Mostrar mensagens com a etiqueta science. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta science. Mostrar todas as mensagens

novembro 17, 2020

Transcend: The New Science of Self-Actualization (2020)

Maslow é para mim um dos mais importante teóricos da psicologia, nomeadamente do domínio da motivação humana, por isso este trabalho de Barry Kaufman, "Transcend: The New Science of Self-Actualization" (2020), enquanto tentativa de atualização do maior legado de Maslow, a Pirâmide de Necessidades Humanas de 1943, é uma obra fundamental. Não deixa de impressionar como uma teoria criada há quase 80 anos continua tão atual como quando proposta, no entanto existe sempre espaço para melhorar, e é isso que Kaufman aqui se propõe. 

Neste livro Barry Kaufman, assente na Pirâmide de Necessidades e em estudos multidisciplinares — de áreas como “positive psychology, social psychology, evolutionary psychology, clinical psychology, developmental psychology, personality psychology, organizational psychology, sociology, cybernetics, and neuroscience” — juntamente com um estudo aprofundado do legado e dos últimos escritos deixados pro Maslow, apresenta uma revisão da proposta na forma de “Sailboat Metaphor”.

Representação da “Sailboat Metaphor” de Barry Kaufman

Neste conceito o foco deixa de ser a “necessidade” e passa para a “auto-realização”. No modelo de Maslow essa realização surgia apenas no topo da pirâmide, Kaufman propõe uma revisão em que oferece mais espaço à conceptualização da realização humana, tornando-a central para aquilo que definimos como “sentido da vida”. Assim, e como se pode ver na imagem, mantém-se um conjunto de necessidades que estão situadas dentro do barco, fundamentais para garantir a segurança dos indivíduos e mantê-los à tona da água. No topo do barco, surge a vela, aquela que nos pode levar “mais longe” se aprendermos a manejar a mesma. 

“To use the sailboat metaphor, while we each travel in our own direction, we’re all sailing the vast unknown of the sea (…) you don’t ‘climb’ a sailboat like you’d climb a mountain or a pyramid. Instead, you open your sail, just like you’d drop your defenses once you felt secure enough. This is an ongoing dynamic: you can be open and spontaneous one minute but can feel threatened enough to prepare for the storm by closing yourself to the world the next minute. The more you continually open yourself to the world, however, the further your boat will go and the more you can benefit from the people and opportunities around you. (…) And if you’re truly fortunate, you can even enter ecstatic moments of peak experience—where you are really catching the wind. In these moments, not only have you temporarily forgotten your insecurities, but you are growing so much that you are helping to raise the tide for all the other sailboats simply by making your way through the ocean. In this way, the sailboat isn’t a pinnacle but a whole vehicle, helping us to explore the world and people around us, growing and transcending as we do.”

Esta metáfora é bastante mais rica que a da pirâmide, desde logo porque se introduz com dinâmica, o que permite compreender o funcionamento de cada elemento na dimensão tempo. Mas também porque a separação realizada, entre a segurança, ou necessidades fundamentais, e o crescimento humano, leva o modelo bastante além na compreensão da auto-realização humana, algo que urge compreender para podermos trabalhar as nossas sociedades em registos aceitáveis de sanidade mental.

Kaufman propõe uma visão além do barco, correspondendo ao céu acima do mesmo, no qual pode acontecer a chamada transcendência do humano:

 “At the top of the new hierarchy of needs is the need for transcendence, which goes beyond individual growth (and even health and happiness) and allows for the highest levels of unity and harmony within oneself and with the world. Transcendence, which rests on a secure foundation of both security and growth, is a perspective in which we can view our whole being from a higher vantage point with acceptance, wisdom, and a sense of connectedness with the rest of humanity.”

Confesso que esta parte relativa a transcendência, e que no fundo dá nome ao livro foi a que menos me falou. Compreendendo o objeto de Kaufman, e até que o próprio Maslow passou os últimos anos a trabalhar neste campo, considero-o demasiado próximo da individualidade de cada um, excessivamente íntimo, o que acaba fazendo com que aquilo que se propõe se pareça mais com abordagens espirituais e de auto-ajuda, do que fruto da ciência. 


Não me parece que a metáfora de Kaufman venha substituir a de Maslow, mas julgo que a complementa, acabando por a tornar mesmo mais relevante, no sentido em que o trabalho de Maslow continua atual e assim a ser atualizado.

novembro 12, 2020

O problema dos três-corpos

Finalmente li "The Three-Body Problem" do chinês Liu Cixin. Quando saiu em inglês, no final de 2014 e ganhou o Hugo 2015, despertou-me uma curiosidade imensa, por vir classificado como Hard SF e de uma geografia culturalmente distante, a China. A somar a tudo isto o título fazia-me pensar constantemente no "problema mente-corpo" — à data desconhecia o "problema dos três corpos" — despertando a ideia de que estaria perante uma obra de grande fulgor filosófico. Terminada a leitura, muitas das minhas expectativas saíram goradas, criando um sabor amargo na experiência. Confesso que não ajudou ter criado tantas expectativas, mas também não ajudou tanto cliché narrativo decalcado da tradicional FC americana. Faltou-me exoticismo cultural, mas acima de tudo faltou-me elevação discursiva. Sim, muitos conceitos debatidos — a variação e constância da dinâmica — são brilhantemente expostos, ainda que de algum modo com excesso de redundância, mas quando se entra pelos mundos Nano e Pico adentro, pelas cordas e não-dimensionalidade, é tudo demasiado superficial, serve apenas a complexificação da trama que acaba por terminar numa espécie de banal romance policial.

Compreendo o entusiasmo na receção à obra, dada a geografia e o sucesso do autor no seu país. Confesso também que Cixin apesar de ter uma escrita regular, sabe gerir muito bem o suspense e despertar a curiosidade fazendo com que viremos páginas atrás de páginas. Sim, a escrita socorre-se excessivamente de exposição falhando na dramatização (o chamado tell-show), mas isso não perturba a leitura uma vez que o autor coze muito bem a informação e nos mantém sempre engajados até ao final. 

Assim, se gostei imenso do ambiente inicial assente na história da Revolução Cultural chinesa, ou ainda do videojogo RV, que Cixin usa fundamentalmente para a exposição de conceitos, desgostei imenso toda a trama muito básica de vinganças, ataques, invasões, insectos, etc. Desgostei, como não poderia deixar de ser, seguir atrás de personagens que olham para o desconhecido com o único desejo de se vingarem naqueles que os maltrataram. De personagens, que se colocam no extremismo oposto à Revolução, e se assumem acima do comum humano por via do mero intelecto, algo que pode fazer sentido na rebeldia dos 16/17 anos. Mais, considero que Cixin passou a linha vermelha ao colocar a protagonista no lugar de assassina, ignorando a moralidade de tal conduta.

outubro 28, 2020

Da Loucura à Psicologia

 “Madness and Civilization: A History of Insanity in the Age of Reason” é a tradução inglesa do primeiro livro de Michel Foucault, uma tese publicada no meio académico como “Folie et déraison: Histoire de la folie à l’âge Classique” (1961), revista em 1972 e publicada como “Histoire de la folie à l’âge Classique”, mas que teve na sua génese um primeiro trabalho de Foucault “Maladie mentale et personnalité” (1954), quase desaparecido, mas republicado novamente em 1962 como “Maladie mentale et psychologie”. Esta obra origina nos anos iniciais de Foucault, início dos anos 1950, em que dava aulas de psicologia na Universidade de Lille, e simultaneamente realizava pesquisa no hospital psiquiátrico, de Sainte-Anne em Paris, focado na relação médico-paciente. O livro de 1954 acaba surgindo como um conjunto inicial de escritos sobre conceitos e definições, sem grande método, uma espécie de tese de mestrado, tanto que Foucault procurou que não fosse republicado. A versão, de 1961, designado como “Folie et déraison”, resultado da sua tese de doutoramento, é aquele que é traduzido como “Madness and Civilization”, e marca o primeiro livro do autor.

Em “Madness and Civilization” Foucault inicia a criação da sua abordagem metodológica ao conhecimento, por via da fusão histórico-sociológica. Assim, ao longo deste livro Foucault debruça-se sobre o desenvolvimento da loucura e do lugar do louco na sociedade europeia desde a idade média, no século XIII até ao século XIX. Para o efeito divide 6 séculos em 4 grandes vagas que traça em função das relações conceptuais atribuídas à loucura. 

"Navios dos Loucos" (1516) de Hieronymus Bosch é um recorte da aba esquerda do Tríptico do Vagabundo, e pode ser visto no Museu do Louvre.

Assim temos uma primeira, de afastamento e desterro, com as pessoas que sofriam de doença mental a serem retiradas de circulação por via dos chamados “Stultifera Navis” (navios de loucos); uma segunda de proximidade com a doença, a lepra, em que os lugares que serviram o distanciamento dos doentes contagiosos, finda a peste passariam a ser utilizados para receber os loucos, adicionando o estigma do contágio; numa terceira fase, as casas de acolhimento hospital passam a receber não só os loucos mas também criminosos, como indesejados pelas famílias ricas, entre outros, acrescentando o estigma da criminalidade; e uma última de relação com a inutilidade, porque após a terceira fase, os criminosos eram colocados a trabalhar nas cidades gerando rendimento, mas os loucos, por não se conseguirem adequar à realização de tarefas, não geravam rendimentos e por isso eram atirados para colabouços sem quaisquer condições. Só a partir do século XVIII, diz Foucault, é que finalmente se começa a reconhecer a loucura e a depressão como doenças, e se encetam um conjunto de reformas por forma a começar a tratar as pessoas enquanto doentes, e não como estorvo ou alheio à sociedade.

