A apresentar mensagens correspondentes à consulta Ken Robinson ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta Ken Robinson ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

junho 11, 2014

"O Código do Talento"

Depois de ler “Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell e “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, acabei por chegar a “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How.” (2009) de Daniel Coyle. Os três livros formam um trio que questiona as origens do talento, criatividade e modelos de aprendizagem. Se tinha gostado de Gladwell e tinha adorado Colvin, Coyle é ainda mais interessante e incisivo. Não que traga algo de muito novo, mas a ligação que estabelece entre os processos neurofisológicos e os estudos empíricos é profundamente enriquecedora para quem quer que se interesse pelo tema. Desde os jogadores de futebol brasileiros, às tenistas russas, passando pelos violinistas, skateboarders e produtores de música pop, vários são os exemplos que nos abrem um mundo novo sobre o fundamento do talento, os processos de aprendizagem e de coaching.


Algumas das críticas ao livro de Coyle dizem respeito ao seu fascínio com as mais recentes descobertas em torno da mielina, uma substância que se encontra no cérebro e sobre a qual ainda decorrem estudos. Mas neste momento suspeita-se que a sua função assente no isolamento das ligações neuronais, de modo a garantir que os impulsos eléctricos possam circular de forma mais eficiente. Ou seja, uma função parecida com aquela que o plástico executa em redor dos cabos eléctricos. Sendo essa a sua função, o modo como esta se desenvolve nos nossos cérebros parece ocorrer a partir de prática focada e repetida. À medida que vamos repetindo exercícios, a prática em nós vai-se sedimentando por meio de mielina junto aos nossos neurónios. Quanto mais grossa for ficando a camada de mielina em redor da ligação neuronal responsável pela competência que estamos a treinar, melhor isolada fica, permitindo que possamos agir de cada vez com maior eficácia.

Apesar da relevância que Coyle atribui à mielina, o mais relevante do seu livro não depende propriamente dessa descoberta, que acaba por funcionar mais como curiosidade, porque aquilo que Coyle nos demonstra advém do seu trabalho etnográfico sobre o talento, realizado um pouco por todo o mundo, em centros de treino de algumas das maiores estrelas do planeta. Coyle chama a esses centros, “hotbeds”, locais dotados de um design e condições específicas, capazes de contribuir para um aperfeiçoamento e aceleramento do processo de formação de talento.

Das hotbeds mencionadas ao longo do livro a primeira foi a que mais me impressionou, por tudo o aquilo em que eu acreditava ter sido posto em causa, mas também por exemplificar na perfeição a base de design conceptual de uma hotbed. Falo dos locais de treino das estrelas mundiais do futebol brasileiro, de Pele ou Zico a Romário ou Robinho. Todos eles começaram a jogar futebol num campo de cimento com metade do tamanho de um campo relvado, com uma bola metade do tamanho e com o dobro do peso de uma de futebol normal, e com equipas de apenas 5 jogadores de cada lado, no fundo aquilo que hoje conhecemos como Futebol de Salão ou Futsal. À primeira vista, nada de especial, mas a realidade é que estes campos mais pequenos, proporcionaram condições para treinos mais intensivos. O espaço reduzido obriga a maiores velocidades de arranque e paragem, a bola pequena e pesada obriga a um maior domínio da mesma, as balizas mais próximas permitem chegar mais vezes perto e treinar mais vezes as situações de golo. Por minuto os jogadores tocam mais 6 vezes na bola do que no futebol de campo, os passes certeiros e o trabalho colaborativo é fundamental. Ou seja, a ideia de que os jogadores brasileiros são treinados na praia é um mito que fica bem nos postais de turismo. Claro que não basta o futebol de salão, ele tem um impacto concreto no domínio da prática intensiva, mas falta o resto, aquilo que Coyle considera ser o código do talento, e de que darei conta a seguir.

"Nenhum tempo mais nenhum espaço é igual a melhores habilidades. O futsal é o nosso laboratório nacional de improvisação." Emilio Miranda, professor da Universidade de São Paulo, a propósito do treino em salão

Coyle identifica várias hotbeds espalhadas pelo planeta, falando das piscinas abandonadas em LA que se transformaram em centros de treino de skaters, do centro de treino russo em que se formou Kournikova e da consequência num número de tenistas russas no WTA, assim como do número de Coreanas no LPGA Tour (Golf), ou ainda do modelo de escola americana KIPP, tocando ligeiramente no fenómeno da Nova Vaga de Cinema Romeno proveniente da Bucharest National University of Drama and Film, ou das estrelas Pop da Disney, etc. E assim a partir destas hotbeds, e de vários outros estudos, Coyle vai dividir o talento, e o livro, em três grandes partes, que considera serem o Código do Talento: “Prática Profunda” -  ”Ignição” - “Mestres de Instrução”. Coyle considera que cada um destes vectores é relevante à sua maneira, mas é da convergência dos três que emerge  a competência. Segundo ele, a sua simples convergência pode em poucos minutos contribuir para construir no sujeito competências que sem os três vectores simultâneos, pode arrastar-se por anos.

Diagrama do Código do Talento, os três elementos base - "Prática Profunda", "Ignição" e "Mestres de Instrução". Pode ver-se como a Deep Practice é destacada como se se tratasse de mielina em formação, camada a camada, em função da quantidade de prática.

VECTOR 1: Prática Profunda (Prática)

Coyle segue aqui trabalhos anteriores de estudos académicos, dando conta do percurso e estudos realizados por Anders Ericsson, uma das maiores autoridades no campo do talento, reconhecido pela teoria das 10 mil horas, e pelo conceito “Deliberate Practice” que Coyle aqui converte em “Deep Practice”. Ericsson define a prática como algo que precisa de ser realizada de modo voluntário para criar competência, já Coyle seguindo as lógicas da produção de mielina, aposta numa ideia de prática em profundidade, de modo a poder gerar mielina. Deste modo Coyle apresenta três regras para realizar prática profunda: Chunk, Repeat e Learn to Feel.

Regra 1: “Chunk”
“Deep practice feels a bit like exploring a dark and unfamiliar room. You start slowly, you bump into furniture, stop, think, and start again. Slowly, and a little painfully, you explore the space over and over, attending to errors, extending your reach into the room a bit farther each time, building a mental map until you can move through it quickly and intuitively.”
A ideia central passa por absorver a totalidade da acção a realizar, e depois quebrá-la em pequenas partes, que podem ser mais facilmente realizadas e apreendidas, no fundo a velha ideia de “baby steps”. Dos vários locais de treino intensivo que Coyle visitou, a mesma prática era repetida,
“First, the participants look at the task as a whole — as one big chunk, the megacircuit. Second, they divide it into its smallest possible chunks. Third, they play with time, slowing the action down, then speeding it up, to learn its inner architecture. People in the hotbeds deep-practice the same way a good movie director approaches a scene—one instant panning back to show the landscape, the next zooming in to examine a bug crawling on a leaf in slo-mo.”
Regra 2: “Repeat”

A repetição é condição essencial para produzir mielina. Vendo pelo lado oposto, a melhor forma de transformar um grande pianista num mau, é impedi-lo de treinar durante um mês. Mas isto não quer dizer que a repetição deva acontecer sem fim, sem descanso nem pausa. Dos estudos de Ericsson os grandes talentos mundiais praticam entre 3 e 5 horas diárias. Mas nas hotbeds visitadas por Coyle os treinos andam sempre abaixo das três horas diárias, para crianças mais novas (6 a 8 anos) 3 a 5 horas semanais é mais do que suficiente. Ou seja, depende muito de se conseguir reunir os três vectores simultaneamente - prática, ignição e mestre.

Regra 3: “Learn to Feel”
“I hate to practice! Hate, hate, hate! So what I did, I forced myself to make it as productive as it could be… You guys have to realize this is top sport. You are athletes. Your playing field is a few inches long, but it still is your field. You need to find a place to stand, know where you are. First, tune your instrument. Then tune your ear… If you hear a string out of tune, it should bother you… It should bother you a lot. That's what you need to feel. What you're really practicing is concentration. It's a feeling.” Skye Carman, concertmaster of the Holland Symphony
Ao longo do trabalho de Coyle, quando questionava as pessoas sobre as sensações que sentiam quando estavam a treinar de forma produtiva, referiam: “Attention; Connect; Build; Whole; Alert; Focus; Mistake; Repeat; Tiring; Edge; Awake.” Uma lista de sentimentos que evoca a ideia de se estar a atingir algo, a caminho de se conseguir algo, uma linguagem própria de montanhistas, descrevendo a sensação incremental, passo a passo. A ideia de esforço para atingir um objetivo concreto, e de se estar muito perto de o conseguir. A ideia de praticar muito não pode ser um mero exercício de repetição e esforço, mas deve ser antes uma busca por atingir algo que ainda não se atingiu, repetindo e iterando,
  1. "Pick a target.
  2. Reach for it.
  3. Evaluate the gap between the target and the reach. 
  4. Return to step one."
Ou seja, como diz Coyle, uma lista de palavras que nunca ouviu nos locais de treino foi - "natural, effortless, routine, automatic" - ou ainda "genius". Não que não existam génios, mas todos os mestres confirmam o mesmo, que eles surgem apenas num ratio de um para um milhão. A generalidade do talento humano é filho do treino, esforço, repetição, e aperfeiçoamento continuado.


VECTOR 2: Ignição (Motivação)

Se o primeiro vector depende exclusivamente do indivíduo já o segundo vector é uma mistura entre o indivíduo e o ambiente, ambos têm que dar para que as coisas funcionem e o talento possa emergir. Ou seja, o indivíduo necessita de estar atento ao mundo que o rodeia, procurar pistas, seguir pistas, auto-motivar-se, construir a sua ideia do mundo, mas para o fazer precisa que o mundo lhe prepare o terreno, construa um ambiente adequado a tal.

