, isto não é um problema de ideologias de extrema-direita, nem de discursos. Isto é um problema de grandes desequilíbrios, de fortes injustiças, de receio perfeitamente justificado pelo amanhã. Sim, existe sempre quem está muito pior, e os emigrantes e refugiados que fogem de cenários de guerra, vivem incomparavelmente pior que um americano numa rulote. Mas não podemos pedir às pessoas que vivam com base em abstrações, porque elas não vivem no pensamento e nas imagens que lhes chegam pelos media, elas vivem com base na realidade em que estão inseridas, em que são todos os dias confrontadas com a comparação entre a sua indigência e a opulência de quem simplesmente os ignora.
Podemos discursar sobre os problemas maiores que podem advir, que podem cair numa guerra ou ficar sem planeta, mas estaremos a usar medo sobre medo, as mesmas armas que os senhores feudais e monarcas usaram tanto tempo para se manter acima dos demais. O problema é que esse medo sobre medo, abstração completa, só funcionava pela força, não porque realmente nele os súbditos acreditassem. Enquanto isso, vai-se perdendo por completo a ligação com estas pessoas que ficam à deriva até que outros com elas se conectem, mesmo que com propostas utópicas, mas que por momentos lhes apresentem caminhos de saída, confiança num qualquer futuro.
Atualização de links 2.10.2018:
Here’s the science behind the Brexit vote and Trump’s rise, 17.09.2018
Saving liberal democracy from the extremes, 25.09.2018
setembro 14, 2018
"Celeste", design de joalharia
“Celeste” é puro flow. Todo o design contribui de forma efetiva para a geração de uma experiência extremamente coesa, em que a visceralidade imprimida pela jogabilidade caminha a par com o significado da narrativa. É um jogo de plataformas que não inova na fórmula, mas que por elevar os patamares de qualidade da jogabilidade e da história consegue criar algo novo. Uma pequena jóia.
“Celeste” apresenta a história de uma personagem frágil, Madeline, que sofrendo de depressão resolve iniciar a subida da montanha Celeste. Pelo caminho encontramos outros personagens que vão servindo para nos dar a conhecer mais sobre o sentir de Madeline, até que encontramos o duplo interior de Madeline com quem ela terá de se confrontar no resto da viagem, para se poder encontrar a si mesma. É uma história existencial, que apela a um público mais maduro, que se serve na perfeição da metáfora de obstáculo, a montanha, para significar a história e alimentar o design de jogo. Em termos narrativos existe aqui alguma proximidade com "Journey" (2012), e no entanto o mais interessante é verificar como a jogabilidade é trabalhada em polos opostos. "Journey" opera o flow pela quase inibição dos obstáculos, enquanto "Celeste" o desenvolve pela elevação desses obstáculos quase ao limite da impossibilidade. No entanto, o modo como Celeste foi concebido não afasta a experiência em termos de sentimento interior de "Journey". Falarei sobre o design à frente, para se perceber como isso foi conseguido.
Se a história é apelativa, num sentido de profundidade de significado, e a jogabilidade brilha pelo modo como exige simultaneamente destreza e inteligência, “Celeste” acaba por se elevar acima de ambos, não apenas porque a narrativa se funde com as ações de jogo, mas porque todo o jogo se torna um artefacto uno gerador de uma experiência plena. Não é a história que nos agarra, nem é a jogabilidade que nos mantém, é a sua união que cria um objeto que não existe sem ambas. Jogamos como Madeline, assumimos a sua fragilidade, e insistimos no ultrapassar de cada novo obstáculo, sofregamente, ansiosamente.
Para se perceber melhor esta descrição e compreender como se chega a este nível de criação artística, aconselho vivamente o visionamento da comunicação de Matt Thorson, o director do jogo, na GDC 2017. Thornson apresenta os vários atributos do jogo, nomeadamente o design de “multiple approaches” que garante maior liberdade na resolução dos puzzles, assim como explica como ao longo do jogo vai “ensinando silenciosamente” a jogar por via do design. Mas o que me fica da comunicação é: a unificação entre história e jogo; a experimentação e o perfecionismo; e o playtesting.