"Casa de Loucos" (1819) de Francisco de Goya

Traçada esta evolução, para Foucault resulta claro que é a necessidade de começar a compreender a doença mental que vai permitir ou exigir o surgimento da psiquiatria e da psicologia.

Apesar de ser um livro excecional, considero-o menos conseguido que "Vigiar e Punir" (1975), o que não surpreende, já que distam quase 15 anos um do outro. Foucault evoluiu e aprimorou o seu modo de trabalhar, e constrói leituras bastante mais instigantes a partir dos quadros históricos que vai apresentando. Ainda assim, este é um livro seminal para quem quer que se interesse pela psicologia, ou pela doença mental.

setembro 13, 2020

O Verdadeiro Criador de Tudo (2020)

Miguel Nicolelis (1961) é um médico formado pela universidade de São Paulo e professor de neurobiologia na Universidade de Duke, EUA. A sua carreira tem sido recheada de prémios, reconhecimentos e louvores. Tornou-se popular com o projeto "Andar de Novo”, criado para a abertura do Mundial de Futebol 2014 (Brasil), que por meio de um exosqueleto, interfaces cerebrais e inteligência artificial permitiu a um paraplégico andar, chutar e marcar um golo. O projeto fez correr muita tinta, dentro e fora da academia, mas o principal resultado está neste seu livro "The True Creator Of Everything. How The Human Brain Shaped The Universe As We Know It" (2020), sob a forma de uma grande teoria sobre a realidade e o cérebro. 
Nicolelis abre o livro com a discussão do “Projeto Andar de Novo” focando-se sobre algo que parece um detalhe, mas que se torna central na discussão subsequente. No momento em que Juliano Pinto chuta a bola e marca golo, ele não grita “golo”, mas grita “I felt the ball! I felt the ball!”. O projeto pretendia criar um sistema de apoio artificial à locomoção da pessoa, que por ser tetraplégica deixou de controlar as suas pernas porque simplesmente não as sentia. Com este projeto, e com a tentativa de por meio de interfaces cerebrais colocar o cérebro a mexer as pernas por via de motores, o cérebro do paciente parece ter ido além, tendo conseguido realocar as sensações das pernas por via do sistema providenciado (ver imagem abaixo). 

Os exemplos disto são muitos, Nicolelis numa entrevista explica como o podemos fazer nós mesmos:
“coloque uma venda em uma pessoa normal como eu e você, e deixe passar  10, 15 minutos. Depois pegue um aparelho de ressonância magnética e peça a pessoa vendada para fazer uma tarefa tátil com as pontas dos seus dedos. [Com esse experimento] vamos detetar respostas táteis no seu córtex visual já. Isso sugere que existe uma conectividade entre o sistema sinestésico e o sistema visual (...) A gente encontra esse crosstalk de funções cerebrais por todo o lugar do córtex.”
O autor parte depois para uma discussão sobre a criação e seleção natural do nosso cérebro que teve impactos não apenas na morfologia mas no seu funcionamento em concreto, a partir do que vai iniciar a apresentação da sua proposta com o novo conceito de “informação godeliana”. Este tipo de informação, segundo Nicolelis, aproxima-se da informação digital, segundo descrita por Claude Shannon, com a diferença de ser analógica, mas mais do que isso, dada a sua imbricação natural com os tecidos, não formalizável, seguindo Godel. Mas é exatamente por possuirmos esse sistema de informação, que podemos reutilizar o cérebro de inúmeras formas diferentes. Ou seja, não existem área específicas para executarem funções no cérebro, elas podem ser realocadas, migradas, transformadas, em função da informação que recebem, abrindo espaço à “Teoria do Cérebro Relativístico”.

Com esta ideia estabelecida Nicolelis parte para discussão do cérebro enquanto criador da realidade que conhecemos. Imbuído do sistema de “informação godeliana” que permite construir a realidade nas nossas mentes de uma forma determinada, dá conta da impossibilidade desta informação ser replicada informaticamente e do modo como diferiria de uma qualquer espécie que tivesse surgido noutro qualquer planeta. O relevante desta proposta é que sustenta ideias discutidas pela filosofia desde a Alegoria da Caverna de Platão, para o que Nicolelis se suporta em Godel e contrapõe a ideia de que a matemática ou física sejam capazes de explicar algo além daquilo que o nosso cérebro possa compreender. 

Para o efeito transcreve um diálogo delicioso entre Albert Einstein e o Nobel da literatura, Rabindranath Tagore, ocorrido em Berlim a 14 julho 1930, que passo a transcrever:
Einstein: There are two different conceptions about the nature of the universe: (1) The World as a unity dependent on humanity. (2) The world as a reality independent of the human factor. 

Tagore: When our universe is in harmony with Man. The eternal, we know it as Truth, we feel it as beauty. 

Einstein: This is the purely human conception of the universe. 

Tagore: There can be no other conception. This world is a human world—the scientific view of it is also that of the scientific man. There is some standard of reason and enjoyment which gives it Truth, the stan- dard of the Eternal Man whose experiences are through our experiences. 

Einstein: This is a realization of the human entity. 

Tagore: Yes, one eternal entity. We have to realize it through our emotions and activities. We realized the Supreme Man who has no individual limitations through our limitations. Science is concerned with that which is not confined to individuals; it is the impersonal human world of Truths. Religion realizes these Truths and links them up with our deeper needs; our individual consciousness of Truth gains universal significance. Religion applies values to Truth, and we know this Truth as good through our own harmony with it. 

Einstein: Truth, then, or Beauty is not independent of Man?

Tagore: No.

Einstein: If there would be no human beings any more, the Apollo of 
Belvedere would no longer be beautiful.

Tagore: No.

Einstein: I agree with regard to this conception of beauty, but not with regard to Truth.

Tagore: Why not? Truth is realized through man.

Einstein: I cannot prove that my conception is right, but that is my religion.

Tagore: Beauty is in the ideal of perfect harmony which is in the  Universal Being; Truth the perfect comprehension of the Universal Mind. We individuals approach it through our own mistakes and blunders, through our accumulated experiences, through our illuminated consciousness—how, otherwise, can we know Truth? 

Einstein: I cannot prove scientifically that Truth must be conceived as a Truth that is valid independent of humanity; but I believe it firmly. I believe, for instance, that the Pythagorean Theorem in geometry states it is something that is approximately true, independently of the existence of man. Anyway, if there is a reality independent of man, there is also a Truth relative to this reality; and in the same way the negation of the first engenders a negation of the existence of the latter. 

Tagore: Truth, which is one with the Universal Being must essentially be human, otherwise whatever we individuals realize as true can never be called truth—at the least the Truth which is described as scientific and which can only be reached through the process of logic, in other words, by an organ of thoughts [the brain] which is human. According to Indian Philosophy there is Brahman, the absolute Truth, which can- not be conceived by the isolation of the individual mind or described by word but can only be realized by completely merging the individual in its infinity. But such a Truth cannot belong to Science. The nature of Truth which we are discussing is an appearance—that is to say, what appears to be true to the human mind and therefore is human, and may be called maya or illusion. 

Einstein: So according to your conception, which may be the Indian conception, it is not the illusion of the individual, but of humanity as a whole. 

Tagore: The species also belongs to a unity, to humanity. Therefore the entire human mind realizes Truth; the Indian or the European mind meet in a common realization. 

Einstein: The word species is used in German for all human beings, as a matter of fact, even the apes and the frogs would belong to it. 

Tagore: In science we go through the discipline of eliminating the personal limitations of our individual minds and thus reach that com- prehension of truth which is the mind of the Universal Man. 

Einstein: The problem begins whether Truth is independent of our consciousness. 

Tagore: What we call truth lies in the rational harmony between the subjective and objective aspects of reality, both of which belong to the super-personal man. 

Einstein: Even in our everyday life we feel compelled to ascribe a reality independent of man to the objects we use. We do this to connect the experiences of our senses in a reasonable way. For instance, if nobody is in this house, yet the table remains where it is. 

Tagore: Yes, it remains outside the individual mind, but not the universal mind. The table which I perceive is perceptible by the same kind of consciousness which I possess. 

Einstein: If nobody would be in the house the table would exist all the same—but this is already illegitimate from your point of view—because we cannot explain what it means that the table is there, independent of us. Our natural point of view in regard to the existence of truth apart from humanity cannot be explained or proved, but it is a belief which nobody can lack—no primate beings even. We attribute to truth a super- human objectivity; it is indispensable for us, this reality which is independent of our existence and our experience and our mind—though we cannot say what it means. 

