setembro 19, 2015

Os heterónimos de Pessoa e a narrativa

Êxtase foi o que senti hoje, ao ler a “Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935” de Fernando Pessoa, na qual este nos explica como surgiram os seus heterónimos, as suas origens, os seus traços, e como era escrever segundo cada um deles. A escrita de Pessoa é profusamente impressiva, com cada linha a emanar o sentir momento a momento, como se ali se pudesse conter não só o presente, mas o antes e o depois da trepidação de cada emoção que por ele passa, o que torna impossível ao leitor não se emocionar, não sentir também. Antes de aqui transcrever o texto quero fazer dois reparos, um sobre o talento, o outro sobre a narrativa enquanto processo de construção do Eu.


O talento de Pessoa, como qualquer grande talento, surte do seu empenho na escrita desde cedo, que fica evidenciado desde logo quando Pessoa refere nesta carta: “o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo”. Ou seja, quando muitas crianças estão ainda a aprender a ler, Pessoa já escrevia cartas a partir de personagens/amigos imaginários para si mesmo, algo que abraçou para o resto da vida, investindo grande parte do seu tempo diário na escrita.

Sobre a questão da narrativa, o filósofo Galen Strawson usou recentemente o exemplo dos heterónimos de Pessoa para dar conta da alegada falsidade que é pensar a narrativa como o modelo único de organização da nossa autobiografia, a consciência, o que define aquilo que somos. Para Strawson, os heterónimos de Pessoa dão conta de uma realidade interior muito mais fluída, variável, não-linear, sem princípio nem fim, que vai contra tudo aquilo que define o modo narrativo. Na realidade, não precisamos sequer de ir aos vários desdobramentos de Pessoa em heterónimos, se olharmos a Bernardo Soares, autor do "Livro do Desassossego", e aquele que Pessoa considera mais ele mesmo, apenas um "semi-heterónimo", facilmente veremos como parece perpassar uma espécie de ausência de fio narrativo pela vida de Pessoa. Bernardo Soares tem imensa dificuldade em criar uma estrutura conectiva entre factos, dificilmente temos sucessões de eventos, causalidade, tudo ali parece flutuar e tocar-se apenas por meio de interstícios. Dá-nos uma ideia de Pessoa, mas se a dá, é porque nós a construímos em nós mesmos, interiorizando a leitura à nossa própria narrativa, e é isso mesmo que acaba por vir dar mais força a ideia da narrativa como modelo de organização da nossa autobiografia. Porque claramente Pessoa não era um padrão, era um artista, dotado de excentricidades e peculiaridades, as tais que lhe permitiram criar um universo só seu. Pessoa não se formou como narrativa, antes como mundo, quando muito mundo-história, com múltiplas ramificações, múltiplos inícios e múltiplos finais, um verdadeiro rizoma no extremo oposto da narrativa.


[Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.

Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.

(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).

Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

Creio que respondi à sua primeira pergunta.

Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...

Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.

(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...

Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).

Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.

Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, (1935), Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas, Lisboa: Publ. Europa-América, 1986. 1ª publ. inc. in Presença , nº 49. Coimbra: Jun. 1937, Online.

setembro 15, 2015

"Jinxy Jenkins & Lucky Lou" (2014)

A animação de Michael Bidinger e Michelle Kwon é mais um resultado de tese de fim de curso, desta vez do Ringling College of Art and Design (Florida, EUA), e que arrecadou em junho o prémio da melhor curta do SIGGRAPH 2015, em competição com curtas profissionais.



"Jinxy Jenkins & Lucky Lou" usa uma linguagem perfeitamente standard, seguindo todas as convenções impostas nos últimos anos pela Pixar, por outro lado demonstra um excelente nível técnico no cumprimento dessas convenções, mas onde se destaca e deslumbra é no campo da experiência, no modo como apenas em 3 minutos nos consegue arrancar vários sorrisos, fazer desfrutar e ao mesmo tempo levar a reflectir sobre o que andamos por cá a fazer.

"Jinxy Jenkins & Lucky Lou" (2014) de Michael Bidinger e Michelle Kwon


Sobre o processo podem ver ler a entrevista ao Creative Bloq.

setembro 13, 2015

"Moby Dick" (1851)

Escrito num tempo em que a estética dominante, o romantismo, procurava elevar o maneirismo da forma escrita e enaltecer a profundidade da emoção humana, a sua leitura não poderia deixar de ser laboriosa assim como ambígua. Contudo a aventura por que somos levados a atravessar do Atlântico ao Pacífico, é de tal forma grandiosa, instigadora do instinto humano, que todo o esforço que nos é pedido é por sua vez sobejamente recompensado.



Se tudo isto era já suficiente para conferir grande sumptuosidade à obra, Melville não se ficaria por aqui, tendo optado por criar toda uma estrutura narrativa de imensa complexidade, por via da diversidade de géneros discursivos, elegendo dois como dominantes, o relato científico e a prosa poética. Direi que esta dualidade me causou algum espanto, não esperava encontrar num livro de 1850 tal abordagem, diria mesmo completamente fora da sua época, já que a tentativa de fazer passar um discurso factual por via do poder de envolvimento do discurso ficcional é algo que só recentemente foi entendido como potencialmente benéfico.

Em certa medida esta dualidade foi a grande responsável pelo total falhanço da obra enquanto Melville viveu, e durante mais 50 anos após a sua morte. A crítica convergiria para um ataque a esta dualidade, acusando Melville de ambição desmedida, e de não ter conseguido realizar o que se tinha proposto.
[A]n ill-compounded mixture of romance and matter-of-fact. The idea of a connected and collected story has obviously visited and abandoned its writer again and again in the course of composition.Henry F. Chorley, in London Athenaeum, October 25 1851
Só mais tarde, já em pleno modernismo, será “Moby Dick” redescoberto e analisado a uma luz distinta. A leitura que vai saltitando entre os dois registos, nem sempre é fácil, por isso não admira a admiração dos modernistas. É verdade que a componente científica presente em Moby Dick tem hoje quase nenhuma relevância, além de histórica, e por isso mesmo torna-se por vezes além de entediante, frustrante. Contudo, a sua leitura na época teria um valor completamente distinto, tendo em conta toda a relevância sócio-económica da caça às baleias.