Nesse sentido nós, pais, temos trabalhado contra a criação destas condições. Quando acreditámos que o ideal seria garantir as condições óptimas, ou garantir o acesso ao máximo de actividades para que as crianças pudessem escolher o que lhes falava ao coração, estávamos a entrar por um caminho completamente contrário à realidade das necessidades do treino do talento. Sei que custa ouvir isto, porque também me custa a mim, porque é muito difícil aceitar que o caminho para a construção de competências seja penoso e duro, mas é o que é. E é por isso que a prática deliberada, ou em profundidade, exige ignição, “combustível motivacional” como lhe chama Coyle.

Assim quando falamos do futebol no Brasil, do futebol de salão, isso não chega como condição para criar tantos bons jogadores. Existem duas outras condições que são fundamentais na criação de grandes jogadores brasileiros: a pobreza e a dureza das condições de vida. As mesmas que fizeram surgir Kournikova, que fazem surgir grandes violinistas em meios pobres da periferia, ou que fazem surgir grandes visionários da ciência ou construtores de fortunas. As condições de que se parte estão longe daquelas a que se pretende chegar, e é essa distância que dinamiza a força necessária para conquistar terreno. A tenacidade incutida pela dureza dá-lhe capacidade para aguentar o árduo caminho que terá de ser realizado para lá chegar. Ter um instrumento só meu, aceder a uma escola boa sem esforço, ter todo o tempo disponível para treinar, se tudo isto existir à partida, quer dizer que já chegámos a meio do caminho sem termos dado muito de nós, e assim sendo só muito dificilmente se poderá fabricar "combustível" para dar os passos que ainda são necessários dar até se conseguir atingir o talento.

Mas o ambiente é ainda responsável por criar o objectivo último a atingir, porque ninguém caminha por sentir um chamamento esotérico. O ser humano aprende por imitação, segue copiando e imitando. Para isso são precisos exemplos, ídolos, ícones, celebridades, estrelas que nos mostram o caminho, e nos referem o que podemos almejar. São eles que dizem que é possível. É o Cristiano Ronaldo que veio da aldeia mais pobre da Madeira e chegou a melhor Jogador do Mundo, que nos diz que todos podem também conseguir. É a Kournikova que todas as meninas tenistas da Russia querem imitar, ou a Madonna ou Michael Jackson que todos querem seguir. Todas estas pessoas, abrem o caminho para que os outros sigam os seus exemplos. Como se pode ver no atletismo, sempre que alguém quebra um recorde impossível, logo a seguir temos vários atletas a conseguir quebrar esse mesmo recorde. É um fenómeno de imitação, de cópia, “se outro alguém consegue, eu também consigo”.

Antes de avançar, preciso de fazer aqui um parênteses sobre um dos maiores problemas da atualidade, que veio toldar esta formula da imitação. Falo da televisão e revistas do jornalismo cor-de-rosa. Ou ainda dos reality shows, não dos Big Brothers, mas dos concursos de talentos, que têm emergido como cogumelos por aparentarem trazer algo de útil à sociedade. Ora o que todos estes realmente fazem, é destruir tudo aquilo de que falei até aqui. De que é preciso muita prática, muito esforço, muita dedicação para se atingir o auge. Porque estes nos mostram apenas partes da realidade, como faz normalmente o discurso audiovisual. O concurso de talentos não mostra tudo o que deu origem aos indivíduos que nos aparecem pelo ecrã adentro. Vozes são lançadas em programas de televisão como se nunca tivessem praticado em toda a sua vida e que de repente por chegarem à televisão surgem tal qual o cisne que emerge de patinho feio. Ou seja, a televisão vende-se a si própria como caixa mágica capaz de produzir talento, e as pessoas seguem porque querem acreditar que o talento depende de sorte, de ser bonito, de ser famoso, de um concurso!

"Everybody said Jessica [Simpson] was a Texas girl who'd been singing in her church choir. That's ridiculous — that girl worked to become the singer she was. They said [American Idol winner] Kelly Clarkson was a waitress, like she never sang before. Waitress? Excuse me? Kelly Clarkson was a singer — we all knew Kelly Clarkson. She had training, and she worked her tail off like anybody else does. She didn't come from nowhere any more than Jessica came from nowhere. It's not magic, you know." Linda Septien professora de voz
Voltando à ideia da imitação, ela continua sendo central, porque é a partir dela que se constrói a Ignição, ela é central e determinante para o futuro do talento. Como demonstra um excelente estudo de Gary McPherson que procurou perceber o factor que determina a progressão das crianças no estudo de um instrumento musical. McPherson realizou estudos com centenas de crianças que aprendiam instrumento, para perceber porque umas eram melhores que outras, e foi eliminando variáveis - IQ, IE, sensibilidade, capacidades motoras, nível financeiro, etc -. A diferença fez-se notar fortemente apenas quando este lhes lançou uma simples questão, how long do you think you'll play your new instrument?"
"They mostly say Th, I dunno' at first… But then when you keep digging and ask them a few times, eventually they will give you a real solid answer. They have an idea, even then. They've picked up something in their environment that's made them say, yes, that's for me."
As hipóteses de resposta eram: “ao longo deste ano”, “ao “longo da primária”, “até ao liceu”, ”toda a minha vida”. Isto foi condensado em Pequeno, Médio e Grande Comprometimento. Estes dados foram cruzados com o tempo que cada criança praticava por semana  - 20, 45 e 90 minutos por semana. O que daria o gráfico abaixo,

Os alunos quando motivados por um comprometimento de longo termo com o instrumento, conseguem performances 400% superiores aos que apresentam um comprometimento de curto termo.

Ou seja, tendo em conta o mesmo tempo de prática/semana entre crianças, nada além do comprometimento tinha impacto no nível que se atingia de evolução na performance. E quando se juntava o comprometimento de longo termo com a prática mais elevada, a performance disparava para mais de 400% face aos restantes. Ou seja, duas crianças poderiam treinar o mesmo tempo toda a semana, mas aquela que estava profundamente motivada conseguia fazer disparar o rendimento dessa prática. Ou seja, não era a mera repetição, mas aprendizagem profundamente produtiva.
“We instinctively think of each new student as a blank slate, but the ideas they bring to that first lesson are probably far more important than anything a teacher can do, or any amount of practice. It’s all about their perception of self. At some point very early on they had a crystalizing experience that brings the idea to the fore, that says, ‘I am a musician’. That idea is like a snowball rolling downhill.”
Algo que nos deve fazer refletir enquanto pais, mas também enquanto professores. Ensinar alguém que não tem uma motivação interna, pode muito bem não representar mais do que o velho ditado “chover no molhado”. Por isso continuo a defender as escolas técnico-profissionais, profissionalizantes, vocacionais, o que lhe queiram chamar. Nada pode ser pior do que manter uma criança fechada num espaço durante 18 anos a fazer de conta que aprende. Esta é também a razão pela qual digo a todos os meus mestrandos e doutorandos que uma tese com valor, só se pode fazer sobre algo que se ama, de outra forma é tempo perdido, para eles e para mim.


VECTOR 3: Mestres de Instrução

Apesar de tudo o que se disse até aqui, do primeiro vector fundamentalmente dependente do indivíduo (interno), do segundo vector dependente deste e do meio-ambiente (interno-externo), existe um terceiro vector extremamente relevante e totalmente dependente do ambiente (externo). Falo do professor ou simplesmente instructor (coach). Aquela figura que por vezes é tida como secundária, como quase irrelevante, que qualquer um pode fazer! Aliás de tanto se acreditar na sua irrelevância nos últimos anos começámos a pensar que seria possível substituir o mesmo por meros jogos de computador, ou criar cursos para milhares de alunos em simultâneo.

Coyle abre o capítulo com uma ideia muito atual nomeadamente no campo do treino animal, os Whisperers. E é verdade que costumamos olhar para estas pessoas como dotadas de um qualquer dom mágico, porque capazes de comunicar numa linguagem indecifrável para nós, normalmente a do animal. O que não anda muito longe da realidade.

Na realidade o velho provérbio, “quem não sabe fazer, ensina” é meia verdade, porque só quem já soube fazer, e já não faz, pode ensinar. Normalmente quem ensina são pessoas que por algum motivo pararam de o fazer, e se dedicaram desconstruir os processos de fazer, a compreender o detalhe e as minudências, a ponderar os prós e os contras, a encontrar os defeitos e os atalhos, a definir as metas e os objectivos. Se dedicaram a criar uma linguagem, o “whispering”, capaz de colocar em palavras entendíveis por quem faz, os processos para atingir a melhoria. Quando lá atrás se disse que temos de, escolher um objectivo, trabalhar para o atingir e avaliar a diferença entre o que se atingiu e o que falta, é preciso compreender aquilo de que falamos. É preciso perceber que objectivo nos falta atingir, compreender quais devemos percorrer em primeiro lugar, compreender porque não conseguimos ainda lá chegar, compreender que treinos podemos realizar em repetição, para aperfeiçoar e chegar a ser aquele modelo abstracto que temos em mente. E é isso que faz o professor, o coach, comunica e guia, orienta e claro motiva. Mas é ele quem desconstrói as etapas a realizar por nós, que nos mostra os passos que já demos, e aqueles que ainda nos faltam dar, que nos mostra por onde podemos seguir para conseguir dar os passos em falta, e mais importante de tudo, que nos faz ver que além do objectivo final, existem múltiplos objectivos intermédios que precisamos de atingir para chegar ao que tanto desejamos.

A propósito dos treinadores Coyle fala de um contraste muito interessante entre as certezas e o conhecimento em profundidade que estes detêm sobre os detalhes da arte em si, e as dúvidas que estes demonstram sobre o todo, sobre a capacidade um indivíduo pegar em tudo o que sabe e ir além, de uma equipa de estrelas se superar. Na verdade, isto faz todo o sentido, e demonstra apenas a humildade imprescindível a qualquer professor que se reflecte no simples facto de que por mais que se faça, a última palavra depende sempre da capacidade interna do indivíduo, o coach é apenas um dos vectores como já vimos. Ele molda, ele ajuda a crescer, mas é o indivíduo quem decide, quem a determinada altura tem de tomar em mãos o seu caminho.