Tagore: Science has proved that the table as a solid object is an appearance and therefore that which the human mind perceives as a table would not exist if that mind were naught. At the same time it must be admitted that the fact, that the ultimate physical reality is nothing but a multitude of separate revolving centers of electric force, also belongs to the human mind. In the apprehension of Truth there is an eternal conflict between the universal mind and the same mind confined in the individual. The perpetual process of reconciliation is being carried out in our science, philosophy, in our ethics. In any case, if there be any Truth absolutely unrelated to humanity then for us it is absolutely non-existing. It is not difficult to imagine a mind to which the sequence of things happens not in space but only time like the sequence of notes in music. For such a mind such a conception of reality is akin to the musical reality in which Pythagorean geometry can have no meaning. There is the reality of paper, infinitely different from the reality of literature. For the kind of mind possessed by the moth which eats that paper literature is absolutely non-existent, yet for Man’s mind literature has a greater value of Truth than the paper itself. In a similar manner if there be some Truth which has no sensuous or rational relation to the human mind, it will ever remain as nothing so long as we remain human beings. 

Einstein: Then I am more religious than you are! 

Tagore: My religion is the reconciliation of the Super-personal Man, the universal human spirit, in my own individual being. 


** In a second meeting, on August 19, 1930, the extraordinary dialogue continued. **


Tagore: I was discussing... today the new mathematical discoveries, which tell us that in the realm of the infinitesimal atoms chance has its play; the drama of existence is not absolutely predestined in character. 

Einstein: The facts that make science tend towards this view do not say goodbye to causality. 

Tagore: Maybe not; but it appears that the idea of causality is not in the elements, that some other force builds up with them an organized universe. 

Einstein: One tries to understand how the order is on the higher plane. The order is there, where the big elements combine and guide existence; but in the minute elements this order is not perceptible. 

Tagore: This duality is in the depths of existence—the contradiction of free impulse and directive will which works upon it and evolves an orderly scheme of things. 

Einstein: Modern physics would not say they are contradictory. Clouds look one [way] from a distance, but if you see them near, they show themselves in disorderly drops of water. 

Tagore: I find a parallel in human psychology. Our passions and de- sires are unruly, but our character subdues these elements into a harmonious whole. Are the elements rebellious, dynamic with individual impulse? And is there a principle in the physical world which dominates them and puts them into an orderly organization? 

Einstein: Even the elements are not without statistical order: ele- ments of radium will always maintain their specific order now and ever onwards, just as they have done all along. There is, then, a statistical order in the elements. 

Tagore: Otherwise the drama of existence would be too desultory. It is the constant harmony of chance and determination, which makes it eternally new and living. 

Einstein: I believe that whatever we do or live for has its causality; it is good, however that we cannot look through it. 


O mais paradoxal de toda a apresentação do livro, e que dá conta também de alguns dos problemas do trabalho do autor e nomeadamente do relacionamento com outros cientistas, surge nas previsões relativamente catastróficas que faz para o futuro do humano, nomeadamente a partir da ligeireza com que discorre sobre os efeitos dos media, dos computadores e nomeadamente das redes sociais. 

Deste modo, quando fechei o livro fiquei a pensar: quanto do que li é tão novo como o autor nos quer dizer? Se gostei de ler, e ter contacto com as décadas de experimentos neurocientíficos de Nicolelis, também me questionei sobre quanto destas propostas não tinham já sido amplamente discutidas em profundidade pela filosofia, depois psicologia e agora pelas neurociências? O que liga Platão, Descartes e Godel se não exatamente esta ideia de que o cérebro é o criador de tudo? 

Aquilo que se pode dizer é que Nicolelis acrescenta à teorização os modos efetivos de funcionamento do nosso cérebro que suportam essa ideia. Mas que o cérebro modelo e filtra a realidade, e nos faz ver de uma forma particular, acho difícil ter hoje dúvidas disso. A questão que se coloca é antes perceber, de que é então feita a realidade externa a nós, além da simulação mental que criamos? Claro que aqui batemos contra a parede da impossibilidade de sair fora do nosso espartilho cerebral, e talvez por isso mesmo tenhamos de concluir que somos apenas aquilo que o nosso cérebro nos permite que sejamos.

agosto 13, 2020

Seleção natural e felicidade

 “The Social Leap” (2018) é um livro de divulgação científica sobre psicologia evolucionária, escrito por William von Hippel, professor da Universidade de Queensland, Australia, reconhecido especialista da área. Enquanto livro de divulgação serve de introdução à área, trazendo pouco de novo a quem estuda ou segue o domínio. Talvez a parte mais interessante, ou com alguma novidade, introduzida pelo trabalho do próprio Von Hippel, seja o último terço do livro dedicado à discussão da psicologia evolucionária que suporta o sentimento humano de felicidade.

A psicologia evolucionária é uma abordagem teórica ao campo da psicologia que procura identificar e explicar os fenómenos psicológicos — da emoção e cognição — a partir de uma perspetiva darwinista, ou seja, sustentada em processos de seleção natural e sexual. Confesso-me como um profundo seguidor da abordagem pelo modo como tende a oferecer maior suporte científico à teorização em psicologia, seguindo em particular os trabalhos de investigadores como John Bowlby, Paul Ekman, Simon Baron-Cohen, Steven Pinker, Paul Bloom, Michael Tomasello ou Denis Dutton. Contudo, não deixo de ter um olhar crítico perante a abordagem, uma vez que as metodologias de demonstração das teorias são limitadas, não se podendo falar em evidência empírica na maior parte das teorizações. Por outro lado, a triangulação entre biologia, antropologia e psicologia, nomeadamente por via dos recentes desenvolvimentos das neurociências têm vindo a dar suporte a muito do que se debate na área.

Exposto o domínio e os seus problemas, o trabalho aqui apresentado por Von Hippel não está livre destes. Tanto que a maior parte dos meus conflitos com esta leitura se deveram às leituras feitas por Von Hippel a partir dos dados que temos. Ou seja, muito da psicologia evolucionária assenta numa recolha de evidências laterais e construção de uma interpretação das evidências com base na evolução, como tal, é fácil cair em interpretações que podem não ser as mais corretas, desde logo porque reducionistas. Ou seja, tendo um conjunto de dados empíricos sobre uma determinada atividade e reações humanas, a forma como interpreto as mesmas dependo do enquadramento teórico de que parto, e aqui o desconhecimento de determinados quadros teóricos pode ditar leituras menos relevantes.


Alguns Problemas 

Foi isto mesmo que aconteceu no capítulo dedicado à Inovação, intitulado “Homo Innovatio”. O autor usa um conjunto de dados e parte para a leitura que lhe parece mais correcta, mas que do meu ponto de vista é redutora da leitura daquilo que é a inovação humana.

“When innovation researchers ask representative samples of people whether they have modified any products at home or created anything new from scratch (such as tools, toys, sporting equipment, cars, or household equipment), about 5 percent report that they have done so in the last three years.* The percentage of innovators varies a bit by country, but never cracks 10 percent. For such an innovative species, one in ten or twenty seems awfully low. Yet, when I reflect on my own life, I can’t recall ever inventing anything. I have a few inventive friends, but I’d be surprised if 5 percent of them have ever invented anything either, let alone in the last three years.”

Não podemos contabilizar como inovação apenas criação físicas, apesar de ser isso que o regime de Patentes privilegia. Um ser humano que escreve um livro, uma canção ou pinta uma tela está num processo de inovação, não de consumo. O seu modo de abordar o mundo é expressivo, atuando para alterar a realidade que o rodeia, e isso é aquilo que importa do ponto de vista cognitivo. Não aquilo que podemos ou não considerar como patentes.

“Yet, across all these generations of travelers, no one thought to put wheels on suitcases until 1970, and they didn’t catch on until the modern version of a wheeled suitcase with a retractable handle appeared in 1987.* This failure to attach wheels to suitcases was all the more remarkable given that once people lugged their nonwheeled suitcases to the airport, they then paid cold, hard cash to a porter who plunked their nonwheeled suitcases on his cart and easily wheeled a whole family’s worth of baggage the last fifty yards to the ticket counter”

Depois, usa este exemplo das rodas nas malas que é muito fraco, já que não está a falar de inovação, mas de sucesso de uma inovação, que são duas coisas completamente diferentes. Existem registos de colocação de rodas em malas anteriores a 1970, mas estes são os registos que temos. Dos que não temos, devem existir muitos mais, já que é assim que funciona a criatividade e inovação, nada se constrói do zero, num momento divino de inspiração, mas tudo funciona como aglomerado de ideias que se vão elevando até chegar ao produto de sucesso.

Outro ponto fraco do livro é o modo como trabalha o género — os homens gostam de coisas, as mulheres de pessoas, os homens gostam de sistemas, as mulheres de relações. Vindo de alguém que trabalha Psicologia Social, é mau escrever isto em 2018. Mesmo frisando várias vezes que não é o modo correto de ler os géneros, mas que o faz porque dá jeito!!!! Facilita? Não, não facilita, porque se ajuda a passar a sua mensagem, acaba a contribuir para a manutenção dos estereótipos que marcam milhões de pessoas que não se reveem em nada disto.

É profundamente ridículo tentar catalogar gostos, preferências, desejos, sentires por género nos dias de hoje. Repare-se que não estou aqui a defender qualquer leitura feminista, porque desse lado também se cometem muitos destes erros. Quando as feministas qualificam todos os homens com rótulos de mansplaining, manspreading ou manterrupting estão a fazer o mesmo, a catalogar humanos em função de um mero sexo, quando esse sexo nada diz sobre a sua psicologia. Tudo isto acontece por causa de uma simples curva de Bell, na qual podemos identificar que 50%+1 de homens tende a fazer A, ou 50%+1 de mulheres, tende a fazer B. No meio de tudo isto, ficam os 49% de homens e de mulheres que nada têm que ver com a questão, e acaba sendo rotulados de anormais.