Com isto não quero dizer que ler “Moby Dick” hoje perdeu todo o seu interesse. É verdade que a obra de Melville não é um tratado científico com um lastro que possa ombrear com “A Origem das Espécies” (1859) de Darwin, não por lhe faltar observação e minúcia do foro baleeiro, mas antes porque se limita a descrever, deixando toda a componente crítica para o lado ficcional da narrativa, a operar sobre o humano. Ou seja, temos uma obra em si mesma colossal, por todo o trabalho de investigação necessário ao seu desenvolvimento, a quantidade de detalhe e os modos de conseguir a informação impressionam, ao que se junta um registo poético que não terá sido ditado com menor minúcia, fruto de grande revisão e aperfeiçoamento.

William Faulkner, profundo modernista, perceberia isto muito bem, a distinção de registos discursivos e a tentativa de mescla operada por Melville, e por isso quando lhe perguntaram que livro gostaria ele de ter escrito, em 1929, ele respondeu: “Moby Dick”.

Do lado da aventura, temos uma história sobre a persistência e resiliência humanas, sobre o confronto entre o humano e o meio, a luta por levar o seu desígnio avante, por não se deixar quedar nunca, tudo e todos enfrentando para conseguir afirmar-se, nem que isso custe a sua própria vida. Neste sentido existem imensos paralelos com a obra de Hemingway, “O Velho e o Mar”, mas Melville vai mais longe, pondo os princípios do humanismo de lado para se focar completamente no domínio da espécie humana.

Sobre as traduções para português

Quero deixar aqui um apontamento sobre as traduções. Desta vez optei pela edição brasileira da Cosac Naify, que lançou em 2008 uma tradução realizada por uma académica que se tem dedicado ao estudo da obra de Melville, Irene Hirsch, suportada na componente náutica por Alexandre Barbosa de Souza. Se optei por esta edição não foi por a Cosac a ter rotulado de definitiva, mas antes por ter realizado um trabalho comparativo com mais duas outras edições nacionais (Público e Relógio D'Água), confrontado-as com o original, e ter concluído, que se queria ler em português, esta era a única tradução que me permitia estar próximo de Melville.

A tradução lançada na colecção Geração do Público parece uma amálgama de palavras, com o texto de Melville a perder toda a musicalidade original, que achei desde logo estranha dado ter lido previamente sobre o tom poético de "Moby Dick". Mas a minha estranheza aconteceu quando embati numa frase, logo no primeiro parágrafo, que me pareceu totalmente fora de contexto, nem queria acreditar que o autor a pudesse ter escrito. Por isso peguei na edição da Relógio d'Água, que diga-se não passa de uma revisão de uma tradução antiga da Editorial Estúdios Cor, mas na qual notei logo um trabalho linguístico bastante distinto, mas a tal a frase, o substantivo, permanecia, tal e qual. Por isso fui ler o original, e nem quis acreditar que Melville, tal como eu pressentia, não tinha escrito aquilo. Deixo a frase à vossa consideração,
“(..) nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio.”
Lúcia do Carmo Cabrita Harris, Colecção Geração Público, 2004

“(..) percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.”
Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, E.E. Cor / Relógio d’Água, 1962 / 2005

“(..) então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar. Esse é o meu substituto para a arma e para as balas.”
Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, Cosac Naify, 2008

”(..) then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball.”
Original de Herman Melville, 1851

A arte para além dos filtros dos media

Desta vez o Nerdwriter execedeu-se, através da sua web série, Understanding Art, e por meio da desconstrução do filme "Children of Men" (2006), realizou todo um trabalho de análise e crítica ao momento atual que se vive de crise humanitária, com migrantes e refugiados em fuga das guerras do Médio Oriente para a Europa. São 7 minutos de puro rasgo e brilho interpretativo do cinema, na demonstração da importância e alcance da arte.





Evan "Nerdwriter" Puschak começa por desmontar "Children of Men" na sua construção de quadros, com fundos plenos de significado, que Cuáron construiu de suporte ao mote narrativo do filme. À superfície seguimos Clive Owen na sua tentativa de salvar a última mulher que pode ter filhos, mas por detrás deste, deste nosso herói/narrador, muito vai acontecendo, vamos sendo expostos não apenas ao que aparentemente está acontecer, a destruição e decadência, mas vamos sendo chamados a interpretar tudo isto em função de um passado já antes exposto pela arte. De certo modo Cuáron está à procura da redundância, acreditando que já não basta mostrar o declínio humano, é preciso reforçar a interpretação da sua relevância, para que nós, cidadãos cada vez mais insensíveis às imagens que os media vão filtrando, possamos ser retirados do conforto dos nossos sofás, e ponhamos o nosso pensamento a funcionar.

"Children of Men: Don't Ignore The Background" (2015) de Nerdwriter


Por fim, dizer que esta é a segunda vez que trago aqui "Children of Men" pelo seu valor estético, quando na primeira vez que o vi falhei completamente na sua apreciação. Anteriormente foi graças ao Fernando Martins que lhe reconheci a inovação cinematográfica. Desta vez, tenho de o agradecer a Nerdwriter. Tudo isto apenas reforça a minha ideia de que devemos humildade, na hora de julgar obras e criadores.

setembro 11, 2015

“V8ORS – Flying Rat” (2015)

Os últimos dois anos têm sido muito felizes para a produção independente de videojogos nacionais, são imensos os trabalhos que têm surgido, não sendo já fácil acompanhar tudo e todos. Hoje trago aqui este novo jogo nacional, porque tive o prazer de acompanhar partes do seu desenvolvimento, o que de certo modo fez com que acabasse por lhe ganhar um carinho extra. "V80RS", ou aviadores, foi criado por uma pequena equipa de Aveiro, liderada por Deivis Tavares, mentor da ideia e responsável pela arte, uma das áreas em que jogo mais se destaca. Em poucos segundos, "V80RS" consegue despertar memórias nostálgicas de múltiplos jogos de arcada dos anos 1980 e garantir a nossa ânsia pela sensação de progressão.




Da oportunidade que tive de acompanhar o desenvolvimento fui agradavelmente surpreendido com a liderança e gestão do projecto realizada pelo Deivis que optou, desde o início, por uma abordagem bastante simples do shoot 'em up, e que apesar de ter uma arte bastante enriquecida que facilmente se prestaria a jogabilidades mais ricas e complexas, soube manter o controlo da ambição e o foco no projecto final. Deste modo “V8ORS” pode até parecer oferecer pouco para os dias que correm, mas se o faz não é por acaso, fruto de uma estratégia que assenta numa primeira fase free-to-play, que pode vir a ser ampliada dependendo da aceitação do público.

