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maio 31, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI

E ao sexto volume senti a força do romance irromper por entre todo aquele manto constituído por camadas e camadas de análise e auto-análise. Proust surpreende-nos, mas se me surpreendi com a reviravolta no enredo, mais ainda me surpreendi, por só agora me ter apercebido de um traço central em toda a escrita da ‘Recherche’, a tentativa deliberada para evitar a emoção estética. Proust cita por duas vezes Descartes ao longo da obra, mas só aqui me dei conta do quão contaminado por ele estava Proust, buscando aqui claramente realizar um trabalho de análise da vida, cingindo-se apenas, e só (pelo menos assim o desejava ele), à razão.


Ou seja, seguindo a crença no dualismo cartesiano, Proust trabalha com enorme profundidade a descrição de cada ação, evento e novo facto, evitando por todos os meios contaminar as suas descrições com sentimento, acreditando que a razão é a base da consciência, do conhecimento. Isto tornou-se-me mais claro aqui, porque ao fim de todos estes volumes a reviravolta que acontece é forte, intensa, mas Proust apesar de dar conta dela, fá-lo sem se dar aos sentires do seu personagem que facilmente poderiam resvalar para uma emocionalidade excruciante. Toda a emocionalidade é analisada e descrita num detalhe tal, tornando-se em si explicação, desprovida de sensação. Claro que tudo isto é impossível, não é possível escrever de forma apenas racional, porque enquanto seres humanos, somos incapazes de racionalizar sem emoção (Damásio).

Deste modo o que acaba por acontecer em Proust, é que ele nos arrebata sim, mas pela forma brilhante como escreve e analisa, e menos, ou mesmo nada, pela forma como recria experiências emocionais. As experiências emocionais estão lá, mas ele não as recria para que nós as experiencemos, ele abre todo um acesso especial à experiência profundamente racional. Proust procurava assim a elevação discursiva, ele sabia que era fácil agarrar o leitor pela emocionalidade, pela força do enredo, pelas suas reviravoltas amorosas, mas não era isso que o movia, ele estava mais interessado em dar a conhecer o mundo nas suas essências constituintes, porque muito provavelmente acreditava estar aí o cerne da consciência, da nossa capacidade para apreender o mundo.

Entrando na questão da consciência, neste volume Proust trabalha uma nova abordagem desta, defendendo a existência de diversos 'Eu's, consoante o momento, a memória, ou a resposta necessária à realidade. Fez-me lembrar os “subselves” do recente livro “Rational Animal” de Kenrick e Griskevicius, que defendem, tal como Proust aqui defende, que somos várias pessoas diferentes, e assumimos identidades distintas em função das necessidades do real circundante. A este mesmo ponto vem agora ligar-se um outro conceito muito importante para Proust, o “hábito”, como o fundamento social que suporta, tal concha protectora, cada um dos nossos Eus. Pois em função de cada necessidade social, automaticamente reportamos ao hábito, e desse ao Eu que necessitamos para reagir.
Assim decorria na nossa sala de jantar, à luz do candeeiro que tanto as estimula, uma daquelas conversas a que a sabedoria, não a das nações, mas a das famílias, apoderando-se de um acontecimento qualquer - morte, noivado, herança, ruína - e colocando-o sob a lente de aumentar da memória, confere todo o seu relevo, um relevo que dissocia, recua e situa em perspectiva em diversos pontos do espaço do tempo aquilo que, para os que não viveram, parece amalgamado numa mesma superfície: os nomes dos falecidos, os sucessivos endereços, as origens da fortuna e as suas alterações, as mutações de propriedade. Esta sabedoria é inspirada pela Musa que convém ignorar durante tanto tempo quanto possível se quisermos conservar alguma frescura de impressões (..) a Musa que recolheu tudo o que as musas mais elevadas da Filosofia e da Arte rejeitaram, tudo o que não está assente em verdade, tudo que é apenas contigente mas igualmente revela outras leis: a História!” p. 264
Este é o volume mais pequeno, todos os outros aquando do lançamento foram editados em 2 ou 3 volumes (15), este foi o único que foi lançado num único apenas. Tem a particularidade, tal como o anterior, de ter saído depois da morte de Proust, e não ter tido a sua revisão final, o que por vezes se nota, embora se sinta mais no volume anterior. Como livro, a primeira e a última parte são novamente as mais intensas, embora pela primeira vez Proust não deixe um gancho final. Não sinto que faça falta, estamos no penúltimo volume, e o texto que encerra o livro, está claramente a apontar para o encerramento da narrativa, de modo que a ânsia por passar ao volume seguinte é mais forte que nunca, queremos saber o que ainda nos reserva um volume inteiro, uma vez que o climax parece ter já surgido aqui, e os Lados, de Guermantes e de Swann, foram completamente unidos.