O contributo de Von Hippel: Seleção Natural e Felicidade

“this capacity to travel in time mentally and make complex plans for the future has given us an enormous selective advantage. Unfortunately, that advantage comes at a cost, given that the time we spend living in the future distracts us from the present. As a consequence, “people often fail to appreciate the pleasures (or demands) of the moment because they pay so little attention to the here and now.”

“Most meditation practices teach people to live in the moment. This is a laudable goal, but it’s incredibly difficult to achieve because it’s at odds with an evolved skill that has served us so well over the last million-plus years. We have a great deal of difficulty shutting down thoughts of the future unless the demands or pleasures of the moment are so substantial that they drag us back to the here and now. (..) My dogs, in contrast, show no signs of this inner struggle. They live in the moment because they are incapable of casting their minds forward. Every treat I give them is devoured with gusto, regardless of whether it means we just finished dinner or are off to the vet.”

Pergunta: Why Aren’t We Always Happy?

“As hard as it is to believe, lottery winners are usually no happier than they were before they won, and a fair few of them are a lot less happy. Not the day after they win—that’s a pretty good day—but by a year or two later, most people have adapted to their new normal, and their happiness has returned to where it was before they drew the winning ticket."

“The sad truth is that all of us have dreams, but even when our dreams come true, we rarely end up happier than we were before. New successes bring new challenges. The German folk saying Vorfreude ist die schönste Freude (“Anticipated joy is the greatest joy”) is much more accurate than Disney’s “happily ever after.”

 “Why did evolution play this dirty trick on us, giving us dreams of achievements that will provide lifelong happiness but then failing to deliver the emotional goods when we achieve our goals?"

A resposta de Von Hippel

"evolution doesn’t care if we’re happy, so long as we’re reproductively successful. Happiness is a tool that evolution uses to incentivize us to do what is in our genes’ best interest. If we were capable of experiencing lasting happiness, evolution would lose one of its best tools.”

 “Really happy people are rarely high achievers because they simply don’t need to be. As Ted Turner put it, “You’ll hardly ever find a super-achiever anywhere who isn’t motivated at least partially by a sense of insecurity (…) the earnings of the very happy folks on the far right look a lot like those of the unhappy ones. Some joy is clearly good for success in life, but too much happiness is a financial disaster. This is why evolution designed us to be reasonably happy, with occasional moments of giddiness that soon fade as we return to our individual baseline level of happiness. Numerous self-help professionals would have us believe that attaining maximal or permanent happiness should be our goal, but an evolutionary perspective clarifies that such a goal is neither achievable nor desirable.”


Estudos encontrados ao longo do livro

Motherhood and Protection

“Mothers were incapable of detecting which poo came from which baby, but they found the smell of the other babies’ poo more disgusting than that of their own baby. Even though mothers were unable to identify their baby’s poo, at an unconscious level their behavioral immune system pushed them away from the feces with a higher level of unfamiliar pathogens.”

“Experiments such as these point to the exquisite sensitivity of the behavioral immune system, and our evolved capacity to avoid germs that are most likely to make us sick. We see additional evidence for these processes in the geographic distribution of languages, religions, and ethnocentrism. As we move from the poles to the equator, the number of languages and religions per region increases, and people become more xenophobic. These effects may seem to be unrelated, but all three processes serve to keep groups apart. When you don’t speak the same language, when you don’t share a religion, and when you tend to dislike members of other groups, you’re much less likely to intermingle with them.”

Grandmothers and Menopause

“How did evolution create grandmothers? By preventing women from producing more children of their own while they still had plenty of life in them, evolution gave them the opportunity to focus on their grandchildren rather than their children.* This is why human females evolved menopause.”

Dopamine and Status

“With regard to status, research on monkeys demonstrates that when they rise to the top of the status hierarchy, there is an increase in the dopamine (evolution’s pleasure drug) sensitivity in their brains. As a result of this increased dopamine sensitivity, monkeys at the top of the heap no longer enjoy cocaine (a drug that hijacks the dopamine system). When offered cocaine versus salt water, these top monkeys show no preference between them. In contrast, monkeys at the bottom of the status hierarchy have low dopamine sensitivity and become avid coke users. Data such as these confirm the common wisdom that high status makes us happy and low status makes us sad.”

“With regard to money, once people get out of poverty, the relationship between wealth and happiness is not as strong as you might think. Much more important, if all of society rises in wealth at the same time, increases in wealth beyond poverty provide no increase in happiness.”

Real income (controlling for inflation) and life satisfaction in the United States, between 1947 and 2002

“These data suggest that my home cinema, granite countertops, and convertible don’t actually make me any happier unless I have them and you don’t. In other words, I want these things only to put myself above others. Moreover, whether I know it or not, the reason I want to rise to the top of the heap is because that gives me a better chance of getting the partner I really want. The TV, countertops, and car are just trivialities, but because I don’t know this, I spend my time coveting them, working to acquire them, and eventually becoming the disinterested owner of them.”

Risks and Skate

“we hired a beautiful research assistant and headed off to skateboard parks. In the first stage of the experiment, a male researcher approached a skateboarder and asked if he could film him making ten attempts at a trick that he was working on but hadn’t yet mastered. In the second stage of the experiment, the same skateboarder was either approached by the male experimenter or by the attractive female we had hired, who asked to film the same ten tricks. After the skateboarders completed their second round of tricks, we took a saliva sample to measure their testosterone. Just as we expected, testosterone went up in the presence of the female experimenter, and the higher the testosterone levels, the more risks the skateboarders took. As a consequence of their greater risk taking, they crashed more often but they successfully landed more tricks as well.”

“What can we infer about happiness from this conflict between survival and reproduction? The first lesson is that risk taking and other foolish things that young men do are not “pathologies,” signs of their disconnection from the modern world, or other labels often provided by social commentators. Rather, they are evolved strategies that made perfect sense for our ancestors and probably continue to make reproductive sense today.”

“The second lesson is that trying to prevent our sons, brothers, or friends from taking unnecessary risks is a bit like pissing into the wind. Removing the opportunity for young men to engage in competition and risk taking is a bad idea, and likely to lead to unpleasant blowback. Young men feel millions of years of evolutionary pressure, emanating from their testicles, pushing them toward risk and competition. For this reason, the best bet is not to eliminate risk entirely, but to replace truly dangerous risk and conflict with more benign opportunities for thrill seeking and competition. Sports in which you can’t get hurt at all are unlikely to fulfill such goals, but sports in which you won’t get hurt too badly are a great substitute.”

Happiness and Learning

“Our long period of development is consumed almost entirely by learning the means of survival used by our group -- As a consequence, evolution has ensured that learning is tightly linked to our motivational system; humans all over the world love to learn.”

“The motivational importance of curiosity is widely understood, but there are two important forms of learning (and therefore two important sources of life satisfaction) that people often fail to recognize: play and storytelling”

Happiness, Personality, and Development

As I suggest earlier in this chapter, there is more than one way to be a successful human, and hence more than one route to happiness.”

“Pitfalls of a Modern World”

“Universal adoration and fame are some of the most common dreams of people all over the world, but you need only reflect on the turbulent lives and repeated divorces of celebrities to realize how much happier you are being unknown.”


O livro está editado em Portugal. pela Vogais, como "O Salto Social. A nova ciência evolutiva sobre quem somos, de onde vimos e o que nos faz felizes".

agosto 06, 2020

Vigiar e Punir, segundo Foucault

Do Caos à Ordem por via da Disciplina e Punição, é o que nos diz Foucault nesta carismática obra de 1975, talvez a mais relevante de todo o seu trabalho, pelo modo como atravessa tudo e todos, obrigando a uma reflexão profunda sobre o que somos enquanto indivíduos parte de uma sociedade, fruto de processos de civilização. Em última análise, Foucault lança a ideia de que aquilo que distingue a civilização da barbárie, que nos distingue do primitivismo assim como dos animais, é a Ordem e essa é conseguida por via de dois grandes conceitos: Disciplina e Punição. Aliás, o título da obra sendo originalmente, em francês “Surveiller et Punir”, traduzido corretamente para português como “Vigiar e Punir”, ao ser passada para inglês ganharia o título de “Discipline and Punish” (“Disciplinar e Punir”).
Mas a ênfase de Foucault na vigilância não é secundária, porque segundo ele, a disciplina é resultado da vigilância. Claro que resulta da punição, que treina o comportamento humano para se manter na linha reta traçada por essa sociedade. Mas a manutenção dos indivíduos na linha reta só se consegue por via da constante vigilância. Daí que Foucault tenha recorrido ao modelo de prisão criado no século XIX para dar conta de uma figura central da sua teorização, o panoptismo. Aliás, vai além da prisão, resgatando os modos de atuação das sociedades perante a peste no século XV, que parece tão próximo destes tempos de COVID-19 que atravessamos, como se vê neste excerto do capítulo “O Panoptismo”:
“Em primeiro lugar, uma repartição espacial estrita: encerramento, obviamente, da cidade e dos arredores, interdição de sair dela, sob pena de morte, eliminação de todos os animais errantes; divisão da cidade em quarteirões distintos, onde se estabelece o poder de um intendente. Cada rua é posta sob a autoridade de um síndico; este vigia-a; se a deixar, será punido com a morte. No dia marcado, é ordenado que todos se fechem em casa: proibição de sair de casa, sob pena de morte. O próprio síndico vai fechar, do exterior, a porta de cada casa; leva a chave e entrega-a ao intendente de quarteirão; este guarda-a até ao fim da quarentena (..) Circulam apenas os intendentes, os síndicos, os soldados da guarda (...) “A inspeção funciona incessantemente. O olhar está alerta em toda a parte (...) guardas nas portas, na câmara municipal e em todos os bairros para tornar mais eficiente a obediência do povo e mais absoluta a autoridade dos magistrados, «bem como para vigiar todas as desordens, roubos e pilhagens.”
“Todos os dias, o intendente visita o bairro pelo qual é responsável, verifica se os síndicos cumprem as suas tarefas e se os habitantes têm queixas; «vigiam as suas ações». Também todos os dias, o síndico passa pela rua pela qual é responsável; para em frente de cada casa; chama todos os habitantes às janelas chama cada um pelo seu nome; informa-se do estado de todos, um por um – «os habitantes são obrigados a dizer a verdade sob pena de morte»”