Na jogabilidade temos os elementos mais comuns do shoot 'em up muito bem balanceados, com a dificuldade que enfrentamos a progredir a bom ritmo, com a evolução em agressividade das naves a darem o mote do incremente de dificuldade, assim como os upgrades que a nossa nave pode ir ganhando a garantirem a possibilidade de nos mantermos em jogo. O jogo torna-se rapidamente viciante e aos poucos vamos percebendo que existe mais para oferecer além da superfície da jogabilidade, como as manobras que a nossa nave pode executar garantindo evasões mais eficazes. Por outro lado, a componente publicitária foi implementada de forma muito inteligente na manutenção da progressão, já que só tendo uma vida estamos sempre a recomeçar do zero a não ser que aceitemos ver um spot publicitário.





Voltando à arte, é ela que faz deste pequeno jogo algo distinto, uma espécie de pequena jóia que dá vontade de tocar e jogar, contribuindo fortemente para o sentimento que emana de toda experiência de jogo. A opção por tudo ser desenhado em 3d low-poly, mas dotado de excelentes contrastes de cor, fornece um tom peculiar ao ambiente de jogo, gerando um ambiente fresco, solto e leve, muito em contra-corrente com muito do que se vai vendo. Ainda dentro da arte, a componente de animação está muito bem conseguida, com a nave a sofrer latência na movimentação garantindo todo um realismo extra à nossa ação, assim como toda uma gratificação visual por via das manobras de evasão que podemos executar.

Vídeo do gameplay de "V80RS"

O pior, só mesmo estarmos limitados a jogar em Android, ficamos à espera da versão iOS. Podem seguir o jogo no Facebook, ou obter mais informações na sua página oficial.

setembro 10, 2015

Criatividade em remix no “Hell’s Club”

Antonio Maria Da Silva, provável lusodescente, residente em Paris, criou um trabalho brilhante de montagem e composição vídeo a partir de dezenas de sequências de diferentes filmes chave de Hollywood. O filme conta com quase 10 minutos, nos quais somos convidados a viajar até ao “Hell’s Club”, um clube ficcional criado por Antonio Maria Da Silva, por meio de uma edição e correcção de cor tão perfeitas que tudo parece ter sido verdadeiramente filmado para este filme.



A base do trabalho consiste num apanhado de sequências cinematográficas passadas em discotecas, retiradas de filmes como: “Star Wars", "Saturday Night Fever", "Hellraiser", "Scarface," "Carlito's Way", “The Terminator", "Matrix", “Trainspotting” "Pulp Fiction", "Robocop”, “Collateral Damage” entre outros. Com as sequências em mão o autor terá procurado uma linha condutora de acção e conflito, que acaba por resultar plenamente, ao contrário de muitos outros trabalhos de remix que se ficam pelas simples piadas ou fragmentos narrativos.

Para tornar credível todo o cenário de "Hell’s Club” foi necessário proceder a um enorme trabalho de correcção de cor, já que as luzes da discoteca de "The Matrix" são completamente distintas das de "Saturday Night Fever", e mesmo quando aproximadas, são-no apenas na nossas recordações, já que o clube de Tony Montana sendo filmado nos anos 1970 não tem qualquer afinidade com um clube filmado nos anos 2000, para parecer um futuro distante em "Star Wars Episode II: Attack of the Clones". Sobre tudo isto existe toda uma quantidade de pequenas composições internas nas imagens, com sequências de filmes a surgirem em reflexões de outras sequências, com personagens a surgirem em profundidade de campo, ou ainda no uso de sombras que simulam personagens que passam por outras que nos mantêm ali fixados, seduzidos, e crentes na existência do Hell's Club.



Se a edição de cor é o garante da unidade audiovisual, aquilo que verdadeiramente garante a cola narrativa de todo o filme é o trabalho de enorme minúcia realizado sobre o "gaze" (o olhar de cada personagem no enquadramento). Toda a história é construída com base nos olhares dos personagens de cada filme, com Antonio Maria Da Silva a trabalhar cirurgicamente o cruzamento constante de olhares entre os diferentes actores, indo mesmo além, quando coloca o mesmo actor mas em diferentes filmes, como que a olhar para si próprio, sem dúvida daqueles momentos que marcam qualquer trabalho na mente do espectadores.

"Hell's Club" (2015) de Antonio Maria da Silva

Analisando o canal YouTube de Antonio Maria Da Silva podemos verificar como tudo isto pode ser novo para nós, mas não é algo recente, nos seus trabalhos anteriores podemos notar que há vários anos que ele vem trabalhando a imaginação de conflitos cinematográficos por meio de remontagens e remisturas de filmes tais como Bruce Lee vs. Bruce Lee (2013), ou Terminator vs. Robocop (2010). Aliás, o seu canal Youtube revela-se interessantíssimo para compreendermos o processo evolutivo das suas competências de edição e composição audiovisual. São várias dezenas de vídeos, essencialmente mashups, que podemos aí encontrar, criados ao longo dos últimos sete anos, que funcionam como uma evidência clara de o talento resulta da prática, da persistência, da vontade de continuar a fazer mais, e sempre melhor.

setembro 09, 2015

O robô e a sua criadora

"NO-A" (2015) é o mais recente trabalho de animação e VFX de estudante a chegar a rede e a ganhar admiração unânime. Criado como trabalho de fim de curso, no Savannah College of Art and Design, por uma equipa de 8 alunos liderada por Liam Murphy, arrecadou desde logo, na própria SCAD, o prémio de melhor Animação de 2015.



Existem dois elementos em "NO-A" que o destacam do patamar do trabalho de estudante, a ilustração no tratamento dado às texturas, shaders e iluminação, e o controlo emocional narrativo. Vários planos denotam um perfeccionismo no modo como se compôs o detalhe da composição, em que cada cor parece ter sido alinhada com cada sombra, em que cada movimento parece pronto a surpreender e a deixar-nos a desejar por mais. Por outro lado, a montagem e a música, aliadas ao laço desenhado entre o robô e a menina, são capazes de agarrar as nossas emoções e colar-nos ao ecrã, fazendo-nos acreditar, suspender a descrença, e escapar para aquela irrealidade. Um pequeno filme que tão simples parece mas que está repleto de minúcia e paixão pela arte.