Deixo um estudo empírico sobre o treinador de basquete, John Wooden, considerado o melhor treinador da história da NCAA, realizado por dois psicólogos educacionais, Ron Gallimore e Roland Tharp que procurava compreender a sua fórmula de sucesso.
“practice began… Wooden didn't give speeches. He didn't do chalk talks. He didn't dole out punishment laps or praise. In all, he didn't sound or act like any coach they'd ever encountered… Wooden ran an intense whirligig of five to fifteen-minute drills, issuing a rapid-fire stream of words all the while. The interesting part was the content of those words… teaching utterances or comments were short, punctuated, and numerous. There were no lectures, no extended harangues ... he rarely spoke longer than twenty seconds… Here are some of Wooden's more long-winded "speeches":

"Take the ball softly; you're receiving a pass, not intercepting it."
"Do some dribbling between shots."
"Crisp passes, really snap them. Good, Richard—that's just what I want."
"Hard, driving, quick steps."

Gallimore and Tharp were confused… This was great coaching?… As weeks and months went by, an ember of insight began to glow… it came mostly from the data they collected in their notebooks. Gallimore and Tharp recorded and coded 2,326 discrete acts of teaching. Of them, a mere 6.9 percent were compliments. Only 6.6 percent were expressions of displeasure. But 75 percent were pure information:

What to do, how to do it, when to intensify an activity.

One of Wooden's most frequent forms of teaching was a three-part instruction where he modeled the right way to do something, showed the incorrect way, and then remodeled the right way, a sequence that appeared in Gallimore and Tharp's notes as M+, M-, M+… Wooden's demonstrations rarely take longer than three seconds, but are of such clarity that they leave an image in memory much like a textbook sketch… The information didn't slow down the practice; to the contrary, Wooden combined it with something he called "mental and emotional conditioning," which basically amounted to everyone running harder than they did in games, all the time."
O coach ou mestre é isto, alguém que dá feedback muito objectivo e muito concreto sobre cada uma das acções, alguém que indica se estamos no caminho correcto, e se não estamos explica como podemos retomar esse caminho. A construção de talento não acontece no vazio, por mais motivação que se detenha, aprendemos com os erros mas precisamos de saber como fazer na vez seguinte. Podemos até fazê-lo a solo, por tentativa e erro, mas isto vai demorar muito mais tempo, correndo o risco sério de destruir o combustível motivacional que se detém. A motivação é algo frágil que precisa de ser continuamente alimentada, e um desses alimentos é o sentimento de progressão, se nos sentirmos a encalhar mais facilmente entraremos na espiral de desistência.


Para concluir, Coyle tudo faz ao longo deste livro para demonstrar que o talento é algo que se constrói, algo que se produz, algo que todos podem atingir. O talento não é dom, não nasce, não é mágico, nem existe sob a forma de pó de estrelas. Ou seja, a velha discussão Natureza ou Cultura é aqui bem evidenciada, e fica claro que apesar da natureza nos criar diferentes, podemos cada um gerar os nossos próprios talentos e destacarmo-nos à nossa maneira. Ainda assim Coyle sabe, e todos sabemos, que de tempos a tempos vão surgindo indivíduos fora do normal, os que apelidamos de génios, o tal um num milhão, mas mesmo esses se não tiverem a sorte de ter em seu redor a triangulação - Prática, Motivação e Mestres - dificilmente emergirão.


Epílogo

No final do livro Coyle tenta aplicar algumas destas ideias à Educação, e na verdade podemos questionar-nos, porque sabendo a fórmula isto não funciona nas nossas escolas? Não me julgo detentor de respostas, mas ao fim de alguns anos a trabalhar como professor e a estudar este assunto, julgo que o centro nevrálgico acaba por estar na motivação, na Ignição. Por isso falei lá em cima que acredito na escola vocacional. Julgo que tudo neste mundo é possível para todos quando estes estão motivados, sem essa motivação nada se pode fazer. E se é verdade que o sistema escolar americano KIPP tem conseguido enormes resultados, para mim não restam dúvidas que se devem ao meio social em que se inserem, um pouco como acontece com o futebol no Brasil. A filtragem para essas escolas acontece de uma forma natural, sendo procuradas por um grupo de pessoas muito específico, pais e filhos fortemente motivados pela ideia de que para sair do ciclo de pobreza é preciso chegar à Universidade. Daí que as ideias de mais horas de escola, mais dias por semana, menos férias, mais exames e testes, etc. funcionem muito bem, porque tudo isso é apenas mais combustível para manter a motivação acesa.

Mas esta abordagem se aplicada a crianças de classe média, com pais com estudos superiores em casa, ou com acesso a uma boa qualidade de vida, simplesmente não funcionará. E é por isso que numa grande maioria das escolas, um pouco por todo o mundo, os professores em vez de funcionarem como instrutores de cada área de conhecimento, têm de funcionar como psicólogos, produtores de motivação, para manter os alunos interessados em algo que na verdade não lhes interessa, não os motiva, não lhes acende a combustão. E desiludam-se aqueles que pensam que para produzir essa combustão basta adicionar tecnologias ou videojogos à equação...

A questão que temos então de nos colocar neste momento é saber como orientar para a motivação, e não tanto como motivar. Este é um assunto que Ken Robinson tenta trabalhar em "The Element: How Finding Your Passion Changes Everything" (2009) mas que é complexo e de difícil resposta. A ideia central passa por estar atento, às crianças e pessoas, e contribuir para que estas possam auto-descobrir-se, mas a linha entre o ajudar e o formatar é muito ténue. E o risco é elevado, já que quando a pessoa se sente empurrada, pode sentir-se acossada, com a liberdade individual posta em causa, e pode reagir pela negação. A motivação para funcionar com toda a sua combustão, tem de ser algo interno, algo muito próprio, muito individual, só nosso. Algo que outros seguem, mas que apenas alguns conseguem seguir tanto como nós, dá-nos prazer ter uma área em que nos destacamos dos demais, em que temos ídolos, mas no nosso contexto somos nós os melhores naquela atividade. Não é uma questão competitiva com o mundo, é antes uma afirmação da nossa identidade, do nosso ser perante os outros.


Links de interesse
“Outliers” de Malcolm Gladwell, in Virtual Illusion
"The Element" de Ken Robinson, in Virtual Illusion
"O Talento é Sobrestimado", in Virtual Illusion

janeiro 09, 2014

Educação e Tecnologia, criação em "multitasking"

Cathy Davidson é directora da HASTAC (Humanities, Arts, Science, Technology Advanced Collaboratory) uma organização que se dedica a pensar o futuro da educação com as TIC. Em 2010 foi eleita para o Conselho do National Endowment for the Humanities dos EUA, e em 2012 recebeu o prémio Educators of the Year do World Technology Network. O seu livro "Now You See It: How the Brain Science of Attention Will Transform the Way We Live, Work, and Learn" (2011) apresenta várias ideias sobre o impacto da internet sobre os processo de multitasking e seus efeitos em contexto de escola que parecem estar na origem do relevo que a autora tem obtido no contexto educativo tecnológico americano.


É assim com alguma surpresa que constatamos que aquilo que nos traz neste seu livro não passa de “wishful thinking” sem suporte científico, propostas que mais parecem anseios e desejos de múltiplas agendas do mundo das TIC. Na verdade, e tendo em conta o que escrevi abaixo contra muito do que é dito ao longo deste livro, tenho que aceitar que o livro está bem escrito e toca em vários pontos relevantes. Porque se assim não fosse dificilmente me teria dignado a escrever tantas linhas de resposta como acabei por fazer. Dito isto, espero que o leiam, se partilho as minhas ideias é mais para poder lançar a discussão de uma forma crítica, e espero que construtiva.

Assim para aclarar a minha resposta ao livro, dividi a análise em duas partes, a primeira sobre a escola, e a segunda sobre o multistasking.



1. A Escola

1.1 – Diz Toffler que o modelo de escola atual é uma originalidade da Industrialização.

Davidson usa Toffler para iniciar todo o seu ataque à escola atual. Até aceito que Toffler tenha alguma razão no que diz, mas julgo que devemos ser cautelosos para não embarcar em generalidades. Julgo que muitos, incluindo o próprio Ken Robinson, caíram nesta ideia de generalizar a escola como um resultado da industrialização. Porque se existe algo industrial na escola da atualidade, e algo tipicamente século XX, é a massificação da escola, e não a escola enquanto conceito. Ou seja, o que é fruto da industrialização e “taylorização” é a massificação que obrigou a criar espaços de formação em série. Que por sua vez obrigou a estratificar a aprendizagem numa hierarquia fechada e a generalizar o que se aprende de forma igual para todos. Ensinar milhões de pessoas, tinha de ser diferente de ensinar uma elite.

Do que se fala é então de um problema logístico que é claro que acarretou imensos problemas para o ideal de escola, mas se olharmos para os efeitos na sociedade, esses problemas foram mais do que compensados. Uma sociedade educada, mesmo que através destes sistemas de massas, tem melhor qualidade de vida e é mais feliz do que uma não educada.

Quanto ao conceito de escola, não surge com a revolução industrial, mas com o conceito de civilização. A necessidade de passar conhecimento a quem está a aprender o que é o mundo, a quem está a aprender uma profissão, para que estes não tenham de começar do zero. A invenção da escrita facilitou o processo, as pessoas não precisavam de esperar que alguém lhes dissesse o que fazer e como fazer, podiam a seu tempo ler. Por outro lado complexificou tudo, tornou o conhecimento mais profundo, mais denso, mais detalhado. Obrigou a aumentar o tempo de aprendizagem do mundo, porque era preciso dominar um nível de abstração, a escrita, antes de chegar à realidade. Daí aos Gregos, Romanos, Renascimento, múltiplos meios de registo de comunicação, incluindo a internet, é tudo uma ordem de evolução natural.

De uma forma genérica, a escola de hoje difere pouco daquilo que eram as Guildas criadas no final da Idade Média. Para quem queria ser profissional de uma qualquer atividade, era preciso passar por um processo que durava longos anos até ser aceite por quem regia o meio. A diferença entre elas e a escola de hoje, está na obrigação que hoje existe de todos terem de atingir determinados níveis de escolaridade. Ou seja, não é o conceito que está em causa, mas o valor que a sociedade lhe passou a atribuir. Porque a ideia de todos serem obrigados a ir à escola até um certo ano, está ligada com os dados empíricos que demonstram os resultados de se ter uma sociedade mais educada. Uma pessoa que fica para trás na escola, não cria um problema apenas para si, mas para toda a sociedade, se esta for inclusiva.