[Marcel Proust, (1925), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI - A Fugitiva”, Relógio D'Água, ISBN 9727088023, trad. Pedro Tamen, 2004, p. 288]

Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

setembro 04, 2014

a naturalidade da emoção

O fotógrafo Patrick Hall cansou-se de tudo fazer para através do conforto obter as emoções mais fidedignas das pessoas retratadas, e por isso decidiu avançar para uma sessão de puro desconforto. Na série Stun Gun Photoshoot as pessoas foram fotografadas no momento em que recebiam um choque eléctrico, aplicado pelas conhecidas pistolas Taser.

Stun Gun Photoshoot

Como ele refere, avançar com a ideia não foi fácil, por todo o tipo de conotações que a mesma poderia trazer à sua carreira, desde sádico a louco, ou ainda pelas questões éticas. Contudo acredito que o modo como foi desenhada a sessão conseguiu produzir um resultado ao qual não podemos apontar nenhum desses rótulos. O elemento particular mais relevante foi sem dúvida o facto de os choques serem dados por amigos dos fotografados, o que proporciona uma camada de conforto e ajuda na criação de uma espontaneidade muito maior.


O resultado final é absolutamente delicioso, não apenas as fotografias finais, como o vídeo que dá conta de cada momento em câmara lenta. Aliás, acabo por preferir o vídeo porque ele é capaz de dar conta do fluxo de emoções que atravessa cada uma das pessoas durante os breves segundos que dura a exposição. Esse fluxo, porque mostrado em câmara lenta, quase que nos permite entrar no âmago de cada uma daquelas pessoas. Sentimos o seu receio misturado com o pânico antes do choque, e que se tenta camuflar com um riso, influenciado pelo amigo(a) que está ao seu lado. Mas no momento em que a electricidade é libertada vemos as pessoas, como que a despertar, a serem elas próprias, a desligarem totalmente a fachada, a biologia toma conta totalmente da capacidade racional, e o que se expressa é o mais puro e natural que um ser humano pode expressar.


Explicações sobre todo o processo conceptual e técnico podem ser encontradas no Fstoppers ou no vídeo Behind the Scenes.


[via Marcelo Fardo e iPhoto Channel]

julho 30, 2014

LA Noire (2011)

Começo por uma declaração de gosto pessoal. Não sou propriamente fã do género Noir, na sua encarnação hollywood studio-system (1940-1950), não tendo que ver com a fase, mas antes com um conjunto de lógicas formulaicas que se repetem e acabam criando uma espécie de fuga ao real. Gosto de algumas obras mais experimentais como "Third-man" (1949) ou "Touch of Evil" (1958) mas são excepções. Na verdade nunca gostei muito de Bogart, não das suas competências, mas dos papeis encarnados. O meu maior problema com o género julgo ser o enfoque no plot, perdendo o desenvolvimento dos personagens. Nos anos 1990 tivemos “L.A. Confidential” (1997) de Curtis Hanson, em 2000 tivemos “The Black Dahlia” (2006) de Brian de Palma, ambos tentando recuperar o género, mas nenhum destes me demoveu. Ora os problemas que apresento ao género cinematográfico Noir, não podiam deixar de aparecer no videojogo "LA Noire" (2011), pois ele procura fielmente emular esse género cinematográfico, e fá-lo com uma enorme qualidade, tanto em abrangência como profundidade. Dificilmente alguém que adore o género cinematográfico, não gostará do videojogo. Por isso muito do que direi poderá estar contaminado com alguma desta minha aversão ao género.




No campo da arte podemos dizer que "LA Noire" é quase irrepreensível, tanto no campo visual como sonoro. Entrando no jogo é muito fácil sentirmo-nos imersos numa cidade de LA dos anos 1940, desde a arquitectura, aos cenários, passando pelos outdoors publicitários, roupas, carros, etc. A sua apresentação é de excelência, tanto em realismo como na composição gráfica, de cor e de paisagens sonoras. Dá vontade passear por LA em "LA Noire", a pé ou de carro. Para ajudar, o motor do sistema permite-nos não apenas passear pelas ruas, mas entrar em lojas, conversar com personagens, voltar a sair, tudo sem pausas nem esperas. Finalmente ainda no campo da arte, é possível jogar a preto e branco, para se aproximar mais do género cinematográfico dos anos 1940, mas apesar de ficar bastante bem, aconselho antes a versão a cores, já que o trabalho de cor é soberbo e garante uma imersão mais fácil.