"NO-A" (2015) de Liam Murphy

"The world is a desolate, unforgiving place in this action sci-fi with a surprising amount of heart. We follow NO-A (Noah), as he attempts to rescue Aixa, the young woman that created him. In his desperate attempt to save her, he must face an unknown enemy force and fight to keep them both alive."

setembro 05, 2015

Síria: clima e geografia de um conflito

Trago um trabalho em banda desenhada, "Syria's Climate Conflict" (2014) que procura dar conta da origem dos conflitos na Síria a partir de uma perspectiva completamente distinta. Os conflitos na Síria têm alguns anos, e à primeira vista parecem ter emergido como efeito de contágio da Primavera Árabe, levantamentos populares iniciados na Tunísia e Egipto em 2011 que se alastraram a vários países do Norte de África e Médio Oriente. Outro elemento que surge como potencial motor do conflito, são as redes terroristas e os efeitos do ataque dos EUA ao Iraque e Afeganistão em 2001, que em vez de selar o problema terá contribuído ainda mais para tornar toda aquela região ainda mais instável.



O trabalho realizado pela jornalista Audrey Quinn e pela ilustradora Jackie Roche (do belíssimo "Underemployed") aponta num sentido completamente distinto, indo à causa inicial do despoletar dos problemas na Síria. É verdade que estamos tão cientes das versões explicativas acima enunciadas, que esta que aqui se apresenta à primeira vista mais parece uma desculpa, ou uma tentativa de limpar a imagem de alguma coisa. Talvez porque seja mais fácil ter rostos para culpar, porque procuramos explicações que possamos controlar. Mas aquilo que nos é aqui relatado não só faz muito sentido, como explica muitos dos problemas de toda aquela região.

Os problemas do Médio Oriente e Norte de África não são originados apenas pelas mudanças climáticas, embora também, mas fazem parte da própria região, tornando-a difícil de habitar, mais ainda de criar qualidade de vida que suporte o exponencial aumento populacional do último século. A geografia foi e continua a ser fundamental no suporte da vida humana à face do planeta, não aceitar isso faz parte da nossa incapacidade para nos resignarmos, por outro lado, compreender isso poderia servir para alterarmos todo um estado de coisas, não apenas dos regimes políticos e das populações, mas também da forma como aqueles que vivem em geografias privilegiadas, como é o caso da Europa. Para compreender o impacto da geografia sobre a resiliência da espécie humana, aconselho vivamente a leitura de "Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies" (1997) de Jared Diamond.

Seguir para "Syria's Climate Conflict" para ler a banda desenha completa online.

setembro 04, 2015

O que seria do cinema sem a literatura?

Esta semana escrevi para o IGN um texto a propósito do número alucinante de sequelas que se encontram em produção nos estúdios de Hollywood. A moda do seriado deixou de ser um exclusivo da televisão, o cinema rendeu-se totalmente aos seus encantos. Nesse sentido resolvi dissertar um pouco sobre o impacto deste fenómeno na criatividade e originalidade cinematográfica atual. Seria necessário "Blade Runner 2", por outro lado, todos esperam um "Prometheus 2", mas o que seria do cinema sem a literatura?

"Blade Runner" é baseado no livro "Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip K. Dick

Aqui fica o texto completo, Novas sequelas e a obsessão pela originalidade.

agosto 31, 2015

“O Velho e o Mar” (1952)

Parábola do humano, ou significado do propósito e persistência. “O Velho e o Mar” procura ir à essência daquilo que nos define enquanto espécie, da verticalidade do que faz de nós uma das espécies mais arrojadas e completas deste planeta. Partindo da predação, Hemingway desenha um esboço da elevação das nossas faculdades, do como fomos para além da mera sobrevivência. Um livro curto para tão grande metáfora, ainda assim nada fica de fora, nada mais seria preciso dizer. Quando se toca a última página, o fechamento não está ali, porque o fechamento tem de ser construído pelo leitor, ainda que se requeira dele experiência de vida para o poder fazer.

“Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Ler “O Velho e o Mar” é uma experiência particular, de profunda imersão num universo de isolação, perfeitamente tornado visual pelo virtuosismo da simplicidade da prosa de Hemingway. É-nos impossível escapar à solidão do alto mar, da acalmia e som das ondas, das aves que voam e os peixes que saltitam, é-nos impossível escapar a viver duas horas naquele barco com Santiago, sentir o cheiro a maresia, e ouvir a espuma das ondas bater no seu casco. Leia-se o pequeno excerto,
“Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de ‘dorado’ e não podia mexer-se.” Da belíssima tradução de Jorge de Sena
Esta capacidade para tornar visual tem muito que ver com o detalhe, e esse só pode ser sorvido pela experiência, algo que Hemingway teve e de onde retirou muito daquilo que aqui podemos ler, enquanto dirigiu o seu barco, Pilar, pelas águas de Cuba. Assim, não fosse Hemingway tão visual e possivelmente não existiriam tantas adaptações desta história ao cinema, tanto na forma de longas como curtas de animação.

Dessas, a obra de Alexandr Petrov é sem dúvida alguma a de mais alto valor, atrevendo-me eu aqui a colocá-la ao nível da obra de Hemingway. Pode parecer heresia para alguns, mas graças à rede posso dar-vos a degustar aquilo de que vos falo no vídeo abaixo. São 19 minutos, escolham um tempo calmo e dediquem-lhe a vossa atenção, no final me dirão se me engano.

"The Old Man and the Sea" (1999) de Aleksandr Petrov

Se a obra de Hemingway recebeu o Pulitzer em 1953, e ele próprio foi galardoado com o Nobel em 1954, Petrov arrecadou quase todos os grandes prémios de cinema de animação entre 1999 e 2001, incluindo o nosso Cinanima, onde o vi pela primeira vez em 1999, e o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000. Petrov investiu dois anos e meio, juntamente com o seu filho, para criar os mais de 29 mil quadros, em óleo sobre vidro, que compõe os 19 minutos deste filme, fazendo do processo de criação deste filme, um hino ao significado da parábola da obra de Hemingway, com que abri este pequeno comentário ao livro.

agosto 26, 2015

A narrativa em “Mrs. Dalloway”

Virginia Woolf como muitos outros modernistas foi uma profunda estudiosa de arte, em particular da narrativa, não se limitando a estudar a mesma, publicando numerosos ensaios, mas procurando inovar aplicando o conhecimento granjeado. É deste modo que “Mrs. Dalloway” acabará por emergir como a sua primeira grande criação, em termos de inovação, marcando para sempre o mundo das letras. Woolf não inventou o “fluxo de consciência”, mas o modo como o trabalha permitiu-lhe criar o seu próprio estilo, e mais do que isso, fazer deste um quase-substituto da forma narrativa.