1.2 – A revolução industrial e a escola criaram uma absurda “categorização, divisão e hierarquização”, segundo Cathy Davidson.

Como disse acima, em termos logísticos, foi necessário proceder assim. Não é um problema da industrialização, mas da massificação, de muitas mais pessoas poderem aceder a patamares superiores da hierarquia social. A “categorização, divisão e hierarquização” é uma ideia do mercado laboral do século XX, segundo Davidson! Será? Como é que vos parece que seria possível gerir um site com os milhões de encomendas diárias que tem a Amazon, sem este tipo de estruturas?

Mas não é uma questão logística, é antes fruto da progressão e avanço do conhecimento que detemos enquanto espécie. Porque avançar nessa compreensão implica avançar na criação de camadas de abstração sobre a realidade. E estas camadas são naturalmente constituídas por categorias, hierarquias, divisões e indexações, pois são elas que permitem a interligação conceptual, entre as várias camadas de abstração, e nos permitem conhecer em maior profundidade o mundo que nos rodeia. Basta pensar em qualquer sistema que nos rodeia desde o biológico ao solar. O que são estes sistemas, se não camadas de abstração criadas por nós, que nos ajudam a conceber mentalmente o mundo. O que são se não categorizações, comparações, classificações, relações, efeitos e impactos?!

1.3 - "A Escola Mata a Criatividade"

A ideia de que as escolas matam a criatividade é mais uma ideia muito em voga, proclamada ad nauseum desde que Ken Robinson proferiu uma TED talk em 2006 sobre o tema que se tornou viral. Mas a esta ideia também respondo não. Porque não posso, nem criticar, nem criar nada de novo, se não absorver muito daquilo que existe [leia-se a simples recomendação de Stephen King, "se quer escrever, leia"]. Mesmo quando quero criar o totalmente novo, preciso de conhecer o mundo em que me insiro. A escola deve dar a conhecer o que existe no mundo, deve fornecer saber e informação, e deve fazê-lo apresentando sempre o pró e o contra, e só desta base surgirão as competências para articular o pensamento, e agir criticamente. A reflexão não pode ser feita no vazio, correndo o risco de ser totalmente inconsequente. A escola formata, sem dúvida, mas cabe a cada um de nós depois "sair da caixa", como nos diz David Foster Wallace no discurso inaugural de 2005 na Universidade Kenyon College ou José Saramago,
“A escola deveria ensinar a ouvir. Cabe-lhe ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas a escola não será o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer. (…)
Os estilos saem do ovo da sua própria necessidade. Ensine-se a pensar claro e a escrita será clara. E, já agora, gostaria que houvesse uma luta implacável contra o erro de ortografia. A língua é uma ferramenta de comunicação de todas a mais perfeita, e as ferramentas (pergunte-se a um operário) têm de estar limpas e em condições de trabalhar eficazmente. (…)
A escola não é o lugar em que se subverte a estrutura da língua porque ela não tem preparação própria suficiente para se arriscar nessa aventura. As regras são como os sinais de trânsito numa estrada. Estão ali para orientar e dar segurança ao condutor. Claro que é possível viajar por uma rodovia onde não haja sinais de trânsito, mas para isso é indispensável ser um bom condutor. Aí está a diferença. ” José Saramago (2003)
Neste sentido também, Davidson recorre a uma outra afirmação muito conhecida de Toffler, "learn, unlearn and relearn" que quando retirada de contexto pode assumir contornos totalmente despropositados. O que Toffler realmente quer dizer é apenas e só, que o estudante do futuro tem de Aprender a Aprender. Isto é completamente diferente de assumir que as mudanças constantes na nossa sociedade levarão a que estejamos constantemente a apagar o passado. E menos ainda, isto quer dizer que não precisamos de aprender a classificar, categorizar e hierarquizar como Davidson procura afirmar.

Mais grave ainda acontece quando nos diz que a mudança constante que a sociedade vive, nos deve conduzir a deixar de preocupar com as tarefas repetitivas, porque essas serão feitas pelas máquinas, ou serão fruto de outsourcing!!! (quando a China se tornar um país desenvolvido, vamos começar a realizar outsourcing para Marte?). E se assim é, como é que eu explico a alguém que quer ser pianista, que quer ser animador 3d, que quer escrever, filmar, pintar, no fundo que quer criar, que só o poderá fazer se repetir milhares de vezes a mesma ação, e se o fizer ao longo de 10 mil horas?

A grande questão é que pessoas como Cathy Davidson seguem estas correntes de pensamento, de ideias feitas no mundo do discurso de sound bytes, porque é com elas que ganham atenção. Constroem ideias em cima de castelos de cartas, e quem os quiser seguir, dando-se mal, problema seu. Davidson não é propriamente imparcial nestas suas acusações contra a escola. Disléxica, viveu num tempo em que não se compreendiam os seus problemas, e por isso teve de se esforçar muito mais do que todos os outros para chegar onde chegou. Mas na realidade se ela chegou até aqui, é exatamente porque se esforçou dessa forma, porque conseguiu construir os modelos de pensamento na sua cabeça capazes de a ajudar a compreender o mundo que a rodeia. Não deveria agora, simplesmente querer atirar tudo para o lixo, condicionando o futuro daqueles que estão a crescer.

Porque todo este discurso anti-escola já cansa, nomeadamente nos discursos nas áreas da criatividade e de fusão entre arte e ciência, tanta “arrogância tecnológica”. Só em 2013 saíram dois livros que consideram a escola perniciosa, e apresentam caminhos alternativos baseados nos seus percursos pessoais, "Hacking Your Education: Ditch the Lectures, Save Tens of Thousands, and Learn More Than Your Peers Ever Will" de Dale J. Stephens e “Don’t Go Back to School” de Kio Starck que a Maria Popova fez questão de logo idolatrar no seu BrainPickings. Não é um discurso novo, os discursos anti-escola já vêm de trás, um dos mais emblemáticos é o "Deschooling Society" (1971) de Ivan Illich.

Eu não acredito que todos tenham de comer e gostar da mesma sopa, por isso defendo escolas técnico-profissionais. Estes caminhos alternativos podem até representar uma saída de excelência para algumas mentes brilhantes, mas não para a generalidade das pessoas, e é por isso que idolatrar este tipo de discursos é no mínimo perigoso. Porque se a escola é assim tão maléfica, destruidora das mentes das nossas crianças, castradora de todo o seu potencial criativo, como é que se explica que os países com maiores níveis de escolaridade (ex. Suécia e Finlândia) sejam mais criativos e mais felizes que os que têm menores níveis de escolaridade (ex. Portugal e Grécia)?

Julgo que é tempo de parar com tanto discurso feito, tanto fascínio tecnológico, e fazer um reset discursivo, de volta aos básicos. Um pouco como nos disse a semana passada Gonzalo Frasca, mais importante que os videojogos em sala, é aquilo que um professor consegue fazer em termos de atividades e exercícios de jogos com as crianças, usando o comum papel e cartão.


2. Internet e multitasking

Neste campo Davidson segue a mesma lógica que antes, mas aqui não se agarra apenas ao discurso do senso comum. E se percebo que Davidson está em grande parte a reagir à negatividade que a sociedade tem tentado atirar para cima da internet, das tecnologias de comunicação e dos videojogos, não aceito que o faça desta forma tão leviana. Não basta pegar em meia-dúzia de teorias da psicologia, das neurociências, do estudo do cérebro e atirar para a frente. Como diz Mark Changizi na sua análise do livro para o WSJ,
"In general, I'm receptive to knock-down-the-pillars theses, but Ms. Davidson's book is ultimately a disappointment, mostly because of the way it treats "the science"—in particular, my own specialty, brain science. Ms. Davidson writes as if the human mind's functions are almost totally elastic…
Ms. Davidson goes on to discuss a much wider variety of science. She touches on hot topics such as mirror neurons and cross-cultural studies of how children learn categorization. But they often seem cherry-picked, as if she began with a suite of optimistic ideas regarding how we can adjust to changing technology and then shopped for justifications at the mall of brain science." (
Changizi, 2011)
Este seu livro configura-se assim no género que já podemos denominar de Gladwelliano, ou seja a exposição de ideias suportadas por apenas partes de estudos científicos, depois simplificados ao ponto de qualquer leigo perceber, para garantir a veracidade da teoria que se pretende afirmar, ofuscando na generalidade o que os estudos realmente demonstram. Leia-se o artigo de Benjamin Bratton a propósito deste género de divulgação de ciência que tem sido amplamente propalado pelas TED talks.

E não é que Davidson apenas utilize uma ou outra teoria para suportar algumas ideias, se assim fosse, quem de nós já não o fez? O problema emerge do cerne que suporta toda a argumentação deste livro, incluindo capa e título. Davidson aposta tudo na teoria “inattentional blindness” de Daniel Simons e Christopher Chabris para lançar as amarras que sustentam todo o seu discurso. Esta teoria, mais conhecida por “gorila invisível”, demonstra que quando estamos muito focados em algo, somos incapazes de nos dar conta das coisas mais flagrantes que se passam à nossa volta (ver o vídeo abaixo). Davidson pegando na sua dislexia, conclui que cada um de nós está destinado a perder alguma coisa quando demasiado focado. Davidson assume assim que será muito mais vantajoso se agirmos colaborativamente, porque poderemos colmatar as falhas uns dos outros, colectivamente compreenderemos melhor a realidade. Partindo desta ideia, Davidson afirma que no caso do multitasking apenas temos de usar a mesma estratégia, trabalhar colaborativamente para colmatar as falhas de cada um de nós.

Selective Attention Test (Simons e Chabris, 1999). As pessoas focadas na contagem do número de passes dados com a bola, não conseguem ver o gorila que atravessa o espaço (+ info).