Thornson discute o modo como cada nível (a que se refere sempre como parte da história, para Thornson cada nível comporta história em si) se vai desenhando em modo experimental. Não existe um planeamento prévio, existe um objeto narrativo, e é para ele que se desenha. Isto comporta problemas de produção, já que pode acabar com menos níveis do que precisa, ou mais. Thornson dá o exemplo de uma parte do jogo em que tiveram de jogar fora 20 níveis por não se encaixarem na componente narrativa. Porque como diz a determinada altura, “estamos sempre a tentar descarregar o máximo possível da narrativa no design dos níveis”. Ou seja, o todo tem de fazer sentido, Thornson não quer apenas uma boa jogabilidade, ela tem de estar conectada com aquilo que se está a tentar dizer em cada nível, dentro de cada área, e por sua vez na história completa. A explicação do segundo nível dada por Thornson é brilhante (o sonho de voar por entre as estrelas que dá lugar ao pesadelo de ser perseguido pelo duplo), ajuda-nos a significar algo que apenas intuímos durante o jogo. Existe um claro objetivo de criar um artefacto que faça sentido, que seja coeso, e não se tem receio de jogar fora dias inteiros de trabalho para que o artefacto funcione. Isto só é possível num jogo indie, num jogo de autor, em que se procura dar vida à visão desse autor e não justificar os meios investidos (Nesta comunicação, um ano antes do jogo sair os Lados B ainda não tinham sido definidos, mas aqui percebemos indiretamente como acabariam por surgir).
Não menos importante, embora quase arriscasse, dada a minha preocupação com o UX, a dizer que foi o mais importante, temos o playtesting. É fascinante ouvir Thornson falar das sessões de teste do jogo, como o faz de forma totalmente aberta e descomplexada, como assume a evolução e progressão do design na relação com a comunidade que o foi testando. Fica-me a sua descrição do que considera ser o melhor modo de testar o jogo: “O meu modo favorito de playtest é ter as pessoas no sofá a jogar juntas, e que podem até estar a trocar os comandos, e vão conversando umas com as outras sobre o jogo, e aí conseguimos perceber melhor os seus modelos mentais, ver as rodas dentadas moverem-se nas suas cabeças”.
Por fim, “Celeste” apresenta um design brilhante, na união de jogo e narrativa, mas não podia ser o artefacto que é sem a banda sonora de Lena Reine, nem a arte visual de Amora Bettany e Pedro Medeiros. “Celeste” venceu o prémio de áudio no IGF 2018, por outro lado, o seu imaginário visual está de tal modo conseguido que o simples vislumbre de uma imagem ou excerto do jogo, consegue automaticamente ligar-nos ao jogo, tal a força da identidade visual criada.
"Celeste" (2018) de Matt Thornson
“Celeste” apresenta a história de uma personagem frágil, Madeline, que sofrendo de depressão resolve iniciar a subida da montanha Celeste. Pelo caminho encontramos outros personagens que vão servindo para nos dar a conhecer mais sobre o sentir de Madeline, até que encontramos o duplo interior de Madeline com quem ela terá de se confrontar no resto da viagem, para se poder encontrar a si mesma. É uma história existencial, que apela a um público mais maduro, que se serve na perfeição da metáfora de obstáculo, a montanha, para significar a história e alimentar o design de jogo. Em termos narrativos existe aqui alguma proximidade com "Journey" (2012), e no entanto o mais interessante é verificar como a jogabilidade é trabalhada em polos opostos. "Journey" opera o flow pela quase inibição dos obstáculos, enquanto "Celeste" o desenvolve pela elevação desses obstáculos quase ao limite da impossibilidade. No entanto, o modo como Celeste foi concebido não afasta a experiência em termos de sentimento interior de "Journey". Falarei sobre o design à frente, para se perceber como isso foi conseguido.
Arte visual é da autoria de Amora Bettany e Pedro Medeiros
Se a história é apelativa, num sentido de profundidade de significado, e a jogabilidade brilha pelo modo como exige simultaneamente destreza e inteligência, “Celeste” acaba por se elevar acima de ambos, não apenas porque a narrativa se funde com as ações de jogo, mas porque todo o jogo se torna um artefacto uno gerador de uma experiência plena. Não é a história que nos agarra, nem é a jogabilidade que nos mantém, é a sua união que cria um objeto que não existe sem ambas. Jogamos como Madeline, assumimos a sua fragilidade, e insistimos no ultrapassar de cada novo obstáculo, sofregamente, ansiosamente.