Woolf não se socorre do fluxo de consciência como estilística narrativa, ou seja, para ir dando conta dos objectos da história que nos conta, ela descarta por completo a forma regular de contar histórias, e em seu lugar usa exclusivamente o fluxo. Isto pode ser notado desde logo pelo facto de o livro não apresentar capítulos, sendo apresentado como um bloco único de texto, como se de um único jorro de ideias se tratasse, apresentado aos nossos olhos, como pensamento plasmado em estado bruto, sem tratamento ou filtragem, simplesmente o que é.

Em termos retóricos Woolf não procura narrar, nem sequer descrever, expor ou argumentar (as chamadas quatro formas básicas de comunicação), ela está claramente à procura de uma forma de transpor estas formas convencionadas de comunicação, como se ela na verdade não pretendesse expressar-se, mas antes e apenas, dar acesso ao seu pensamento interior. Em suma, o fluxo de Woolf mais parece emanado do não-consciente do que do consciente, não no sentido descritivo de sonho (conceito usado no passado), mas antes num sentido cognitivo, enquanto bloco de fiapos de ideias, ligadas por pequenos nós de familiaridade e proximidade, sem linearidade nem noção de todo, à qual a consciência (aqui o leitor) acede por meio da força de processos mentais de estruturação e associação que originam ligações entre mais nós, fazendo emergir um todo, e assim sentido.

Daí que uma análise exclusiva da obra, sem tomar em conta o trabalho do leitor, acuse um texto não-narrativo, sem eventos, nem sucessão dos mesmos, não originando qualquer arco dramático, no texto não se encontra fechamento nem mesmo propósito. Por outro lado, o modo como Woolf trabalha esta ausência de marcas narrativas, não é inocente, antes pelo contrário, imensas “pistas” vão sendo espalhadas no texto, de modo a contribuir para os processos associativos que o leitor precisa de desenvolver para assim reproduzir em si mesmo, o conjunto narrativo, o todo e o sentido.

Uma dessas estratégias assenta na polifonia de vozes de personagens, que parecem por vezes emanar diferentes perspectivas sobre um mesmo tema, que acabam gerando redundâncias, repetições e por sua vez familiaridade no leitor. Ou seja, mesmo que possamos ler todos aqueles personagens como existentes apenas no interior da mente de Woolf, como pensamentos seus nas vozes de personagens por si imaginadas, elas acabam por funcionar como âncoras do que se vai dizendo, fazendo de si mesmos os eventos, gerando sucessão e coerência, por forma a garantir ao leitor um acesso narrativo ao texto.

Tudo isto não seria o que é, não fosse o virtuosismo e lirismo da prosa de Woolf que nos garante todo um universo impressivo de sons e imagens, facilitando-nos, no meio do caos, a reconstrução dos seus mundos. O modo como escreve aproxima-nos, pede-nos para que toquemos as suas palavras, as sorvamos, e é isso que nos permite seguir atrás de si, apesar de toda a desconexão superficial do seu texto.

Em termos da obra de Woolf, considero que “Mrs. Dalloway” (1925) foi o seu primeiro grande experimento, e que como tal sofre de alguma imaturidade, excessiva desconexão, talvez em parte por ser uma obra reconstruída a partir da fusão de dois contos seus, mas essencialmente porque quando comparada com “Rumo ao Farol” (1927), a obra seguinte, podemos notar um amadurecimento de toda a técnica acima descrita. Em ambos os livros usa - o caminhar para algo - (a festa e o farol) para nos facilitar a linearização de ideias, com o desenvolvimento a cargo do - desenrolar de expectativas e antecipação. Mas o segundo caso resulta melhor, talvez por apresentar um número mais limitado de personagens, permitindo mais marcas de redundância, e também por termos um propósito refletido num espaço geográfico, o que em conjunto facilita a nossa apreensão do trabalho de Woolf.

agosto 21, 2015

"A Mancha Humana" (2000)

Em termos formais, a Mancha é pura tragédia, e por isso não adianta gritar contra Roth e a manipulação emocional, isso faz parte do género, está na essência do tecido de relações humanas recortado para nos ser contado. O que podemos analisar é como o faz, procurar perceber se se limita à exploração de sentimentos, ou se esses estão ali a serviço de algo maior e disso restam poucas dúvidas quando terminamos a leitura do último parágrafo. A "Mancha" é humana, a sua essência somos nós, e por meio da tragédia Roth leva-nos ao interior do nosso ser, desembaraça-nos dos despojos da vida em sociedade, dos seus medos, culpas e vergonhas e obriga-nos a refletir sobre aquilo que de nós resta.

A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues para a Dom Quixote está soberba, ainda assim dos excertos que li em inglês, posso dizer que Roth é ainda mais entusiasmante no original.

Coleman Silk atingiu o pico da carreira, Reitor de uma universidade americana, a sua queda é o tema central da tragédia, focando-se Roth sobre aqueles que o vão acompanhar nessa descida, o amigo escritor Zuckerman (espécie de alter-ego de Roth), e o confronto entre o seu passado pré-universidade, o presente e o futuro. Este é o cenário de fundo que vai permitir a Roth explorar os mais intrincados comportamentos humanos, do poder ao racismo, da amizade à família, do amor ao ódio. Tudo isto pode ser visto no filme homónimo realizado por Robert Benton, que conta com nada menos do que Anthony Hopkins e Nicole Kidman, mas que apesar de nos poder dar a conhecer a história em toda a sua evidência, e sendo um bom filme, fica imensamente distante do livro.

Não se trata apenas do detalhe ou da diferença entre os diferentes média, a diferença aqui é evidenciada pela mestria de Roth no manejo da escrita. O modo como trabalhou o enredo, numa estrutura encapsulada e não-linear, para a qual criou personagens, não apenas soberbos e interessantes, mas que descreve de um modo profuso, intenso e extremamente íntimo. Com a não-linearidade a fazer brotar constantes descobertas, à medida que vamos lendo, e vamos compreendendo mais sobre cada um dos personagens. Roth não usa a deslinearização apenas como artifício para a participação do leitor, mas antes para enriquecer o que nos vai contando, de modo a levar-nos cada vez mais ao fundo de cada um dos envolvidos. A cada novo descamar do enredo, percebemos que não apenas saltamos no tempo, para frente ou para trás, mas que Roth como que abre um vortex por meio do qual nos leva a conhecer o interior do sentir de mais um daqueles personagens.
Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.” (excerto de "A Mancha Humana")
"(..) nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial." (excerto de "A Mancha Humana")
De algumas análises que li, nomeadamente na comparação da alegada “Trilogia Americana” de Roth, na qual a “Pastoral Americana” (1997) seria o primeiro volume, “Casei-me com um Comunista” (1998), o segundo, e “A Mancha Humana” (2000) o terceiro, parece ser consensual, apesar da “Pastoral” ter ganho o Pulitzer, que a “Mancha” é o pináculo, não apenas da trilogia, mas da obra de Roth. Provavelmente por ser aqui que vai mais longe na análise das pessoas, centrando-se nos efeitos das convenções sociais que as amarram e domesticam, e menos nas componentes políticas de cada um dos momentos representados.