Ora não sou eu a dizer que Davidson é quem não vê a realidade, são os próprios autores da teoria. Chabris diz no NYT,
“she provides little but anecdotal support for a central argument of the book... Like many authors who embrace new ideas rather than build on what has come before, Davidson sets out to destroy the old beliefs, as if burning down a forest in order to plant new crops." 
“Indeed, Davidson is such a good storyteller, and her characters are so well drawn, it’s easy to overlook the lack of hard evidence in favor of the intriguing ideas she advocates...
Davidson correctly notes that there is no data showing that the Internet hurts our brains, though she errs in implying that no evidence of an effect means evidence that there is no effect. She also thinks multitasking has gotten a bad rap. Switching rapidly from one task to another actually helps us see connections between ideas and be more creative than we would if we held ourselves to a regimen of completing one task before we start another, she suggests. “Mind-wandering,” she writes, “might turn out to be exactly what we need to encourage more of in order to accomplish the best work in a global, multimedia digital age.” But this speculation is up against facts Davidson omits: the results of experiments showing that for all but perhaps an elite 2 to 3 percent of subjects, doing things in sequence leads to better performance than trying to do them simultaneously.” (Chabris, 2011)
Como diz Chabris são muitos os estudos que demonstram que o multitasking é um mito, que se quisermos fazer trabalho de excelência, teremos de o fazer em série, e não em paralelo. Aliás ainda há pouco tempo aqui falei do trabalho de Nicholas Carr. Mas esta abordagem ao multitasking de Davidson está no fundo intimamente ligado às ideias que propala sobre a Escola, ideias de que a escola parou no tempo e não prepara os jovens para o futuro. Para Davidson no tempo da internet e dos videojogos, já não faz sentido ensinar uma profissão, interessa apenas aprender um pouco de tudo, e desse modo o multitasking é a melhor solução. Davidson e muitos dos arautos destes mitos deveriam ler "Focus: The Hidden Driver of Excellence Hardcover" (2013) de Daniel Goleman, que saiu há poucos meses.

A realidade, e quem trabalha criativamente sabe bem disso por experiência no terreno, só podemos criar textos de longo alcance, com novas ideias, novas interpretações, quando desligamos do mundo, quando deixamos a nossa mente focar, aprofundar, e ver o mundo de múltiplas perspectivas abstractas. A concentração sobre um tópico para encontrar o não visível à superfície é fundamental. E não existe trabalho colaborativo que substitua este trabalho subterrâneo mental.

Aliás, são os próprios exemplos anedóticos dados por Davidson que nos dizem isto mesmo. Quando Davidson pergunta a Aza Raskin, o designer da interface do Firefox, como é que ele lida com a distração originada pelo multitasking, a resposta é muito clara: usa 3 computadores distintos. Um para o seu trabalho principal, um segundo mais perto para o e-mail, e um terceiro mais longe para a internet em geral, redes sociais, etc. Ou seja quando quer aceder ao e-mail tem de se levantar e ir ao segundo computador, quando quer aceder à net, tem de se levantar e caminhar ainda mais para chegar ao mesmo. É deste modo que Raskin consegue manter-se concentrado nas atividades principais em que está a trabalhar. Ou seja, ele assume claramente que precisa de erradicar tudo o resto, para se concentrar no código que quer escrever, ou nos artigos que quer produzir. Para Davidson, isto é apenas uma técnica para lidar com a distracção, para mim é a assunção de que o multitasking não existe.

Porque apesar disto Davidson passa o livro a insistir que o nosso cérebro está desenhado para o multitasking, esquecendo que apesar de funcionarmos em pensamento associativo a um nível não consciente, o nosso nível consciente tem uma capacidade bastante limitada para filtrar a múltipla informação que nos chega do exterior. Aliás, para quem tem dúvidas, basta tentar escrever um SMS enquanto conduz um carro, e verá como NÃO é dotado de qualquer super-poder de multitasking.

Não quero dizer que Davidson não tenha alguma razão quando se refere aos processos criativos. O trabalho colaborativo serve-nos, a interacção com as pessoas à nossa volta é vital para nos ajudar a despoletar novas ideias, são poderosos gatilhos que acionam as nossas ligações neuronais, e nos ajudam a proceder a fusões e misturas de ideias. Leia-se sobre os processos criativos na Pixar. Mesmo o multitasking pode também servir no despoletar destes gatilhos criativos. Mas é preciso ter em atenção que eles servem apenas para exactamente despoletar ou desencadear algo dentro de nós. Desencadeadas as ligações, precisamos do foco, do aprofundamento para chegar a compreender onde aqueles gatilhos nos podem realmente levar.

Esta ideia do multitasking como modus operandi regular ou de normalidade, é tão desprovida de senso, que Davidson assume a sua dificuldade, mas colmata-a então com o cooperativo e colaborativo, entrando assim adentro dum reino de idealismo ingénuo como nos diz Christine Wenderoth no Journal of the American Theological Library Association,
“She is not right in saying that we will all work together happily towards a common goal unaffected by interruptions and multiple demands on our time and attention. Her anthropology is incredibly naive. Decentralized and distributed work life? Sure we can do that. Self-control and self-regulation? Maybe we can manage that. But loss of ego and suspicion, innate ability to multitask, placing the common good over the personal? No. Trust is not an automatic thing. We may need to reexamine how we work, but some of her idealism is just plain, well, idealistic.” (Wenderoth, 2011)
No final o que mais me incomoda é que o livro até tem boas ideias a apresentar. A forma como Davidson procura trazer as ideias de mecânicas de jogo para escola, baseando-se no trabalho Jane McGonigal, não difere do que Gonzalo Frasca advoga. Ou seja, agilizar as atividades com mecânicas de jogo, preocupando-se menos com o facto de ser ou não digital. Desenvolver estratégias de avaliação baseadas em atividades lúdico-projetuais. Porque aquilo que importa é a relação que o professor constrói com o aluno, olhos nos olhos, e não através da tecnologia. Neste sentido também tenho de dizer que estou imensamente de acordo com todo ataque que Cathy Davidson desfere contra a obsessão pelos exames, testes, e standards classificatórios ao longo do livro. Por como ela própria diz, não servem a ninguém diretamente relacionado,
"I would stop, immediately, the compulsory end-of-grade exams for every child in an American public school. The tests are not relevant enough to the actual learning kids need, they offer little in the way of helpful feedback to either students or their teachers, and there are too many dire institutional consequences from failure resting on our children’s shoulders. The end-of-grade exam has become a ritual obligation, like paying taxes, and no one wants our kids to grow up thinking life’s inevitabilities are death, taxes, and school exams. That’s a disincentive to learning if ever there was one. " Cathy Davidson (2011:218) 
No fundo aquilo que sempre importou e continuará a importar, baseia-se na capacidade que o professor tem para desenvolver nos alunos empatia pelo que tem para partilhar com eles. A base da aprendizagem continua a ser a teoria da mente, ou seja a imitação, e enquanto não tivermos tecnologias capazes de simular seres humanos, estas continuarão sempre muito longe de poder substituir o ensino por via do semelhante. Tentar mudar toda a base biológica e cognitiva da aprendizagem devido ao surgimento de brinquedos tecnológicos externos parece-me no mínimo irracional. As tecnologias servem a educação como complementos, a internet e os videojogos nada mais fizeram do que aumentar e diversificar o acesso ao conhecimento que o livro possuía.

Podemos e devemos evoluir a escola que temos, com as tecnologias, com a personalização da aprendizagem, com a substituição dos exames pelas abordagens projetuais, etc., mas não esperem que simplesmente porque temos uma nova tecnologia, a internet ou outra que venha a seguir, os nossos cérebros, a nossa biologia e cognição, se transformem da noite para o dia.

julho 31, 2013

como prospera a nossa mente?

Trago mais uma comunicação de Ken Robinson, que não vem dizer nada de muito novo, mas como ele acaba dizendo, é preciso continuarmos a manifestar o nosso ponto de vista, para lutar contra os paradigmas instalados. Compete-nos a nós fazer com que mais pessoas compreendam o que está mal, e porque está mal, para que aos poucos esses paradigmas possam ser alterados.

How to escape education's death valley (2013) Ken Robinson

Ken Robinson aponta três princípios cruciais para que a mente humana possa prosperar, e que vêm sendo contrariados por vários modelos educacionais, tal como o seguido no sistema português, nomeadamente no consulado de Nuno Crato. Vejamos cada um, e analisemos o que estes modelos têm feito no sentido de os promover ou despromover.

Princípio 1. Os seres humanos são intrinsecamente Diferentes.
O que fizemos? Criámos exames e testes que garantem que todos os alunos saberão o mesmo em cada ano, e afunilámos o saber, restringido-o à Matemática e Português. Poderia ser mais irónico? Os exames deveriam, apenas e só, servir fins de diagnóstico do sistema, não podem servir para punir ou gratificar, não podem ser o centro da escola, não podem ser o fim da vida na escola. Quanto à Matemática e Português, questiono-me, como será possível criar atletas de relevo que nos motivem todos os dias da nossa vida, e artistas de qualidade que nos nos façam imaginar o que poderemos ainda vir a ser, se não dedicarmos espaço à Educação Física e às Artes na escola?

Princípio 2. Os seres humanos são intrinsecamente Curiosos.
O que fizemos? Retirámos a autonomia aos professores para desenhar os currículos das suas aulas, e obrigamo-los a seguir tudo o que é emanado do ministério centralizador. Como é possível despertar a curiosidade de cada um, se falo de igual modo para todos, e exijo o mesmo a cada um? De uma vez por todas, compreendam que a profissão de professor, é uma profissão profundamente criativa. Sim, é verdade. Aquela ideia de que quem não sabe fazer, ensina, é uma grande mentira. Porque saber ensinar, é saber fazer algo de bastante concreto. É desenhar a melhor forma de fazer chegar o conhecimento ao outro. É facilitar a aprendizagem do outro.

"What Teachers Make" banda desenhada de Zen Pencils, baseada na performance de Taylor Mali.