“Esta vigilância baseia-se num sistema de registo permanente: relatórios dos síndicos aos intendentes, dos intendentes aos magistrados municipais ou ao presidente da Câmara. (...) Tudo o que é observado durante as visitas – mortes, doenças, reclamações, irregularidades – é anotado, transmitido aos intendentes e aos magistrados (...) O registo do patológico deve ser constante e centralizado. A relação de cada um com a sua doença e com a sua morte passa pelas instâncias do poder, pelo registo que estas fazem e pelas decisões que tomam.”
“Este espaço fechado, dividido, vigiado em todos os pontos, onde os indivíduos são introduzidos num lugar fixo, onde os mínimos movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem partilha segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente referenciado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – tudo isto constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. ”

“À peste responde a ordem;”

“A peste como forma simultaneamente real e imaginária da desordem tem como correlativo médico e político a disciplina. Por detrás dos dispositivos disciplinares, lê-se o terror dos «contágios», da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, que vivem e morrem na desordem.” 
Capítulo 7: O Panoptismo

O ataque à desordem busca o reequilíbrio, ou normalização dos processos, um voltar ao que era a linha anteriormente definida. Por seu lado, estes processos, demonstrando os seus frutos acabariam sendo importados para outros domínios, como diz Foucault:
“lentamente, vemo-los aproximarem-se; no século XIX, aplicou-se ao espaço de exclusão do qual o leproso era o habitante simbólico (..) isto foi operado regularmente pelo poder disciplinar desde inícios do século XIX: o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada e, de certo modo, os hospitais.”
Capítulo 7: O Panoptismo

O sistema de ordem e punição, ou nos dias hoje, de regulação, serve então a marcação binária da sociedade entre “louco-não louco, perigoso-inofensivo; normal-anormal”, com os mecanismos de poder a agirem sobre o anormal para o fazer regredir ao normal. Mas para que os mecanismos funcionem, é necessário todo um sistema de vigilância e informação permanente que permita a punição nos momentos adequados, o treino que permite dobrar o anormal, alertando e corrigindo. Daí que Foucault invoque a figura arquitetónica do panótico, que se define por um edifício circular com uma torre de vigia no centro. Os indivíduos sabendo-se vigiados, 24/24, e o efeito punitivo da não anuência da normalização, acabarão por se auto-normalizar. Aliás este mesmo processo foi utilizado em Portugal, e em muitas ditaduras do século XX, no uso das polícias de informação e o recurso a informadores no centro das comunidades, que tudo relatavam, induzindo o medo constante, e a manutenção da aparente normalidade.

Isto explica, para Foucault, porque passámos de um mundo medieval em que a tortura e morte era o normal na atribuição de justiça, para um mundo a partir do século XVIII, feito de prisões, em que os crimes, fossem de que ordem fossem, eram sempre punidos pela clausura. Segundo Foucault, houve uma transição da tortura do corpo para o controlo da “alma”, da mente, por via do fim dos maus tratos físicos via clausura em prisões. Esta transição foi operada pela pressão da sociedade, como modo de por fim à degradação humana representada pelos enforcamentos, guilhotinagens e torturas em praças públicas. Deste modo, Foucault aponta uma espécie de génese para a regulação da ordem assente na vigilância e disciplina, pela invasão e devassa da interioridade individual, apontada como reduto último, e aquele que necessita de ser quebrado para regressar à normalidade. A justiça abandona assim o simples ato punitivo vingativo em favor do ato corretivo de normalização, de suposto reajustamento psicológico. 

Daqui aponta o nascimento da Psicologia, a nova arte de normalização do humano, e aponta a normalização do indivíduo como o objeto último das sociedades, em que todos são moldados e formatados pelas ideias centrais comungadas pela comunidade em que se envolvem. Repare-se como Foucault define o processo de otimização da prisão a partir da cadeia exemplar de Mettray, aberta em 1840 e dada como grande exemplo em 1848 por funcionar em contraponto às revoltas que surgiam nas comunidades e escolas, como lugar em que a calma se tinha redobrado ao longo dos anos em que tinha funcionado:
“Os chefes e os subchefes em Mettray não devem ser exatamente nem juízes, nem professores, nem contramestres, nem suboficiais, nem «pais», mas um pouco de tudo isto e segundo um modo de intervenção que é específico. São, de certo modo, técnicos do comportamento: engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade. Têm a função de fabricar corpos dóceis e capazes: controlam as nove ou dez horas de trabalho diário (artesanal ou agrícola); dirigem as paradas, os exercícios físicos, a escola de pelotão, as alvoradas, os recolheres, as marchas com clarim e apito; comandam a ginástica; verificam a limpeza, presidem aos banhos. Adestramento que se acompanha de uma observação permanente; retira-se constantemente um conhecimento do comportamento quotidiano dos colonos; este saber é organizado como instrumento de avaliação perpétua:”

“Os suportes institucionais e específicos desses processos multiplicaram-se a partir da pequena escola de Mettray; os seus aparelhos aumentaram em quantidade e em superfície; os seus apoios multiplicaram-se, com os hospitais, as escolas, as administrações públicas e as empresas privadas; os seus agentes proliferaram em número, em poder e em qualificação técnica; os técnicos da disciplina criaram raízes. Na normalização do poder de normalização, na organização de um poder-saber sobre os indivíduos, Mettray e a sua escola marcaram uma nova época.” 
Capítulo 10. O Sistema Prisional

Todos estes processos buscam a normalização, mas não só, ou melhor, essa normalização não é um qualquer princípio natural ou inscrito na pedra por um qualquer Deus, mas é antes a tal linha reta definida por cada sociedade. Ora as sociedades só existem enquanto grupos de interesses comuns, se não comungam do mesmo, não se podem manter juntos. Daí que a normalização opere no sentido de unificar e levar a comungar. Neste sentido, todas as estruturas criadas pelas sociedades, das prisões às escolas, dos hospitais às empresas, tudo opera segundo o mesmo objetivo de normalização. Iria mais longe, e sendo atual, e próximo de uma área que me é cara, diria que tudo opera segundo processos de gamificação. As estruturas de jogo vivem inerentemente do vigiar e punir. O jogador precisa de puxar pelo melhor de si, de se tornar no mais exímio competente, para não ser punido, e poder atingir um alegado objetivo final.

Isto é tanto verdade no século XXI, como no XV, ou no -V, o que mudou foi a evolução do aparelho que se aprimorou com o conhecimento científico, nomeadamente a enorme evolução das ciências sociais, que nos levaram a compreender melhor o humano, e por fim, aquilo que cada sociedade e civilização considera moralmente bom e mau ou fundamental para a sua coexistência. Porque as sociedades do século XXI não pretendem o mesmo das do século XV, e menos ainda do século -V. Reflita-se sobre mais este excerto:
“A escola (...) é apenas o exemplo de um fenómeno importante: o desenvolvimento, na época clássica, de uma nova técnica para controlar o tempo das vidas singulares; para reger as relações do tempo, dos corpos e das forças; para assegurar uma acumulação da duração; e para transformar em proveito ou em utilidade sempre maiores o movimento do tempo que passa. Como capitalizar o tempo dos indivíduos, acumulá-lo em cada um deles, nos seus corpos, nas suas forças ou capacidades, e de uma maneira que seja suscetível de utilização e de controlo? Como organizar durações rentáveis? As disciplinas, que analisam o espaço, que decompõem e recompõem as atividades, devem ser também vistas como aparelhos para adicionar e capitalizar o tempo.”
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

É por isso que dizer, nos dias de hoje, que a Universidade não existe para profissionalizar, ou que não funciona como certificador de competências, é uma falácia. A sociedade aceita a Universidade com tanta omnipresença, com a maioria dos jovens a chegar aos 18 anos a procurar nela ingressar, apenas e só porque ela garante o aumento de rendimentos aos indivíduos e claro às sociedades como um todo. A Universidade não tem hoje qualquer relação com a Academia grega, desligada da realidade do quotidiano, desinteressada da posse material, focada exclusivamente no conhecimento, porque a universidade se transformou numa extensão da instituição da Escola. É preciso transformar pessoas em máquinas de competências no tempo mais curto possível, para o que se requer obrigatoriamente o treino pela repetição e divisão do saber analógico em classes discretas elementares. As unidades discretas de conhecimento permitem o treino isolado, a repetição acelerada do que não foi adquirido, e consequentemente a vigilância por via do exame que:
“tem a tripla função de indicar se o indivíduo atingiu o nível estatutário, garantir a conformidade da sua aprendizagem com a dos outros e diferenciar as capacidades de cada indivíduo.” 
Capítulo 5. Os Corpos Dóceis

Este modelo opera por toda a sociedade atual, nos hospitais com a doença e os doentes, nas fábricas e empresas, com os empregados e os seus objetivos a cumprir, nos tribunais com os arguidos, obviamente nas prisões e nos militares, mas também no desporto e na política. Porque tudo na sociedade atual é regulado por processos de gamificação dirigidos ao aumento de consumo e de produção. Esse é o modelo que nos regula, o Norte do jogo que a nossa civilização aceita jogar. 