Por outro lado, e ao contrário do que por vezes já disse aqui no blog, a quantidade de trabalho criado por Roth não lhe foi saindo como repetição, mais do mesmo, mas antes como aprimoramento da sua mestria, com esta a evoluir continuamente ao longo da sua carreira. Roth tinha 70 anos quando escreveu a “Mancha” e isso nota-se, muito do que aqui se diz, não era possível de ser pensado por alguém com 30 ou 40 anos, é preciso experiência de vida, viver, sofrer, acertar e errar. A sua escrita foi assim tornando-se mais intensa, entrosada, e íntima, sendo responsável por muito daquilo em que se transforma a experiência das suas tragédias narradas.

Para fechar, quero deixar um excerto de uma passagem, na qual Roth usa uma referência a um andamento de Mahler, que descreve de modo belíssimo, e aproveitando a particularidade multimédia do blog deixo a música, esperando assim proporcionar um momento especial a quem desejar realizar a leitura enquanto ouve:

Mahler, Symphony No 3, por Claudio Abbado
O percurso a pé para o cemitério, a três quarteirões de distância, foi em grande parte memorável pelo facto de, aparentemente, não ter acontecido. Num momento estávamos paralisados pela infinita vulnerabilidade do adágio de Mahler, por aquela simplicidade que não é artifício, que não é uma estratégia, que quase parece desenrolar-se com o ritmo acumulado da vida e com toda a relutância da vida em terminar… num momento estávamos paralisados por aquela rara justaposição de grandiosidade e intimidade que começa na serena, cantante e contida intensidade das cordas e depois sobe, em vagas, pelo pesado falso final que conduz ao verdadeiro, ao prolongado, ao magnífico final… num momento estávamos paralisados pelo crescendo, pela subida, pela culminância e pela acalmia de uma orgia elegíaca que se espraia, espraia, a um ritmo determinado que nunca muda, recuando para logo voltar como uma dor ou um anseio que não desaparecem… num momento estávamos, levados pela insistência crescente de Mahler…” excerto de "A Mancha Humana"

agosto 20, 2015

Do sucessor de "Ready Player One"

Esta semana escrevi para o IGN a análise do novo livro de Ernest Cline, "Armada" (2015). Como tenho dito, a escrita de Cline não é nada de especial, contudo os seus livros não passam despercebidos, nem nos deixam indiferentes. Diria que os mesmos estão para a literatura, como os doces conventuais estão para a comida, são absolutamente deliciosos mas não alimentam, e em excesso podem fazer mal!


Fica a ligação para a análise: "'Armada', a elite dos Geeks"

agosto 11, 2015

“Dom Quixote de la Mancha” (1605 & 1615)

Dom Quixote” é uma viagem por uma geografia de nós tão próxima, ainda que num tempo tão distante, mas capaz de nos levar a conhecer gente que tão pouco de nós difere e assim nos dar a conhecer mais sobre nós mesmos. Se isto não bastasse, ler "Dom Quixote" é ler a pauta da história da literatura, encontrar o berço da forma e estrutura daquilo que hoje assumimos simplesmente como, o Romance.

Sancho Pança e D. Quixote, Alcalá de Henares, Madrid, Espanha


1. O significado do meu Dom Quixote

“O Cavaleiro de Triste Figura” é este o título que D. Quixote adota a meio da narrativa, sendo este central na compreensão do personagem, dos seus motivos e desígnio, e que sustentando todo o universo choca com o reconhecido género cómico de que se compõe a obra.


Série de animação “Don Quijote de La Mancha” (1979)

Tive o meu primeiro contacto com a personagem de D. Quixote através da série de animação para televisão, “Don Quijote de La Mancha” (1979) , que passou em Portugal em 1984, nas manhãs de sábado, na RTP 1. A marca foi forte, e desde então nunca mais me abandonou, ficando na memória alguns dos episódios marcantes que agora pude revisitar ao ler o livro. Em essência guardo dessas manhãs mais questões que respostas, o que evidencia desde logo toda a importância do universo criado por Cervantes. D. Quixote não tinha propriamente um desígnio, além da sua Dulcineia, que nunca surge, que não existe, tal como quase tudo apenas existe na sua cabeça. O desenho animado foi aqui crucial por poder mostrar o fantástico e o impossível,  permitindo-nos entrar pela mente adentro do personagem, obrigando-nos a questionar a diferença entre o real e o imaginário.

O primeiro volume (1605) é bastante mais cómico, centrado em acções concretas e delimitadas - exemplos como: os Moinhos, as Ovelhas ou o Elmo de Mambrino - e aquele de que tenho mais memórias, ainda que televisivas. O segundo volume (1615), apesar de servir uma Busca/Demanda também, a terceira saída de D. Quixote, é também a sua última, mas mais do que isso, é muito mais madura, o personagem D. Quixote está envelhecido, porque a própria pena de Cervantes tem agora mais 10 anos. Notamos que a escrita e a estrutura é bastante mais robusta, mas notamos que o universo quixotesco se complexifica, ganha densidade e profundidade. Relendo estas palavras percebo que aquando do visionamento da série, a minha idade não me terá permitido atingir o fundamento da segunda metade.

O “cavaleiro-andante” que servia de rótulo ao tipo de cavaleiro dos romances medievais, o senhor seguidor das normas do cavalheirismo, em Cervantes, pela crítica desse modelo, e por via de uma abordagem anti-herói, assume o lugar de todos nós, errantes nesta vida. O cavaleiro não quer seguir apenas as regras e convenções, antes procura respostas, busca um sentido para a vida. D. Quixote é apresentado como alguém extremamente lúcido mas que sofre de uma mania (ser cavaleiro-andante) que o deixa louco a esparsos momentos, mas não teremos todos momentos destes, com manias nossas? Daí que ler "Dom Quixote" exija um esforço da nossa parte, sermos capazes de nos revermos no personagem para o podermos compreender, porque a todo o momento Cervantes nos vai rasteirando, lançando a dúvida sobre se o próprio D. Quixote acredita naquilo que diz.