A única forma sustentável de facilitar a aprendizagem, é despertando a curiosidade. Já pararam para pensar porque é que gostam de ir ao cinema, porque é que gostam de ler um livro, ou de seguir uma série na televisão? Simples, porque estes artefactos utilizam a arma mais elementar de atrair a nossa atenção, que é atiçar a nossa curiosidade. Passamos todo o tempo que estamos envolvidos com estes artefactos, a questionar-nos, "o que é vai acontecer a seguir?".

E é por isso que a profissão de professor é altamente criativa, porque este tem de ser capaz de desenhar as suas aulas e os seus materiais, de forma a atiçar a curiosidade, de forma a manter o aluno interessado, para que este não se levante a meio da sessão, desista, e vá embora.

Princípio 3. Os seres humanos são intrinsecamente criativos.
Como é que eu posso despertar a criatividade das nossas crianças, se exigir a todas o mesmo, e se as punir por não serem iguais ao vizinho? Ken Robinson diz,
 "Nós criamos as nossas vidas, e podemos recriá-las enquanto as vivemos. É a prática comum de ser um ser humano. É por isso que a cultura humana é tão interessante, diversa e dinâmica (..) Todos criamos as nossas vidas ao longo deste processo incessante de imaginar alternativas e possibilidades, e esse é um dos papéis da educação, acordar e desenvolver esses poderes da criatividade."

julho 18, 2013

"Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the World" (2011)

O propalado livro de Jane McGonigal, deixou-me estupefacto quanto à sua falta de compreensão sobre o mundo, a vida, e no fundo a realidade que a rodeia. Diz-nos em suma, que "a realidade está partida"!?Para alguém com um PhD esperava mais. Embora perceba que é um discurso profundamente americano, daqueles cheios de números, de milhões que impressionam, e arrastam plateias, que depois de espremidos, sabem a muito pouco, porque na verdade, pouco ou nada se aprofunda sobre tudo aquilo que se diz.


Não digo que tudo esteja errado, até porque muito do que ela diz é interessante, nomeadamente no caso aplicado do design de jogos, nos chamados processos de gamification, ou dos Alternate Reality Games (ARG). Embora mesmo aqui, grande parte do discurso se aplique mais ao domínio dos jogos do que dos videojogos, o que não teria mal nenhum, não estivesse ela a tentar dar a ideia de que o discurso se aplica de igual modo aos videojogos. Mas o meu problema com o seu discurso, está na essência do objectivo do título do livro. E é aí que o livro perde todo o interesse, porque McGonical não faz a mínima ideia do que fala. Porquê?

Simples. McGonigal tenta vender a ideia de que se aplicarmos o design de jogos à vida, à realidade, poderemos transformar o mundo. Isto porque segundo ela, o mundo está quebrado!!! Para McGonigal a vida deveria resumir-se a uma lista pronta de objectivos a atingir, com pontos conseguidos a cada conquista, e com um objectivo final perfeitamente definido, à nossa espera. Pois, infelizmente ou felizmente, nada disso é a vida, porque a vida não é um sistema regulado, linear, rígido, focado, estabilizado, pré-determinado, fechado, etc.

A realidade é orgânica, tal como o simples acto de viver. Não nascemos com um destino marcado à nascença, nem queremos que nos marquem na adolescência. Viver, é enfrentar a inconstância, a incerteza, a descontinuidade. O ser humano mais criativo, mais capaz é exatamente aquele que consegue aprender a lidar com a organicidade do ecossistema que habita.

O que McGonigal nos traz, não é nada mais do que aquilo que a revolução industrial nos trouxe, com as suas tentativas de regulação, por via da harmonização das diferenças. McGonigal apresenta a solução para consertar o mundo e a realidade, que segundo ela está partida. Através do design de jogos, quer delinear os caminhos, categorizar as atividades, motivar por objectivos, ajudar a cumprir o destino. Porque segundo ela, jogar é divertido, por isso se jogarmos a vida, vamos nos divertir imenso!!! Na sua ingenuidade, McGonigal não entende que com isso, não salvará ninguém, contribuirá apenas para aprisionar mais as pessoas. O que é o dinheiro, se não o maior sistema de gamificação das relações humanas alguma vez inventado? Precisamos de mais sistemas deste género?

McGonigal terá de perceber que não basta citar meia-dúzia de estudos de psicologia sobre a emoção para suportar algumas das banalidades que debita ao longo do livro. Não basta suportar alguns pontos do discurso com estudos, é necessário saber situar aquilo que se pretende afirmar com esse suporte, e McGonigal claramente não sabe. A leitura de Thinking, Fast and Slow (2011) de Daniel Kahneman teria ajudado bastante. É uma pena, porque existem vários assuntos tratados por ela, de forma muito interessante.

Em jeito de resposta, deixo o vídeo com as palavras de Ken Robinson, que coloca o dedo na ferida, do modo como vemos a sociedade humana, e o modo como ela realmente funciona: “a educação... a vida humana, e as comunidades humanas... não são mecanismos, mas antes são mais como organismos... o nosso sucesso é sinergético com o nosso ambiente”. Ou seja, o que precisamos, é de construir modelos para a diversidade, não para a conformidade, porque só assim cada um se poderá encontrar a si mesmo, se definir enquanto ser humano, e realizar-se plenamente.

How to Find your Element (2013) palavras de Ken Robinson, ilustração de Molly Crabapple

maio 14, 2013

Educação é Água

Isto é filosofia. Já não me sentia assim desde os tempos em que passava tardes a ler os clássicos de filosofia da Guimarães Editores, de Nietzsche, Erasmo, Schopenhauer... Porque eram tempos em que aquilo que lia ressoava dentro de mim, como que se sentisse plasmado naquelas linhas, ideias do mundo, ali confirmadas, ali interpretadas, para me ajudar a ir além dos meus próprios pensamentos. O discurso inaugural de 2005 na Universidade Kenyon College por David Foster Wallace é isto apenas, pura filosofia, análise da vida, análise do impacto da educação nos nossos seres.

"A verdade, com V maiúsculo, diz respeito à vida antes da morte. É sobre o valor real da verdadeira educação, que não tem (quase) nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com o simples discernimento; o discernimento do que é real e essencial, tão escondido à vista de todos, e ao redor de todos nós o tempo todo, que temos de lembrar-nos a todo o momento:
Isto é água.
Isto é água."

This is Water By David Foster Wallace (2013) por The Glossary [Link alternativo]

O que ressoou mais dentro de mim foi exactamente a metáfora da ida ao supermercado que David Foster Wallace utiliza para elaborar o seu discurso. Pois em casa sou eu quem faz as compras, e isso implica pelo menos uma ida semanal ao supermercado. Nesse sentido aquilo que Wallace descreve aqui como momentos de Awareness (Discernimento) eu até aqui chamava de Tolerância. Mas é verdade que dito e descrito da forma como David Foster Wallace o faz, tenho de lhe conceder razão. O que acontece nesses momentos é um processo de consciencialização. Um processo em que a consciência toma o controlo, impedindo o automatismo de comandar as nossas reacções emocionais. No fundo a tolerância é isto mesmo, uma capacidade de ir além do instinto, agindo pela razão. Aquilo que Wallace nos diz é que é pela Educação que essa capacidade de controlo da nossa animalidade surge, é um estado evoluído do Eu em que a cognição passa a conseguir sobrepor-se às reacções comandadas pela emoção.

David Foster Wallace refere aqui algo que verdadeiramente acredito ser o ponto nevrálgico da educação. E se até acredito e gosto das intervenções de Ken Robinson, Ivan Illich entre outros que atacam a escola pelo seu normativismo e formatação das pessoas, que impede um lado mais criativo, na realidade também acredito que só por via deste esforço de adequação e longos anos de formação se conseguem atingir estados mais elevados da razão. Estados que não são de mera obediência como nos fazem crer alguns ataques à formatação escolar, mas antes estados de discernimento. Como diz Wallace, estados em que somos nós quem decide o que pensar, e em que pensar a cada momento.
"It is extremely difficult to stay alert and attentive, instead of getting hypnotized by the constant monologue inside your own head (may be happening right now). Twenty years after my own graduation, I have come gradually to understand that the liberal arts cliché about teaching you how to think is actually shorthand for a much deeper, more serious idea: learning how to think really means learning how to exercise some control over how and what you think. It means being conscious and aware enough to choose what you pay attention to and to choose how you construct meaning from experience. Because if you cannot exercise this kind of choice in adult life, you will be totally hosed." David Foster Wallace, 2005
Tudo isto está neste belíssimo filme de nove minutos que é um resumo do discurso de 20 minutos que podem ler e ouvir na íntegra. O filme foi feito por uma pequena empresa, com poucos recursos e sem sequer autorização, como tributo ao discurso. Vejam primeiro o filme, e leiam depois o texto, entretanto transformado em livro. David Foster Wallace já não está entre nós, em 2008 suicidou-se depois de mais de 30 anos de depressões. Deixa-nos um legado de reconhecida qualidade, e deixa-nos este discurso que espero que sirva de inspiração a todos os que aprenderam a gostar de aprender.

fevereiro 22, 2013

Universidade e Emprego, nas Áreas Criativas

Trago uma discussão sobre a importância do ensino superior porque se vai ouvindo um discurso nas áreas criativas - das artes à informática - que vende a ideia de que um curso superior não serve para nada, que é tempo perdido. Aponta-se o facto de que quem dá aulas não trabalha na indústria, logo seguido da ideia de que à indústria interessa apenas a experiência do saber fazer. E podemos até elencar vários casos de sucesso nacionais e internacionais, o único problema é que estes casos são as exceções, e não a regra.


Este é um assunto que me diz directamente respeito, na medida em que trabalho na academia no ensino de áreas criativas. É um assunto sobre o qual reflicto continuadamente. Todos os anos me questiono se os cursos que temos na Universidade reflectem as necessidades da sociedade, se o que estes oferecem representam uma mais valia para o estudante, se o modo como abordo cada assunto é suficientemente envolvente para levar à compreensão do que está em questão. Neste sentido este texto surge motivado por alguns textos recentes que li a propósito dos cursos superiores de videojogos [1, 2, 3] assim como a partir de tudo aquilo que me ocupa muitas vezes a mente sobre este assunto.