Para se perceber melhor esta descrição e compreender como se chega a este nível de criação artística, aconselho vivamente o visionamento da comunicação de Matt Thorson, o director do jogo, na GDC 2017. Thornson apresenta os vários atributos do jogo, nomeadamente o design de “multiple approaches” que garante maior liberdade na resolução dos puzzles, assim como explica como ao longo do jogo vai “ensinando silenciosamente” a jogar por via do design. Mas o que me fica da comunicação é: a unificação entre história e jogo; a experimentação e o perfecionismo; e o playtesting.
O design segue uma abordagem dinâmica que permite múltiplas formas de resolver um mesmo puzzle. Esta abordagem acaba sendo fundamental no desenho do flow, já que oferece autonomia ao jogador, ou seja, oferece a essência daquilo que estimula a ação, que é a liberdade de agir, de escolher. [GDC 2017]
O "ensino silencioso" de que como se joga é extremamente bem conseguido, estando ao nível do melhor da Nintendo com Zelda ou Mário.
Thornson discute o modo como cada nível (a que se refere sempre como parte da história, para Thornson cada nível comporta história em si) se vai desenhando em modo experimental. Não existe um planeamento prévio, existe um objeto narrativo, e é para ele que se desenha. Isto comporta problemas de produção, já que pode acabar com menos níveis do que precisa, ou mais. Thornson dá o exemplo de uma parte do jogo em que tiveram de jogar fora 20 níveis por não se encaixarem na componente narrativa. Porque como diz a determinada altura, “estamos sempre a tentar descarregar o máximo possível da narrativa no design dos níveis”. Ou seja, o todo tem de fazer sentido, Thornson não quer apenas uma boa jogabilidade, ela tem de estar conectada com aquilo que se está a tentar dizer em cada nível, dentro de cada área, e por sua vez na história completa. A explicação do segundo nível dada por Thornson é brilhante (o sonho de voar por entre as estrelas que dá lugar ao pesadelo de ser perseguido pelo duplo), ajuda-nos a significar algo que apenas intuímos durante o jogo. Existe um claro objetivo de criar um artefacto que faça sentido, que seja coeso, e não se tem receio de jogar fora dias inteiros de trabalho para que o artefacto funcione. Isto só é possível num jogo indie, num jogo de autor, em que se procura dar vida à visão desse autor e não justificar os meios investidos (Nesta comunicação, um ano antes do jogo sair os Lados B ainda não tinham sido definidos, mas aqui percebemos indiretamente como acabariam por surgir).
Cada área do jogo é todo um quadro narrativo que Thornson procura trabalhar como uma melodia, com as suas variações de ritmo, assim como príncipio, meio e fim.
Podemos ver as alterações introduzidas no level design pelo playtesting continuado e presencial.
Não menos importante, embora quase arriscasse, dada a minha preocupação com o UX, a dizer que foi o mais importante, temos o playtesting. É fascinante ouvir Thornson falar das sessões de teste do jogo, como o faz de forma totalmente aberta e descomplexada, como assume a evolução e progressão do design na relação com a comunidade que o foi testando. Fica-me a sua descrição do que considera ser o melhor modo de testar o jogo: “O meu modo favorito de playtest é ter as pessoas no sofá a jogar juntas, e que podem até estar a trocar os comandos, e vão conversando umas com as outras sobre o jogo, e aí conseguimos perceber melhor os seus modelos mentais, ver as rodas dentadas moverem-se nas suas cabeças”.
Por fim, “Celeste” apresenta um design brilhante, na união de jogo e narrativa, mas não podia ser o artefacto que é sem a banda sonora de Lena Reine, nem a arte visual de Amora Bettany e Pedro Medeiros. “Celeste” venceu o prémio de áudio no IGF 2018, por outro lado, o seu imaginário visual está de tal modo conseguido que o simples vislumbre de uma imagem ou excerto do jogo, consegue automaticamente ligar-nos ao jogo, tal a força da identidade visual criada.
setembro 10, 2018
Facebook é a nova Televisão e modela comportamentos na Academia
Em 1992 os The Disposable Heroes of Hiphoprisy lançavam um álbum de rap intitulado "Hypocrisy Is the Greatest Luxury" no qual atacavam as hipocrisias da sociedade desse tempo. A banda punha o dedo na arte, na política, no emprego, no consumismo, no racismo, no sistema financeiro e na recessão, no bullying e no suicídio. A música homónima do álbum abria com os versos abaixo, que poderiam ter sido facilmente escritos em 2018, mas foi a faixa 3 que ficou desse álbum e porque deles me lembrei, e que se intitulava: "Television, the Drug of the Nation".