Sobre o gameplay "LA Noire" é na sua essência um jogo de aventura gráfica, apesar de conter algumas cenas de acção. Até porque tendo em conta que o tema de fundo é a resolução de mistérios, nenhum outro género se adaptaria melhor à constante procura de pistas. A base do jogo assenta assim na reconstrução do puzzle narrativo que explica o que se passou, que desvela o mistério. Neste sentido é um modelo que cruza na perfeição as necessidades do jogo e do enredo da narrativa. Embora como disse já acima, acaba por atirar para segundo plano os personagens.

Assim somos um polícia que será promovido a detective, e depois novamente despromovido. A progressão desenrola-se ao longo de 5 secções, que correspondem à nossa progressão de competências como polícia (patrulha, trânsito, homicídios, narcóticos e incêndios), e ao longo dos quais teremos de resolver cerca de 20 casos. Os primeiros casos explicam como funcionam as mecânicas, o que é esperado de nós. No final da primeira secção já compreendemos o alcance das nossas acções, sendo que nas secções seguintes resta-nos repetir o que já aprendemos. Cada uma tem a sua esquadra de polícia, em cada uma tenho um novo parceiro, e em cada uma resolvo crimes distintos, e em cada uma faço sempre o mesmo. Para piorar o cenário, o que vou fazendo em cada secção tem pouco ou nenhuma influência nas seguintes.

O ponto alto do gameplay, e do próprio jogo são os inquéritos e o sistema de expressão facial. O jogo foi extremamente bem recebido muito por conta deste elemento, que consiste fundamentalmente numa capacidade do sistema de nos mostrar através das caras de cada personagem, se este está a mentir ou não. Ou seja, a implementação do jogo é minuciosa ao ponto de se poderem notar trejeitos faciais, pequenos movimentos de músculos na cara, ou gestos com as mãos e os ombros que nos iluminam sobre a potencial veracidade do que está ser dito pelo personagem. Em termos tecnológicos e técnicos, temos de admitir que foi um avanço considerável face ao que tínhamos até "LA Noire". Mesmo o efeito de uncanny valley que surge aqui, não é suficiente para danificar a eficácia expressiva concebida pela equipa de desenvolvimento.


Mas se a componente técnica é de excelência, o mesmo não direi do gameplay associado. E julgo que o problema surge essencialmente pelo facto de terem criado um sistema de inquisição baseado em três vectores (Lie - Doubt - Truth). Se na maior parte das vezes conseguimos percepcionar a verdade ou mentira, a dúvida gera, como a própria indica, demasiadas dúvidas. Acredito que o tenham feito, para evitar ter um sistema demasiado fácil, ou seja a Doubt introduz um bom nível de incerteza na jogabilidade, mas irrita, porque percebemos que não temos como nos tornar verdadeiros mestre do sistema.

Ainda assim, estes problemas acabam por ser muito bem compensados, já que o jogador nunca é impossibilitado de prosseguir, mesmo que falhe todas as perguntas. Ou seja, existe uma certa condescendência por parte do jogo, que está muito mais centrado no fluxo narrativo, do que na componente de jogo. Isto é algo que se pode verificar também por exemplo nas missões de maior acção, em que ao fim de três tentativas seguidas, nos é dada a opção de avançar para o momento seguinte da história sem ter de realizar a peripécia pedida. Ou ainda, o facto de podermos evitar conduzir o carro a maior parte das vezes. O mesmo se pode dizer sobre o método de busca das pistas, o sistema sonoro desenvolvido, funciona como uma espécie de jogo de quente-frio, e quando as pistas necessárias estão colectadas novo aviso é dado, para que possamos prosseguir na história, e não perder tempo no espaço aberto.

Do que vimos então temos um videojogo que funciona muito mais em função da história, do que do jogo em si. E isso acaba sendo ainda mais incomodo quando percebemos que a própria história, nomeadamente o desenvolvimento de personagens e a progressão narrativa são amplamente descuidados. Começando desde logo pelo próprio Cole (protagonista), a sua construção faz-se ao longo de todo o jogo, como um apanhado de pistas que vão sendo dadas em flashback. Mas na verdade nunca chegamos a ser apresentados ao verdadeiro Cole, quem é, o que pensa, que família tem, que relação tem com ela, o que sente realmente, além de resolver mistérios.