Para se chegar ao coração de toda esta busca e errância, que define o quixotismo, temos de olhar para história de vida do próprio Cervantes. Nascido de boas famílias, mas sem grandes posses, teve uma vida atribulada (cativo durante anos, em tempo de guerra em Itália, e mais tarde preso por falta de pagamento de dívidas), viveu em Lisboa dois anos, mas foi em Espanha que viveu como verdadeiro nómada, passando por imensas cidades ao longo da sua vida. Os empregos medianos que teve nunca lhe agradaram, e as vezes que procurou outros lugares, foi sempre preterido. No amor passou por amores proibidos pelas famílias, nunca encontrando um amor que lhe permitisse assentar. Apesar do sucesso dos seus livros em vida, nunca pôde viver da escrita.


2. Do nascimento da Prosa Narrativa

Antes de “Dom Quixote” existiram várias formas narrativas, porque é que então consideramos este como a origem do livro de ficção (romance), tal como hoje o conhecemos? Para tal é preciso olhar à história e procurar compreender como contávamos histórias, nomeadamente com livro como meio. Essencialmente tivemos três formas: o Poema, o Drama e a Prosa.

As histórias na forma de Poema, ou seja em que história vai sendo contada por meio de versos estruturados para a produção de efeitos estéticos. Iniciados com os fundacionais épicos “Gilgamesh” (~-2100), “Ilíada” (~-800) e “Odisseia” (~-800) que serviram de modelo a “Eneida” (~-30), “Metamorfose” (~800), “Beowulf” (~900), “Divina Commedia” (~1300) e “Lusíadas” (~1500).

As histórias na forma de Drama, ou seja, em que a história vai sendo contada por meio de diálogos, aqueles que poderão ser colocados em cena por atores. Iniciadas com as tragédias gregas de Ésquilo , Eurípides e Sófocles à volta de -450, e que atingiriam o pináculo da sua forma com Shakespeare, no tempo de D. Quixote, em ~1600. Aliás Shakespeare morreu 10 dias depois de Cervantes, dois génios das letras, viveram na exata mesma época a poucos quilómetros entre si, mas nunca chegaram a conhecer-se.

As histórias na forma de prosa começaram antes dos Poemas e Drama, mas no início serviram apenas a não-ficção. Costumamos reportar na nossa noção histórica ocidental à Grécia antiga, nomeadamente ao seu legado filosófico, com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles. Esta nunca desapareceu e continua até aos dias de hoje, nas várias disciplinas académicas. Aqui usa-se a prosa, mas o objetivo não é elaborar uma história, antes reportar um problema real, preocupando-se apenas com o fundamento do problema, esquecendo a forma, assumindo-a o mais próximo possível da oralidade e do suposto pensamento. Assim na Grécia antiga era fácil distinguir o real do ficcional olhando apenas à forma dos escritos.

A prosa como ficção surge muito mais tarde, no final da Idade Média (~1300). Os primeiros escritos surgem como registos de lendas, em que o ficcional se mistura com o real. Das lendas não se sabia o que era verdade, e o que era inventado, daí que os registos que vão acontecendo sofram dessa ambivalência na própria forma. Estas lendas escritas iniciam um novo género que se intitularia de “Romances de Cavalaria”, sendo estes a base daquilo que viria ficar conhecido como simplesmente Romance. O pioneiro, ou o mais recordado, dos registos destas lendas, é marcado por Rei Artur, responsável por vários romances em França e Inglaterra (~1300), e o final por “Dom Quixote” (1605 e 1615), pelo meio muitos houveram, tais como o imensamente citado em "Dom Quixote", “Amadis de Gaula” (1496), que ainda hoje se discute se terá sido escrito por espanhol ou português.


3. A importância de “Dom Quixote

Dom Quixote” (1605 e 1615) de Cervantes, à semelhança de “The Birth of a Nation”  de D.W. Griffith no cinema, não inventa propriamente nada, antes consolida, solidificando conhecimentos previamente distribuídos em várias obras. Os processos criativos não emergem no vazio, mas antes da complexidade e imensidade de caminhos de cada movimentação artística. Obras como “Dom Quixote” ou “The Birth of a Nation", surgem como marcos de viragem porque dão sentido ao caos de possibilidades criativas, criando uma base sólida a partir da qual todos os que lhe sucedem, ali se ancoram.

Na verdade o século XVII é considerado como o século de ouro espanhol por tudo aquilo que o país deu à humanidade em termos artísticos e científicos. Não foi apenas um efeito tardio da Renascença, embora também, mas foi um um claro efeito da imensa riqueza extraída das colónias da América Latina. O mais visível destes efeitos surgiu na forma arquitectónica das suas catedrais, assim como na pintura de Velázquez, El Greco, Murillo, Alonso Berruguete ou Luis de Morales, mas tudo em redor beneficiou desta erupção intelectual, sendo "Dom Quixote" um dos melhores exemplares desse período.

Em termos da prosa narrativa “Dom Quixote” estabelece convenções e parâmetros estéticos centrais no contar de histórias elaboradas que se mantém até hoje. Desde logo pela troca de lugares entre a relevância do enredo pelos personagens. Aristoteles considerava o enredo a primeira força motriz do drama, no entanto Cervantes vem demonstrar como só pela assunção dos personagens como dominantes se pode construir uma história de eventos longa e complexa, capaz de eliminar a impressão de meros quadros delimitados e sucessivos de acções. Com a história a progredir pela força dos personagens, e não estes a serem empurrados pelas acções narrativas, o entrelaçar da estrutura de eventos torna-se mais fluída, porque mais coerente, mais próxima da estrutura de que se compõem o modo como vemos as nossas próprias vidas. Isto nota-se logo no primeiro volume, mas é no segundo que a estratégia é mais bem desenhada, e a estrutura assume toda a sua evidência. Mesmo fazendo uso do recorte em pequenos capítulos, estes nunca são desligados, Cervantes esforça-se por manter uma coesão completa entre cada momento, como se um fio de realidade nos fosse sendo servido, e não apenas um conjunto de cenas ou momentos.