"Life these days can be so complex
We don't make the time to stop and reflect" (1992)
Repare-se que em 1992 a complexidade gerada pela sociedade de informação ainda vinha longe. A internet só existia nos departamentos de informática das Universidades, era a Televisão que regulava as nossas vidas, dizia-nos o que vestir, o que ouvir, ver, ou ler. Como se dizia nesta faixa 3:
“One nation
Under God
Has turned into
One nation under the influence
Of one drug [television]” (ouvir)
Vem tudo isto a propósito de um longo texto publicado no The Quillette, na semana passada por Theodore P. Hill, um matemático formado por Stanford e Berkeley e professor até se reformar no Georgia Tech, em que dava conta de uma saga com mais de ano e meio para a publicação de um artigo científico. Essa saga envolveu um artigo que foi Aceite para Publicação, depois de todo o processo de revisão por pares, na Mathematical Intelligencer, revista científica respeitada e publicada pela Springer desde 1979, mas que à última hora a editora-chefe da revista, Marjorie Senechal, decidiu retirar e não aceitar para publicação. Depois disso, os colegas de Hill retiraram-se de co-autores do artigo, e ele por ser reformado e não ter nada a perder partilhou o artigo na rede. Pouco depois o editor do New York Journal of Mathematics, uma revista aberta sem pressões editoriais nem de indexação, convidou Hill para submeter uma versão revista do artigo. Hill submeteu, o artigo foi revisto pelos pares, aceite e publicado. Mas não terminou a saga, porque três dias depois de publicado, o artigo simplesmente desaparecia da página da revista, e passados mais alguns dias, surgia outro no seu lugar, como se nunca tivesse existido tal artigo. Leiam o texto no Quillette para compreender toda a extensão e esferas envolvidas no silenciamento da ciência. Estamos a falar de forças subterrâneas com motivação muito forte para fazer dobrar tanta gente, nomeadamente gente que foi treinada para seguir a máxima da Liberdade de Pensamento Científico. Impedir a publicação tinha sido forte, mas retirar um artigo já publicado, e fazer de conta que nunca aconteceu, implica viver numa realidade de poder indiscriminado e desgovernado, um simulacro.
Mas o que defendia o artigo de Hill? É um estudo na área da Matemática que demonstra a existência de maior variabilidade no género masculino — de forma simples, tendem a existir mais mentes brilhantes (ex. podem dar mais prémios Nobel), mas também tendem a existir mais mentes broncas (ex. existem mais homens presos). Esta variabilidade, mais acentuada no machos que nas fêmeas, parece existir de forma quase universal nas várias espécies. Aquilo que Hill faz é trabalhar dados probabilísticos, a sua área de expertise, e demonstrar o que está a acontecer. Steven Pinker foi um dos cientistas que veio defender o artigo no Twitter ontem, dizendo:
Não é de Esquerda nem de Direita porque ainda esta semana se passou outro caso, em território nacional, seguindo um modelo muito próximo de atuação. Falo da Conferência sobre as alterações climáticas decorrida na Universidade do Porto este fim-de-semana. Durante toda a semana anterior vimos os mais respeitados colegas nacionais a atacar por todos os meios os colegas que “ousaram” fazer tal conferência. Houve direito a abaixo-assinado com dezenas de reputados nomes, e milhares de ataques no Facebook e na imprensa nacional. Muitos dos que realizaram ataques, nem sequer sabiam do que tratava a conferência, não perderam um minuto a ler os textos dos colegas, afiaram as machetes e avançaram na defesa de um ideal.
Analisado o livro de abstracts da conferência o que temos ali verdadeiramente? Uma conferência sobre alterações climáticas que não contestam, em que os intervenientes pretendem apresentar potenciais outras visões sobre o que pode estar a motivar essas alterações, para além da ação humana. Na verdade, o que temos neste momento são dados de correlação, e dados de 200 anos num planeta com milhões de anos. Sim, os dados levam em conta todas as variáveis conhecidas que potencialmente poderiam gerar o efeito, atenuando o impacto de mera correlação, e deixam muito poucas dúvidas sobre o facto de sermos nós o agente que está a fazer a diferença (ver infografia explicativa dos dados que possuímos sobre as alterações).