A cena crucial do jogo é aquela em que somos despromovidos dos narcóticos aos incêndios. É algo que é fruto de uma acção que nos é atribuída, mas para a qual nada contribuímos. Sentimos aí a injustiça a funcionar. O que por outro lado é bem conseguido, já que é esse o tipo de sentimento que o jogo pretende estimular naquele momento. Mas se o sentimos naquele momento, rapidamente se desvanece e voltamos aos mistérios e pistas como antes. Não fosse estarmos na última secção em que todas as histórias do jogo começam a ser coladas e a fazer sentido. Ou seja passamos 18 horas a repetir acções para experienciar o mundo do jogo, e só nas últimas duas horas é que nos é dado a sentir a verdadeira progressão narrativa. Mais, só aqui percebemos o que vai dentro da cabeça de Cole, e o porquê de tanta confusão com a sua personagem.

LA Noire não deixa de ser uma boa experiência, mas está longe de ser um jogo memorável como alguma imprensa nos vendeu quando saiu.

junho 11, 2014

"O Código do Talento"

Depois de ler “Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell e “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, acabei por chegar a “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How.” (2009) de Daniel Coyle. Os três livros formam um trio que questiona as origens do talento, criatividade e modelos de aprendizagem. Se tinha gostado de Gladwell e tinha adorado Colvin, Coyle é ainda mais interessante e incisivo. Não que traga algo de muito novo, mas a ligação que estabelece entre os processos neurofisológicos e os estudos empíricos é profundamente enriquecedora para quem quer que se interesse pelo tema. Desde os jogadores de futebol brasileiros, às tenistas russas, passando pelos violinistas, skateboarders e produtores de música pop, vários são os exemplos que nos abrem um mundo novo sobre o fundamento do talento, os processos de aprendizagem e de coaching.


Algumas das críticas ao livro de Coyle dizem respeito ao seu fascínio com as mais recentes descobertas em torno da mielina, uma substância que se encontra no cérebro e sobre a qual ainda decorrem estudos. Mas neste momento suspeita-se que a sua função assente no isolamento das ligações neuronais, de modo a garantir que os impulsos eléctricos possam circular de forma mais eficiente. Ou seja, uma função parecida com aquela que o plástico executa em redor dos cabos eléctricos. Sendo essa a sua função, o modo como esta se desenvolve nos nossos cérebros parece ocorrer a partir de prática focada e repetida. À medida que vamos repetindo exercícios, a prática em nós vai-se sedimentando por meio de mielina junto aos nossos neurónios. Quanto mais grossa for ficando a camada de mielina em redor da ligação neuronal responsável pela competência que estamos a treinar, melhor isolada fica, permitindo que possamos agir de cada vez com maior eficácia.

Apesar da relevância que Coyle atribui à mielina, o mais relevante do seu livro não depende propriamente dessa descoberta, que acaba por funcionar mais como curiosidade, porque aquilo que Coyle nos demonstra advém do seu trabalho etnográfico sobre o talento, realizado um pouco por todo o mundo, em centros de treino de algumas das maiores estrelas do planeta. Coyle chama a esses centros, “hotbeds”, locais dotados de um design e condições específicas, capazes de contribuir para um aperfeiçoamento e aceleramento do processo de formação de talento.

Das hotbeds mencionadas ao longo do livro a primeira foi a que mais me impressionou, por tudo o aquilo em que eu acreditava ter sido posto em causa, mas também por exemplificar na perfeição a base de design conceptual de uma hotbed. Falo dos locais de treino das estrelas mundiais do futebol brasileiro, de Pele ou Zico a Romário ou Robinho. Todos eles começaram a jogar futebol num campo de cimento com metade do tamanho de um campo relvado, com uma bola metade do tamanho e com o dobro do peso de uma de futebol normal, e com equipas de apenas 5 jogadores de cada lado, no fundo aquilo que hoje conhecemos como Futebol de Salão ou Futsal. À primeira vista, nada de especial, mas a realidade é que estes campos mais pequenos, proporcionaram condições para treinos mais intensivos. O espaço reduzido obriga a maiores velocidades de arranque e paragem, a bola pequena e pesada obriga a um maior domínio da mesma, as balizas mais próximas permitem chegar mais vezes perto e treinar mais vezes as situações de golo. Por minuto os jogadores tocam mais 6 vezes na bola do que no futebol de campo, os passes certeiros e o trabalho colaborativo é fundamental. Ou seja, a ideia de que os jogadores brasileiros são treinados na praia é um mito que fica bem nos postais de turismo. Claro que não basta o futebol de salão, ele tem um impacto concreto no domínio da prática intensiva, mas falta o resto, aquilo que Coyle considera ser o código do talento, e de que darei conta a seguir.