Se dúvidas houvesse, analise-se o momento que atravessamos com o COVID-19, e perceba-se como todo o discurso, em todas as dimensões que constituem a nossa sociedade, se resume aos impactos no abaixamento do consumo e da produção. Como tudo e todos se focam naquilo que dizem ser a busca pela normalização que é o atingir do estado anterior à paragem forçada criada pelo COVID-19. Queremos a escolas abertas porque os pais precisam de ir trabalhar, porque os cafés, restaurantes, táxis, lojas de roupas, perfumes, bijuterias, papelarias e livrarias precisam de servir pais, professores e alunos, porque as fábricas precisam de servir todos esses estabelecimentos. Em redor destes nós, crescem múltiplos outros, em que todos dependem uns dos outros, e a paragem de um qualquer dos nós, implica diminuição de consumo e logo de atividade produtiva. 

Foucault não escreve enquanto crítico, mas enquanto cientista social, recorrendo ao método de análise histórica focada sobre as sociedades, procura padrões, indicadores, relações, leituras, buscava sentido interpretativo que explicasse porque funcionavam as sociedades como funcionavam. Claro que não foi o único a fazê-lo, mas a sua capacidade para identificar padrões macro e ligá-los a micro, tanto societais como individuais, por meio de teorização filosófica, sociológica e psicológica fez com que Foucault atingisse níveis de profundidade na sua análise únicos. O seu discurso é científico, baseado em evidência empírica, não se move por sentidos de correto ou incorreto, isso cabe ao leitor final decidir o que fazer com o novo modo de compreender a realidade apresentado por ele.

Do mesmo modo, não me interessa aqui apontar o dedo à Justiça, Escola, Políticos ou sequer ao Capitalismo ou qualquer outra ideologia económica. Na verdade, importa compreender que este foi o caminho escolhido para dominar o caos e a desordem, importa compreender como gerimos esse controlo, que ferramentas usamos para vigiar, punir e normalizar. Não porque sejam erradas, mas porque se quisermos mudar algo no modo como vivemos enquanto sociedade é sobre estas ferramentas que teremos de agir. Foucault não oferece caminho alternativo, só explica como montámos este caminho, que é apenas à superfície aparente natural, mas é profundamente artificial. 

Aliás, o que este seu trabalho demonstra é exatamente a evolução societal no sentido da adoção da ciência, no modo como evoluiu os seus métodos de ordem e normalização da sociedade, conduzindo a população a desejar jogar o jogo das suas vidas sob as mesmas regras. Já não estamos sob o jugo das religiões que exigem na base da fé cega, ou sob o jugo ditatorial que pune sem questionar, ambos os sistemas incapazes de se justificar perante as pessoas. Tanto os sistemas religiosos como ditatoriais, falharam por falta de feedback, mas acima de tudo por falta de objetivos macro. A ciência permitiu que as sociedades criassem novas estruturas que per se conseguiram instituir nas sociedades sistemas contínuos de feedback, que por sua vez garantem o desejo de submissão, de aceitação de ordem. Em última análise, o consumo parece ser o desejo último que a todos motiva de forma igual. Bem ou mal, de uma forma ou de outra, todos parecem desejar consumir mais, seja mais conhecimento, mais experiências, mais coisas ou mais poder, estando dispostos a aceitar as regras da vigilância e punição para o conseguir.

julho 26, 2020

A ciência do sobrenatural

“Supersense. Why we believe in the Unbelievable” (2009) é o segundo livro que leio de Bruce Hood, professor britânico de neurociência cognitiva do desenvolvimento, e se não traz nada de muito novo, acaba tocando e aprofundando um assunto pelo qual tendemos a passar e definir de dois modos opostos, dependendo do momento: secundarizando como inexorável, parte da condição humana; ou criticando como efeito de baixa literacia científica. Falo da crença na superstição e religiosidade, a crença em tudo o que está para além da experiência empírica do natural, ou seja, o sobrenatural. Hood trabalha ao longo de todo este livro, munido de dezenas de exemplos e estudos, a estrutura cognitiva que dá suporte àquilo que faz de nós humanos e simultaneamente crentes.
Temos uma necessidade absoluta de significado, sem o que não conseguimos atribuir valor ao mundo que nos rodeia, daí que passemos, o nosso cérebro passa, praticamente todo o tempo a decifrar padrões e a dar-lhes sentido. Não é suficiente que a realidade exista enquanto conjunto de objetos e elementos, precisamos de lhes conferir categorias, hierarquias, valores, atributos, pesos, precisamos de comparar, e acima de tudo de significar. Isto é inerente a nós, não é possível sair deste modo de conhecer a realidade, porque é assim que o nosso cérebro está desenhado. Isto não é propriamente negativo, pois foi este mesmo design mental que nos permitiu criar a ciência e evoluir tudo aquilo que evoluímos como espécie ao longo de milénios. Mas como em tudo, existem sempre perdas ou disfunções. Assim como conseguimos criar algo tão impressionante como a Matemática, conseguimos simultaneamente criar algo como a Religião. Ambas nasceram do mesmo modo de trabalhar a realidade, ambas seguem necessidades impostas pelo nosso modo de pensar, e ambas parecem, ao nosso cérebro, fazer absoluto sentido.

Leia-se a seguinte lista e reflita-se sobre o que tem em comum:

  • O monumento Pártenon em Atenas, ou o Coliseu de Roma;
  • Um autógrafo de Stephen Hawking, ou de Stephen King;
  • Um casaco usado por Michael Jackson, ou por Ted Bundy;
  • A casa em que viveu Leonardo Da Vinci, ou Adolf Hitler;
  • A caneta usada por Eça de Queiroz, ou Fernando Pessoa;
  • O barco em que viajou Vasco da Gama, ou Cristóvão Colombo;
  • Um quadro de Picasso, ou de Van Gogh; 
  • Uma casa em que se deram múltiplos assassínios, ou suicídios;
  • O coelhinho ou bonequinha com que dormíamos em criança;
  • Fotografias de familiares que já partiram;
  • Etc.

Nada existe de comum entre estes, a não ser que são coisas, objetos constituídos de átomos, moléculas e substâncias. Contudo quando observados por nós, humanos, ganham camadas adicionais de significado, que por sua vez introduzem variáveis novas que alteram a nossa perceção dos mesmos. É a isto que Hood chama de SuperSentido. A nossa capacidade para percecionar além da matéria, para percecionar além da natureza, o Sobrenatural.

Um dos exemplos mais discutidos neste tipo de abordagem psicológica é a visita às Caves de Lascaux, França, lugar com uma história que percorre no tempo 30 mil anos. A sensação de estar em frente de desenhos, carvão gizado na pedra, com todos aqueles anos, séculos, milénios e depois perceber que se está numa cave réplica, a meia-dúzia de metros da real gera uma desilusão potente. O mesmo efeito poderia ser criado se nos dissessem que estaríamos a visitar a caravela original em que Vasco da Gama descobriu a Índia para a seguir descobrir que era uma mera réplica com meia-dúzia de anos. Assim, talvez não seja de admirar que o Governo da Grécia ande numa guerra jurídica há dezenas de anos com o British Museum, para reaver o conjunto de pedras pertencentes ao friso do Pártenon, e que poderiam facilmente ser replicadas.
O governo francês gastou 75 milhões de dólares na criação de uma réplica, o mais autêntica possível, das Caves de Lascaux, por forma a preservar as originais dos vários problemas que produziriam as visitas de diárias de milhares de turistas e curiosos. Contudo quando as pessoas descobrem que não estão a visitar as verdadeiras caves a desilusão é enorme.

Hood realizou um conjunto de experimentos, com crianças, e alegadas máquinas avançadas de replicação atómica, que permitiriam replicar todo e qualquer objeto, propondo às crianças duplicar os seus brinquedos/objetos de estima pessoal. A reação foi invariavelmente a mesma, por mais idênticas que fossem as cópias, nenhuma criança as preferia às que eram suas. Como se esses objetos estivessem imbuídos de substâncias sobrenaturais, autênticas, sagradas ou mais puras. Isto leva Hood a dizer o seguinte:
“Society can tell us what is sacred but, to be experienced as sacred, something must become supernatural. It has to be more than mundane. It must possess qualities that are unique and irreplaceable. Discerning such qualities requires a mind designed to sense hidden properties. If something can be copied, duplicated, corrupted, cloned, forged, replaced, or substituted, it is no longer sacred. To arrive at this belief we have to infer that there are hidden supernatural dimensions to our sacred world. And with this thinking comes all the supernatural qualities of connectedness and deeper meaning. We need these to make sense of why we value some things over and above their objective worth.”
Ou seja, a coisa sagrada é uma coisa culturalmente criada pela nossa mente no momento em que a dotamos de significado, colocando a coisa num patamar distinto, especial. É daqui que depois surgem todas as dimensões criadas pelo humano que conduzem à produção de religiões, monarquias, mitologias ou simples cultos de personalidade. Tudo é possível, porque em tudo podemos ver mais do que aquilo que lá está, não porque lá esteja, mas porque somos feitos desta forma, temos esta necessidade de interpretar, de atribuir propósito.