Não restam muitas dúvidas sobre a responsabilidade da nossa espécie sobre o clima, o que é diferente de dizer que não resta espaço para podermos exercer a dúvida. A constatação que temos não é verdade absoluta, em ciência a verdade só existe até provada a sua falsidade. Por isso ter pessoas a discutir análises de factos, a contestar posturas, pode parecer arrogante, mas não deixa de ser legítimo. Mais ainda porque estamos a falar de uma conferência no domínio das ciências sociais e humanas, lugar em que se fazem conferências sobre Post-it e as irmãs Kardashians, que não refiro como menosprezo pelo que se investiga mas refiro para defender que aquilo que está aqui em causa é distinto de uma conferência no domínio da Física. Não perceber isto é querer forçar uma visão monolítica do conhecimento e da ciência, sem qualquer benefício.
Estes dois casos não são isolados, e são claramente sintoma de muito do que se passa à nossa volta. mas aceitarmos o calar de cientistas com o argumento de perigo de contaminação da opinião pública com ideias erradas é algo extremamente preocupante. Isto equivaleria a dizer que os cientistas não devem agir enquanto investigadores da realidade, não devem pensar livremente, mas devem subjugar-se às necessidades de controlo e manipulação da opinião pública e defesa das grandes narrativas. Ou que a liberdade de pensamento científico é apenas uma utopia para oferecer credibilidade aparente à ciência. O que temos aqui não é mais do que o modelo social criado e imposto pelo Facebook a moldar o pensamento da sociedade, a toldar os parâmetros dos diferentes grupos, incluindo os próprios cientistas. Todos se sentem escrutinados, e por isso todos acreditam que precisam de trabalhar para a construção de uma realidade paralela na qual tudo é melhor do que na realidade em que vivemos. Nem que para isso tenhamos de transformar as nossas vidas naquilo em que durante tantos anos contestámos à televisão, que está expressa nestes versos dos Disposable Heroes:
“Television [Facebook], the drug of the Nation
Breeding ignorance and feeding radiation”
O Facebook roubou as grandes audiências à televisão, nomeadamente a partir da introdução e massificação dos smartphones. Com este, os estudos começaram a mostrar padrões nos quais as pessoas parecem preferir ver informação que vá de encontro ao seu próprio modelo do mundo. Aquilo que não se enquadra nessa visão, Esquerda ou Direita, chega a ser doloroso, porque obriga a mudança de opinião, saída da zona de conforto. Por isso as pessoas desataram a eliminar, a barrar ou a deixar de seguir todos aqueles que não se exprimem no mesmo comprimento de onda. Criaram bolhas, câmaras de eco, confirmações de viés, enormes silos com grandes divisórias. Contudo em vez de ficarem felizes nos seus redutos, começarem a surgir de cada lado "guerreiros" na defesa de visões e ideias. A Primavera Árabe foi um prenúncio do que viria a seguir, depois disso tivemos o Obama, o Brexit, Trump, e a cada nova história, cada novo conflito, as hostes, fechadas em cada silo, agitam-se e lançam as suas farpas. Deixaram de existir terrenos neutros, espaços onde as diferenças se podiam debater. A Universidade que devia ter permanecido esse espaço, parece votada a deixar de o ser. No Facebook, se acedemos a conversar com uma ala, não podemos conversar com a outra. Chegámos a um ponto em que apenas conta: "Ou estás connosco, ou estás contra nós".
Se aceitarmos colocar a ciência em segundo plano, se aceitarmos partilhar o rumor, se aceitarmos exigir a censura, a imposição e a submissão da ciência e dos cientistas na defesa de ideologias, esqueçam o progresso, não haverá literacia que nos proteja de uma sociedade enclausurada num simulacro.