4. Da escrita e tradução

A escrita em "Dom Quixote" apresenta dois problemas que a tornam ligeiramente difícil, a erudição e os arcaísmos. Os livros são do século XVII, como tal o espanhol escrito é bastante distante do que hoje se escreve, não apenas alguns dos termos, como expressões e artifícios gramaticais que foram caindo em desuso. Por outro lado Cervantes apresenta um enorme background literário que lhe permite não apenas chamar ao seu texto citações de muitos clássicos e seus contemporâneos, e ao mesmo tempo apresentar uma linguagem bem elaborada, entrosada e trabalhada. Tudo isto dificulta a leitura, mas antes disso dificulta o trabalho de tradução.


Em português existem várias traduções, uma das mais conhecidas é a do escritor Aquilino Ribeiro, que de tanto ter trabalhado a tradução acabou por criar uma nova versão, em vez de uma tradução. Li apenas os primeiros capítulos nesta versão, e pareceu-me demasiada arcaica, existe uma clara tentativa de traduzir do espanhol antigo para o português antigo, o que dificulta imenso a leitura. No Brasil existem várias traduções recentes, li vários capítulos da nova da Penguin Brasil, realizada por Ernani Ssó, no qual este procura realizar o inverso, trazendo a obra para um português contemporâneo. O texto fica muito mais acessível, assumo mesmo que as partes cómicas ficam com mais graça, mas o texto perde em erudição, e acaba criando-se uma nova versão da obra, já que muitas vezes Ssó transforma completamente aquilo que o autor escreveu. A versão na qual acabei por ler praticamente todo o texto foi a de Miguel Serras Pereira, premiada em 2006 pelo PEN, e agora re-editada numa edição especial para a comemoração dos 50 anos da editora D. Quixote. Comparando alguns trechos com a versão espanhola, mais recente da Real Academia Española, o texto segue quase totalmente o original, obrigando-nos muitas vezes a recorrer ao dicionário pelo uso de vocábulos já fora de uso, ou provenientes do castelhano. De qualquer modo a leitura, apesar de menos escorreita que a versão de Ssó, é ainda assim bastante fluída, com a vantagem de podermos sentir por vezes a proximidade temporal por via do texto.

agosto 09, 2015

Interatividade corpórea

Esta semana escrevi para o IGN a propósito da vaga de videojogos com personagens físicas, iniciada pela Activision com "Skylanders", seguida pela Disney, Marvel e Nintendo, aguardando-se ainda para este ano Star Wars e LEGO. Relevante perceber como de há alguns anos para cá assistimos ao movimento inverso daquele que nos trouxe até aqui, ou seja uma materialização do virtual.




O texto aflora apenas alguns itens da relevância deste assunto, abrindo portas para que se procure mais, já que passa por aqui o futuro do design de interacção e de experiências.

Ler texto completo no IGN Portugal, "Experência do Entertenimento".

julho 31, 2015

"Survival of the Beautiful" (2012)

Rothenberg é filósofo e artista, e só desse modo se explica o modo como aborda o evolucionismo na arte. A sua proposta é polémica, porque assenta num princípio, que apesar de oferecer demonstração dedutiva, corre contra outra proposta, que ainda que seja também apenas passível de demonstração dedutiva, é aceite pelas restantes ciências.


Vamos ao que nos é dito. Rothenberg faz um belo trabalho de revisão da teoria estética evolucionária, nomeadamente Denis Dutton (ver "The Art Instinct", 2008), defendendo grande parte dos seus valores, mas indo ainda mais longe. Um dos problemas que se coloca a quem baseia a relevância da arte na teoria evolucionária de Darwin, é que esta transforma a arte numa funcionalidade. Ou seja, a evolução coloca a criação estética ao serviço da optimização da espécie, o belo passa por mero atributo da conquista sexual. Esta abordagem, que é de certo modo consensual na biologia, diz-nos que a Seleção Sexual de Darwin é uma subcategoria da Seleção Natural, ou seja, uma forma de seleção que trabalha para a otimização da adaptabilidade das espécies.

O interessante deste livro é que coloca em causa esta abordagem, sem colocar em causa o evolucionismo. Rothenberg defende assim que a Teoria da Seleção Sexual, deve antes ser considerada a par com a Teoria da Seleção Natural, e não como subclasse desta. Porque o faz? Porque ao fazê-lo permite-lhe desligar o objecto da arte do funcionalismo adaptativo. Deste modo a arte pode continuar a funcionar como um exercício demonstrativo de qualidades, mas a sua apreciação não tem um propósito, antes se define por um gosto subjectivo de quem aprecia. Rothenberg trabalha todo o livro para demonstrar esta teorização, que não é fácil, já que como facilmente se perceberá, fica-se preso ao subjectivo, não existindo verdadeiramente um modo de demonstrar a abordagem.


Do meu lado, sinto-me totalmente perplexo, e incapaz de tomar um lado. De um modo mais racional, tenho muitas dúvidas sobre a exequibilidade desta teorização, mais ainda quando Rothenberg procura defender que a selecção sexual procede pelo lado feminino. Ou seja, as caudas dos pavões machos, são assim, porque as fêmeas, "grandes estetas", têm demonstrado preferência por aqueles padrões, e não outros! Rothenberg procura mesmo dizer que esta abordagem não foi aceite no tempo de Darwin, porque seria inaceitável conceber a mulher com tanto poder em pleno século XIX. Até acredito nas polémicas desses tempos, mas hoje é ainda mais polémico, mas por outras razões, ou seja, como explicar em tempos de igualdade de sexos, possa existir tanta predominância num deles? E porque apenas um deles pode ser esteta?!

Por outro lado, esta teorização tem alguma relevância quando pensamos no modo aleatório como o real natural é autogerido (ver "The Drunkard's Walk", 2008). Ou seja, tendo em conta o acaso e o aleatório que compõem o detalhe da essência deste universo, porquê acreditar que tudo tem que ter uma função concreta, tudo se dirige a um objecto predeterminado?

Tabela de conceitos polarizadores do real

Complicado. Mas mais interessante foi a teorização que a leitura desta oposição, entre Selecção Natural e Selecção Sexual, acabou por despoletar em mim. Comecei a ver o modo dicotómico, profundamente polarizado, como concebemos a realidade à nossa volta, como a classificamos, categorizamos, através dos nossos modelos mentais, que gerando esta dicotomia, se repetem a si próprios, num ciclo contínuo e redundante. Deixo acima uma tabela com alguns conceitos e opostos, mas que poderia ser preenchida quase infinitamente, sendo que o mais relevante advém da teorização que podemos desenvolver sobre este modo peculiar que temos de conceber a realidade.