Primeiro quero separar o discurso americano do discurso Europeu. Se me perguntarem se vale a pena fazer um curso superior em jogos, jornalismo, cinema ou pintura pagando propinas no valor de 100 mil dólares, como se discute no Kill Screen Daily, provavelmente terei de responder que não. A razão é simples, a educação de uma pessoa não é algo que serve apenas aquela pessoa em particular, serve toda a sociedade desde a família dessa pessoa, à empresa mais sofisticada deste país. Nesse sentido, obrigar uma pessoa a endividar-se para a vida para fazer um curso superior é uma aberração. Isto não é o que temos na Europa, e espero que nunca venhamos a ter. Pagar três mil euros por um curso superior completo é dinheiro mas convenhamos que é ainda um preço simbólico. Assim deixo algumas razões iniciais para se fazer um curso superior nos dias de hoje:
  1. A educação cria espaço para o erro, e tempo para aprender com este. Isto é fundamental num diploma, porque garante ao empregador que quem está à sua frente já investiu tempo, aprendendo com os erros. O diplomado é alguém que vai errar menos e perder menos tempo a aprender.
  2. O diploma é ainda um selo de garantia para o empregador de que a pessoa que está à sua frente é capaz de assumir tarefas/projectos de longo termo e levá-las até ao final. Algo que não é de somenos, tendo em conta que um dos maiores problemas nas áreas criativas surge na elevada taxa de projetos iniciados versus terminados.
  3. A experiência não ensina teoria, mas a teoria ajuda a compreender a experiência em maior profundidade. Permite melhorar as suas competências em profundidade, e não apenas em extensão. Não se trata de saber mais, trata-se de compreender a essência da actividade, para com isso ganhar autonomia e independência crítica.
  4. A turma de alunos serve de referencial entre iguais, com os mesmos sonhos criativos. É a comunidade que permite ao aluno encontrar-se. Descobrir aquilo em que é bom, ou em que é melhor que os seus pares.
O ponto 3 é dos mais importantes porque serve para responder a algum discurso que sempre existiu, mas que se vem afirmando ainda mais com a erosão criada pela extinção do movimento industrial e a abertura de uma nova economia baseada nos sistemas de informação e comunicação. E ainda pela ausência de reconhecimento por parte de metodologias herdadas do modelo industrial que professavam um ensino igual para todos, fazendo tábua rasa das claras diferença existentes entre indivíduos. Este discurso, defendido por pessoas como Ken Robinson, Ivan Illich ou Alvin Toffler, diz-nos que a Escola é uma instituição assente em valores errados, porque professa uma formatação das mentes de modo igual. Diz-nos que é algo que foi promovido pela revolução industrial, para criar pessoas bem comportadas para trabalhar em linhas de montagem, ou seja autómatos desprovidos de espírito crítico.


Ora isto corresponde cada vez menos à realidade. Se é verdade que a componente de avaliação realizada por exames escritos se encaixa neste padrão, as mudanças que vêm surgindo nos últimos tempos com a evolução dos métodos de avaliação a tornarem-se cada vez mais abertos, e mais preocupados com os processos de construção do que com os resultados finais alterou muito disto. Nomeadamente nas áreas criativas onde raramente se trabalha com exames escritos. O projecto é aqui a referência, porque é este que nos permite avaliar, não apenas a competência concreta, mas a evolução da competência, e o seu contexto. É possível desta forma compreender se o aluno está preparado para continuar a evoluir, mesmo que o resultado final não seja tão bom com o dos colegas. Porque é na Universidade que se falha, e por isso não é relevante se o aluno acerta, o que é importante é que tenha compreendido o processo que o levou a falhar.


Mas mais do que isto. Existe uma necessidade absoluta das pessoas se encontrarem nas escolas entre iguais. De perceberem o que os diferencia. De compreenderem em que medida podem fazer diferente ou melhor. A teoria que se ensina numa Universidade, não cria mentes que pensam todas da mesma forma. Antes pelo contrário é a experiência sem substrato teórico que cria a mesma e única forma de compreender a realidade. Sem a teorização não se consegue compreender a essência do que está em causa, e por isso só em raras excepções a inovação surge da mera experiência. A teorização realizada num âmbito universitário procura antes de mais explodir o status quo das ideias canónicas. Procura demonstrar que existe A mas também existe B, e que nenhuma das duas é mais relevante, porque cada uma têm as suas abordagens, perspectivas, contextos, e histórias. Cabe ao aluno compreender e crescer criticamente, e é nesse sentido, que vem o que cito a seguir de Jeff Parrott,
"Vocês precisam não só de passar pela escola e pela criação artística, mas precisam de se destacar, ir além do que vos é pedido." [1]
Ou seja, um dos maiores problemas do aluno que sai de uma Universidade no século XXI é que já não chega ter um diploma que certifica competências. É preciso que além dessas competências, a pessoa se diferencie, se evidencie em algum elemento da área em que se formou. A diferença face a século XX está na massificação de pessoas com o mesmo curso superior. Nesse sentido, não chega saber muito de uma grande área, porque temos muitas pessoas a saber muito de uma grande área. É preciso além disso que essa pessoa se diferencie, se destaque em algum componente da grande área em que se formou.

Ou seja, o drama de um aluno do ensino superior hoje, não pode ser tirar boas notas para ser o melhor aluno ou evitar chumbar para poder terminar o grau. Chamo drama porque trata-se de algo muito mais interno e pessoal do que exteriorização numa tabela de notas. É um conflito interno que passa por encontrar-se e transformar-se, assumir uma identidade definida, delineada e distinta. Um aluno que no final dos três anos tem um grau, mas não sabe em que é que pode fazer a diferença, dificilmente conseguirá um emprego duradouro e no campo do curso que frequentou. Nesse sentido ficam algumas ideias sobre como proceder para se encontrar, para se transformar, para ir além daquilo que a Universidade garante e conseguir mais facilmente uma posição no mercado.

- Identidade Virtual - 
Colocar online o trabalho que se vai fazendo, tendo o cuidado de apenas escolher o melhor (Site pessoal, Fóruns e Grupos Online). Dar-se a conhecer e promover o seu trabalho, permite não só construir uma identidade reconhecida pelos outros como permite através do feedback recebido compreender se está na boa direcção ou não.
Alguns fóruns são frequentados por profissionais da área, nesse sentido temos ali uma oportunidade de perceber melhor o nosso potencial. Escrever em fóruns não deve contudo ser encarado como algo menor e aonde se faz o que nos apetece sob o manto do anonimato. Antes pelo contrário é preciso dar-se a conhecer com um grande sentido de humildade, demonstrar vontade de aprender, sempre.

- Consumo, quase obsessivo, da Área - 
É um dos pontos mais relevantes na definição da identidade. É preciso devorar tudo o que se faz na área em que nos movemos - seja videojogos, cinema, pintura, jornalismo, design, etc. Por várias razões:
  • Para ter a sorte de encontrar o clique que nos fará mover em termos criativos. Quase todos os criadores têm um artefacto que lhes fez a uma determinada altura da vida tomar decisões e enveredar por A ou B.
  • Para conhecer o que se faz na área, e compreender o que define a qualidade dos artefactos da área.
  • Para compreender o que está em falta na área, ou aquilo em que existem ainda poucas pessoas a trabalhar.

- Trabalho em Equipa -
Ser capaz de trabalhar em equipa é de extrema relevância porque nenhuma profissão permite que vivamos isoladamente. Isto requer uma grande dose de inteligência social que é importante adquirir enquanto se está na Universidade. Ser capaz de compreender o outro e fazer cedências ajuda a optimizar processos, ajuda a conseguir resultados de forma mais eficaz, e com tudo isto ganhar reconhecimento dos pares.

- Amigos Pares -
Ter um grupo de amigos na área de trabalho é extremamente relevante para se pode obter o feedback mais honesto e sincero possível ao nosso trabalho. É este feedback que nos mantém ativos, e é este que nos vai moldando, empurrando para a área em que somos, ou poderemos vir a ser, bons.

- Criar, Criar, Criar - 
A Universidade requer a realização de trabalhos, testes e projectos mas existem ao longo de um ano imensos tempos de pausa, nas paragens das aulas, nas férias, nos fins-de-semana, e até mesmo na fase em que as aulas são mais expositivas e requerem menos entregas. É preciso criar, sempre, nunca parar. Investir na criação contínua é o único ponto numa actividade criativa que não pode nunca ser dispensado. Sem ele não existe criador. Porque só o trabalhado continuado permite evoluir na arte, o que juntamente com o feedback que se vai recebendo garante a prossecução do caminho para a melhor definição de si.



Pode parecer complicado mas é muito menos do que parece. Depende apenas de nós. Não é preciso fazer tudo o que digo aqui. Somos todos diferentes, e vemos todos o mundo de formas diferentes. Para uns fará mais sentido uns pontos, para outros outros pontos, e para outros ainda pode até fazer tudo sentido. Acima de tudo interessa muita dedicação e paixão pelo caminho que se trilha, que não seja motivado por um mero ordenado no final do percurso, mas apenas e só por crescer enquanto ser humano.


[1] Day zero: Tips for starting out as a game artist, in Gamasutra, 2013
[2] What Game Students Should Know Already, In GameTheory, 2010
[3] Do game designers actually need to go to school?, in KillScreen Daily, 2013

outubro 14, 2012

"O Talento é Sobrestimado"

Talent is Overrated. What really separates world-class performers from everybody else é um livro de Geoff Colvin que me obrigou a imensa reflexão. Essencialmente porque numa primeira parte me obrigou a analisar concepções contrárias às que defendo sobre a aprendizagem e a criatividade, e numa segunda parte volta a aproximar-se das minhas ideias de origem. O livro de Colvin foi baseado num artigo inicialmente escrito para a revista Fortune, da qual é editor chefe.