"Life these days can be so complex
We don't make the time to stop and reflect" (1992)
“One nation
Under God
Has turned into
One nation under the influence
Of one drug [television]” (ouvir)
Vem tudo isto a propósito de um longo texto publicado no The Quillette, na semana passada por Theodore P. Hill, um matemático formado por Stanford e Berkeley e professor até se reformar no Georgia Tech, em que dava conta de uma saga com mais de ano e meio para a publicação de um artigo científico. Essa saga envolveu um artigo que foi Aceite para Publicação, depois de todo o processo de revisão por pares, na Mathematical Intelligencer, revista científica respeitada e publicada pela Springer desde 1979, mas que à última hora a editora-chefe da revista, Marjorie Senechal, decidiu retirar e não aceitar para publicação. Depois disso, os colegas de Hill retiraram-se de co-autores do artigo, e ele por ser reformado e não ter nada a perder partilhou o artigo na rede. Pouco depois o editor do New York Journal of Mathematics, uma revista aberta sem pressões editoriais nem de indexação, convidou Hill para submeter uma versão revista do artigo. Hill submeteu, o artigo foi revisto pelos pares, aceite e publicado. Mas não terminou a saga, porque três dias depois de publicado, o artigo simplesmente desaparecia da página da revista, e passados mais alguns dias, surgia outro no seu lugar, como se nunca tivesse existido tal artigo. Leiam o texto no Quillette para compreender toda a extensão e esferas envolvidas no silenciamento da ciência. Estamos a falar de forças subterrâneas com motivação muito forte para fazer dobrar tanta gente, nomeadamente gente que foi treinada para seguir a máxima da Liberdade de Pensamento Científico. Impedir a publicação tinha sido forte, mas retirar um artigo já publicado, e fazer de conta que nunca aconteceu, implica viver numa realidade de poder indiscriminado e desgovernado, um simulacro.
A Mathematical Intelligencer depois de aceitar o artigo, deu a aceitação como recusa. O NYJM depois de publicar o artigo, apagou-o sem qualquer explicação ou justificação, e substitui-o por outro artigo, fazendo com que a publicação anterior nunca tivesse existido.
O apagamento de um artigo de uma revista científica, sem qualquer explicação, é em termos de simulacra comparável aos apagamentos políticos protagonizados pelo aparelho de Estaline.
Mas o que defendia o artigo de Hill? É um estudo na área da Matemática que demonstra a existência de maior variabilidade no género masculino — de forma simples, tendem a existir mais mentes brilhantes (ex. podem dar mais prémios Nobel), mas também tendem a existir mais mentes broncas (ex. existem mais homens presos). Esta variabilidade, mais acentuada no machos que nas fêmeas, parece existir de forma quase universal nas várias espécies. Aquilo que Hill faz é trabalhar dados probabilísticos, a sua área de expertise, e demonstrar o que está a acontecer. Steven Pinker foi um dos cientistas que veio defender o artigo no Twitter ontem, dizendo:
"Egregious: A math paper that tries to explain a fascinating fact (greater male variability) is censored. Again the academic left loses its mind: Ties equality to sameness, erodes credibility of academia, & vindicates right-wing paranoia." [@sapinker]Falamos de puro tráfico de influência, de batalhas ideológicas de submissão do outro. Tudo isto esquecendo a Ciência, esquecendo que por mais benéfica que uma ideia nos possa parecer, ela não se transforma em realidade por simplesmente o desejarmos. E que nem sempre aquilo que o colega nos diz que lhe parece ser, o é verdadeiramente. O Facebook vem sendo um palco cada vez maior para todo este tipo de comportamentos, em que vamos assistindo a colegas da academia que deveriam ser isentos, imparciais, defensores do pensamento científico aberto e livre, mas que se deixam embalar pelas inflamações do momento, que aceitam partilhar notícias falsas apenas para promover a guerrilha ideológica. Contudo, e ao contrário de Pinker, não vejo isto como um problema de um dos lados, isto é um problema de ambos — Esquerda e Direita — que se polarizaram tremendamente, não por causa direta do Facebook, mas não se pode dizer que este não tenha vindo a servir de catalisador emocional de toda essa polarização.
Não é de Esquerda nem de Direita porque ainda esta semana se passou outro caso, em território nacional, seguindo um modelo muito próximo de atuação. Falo da Conferência sobre as alterações climáticas decorrida na Universidade do Porto este fim-de-semana. Durante toda a semana anterior vimos os mais respeitados colegas nacionais a atacar por todos os meios os colegas que “ousaram” fazer tal conferência. Houve direito a abaixo-assinado com dezenas de reputados nomes, e milhares de ataques no Facebook e na imprensa nacional. Muitos dos que realizaram ataques, nem sequer sabiam do que tratava a conferência, não perderam um minuto a ler os textos dos colegas, afiaram as machetes e avançaram na defesa de um ideal.