A base deste supersentido somos nós mesmos, os humanos. Tendemos a não colocar as pessoas no mesmo patamar das coisas. Consideramos que essas não são descartáveis como meros objetos, porque essas são únicas em si, também pelas relações que construíram conosco. A sua perda por morte, traição ou simples conflito, não é mera perda de substância, nem sequer de pessoa exterior a nós, mas de algo que somos graças a essa pessoa, e que deixamos de poder continuar a ser quando a perdemos.

Daqui emana o problema central do “supersentido”, já que enquanto espécie aprendemos a compreender o outro enquanto imbuído de características vitais e mesmo essenciais, atribuindo-lhe na gíria a designação de “alma”. Na verdade, o vitalismo ou animismo não se distingue muito do modo como funciona efetivamente o processo da vida, e como esta a separa do mero objeto, ou como preferimos dizer do inanimado. Mas é desse animismo que fizemos evoluir o conceito de essencialismo, pela elevação da vida a algo único e dotado de essência extraordinária. A partir daqui, foi muito fácil começar a transpor essa essência para outras espécies, tais como os nossos animais domésticos, desde logo por via da sua antropomorfização, seguindo-se os objetos e todo o restante mundo real. 
Ou seja, por um lado vemos toda a realidade como dotada de propósito, o que nos conduz a produzir significados explicativos. Por outro lado, para produzir as interpretações desses propósitos, tendemos a colocar-nos no lugar dessas coisas, o que acaba transferindo o modo como sentimos e percecionamos, e como qualificamos o nosso próprio animismo, para tudo o resto. 

Hood defende que a origem está no desenvolvimento da cognição, e que o processo começa em criança. Enquanto crianças acreditamos que o Sol existe para nós, que nos segue para onde formos, ou que o modo como pensamos é idêntico para todos. Por isso se queimarmos uma cadeira, acreditamos que ela sentirá dor, do mesmo modo que sentirá a bicicleta quando a pontapeamos, isto para não falar do terror que podemos sentir se algo acontecer com os tais brinquedos/objetos prezados a nível pessoal e emocional. 
"Sentimental" de Reagan Caron

As religiões, habilmente ou canhestramente, tendem a manter estas crenças vivas, trabalham sobre a ideia do propósito, centradas na figura do humano como centro do universo, transferindo o animismo para tudo, tornando o universo numa versão maior do nosso próprio modo de conceber a realidade. Hume já tinha desmontado este princípio, há 200 anos, como cita Hood:
“There is an universal tendency among mankind to conceive all beings like themselves, and to transfer to every object, those qualities, with which they are familiarly acquainted, and of which they are intimately conscious. We find human faces in the moon, armies in the clouds; and by a natural propensity, if not corrected by experience and reflection, ascribe malice and good-will to everything, that hurts or pleases us. Hence . . . trees, mountains and streams are personified, and the inanimate parts of nature acquire sentiment and passionHume (1757), in "Natural History of Religion"
Por isso, mais facilmente aceitamos vestir um casaco sujo com cocó de cão e não lavado, do que um casaco usado por um serial killer, mas lavado pelos métodos mais higiénicos à face da terra. A ideia de que o mal possa ter trespassado para o casaco impede-nos de raciocinar. Do mesmo modo, a nossa experiência de uma tela pendurada na parede da nossa cozinha pode ser cabalmente transformada, da noite para o dia, se nos disserem que não é uma cópia, mas uma tela verdadeiramente pintada pelas mãos de Salvador Dali. Daqui para a perceção do mundo como criado por um Deus, super-humano, criador daquilo que somos é um passo natural. O ceticismo e a racionalidade requerem o esforço de sair da caixa que o design mental cria e a manutenção de alerta constante, sem o que mesmo os mais cépticos podem cair nas suas próprias armadilhas, correndo atrás do autógrafo da pessoa adorada, ou elegendo a superstição como forma de atravessar momentos de crise. 
Vejam-se os casos seguintes:
“Tony Blair always wore the same pair of shoes in the House of Commons at Prime Minister’s Question Time. During his Presidential campaign, President Barack Obama carried a lucky poker chip. He also developed a bizarre superstitious ritual of playing basketball on the morning of every election in his path to the White House. His opponent, John McCain, was open about his catalogue of superstitions, always carrying a lucky feather and a lucky compass from his Vietnam piloting days. One wonders why, as he was shot down and spent many years as a prisoner of war. During the presidential race, McCain also always carried a lucky penny, a lucky nickel, and a lucky quarter. Apparently, this sum of 31 ‘super cents’ was not enough to secure presidential victory for this luckless senator.”

julho 04, 2020

Psicologia humana e a gestão de grandes crises

Gosto imenso de Jared Diamond, por isso nunca me canso de o ler e ouvir. É verdade que ele tende a realizar um trabalho altamente especulativo sobre objetos de estudo que à primeira vista poderiam ser tratados de forma mais empírica, mas é isso que o torna tão interessante, porque não hesita em trabalhar nas fronteiras das múltiplas disciplinas para encontrar novas respostas e novas formas de compreender o mundo. Neste seu mais recente livro, "Upheaval: Turning Points for Nations in Crisis" (2019) Diamond faz um cruzamento direto entre a Psicologia, em particular as abordagens ao tratamento de crises pessoais, e a História Económica de países inteiros. O resultado apresentado, 12 passos para lidar com as crises, terá a sua relevância e também limitações, mas gostei particularmente das sínteses que Diamond traçou das crises dos diferentes países retratados —  Finlândia, Japão, Chile, Indonesia, Alemanha, Australia e EUA.
Aprende-se imenso, nem que seja a ideia principal de que cada país é dono de um historial que o condiciona, e aquilo que serve a um não serve a outro. Neste sentido, o trabalho de Diamond poderia ser visto como inconsequente, contudo não o será. Aliás, nesse sentido justifica-se mesmo que ele não tenha feito uma seleção de países em termos objetivos, mas se tenha limitado aos países que conhece em maior detalhe, não só por neles ter vivido, mas por falar em parte as suas línguas e conhecer os seus costumes por dentro. A ideia central de um guia de 12 passos nunca pode ser o de seguir todos, mas antes o de servir enquanto ementa de possibilidades que possam ser orientadoras na tomada de decisões.

No fundo, Diamond acabad realizando um extenso trabalho de história comparativa, que servirá a muitos dos que ocupam cargos de decisão e necessitam deste conhecimento, que é conhecido na giria como benchmarking. O exemplo da Finlândia abre a discussão porque é desde logo aquele que dita as grandes limitações que estes trabalhos comparativos têm, e por isso tudo o que se conhece sobre cada país deve ser muito bem enquadrado antes de se poder pensar em importar de forma direta para qualquer outro país.

Deixo a lista do Modelo de 12 Passos e os excertos de 3 países: Finlândia, Chile e EUA

  1. Acknowledging the crisis itself. After all, you can’t fix a problem if you continue to deny that it exists.
  2. Accepting responsibility to respond to crisis.
  3. Distinguishing the things that need to change from those that are so important to your identity that they shouldn’t be interfered with. This process is called selective change.
  4. Getting assistance from outside sources.
  5. Learning about the methods others have used to respond to similar crises.
  6. Recognizing a personal or national identity.
  7. Undertaking an honest self-appraisal.
  8. Recognizing and learning from how you’ve handled past crises.
  9. Showing patience in coping with failure.
  10. Showing flexibility.
  11. Identifying your core values.
  12. Determining the constraints on your ability to enact selective change.


Excerto sobre a Finlândia

“Finland had bitter memories that, when it actually was attacked by the Soviet Union in 1939, it had not been helped by the U.S., Sweden, Germany, Britain, or France. Finland had to learn from its history that its survival and independence depended on itself, and that Finland would be safe only if the Soviet Union felt safe and trusting towards Finland.”

“Finland’s total losses against the Soviets and the Germans in the two wars, the Winter War and the Continuation War, were about 100,000 men killed. In proportion to Finland’s population then, that’s as if 9 million Americans were killed in a war today. Another 94,000 Finns were crippled, 30,000 Finnish women were widowed, 55,000 Finnish children were orphaned, and 615,000 Finns lost their homes (..) In addition, in one of the largest child evacuations in history, 80,000 Finnish children were evacuated (mainly to Sweden), with long-lasting traumatic consequences extending to the next generation ”

“[Today] many Finnish actions do indeed horrify Western European and American observers. It could never happen in the U.S. or Germany that a presidential election would be postponed, a presidential candidate would withdraw his or her candidacy, a publisher would cancel a book, or the press would censor itself, just to avoid inflaming Soviet sensitivities. Such actions seem to violate a democracy’s right to freedom of action.”