Assim o que Colvin começa por dizer neste livro é que o talento é uma espécie de desculpa que nós encontrámos para deixar de desenvolver determinadas competências. E que qualquer um de nós pode desenvolver as competências que quiser, desde que lhe dedique um esforço considerável (as tais 10 mil horas de Andrew Ericsson). Baseia todo este discurso na análise da performance do ser humano. Um simples demonstrador da performance da técnica face ao talento inato sobressai quando olhamos para a constante quebra de recordes mundiais desportivos. Ainda este ano o NYTimes realizou um excelente trabalho de infografia em que demonstrava a diferença entre o recorde dos 100 metros natação, de 2008 para 1896 com uma distância de quase 50%.

Um corrida (imaginária) com todos os medalhados de sempre (NYT)

Colvin continua com os exemplos de Mozart e Tiger Woods, demonstrando que ambos não eram nenhum talento especial em crianças, mas que a grande diferença entre eles e os demais esteve no facto de terem ambos em casa professores da profissão. Pais que não só os fizeram treinar, como os orientaram na melhor forma de o fazer desde muito pequenos, no fundo foram os seus primeiros professores. Nenhum deles terá inovado muito antes dos 20 anos, mas chegados a essa idade a quantidade de horas acumuladas de trabalho prático de qualidade desenvolvido por ambos terá feito com que estes se distinguissem dos demais.


Para suportar ainda mais esta ideia vai buscar nada menos que Laszlo Polgar, um defensor extremista da genialidade fabricada. Polgar teve três filhas com o simples intuito de as tornar campeãs mundiais de xadrez, tendo começado a treinar todas elas desde bebés, e dedicando-se ele e a mulher apenas e só à educação delas. As três irmãs são hoje heroínas da Hungria, conseguiram chegar as três a grandmasters, conseguiram abrir a prática às mulheres, ultrapassaram muitos homens, foram modelos, e conseguiram grandes feitos. Mas no FIDE Top 100 a filha mais nova, Judit Polgar, foi a que chegou mais alto e nunca passou do 8º lugar, em 2005. E aqui começam as minhas dúvidas sobre todo este discurso.

As três irmãs Polgar

Ainda assim uma das conclusões que Colvin retira de tudo isto parece-me a reter, e que tem que ver com o conceito de Prática Deliberada ou intencional já definida antes por Andrew Ericsson. Para compreender este tipo de prática Colvin define-a em 5 passos,
  1. A prática intencional deve ter como objectivo melhorar a qualidade do trabalho.
  2. Múltiplas repetições. Primeiro definir o que é preciso melhorar, e depois ver se as acções levam a melhorar, e depois trabalhar intensivamente para melhorar.
  3. É preciso ter feedback dos resultados do trabalho. Se não é impossível saber como continuar a melhorar.
  4. O trabalho deliberado requer esforço mental. A intensa busca por melhorar só se consegue com focagem em profundidade.
  5. A prática deliberada não cabe em descrições românticas. É dura porque não é o momento em que treinamos aquilo em que já somos bons, mas antes aquilo em que ainda não somos.
Para suportar tudo isto dá ainda um exemplo, para mim muito mais interessante do que o de Lazlo Polgar, e que já explicarei porquê. O exemplo é de Benjamim Franklin (1706-1788) um dos fundadores dos EUA, apelidado de homem da renascença dadas as suas reconhecidas polivalências: escritor, político, cientista, inventor, activista, satirista, diplomata, entre outras coisas. O exemplo que Colvin nos traz é sobre o modo como Franklin aprendeu a escrever. Um dia o seu pai disse-lhe que os seus textos eram superiores aos dos seus colegas em conteúdo mas falhavam na forma e por isso acabavam por não conseguir fazer passar as suas ideias. Franklin resolveu então começar a trabalhar a sua escrita. Transcrevo agora parte directa da autobiografia de Benjamim Franklin,

Imitating the Style of the Spectator, (1789), Benjamim Franklin
About this time I met with an odd volume of the Spectator. I had never before seen any of them. I bought it, read it over and over, and was much delighted with it. I thought the writing excellent, and wished, if possible, to imitate it. With that view, I took some of the papers, and making short hints of the sentiment in each sentence, laid them by for a few days, and then, without looking at the book, tried to complete the papers again, by expressing each hinted sentiment at length and as fully as it had been expressed before, in any suitable words that should come to hand. I then compared my Spectator with the original, discovered some of my faults and corrected them. But I found I wanted a stock of words, or a readiness in recollecting and using them, which I thought I should have acquired before that time if I had gone on making verses; since the continual occasion for words of the same import, but of different length, to suit the measure, or of different sound for the rhyme, would have laid me under a constant necessity of searching for variety, and also have tended to fix that variety in my mind, and make me master of it. Therefore I took some of the tales and turned them into verse; and, after a time, when I had pretty well forgotten the prose, turned them back again. I also sometimes jumbled my collections of hints into confusion, and after some weeks endeavored to reduce them into the best order, before I began to form the full sentences and compleat the paper. This was to teach me method in the arrangement of thoughts. By comparing my work afterwards with the original, I discovered many faults and amended them; but I sometimes had the pleasure of fancying that, in certain particulars of small import, I had been lucky enough to improve the method or the language, and this encouraged me to think I might possibly in time come to be a tolerable English writer, of which I was extremely ambitious.
O que podemos ver neste texto, é exatamente aquilo que Andrew Ericsson disse, e Colvin aqui repete, como Prática Deliberada. Trabalhar repetidamente em busca da melhoria, constante, sem parar nunca. Ora isto levanta um problema claro, e que ficou já bem evidenciado no exemplo das filhas de Lazlo Polgar. Estas chegaram aos 20 anos e desistiram de competir no xadrez de alto-nível. A explicação é dada por elas. Queriam ter filhos, queriam conhecer mundo, queriam mais do mundo em que viviam, e o xadrez não as preenchia. Porque aliás num outro exemplo que Colvin dá a respeito de grandes músicos, através de inquéritos realizados, aquilo que custava mais a estes músicos, era a parte em que treinavam sozinhos além dos períodos de treino normal na orquestra. Mas eram exatamente estes músicos aqueles que se destacavam dos demais, porque treinavam muito além dos outros. Aliás aqui não posso deixar de citar um exemplo popular português, Cristiano Ronaldo.

A incansável busca pela perfeição é dolorosa e este é para mim o elemento central de tudo. É o ponto que deita por terra esta conceptualização totalmente errada do ser humano nascido tal uma tábua rasa à espera de ser moldada através de práticas radicais behavioristas. É possível criar grandes profissionais, Polgar demonstrou-o, mas não é possível criar génios. Não é possível fazer mentes brilhantes com as nossas mãos apenas. E porquê? Bem a resposta é muito simples, e a resposta está num livro de Ken Robinson, The Element que nos fala de descobrirmos o elemento no qual nos sentimos bem, no qual sentimos que podemos contribuir para a sociedade, no qual os outros que nos rodeiam também acreditam que podemos retribuir. Colvin dá exemplos de grandes mentes que vieram de pequenas cidades, e diz que isso pode ter sido um bom estímulo, porque num meio pequeno é mais fácil destacarmo-nos, sermos elogiados pelo que fazemos bem, o tal feedback não é apenas no sentido de explicar o que devemos melhorar, mas é também para nos levar a continuar, a enfrentar o doloroso esforço da prática deliberada.

Os seres humanos não são tábuas rasas

Ora o que falamos aqui vem de encontro ao que ainda esta semana defendi na conferência COIED e que é o factor de sermos todos diferentes, termos todos talentos únicos. Como poderíamos ser todos diferentes e únicos por fora, e por dentro sermos totalmente iguais e moldáveis como nos é dito aqui?! Agora não podemos sobrestimar os talentos, e aqui em total acordo com Colvin. Precisamos verdadeiramente é de encontrar em nós o mais cedo possível aquilo que nos move, que nos faz correr incansavelmente. E é por isso que considero o exemplo de Benjamim Franklin totalmente diferente de Lazlo Polgar, porque o que Franklin fez partiu totalmente da sua motivação intrínseca (Drive). A força de querer fazer, impeliu-o para o seu elemento e deu-lhe força para continuar a tentar, a desenvolver a escrita e a verbalização de ideias.

Slides da minha comunicação na COIED

Nada devia ser mais importante na Escola do que ajudar os alunos a encontrarem-se, a descobrirem aquilo que mais gostam de fazer e em que são verdadeiramente dotados. É claro que o caminho de lhes dar a conhecer o mundo é necessário, mas depois é preciso ir além disso, é preciso trabalhar individualmente com cada criança, e ajuda-la a encontrar-se. Não é possível ajudar crianças a serem geniais em turmas de 20 ou 30 alunos. Serão apenas medianos se não tiverem alguém ou pais que se dediquem de amor e alma à educação destes. Porque o talento, até pode estar lá, mas se não for ajudado a estruturar-se nunca florirá em força. E para isso temos de ser capazes de lhes proporcionar um ambiente próprio para tal. E aqui Colvin vai buscar os estudos de Mihaly Csikszentmihalyi da Universidade de Chicago, um dos mais importantes investigadores no campo da criatividade para nos dizer, a partir da sua investigação,
“why it's easier for some adolescents than others to sustain concentrated, effortful study, the core of deliberate practice and high achievement. The research focused on the students’ family environments, evaluating them on two dimensions, stimulation and support. A stimulating environment was one with lots of opportunities to learn and high academic expectations. A supportive environment was one with well-defined rules and jobs, without much arguing over who had to do what, and in which family members could rely on one another. The researchers classified family environments as stimulating or not and supportive or not, creating four possible combinations. Adolescents living in three of those combinations reported the typical low-interest, low-energy experience of studying. But in the fourth combination, the environment that was both stimulating and supportive, students were much more engaged, attentive and alert in their studying.” (p.174)
Ou seja, o talento tem de estar lá, mas precisa de ser explorado. É preciso ajudar a pessoa a conseguir chegar a ele. Assim como temos de ajudar uma criança a aprender a comer com o garfo, a aprender a andar de bicicleta, e isso requer tempo e atenção, também temos de a ajudar a aprender a encontrar-se. Para isso não basta estimular a curiosidade, é preciso garantir apoio, muito apoio. Só o feedback constante, mas verdadeiro, pode levar a que uma mente jovem se consiga encontrar.