Analisado o livro de abstracts da conferência o que temos ali verdadeiramente? Uma conferência sobre alterações climáticas que não contestam, em que os intervenientes pretendem apresentar potenciais outras visões sobre o que pode estar a motivar essas alterações, para além da ação humana. Na verdade, o que temos neste momento são dados de correlação, e dados de 200 anos num planeta com milhões de anos. Sim, os dados levam em conta todas as variáveis conhecidas que potencialmente poderiam gerar o efeito, atenuando o impacto de mera correlação, e deixam muito poucas dúvidas sobre o facto de sermos nós o agente que está a fazer a diferença (ver infografia explicativa dos dados que possuímos sobre as alterações).
A esmagadora maioria dos estudos demonstram que a variável que mais afectou o aquecimento foi a humana. Mas isso é razão para não se discutirem outras hipóteses? Para não mantermos a mente aberta? [fonte da imagem]
Não restam muitas dúvidas sobre a responsabilidade da nossa espécie sobre o clima, o que é diferente de dizer que não resta espaço para podermos exercer a dúvida. A constatação que temos não é verdade absoluta, em ciência a verdade só existe até provada a sua falsidade. Por isso ter pessoas a discutir análises de factos, a contestar posturas, pode parecer arrogante, mas não deixa de ser legítimo. Mais ainda porque estamos a falar de uma conferência no domínio das ciências sociais e humanas, lugar em que se fazem conferências sobre Post-it e as irmãs Kardashians, que não refiro como menosprezo pelo que se investiga mas refiro para defender que aquilo que está aqui em causa é distinto de uma conferência no domínio da Física. Não perceber isto é querer forçar uma visão monolítica do conhecimento e da ciência, sem qualquer benefício.
Estes dois casos não são isolados, e são claramente sintoma de muito do que se passa à nossa volta. mas aceitarmos o calar de cientistas com o argumento de perigo de contaminação da opinião pública com ideias erradas é algo extremamente preocupante. Isto equivaleria a dizer que os cientistas não devem agir enquanto investigadores da realidade, não devem pensar livremente, mas devem subjugar-se às necessidades de controlo e manipulação da opinião pública e defesa das grandes narrativas. Ou que a liberdade de pensamento científico é apenas uma utopia para oferecer credibilidade aparente à ciência. O que temos aqui não é mais do que o modelo social criado e imposto pelo Facebook a moldar o pensamento da sociedade, a toldar os parâmetros dos diferentes grupos, incluindo os próprios cientistas. Todos se sentem escrutinados, e por isso todos acreditam que precisam de trabalhar para a construção de uma realidade paralela na qual tudo é melhor do que na realidade em que vivemos. Nem que para isso tenhamos de transformar as nossas vidas naquilo em que durante tantos anos contestámos à televisão, que está expressa nestes versos dos Disposable Heroes:
“Television [Facebook], the drug of the Nation
Breeding ignorance and feeding radiation”
O Facebook roubou as grandes audiências à televisão, nomeadamente a partir da introdução e massificação dos smartphones. Com este, os estudos começaram a mostrar padrões nos quais as pessoas parecem preferir ver informação que vá de encontro ao seu próprio modelo do mundo. Aquilo que não se enquadra nessa visão, Esquerda ou Direita, chega a ser doloroso, porque obriga a mudança de opinião, saída da zona de conforto. Por isso as pessoas desataram a eliminar, a barrar ou a deixar de seguir todos aqueles que não se exprimem no mesmo comprimento de onda. Criaram bolhas, câmaras de eco, confirmações de viés, enormes silos com grandes divisórias. Contudo em vez de ficarem felizes nos seus redutos, começarem a surgir de cada lado "guerreiros" na defesa de visões e ideias. A Primavera Árabe foi um prenúncio do que viria a seguir, depois disso tivemos o Obama, o Brexit, Trump, e a cada nova história, cada novo conflito, as hostes, fechadas em cada silo, agitam-se e lançam as suas farpas. Deixaram de existir terrenos neutros, espaços onde as diferenças se podiam debater. A Universidade que devia ter permanecido esse espaço, parece votada a deixar de o ser. No Facebook, se acedemos a conversar com uma ala, não podemos conversar com a outra. Chegámos a um ponto em que apenas conta: "Ou estás connosco, ou estás contra nós".
Se aceitarmos colocar a ciência em segundo plano, se aceitarmos partilhar o rumor, se aceitarmos exigir a censura, a imposição e a submissão da ciência e dos cientistas na defesa de ideologias, esqueçam o progresso, não haverá literacia que nos proteja de uma sociedade enclausurada num simulacro.
Subscrever:
Mensagens (Atom)