Escrito num tempo em que a estética dominante, o romantismo, procurava elevar o maneirismo da forma escrita e enaltecer a profundidade da emoção humana, a sua leitura não poderia deixar de ser laboriosa assim como ambígua. Contudo a aventura por que somos levados a atravessar do Atlântico ao Pacífico, é de tal forma grandiosa, instigadora do instinto humano, que todo o esforço que nos é pedido é por sua vez sobejamente recompensado.
Em certa medida esta dualidade foi a grande responsável pelo total falhanço da obra enquanto Melville viveu, e durante mais 50 anos após a sua morte. A crítica convergiria para um ataque a esta dualidade, acusando Melville de ambição desmedida, e de não ter conseguido realizar o que se tinha proposto.
“[A]n ill-compounded mixture of romance and matter-of-fact. The idea of a connected and collected story has obviously visited and abandoned its writer again and again in the course of composition.” Henry F. Chorley, in London Athenaeum, October 25 1851Só mais tarde, já em pleno modernismo, será “Moby Dick” redescoberto e analisado a uma luz distinta. A leitura que vai saltitando entre os dois registos, nem sempre é fácil, por isso não admira a admiração dos modernistas. É verdade que a componente científica presente em Moby Dick tem hoje quase nenhuma relevância, além de histórica, e por isso mesmo torna-se por vezes além de entediante, frustrante. Contudo, a sua leitura na época teria um valor completamente distinto, tendo em conta toda a relevância sócio-económica da caça às baleias.
Com isto não quero dizer que ler “Moby Dick” hoje perdeu todo o seu interesse. É verdade que a obra de Melville não é um tratado científico com um lastro que possa ombrear com “A Origem das Espécies” (1859) de Darwin, não por lhe faltar observação e minúcia do foro baleeiro, mas antes porque se limita a descrever, deixando toda a componente crítica para o lado ficcional da narrativa, a operar sobre o humano. Ou seja, temos uma obra em si mesma colossal, por todo o trabalho de investigação necessário ao seu desenvolvimento, a quantidade de detalhe e os modos de conseguir a informação impressionam, ao que se junta um registo poético que não terá sido ditado com menor minúcia, fruto de grande revisão e aperfeiçoamento.
William Faulkner, profundo modernista, perceberia isto muito bem, a distinção de registos discursivos e a tentativa de mescla operada por Melville, e por isso quando lhe perguntaram que livro gostaria ele de ter escrito, em 1929, ele respondeu: “Moby Dick”.
Do lado da aventura, temos uma história sobre a persistência e resiliência humanas, sobre o confronto entre o humano e o meio, a luta por levar o seu desígnio avante, por não se deixar quedar nunca, tudo e todos enfrentando para conseguir afirmar-se, nem que isso custe a sua própria vida. Neste sentido existem imensos paralelos com a obra de Hemingway, “O Velho e o Mar”, mas Melville vai mais longe, pondo os princípios do humanismo de lado para se focar completamente no domínio da espécie humana.
Sobre as traduções para português
Quero deixar aqui um apontamento sobre as traduções. Desta vez optei pela edição brasileira da Cosac Naify, que lançou em 2008 uma tradução realizada por uma académica que se tem dedicado ao estudo da obra de Melville, Irene Hirsch, suportada na componente náutica por Alexandre Barbosa de Souza. Se optei por esta edição não foi por a Cosac a ter rotulado de definitiva, mas antes por ter realizado um trabalho comparativo com mais duas outras edições nacionais (Público e Relógio D'Água), confrontado-as com o original, e ter concluído, que se queria ler em português, esta era a única tradução que me permitia estar próximo de Melville.
A tradução lançada na colecção Geração do Público parece uma amálgama de palavras, com o texto de Melville a perder toda a musicalidade original, que achei desde logo estranha dado ter lido previamente sobre o tom poético de "Moby Dick". Mas a minha estranheza aconteceu quando embati numa frase, logo no primeiro parágrafo, que me pareceu totalmente fora de contexto, nem queria acreditar que o autor a pudesse ter escrito. Por isso peguei na edição da Relógio d'Água, que diga-se não passa de uma revisão de uma tradução antiga da Editorial Estúdios Cor, mas na qual notei logo um trabalho linguístico bastante distinto, mas a tal a frase, o substantivo, permanecia, tal e qual. Por isso fui ler o original, e nem quis acreditar que Melville, tal como eu pressentia, não tinha escrito aquilo. Deixo a frase à vossa consideração,
“(..) nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio.”
Lúcia do Carmo Cabrita Harris, Colecção Geração Público, 2004
“(..) percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.”
Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves, E.E. Cor / Relógio d’Água, 1962 / 2005
“(..) então percebo que é hora de ir o mais rápido possível para o mar. Esse é o meu substituto para a arma e para as balas.”
Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, Cosac Naify, 2008
”(..) then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball.”
Original de Herman Melville, 1851
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