“To quote President Kekkonen again, “A country’s independence is not usually absolute… there was not a single state in existence that did not have to bow to historical inevitabilities.” (..) “There are obvious reasons why Finland has to bow much more to historical inevitabilities than does the U.S. or Germany: Finland is small and borders on Russia, while the U.S. and Germany do not.”

“The end result is that, in the 70 years since the end of World War Two, Finland has come no closer to becoming a Soviet or (now) a Russian satellite. Instead, it has succeeded in steadily increasing its ties with the West while still maintaining good ties with Russia. At the same time, Finns know that life is uncertain, and so military service is still compulsory for Finnish men and voluntary for Finnish women.”

“In order to make productive use of its entire population, Finland’s school system aims to educate everybody well (..) even those few Finnish private schools receive the same level of funding from the government as do public schools and are not permitted to increase their funding by charging tuition, collecting fees, or raising endowments! (..) Finland has the world’s highest percentage of engineers in its population. It is a world leader in technology. Its exports account for nearly half of its GDP, and its main exports are now high-tech (..) Finland’s combined private and government investment in research and development equals 3.5% of its GDP, almost double the level of other European Union countries (..) The result of that excellent educational system and those high investments in research and development is that, within just half-a-century, Finland went from being a poor country to being one of the richest in the world”

“Kekkonen’s defense of Finland’s policy was summarized in the phrase “Finlandization is not for export.”


Excerto sobre o Chile

"Developments in Chile from 1970 onwards were guided by two consecutive leaders who represented opposite extremes in politics and personality: Salvador Allende and Augusto Pinochet.

Allende was a quintessential Chilean professional, from an upper-middle-class family, rich, intelligent, idealistic, a good speaker, and endowed with an appealing personality (...) Allende rated as moderate by Chilean socialist standards.

(...) what policies did Allende adopt upon becoming president? Even though he knew that his candidacy had been supported by only 36% of Chilean voters (..) he rejected moderation, caution, and compromise (..) His first measure, with the unanimous support of Chile’s Congress, was to nationalize the U.S.-owned copper companies without paying compensation

(...) He nationalized other big international businesses. He horrified the Chilean armed forces (…) by carrying a personal machine gun given to him by Fidel Castro, and by inviting Castro to Chile for a visit that stretched out to five weeks. He froze prices (even of small consumer items like shoe-laces), replaced free-market elements of Chile’s economy with socialist-style state planning, granted big wage increases, greatly increased government spending, and printed paper money to cover the resulting government deficits.

The result of Allende’s policies was the spread of economic chaos, violence, and opposition to him. Government deficits covered by just printing money caused hyperinflation, such that real wages (i.e., wages adjusted for inflation) dropped below 1970 levels, even though wages not corrected for inflation nominally increased. Foreign and domestic investment, and foreign aid, dried up. Chile’s trade deficit grew. Consumer goods, including even toilet paper, became scarce in markets, which were increasingly characterized by empty shelves and long queues. Rationing of food and even of water became severe.

“Allende fell because his economic policies depended on populist measures that had failed again and again in other countries. They produced short-term benefits, at the cost of mortgaging Chile’s future and creating runaway inflation.” Many Chileans admired Allende and viewed him almost as a saint. But saintly virtues don’t necessarily translate themselves into political success.

The long-expected coup took place on September 11, 1973

By default, the new army chief of staff became Pinochet (…) When the junta took power, Pinochet himself announced that its leadership would rotate. But when it came time for Pinochet to rotate off and to step down as leader, he didn’t do so.

As soon as the junta took power, it rounded up leaders of Allende’s Popular Unity Party and other perceived leftists with the goal of literally exterminating the Chilean left-wing. Within the first 10 days, thousands of Chilean leftists were taken to two sports stadiums in Santiago, interrogated, tortured, and killed.

Pinochet personally ordered a general to go around Chilean cities in what became known as the “Caravan of Death,” killing political prisoners and Popular Unity politicians whom the army had been too slow at killing. The junta banned all political activities, closed Congress, and took over universities. It set up networks of secret detention camps, devised new methods of torture, and made Chileans “disappear” (i.e., murdered them without a trace).

Whatever the motives, the resulting free-market policies included the re-privatization of hundreds of state-owned businesses nationalized under Allende (but not of the copper companies); the slashing of the government deficit by across-the-board cuts of every government department’s budget by 15% to 25%; the slashing of average import duties from 120% to 10%; and the opening of Chile’s economy to international competition.

(…) the results were that the rate of inflation declined from its level of 600% per year under Allende to just 9% per year, the Chilean economy grew at almost 10% per year, foreign investments soared, Chilean consumer spending rose, and Chilean exports eventually diversified and increased (…) The economic benefits for Chileans were unequally distributed: middle-class and upper-class Chileans prospered, but many other Chileans suffered and found themselves living below the poverty level.

(...) the junta announced another plebiscite in 1988 that would extend Pinochet’s presidency for yet another eight years until 1997, when he would be 82 years old. This time, though, Pinochet miscalculated and was outmaneuvered (…) the “No!” campaign prevailed, with 58% of votes cast. (…) But—42% of Chileans had still voted for Pinochet, in that free election of 1988.

Once the alliance of the 17 “No!” groups had thus won the referendum, the alliance’s leftists faced the necessity of convincing the alliance’s centrists of the Christian Democratic Party that a new leftist government wasn’t to be feared and wouldn’t be as radical as Allende’s leftist government had been. Hence leftist and centrist parties joined in an electoral alliance termed Concertación. Leftists agreed that, if the alliance could win the 1990 election (which it did), they would let the presidency alternate between a leftist and a centrist, and would let the Christian Democrats fill the presidency first. Leftists agreed to those conditions because they realized that that was the only way that they could eventually return to power.
In fact, Concertación proceeded to win the first four post-Pinochet elections, in 1990, 1993, 2000, and 2006.

In 2010 Concertación was defeated by a right-wing president (Sebastián Piñera), in 2014 socialist Bachelet returned to power, and in 2018 right-winger Piñera again. Thus, Chile after Pinochet reverted to being a functioning democracy still anomalous for Latin America, but with a huge selective change: a willingness to tolerate, compromise, and share and alternate power."


Excerto sobre os EUA

“Each political party is becoming increasingly homogenous and extreme in its ideology: Republicans are becoming more strongly conservative, Democrats more strongly liberal, and middle-of-the-roaders are declining in both parties."

"Surveys show that many Americans of each party are increasingly intolerant of the other party, see the other party as a real danger to the U.S.’s well-being, wouldn’t want a close relative to marry a supporter of the other party, and want to live in an area where other people share their own political views."

"If you are an American reader of this book, you can test this pulling-apart of America on yourself: how many people do you personally know, and count among your friends, who told you that they were voting for the other party’s presidential candidate in the 2016 election?”

“Thus, the question to answer isn’t just why our politicians are becoming more uncompromising, independently of their constituents. We also need to understand why American voters themselves have become more intolerant and politically uncompromising. Our politicians are merely obeying their voters’ wishes. As for that political polarization of American society as a whole, one explanation frequently suggested is “niche information. “When I was a teenager, cable TV didn’t exist; the first TV program of any sort didn’t come to my city of Boston until 1948; and for years thereafter, we Americans got our news from just three big TV networks, three major weekly newsmagazines, and newspapers. Most Americans shared those same sources of information, none of which was clearly identified with conservative or liberal views, and none of which slanted its information heavily. Now, with the rise of cable TV, news websites, and Facebook, and with the decline of broad-market weekly print newsmagazines, Americans choose their source of information according to their pre-existing views. Looking at my monthly cable TV bill, I see that I can choose among 477 channels: not only Fox News or MSNBC depending on whether I prefer a conservative or a liberal slant, but also channels devoted to Africa, Atlantic Coast college sports, cooking, crime, France, hockey, jewelry, Jewish life, Russia, tennis, weather, and myriads of other narrowly defined subjects and viewpoints.”

“I can thereby choose to remain strictly tied to my current interests and views, and not be distracted by other subjects and unwelcome views. The result: I lock myself into my political niche, I commit myself to my own set of “facts,” I continue to vote for the party that I’ve always preferred, I don’t know what’s motivating the supporters of the other party, and of course I want my elected representatives to reject any compromise with those representatives who don’t agree with me."

"Most of the U.S. population now uses social media, such as Facebook and Twitter. Two unrelated friends of mine, one of whom happens to be a Democrat and the other a Republican, explained to me separately how their Facebook account serves as their main information filter. The Democrat (a young man) posts news items and comments to his Facebook friends, who in turn post items of their own, and whom he has selected in part because they share his views. When someone posts an item with a Republican point of view, he “unfriends” that person, i.e., drops her from his list of Facebook friends. The people whom he unfriended included his aunt and uncle, whom he also stopped visiting in person because of their Republican views. He checks his Facebook account on his iPhone frequently throughout the day, and uses it to identify and read on-line newspaper articles aligned with his views, but he doesn’t subscribe to a print newspaper or watch television. My other friend, who happens to be Republican, gave me a similar account, except that the acquaintances whom she unfriends are those who post items with a Democratic point of view. The result: each of my friends reads only within his or her already-determined niche.”


Este livro faz parte de uma trilogia de Jared Diamond intitulada "Civilizations Rise and Fall". Deixo ligações para as resenhas dos anteriores dois livros:
1. Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies (1997)
2. Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed (2004)
3. Upheaval: Turning Points for Nations in Crisis (2019)