"Nenhum tempo mais nenhum espaço é igual a melhores habilidades. O futsal é o nosso laboratório nacional de improvisação." Emilio Miranda, professor da Universidade de São Paulo, a propósito do treino em salão

Coyle identifica várias hotbeds espalhadas pelo planeta, falando das piscinas abandonadas em LA que se transformaram em centros de treino de skaters, do centro de treino russo em que se formou Kournikova e da consequência num número de tenistas russas no WTA, assim como do número de Coreanas no LPGA Tour (Golf), ou ainda do modelo de escola americana KIPP, tocando ligeiramente no fenómeno da Nova Vaga de Cinema Romeno proveniente da Bucharest National University of Drama and Film, ou das estrelas Pop da Disney, etc. E assim a partir destas hotbeds, e de vários outros estudos, Coyle vai dividir o talento, e o livro, em três grandes partes, que considera serem o Código do Talento: “Prática Profunda” -  ”Ignição” - “Mestres de Instrução”. Coyle considera que cada um destes vectores é relevante à sua maneira, mas é da convergência dos três que emerge  a competência. Segundo ele, a sua simples convergência pode em poucos minutos contribuir para construir no sujeito competências que sem os três vectores simultâneos, pode arrastar-se por anos.

Diagrama do Código do Talento, os três elementos base - "Prática Profunda", "Ignição" e "Mestres de Instrução". Pode ver-se como a Deep Practice é destacada como se se tratasse de mielina em formação, camada a camada, em função da quantidade de prática.

VECTOR 1: Prática Profunda (Prática)

Coyle segue aqui trabalhos anteriores de estudos académicos, dando conta do percurso e estudos realizados por Anders Ericsson, uma das maiores autoridades no campo do talento, reconhecido pela teoria das 10 mil horas, e pelo conceito “Deliberate Practice” que Coyle aqui converte em “Deep Practice”. Ericsson define a prática como algo que precisa de ser realizada de modo voluntário para criar competência, já Coyle seguindo as lógicas da produção de mielina, aposta numa ideia de prática em profundidade, de modo a poder gerar mielina. Deste modo Coyle apresenta três regras para realizar prática profunda: Chunk, Repeat e Learn to Feel.

Regra 1: “Chunk”
“Deep practice feels a bit like exploring a dark and unfamiliar room. You start slowly, you bump into furniture, stop, think, and start again. Slowly, and a little painfully, you explore the space over and over, attending to errors, extending your reach into the room a bit farther each time, building a mental map until you can move through it quickly and intuitively.”
A ideia central passa por absorver a totalidade da acção a realizar, e depois quebrá-la em pequenas partes, que podem ser mais facilmente realizadas e apreendidas, no fundo a velha ideia de “baby steps”. Dos vários locais de treino intensivo que Coyle visitou, a mesma prática era repetida,
“First, the participants look at the task as a whole — as one big chunk, the megacircuit. Second, they divide it into its smallest possible chunks. Third, they play with time, slowing the action down, then speeding it up, to learn its inner architecture. People in the hotbeds deep-practice the same way a good movie director approaches a scene—one instant panning back to show the landscape, the next zooming in to examine a bug crawling on a leaf in slo-mo.”
Regra 2: “Repeat”

A repetição é condição essencial para produzir mielina. Vendo pelo lado oposto, a melhor forma de transformar um grande pianista num mau, é impedi-lo de treinar durante um mês. Mas isto não quer dizer que a repetição deva acontecer sem fim, sem descanso nem pausa. Dos estudos de Ericsson os grandes talentos mundiais praticam entre 3 e 5 horas diárias. Mas nas hotbeds visitadas por Coyle os treinos andam sempre abaixo das três horas diárias, para crianças mais novas (6 a 8 anos) 3 a 5 horas semanais é mais do que suficiente. Ou seja, depende muito de se conseguir reunir os três vectores simultaneamente - prática, ignição e mestre.

Regra 3: “Learn to Feel”
“I hate to practice! Hate, hate, hate! So what I did, I forced myself to make it as productive as it could be… You guys have to realize this is top sport. You are athletes. Your playing field is a few inches long, but it still is your field. You need to find a place to stand, know where you are. First, tune your instrument. Then tune your ear… If you hear a string out of tune, it should bother you… It should bother you a lot. That's what you need to feel. What you're really practicing is concentration. It's a feeling.” Skye Carman, concertmaster of the Holland Symphony
Ao longo do trabalho de Coyle, quando questionava as pessoas sobre as sensações que sentiam quando estavam a treinar de forma produtiva, referiam: “Attention; Connect; Build; Whole; Alert; Focus; Mistake; Repeat; Tiring; Edge; Awake.” Uma lista de sentimentos que evoca a ideia de se estar a atingir algo, a caminho de se conseguir algo, uma linguagem própria de montanhistas, descrevendo a sensação incremental, passo a passo. A ideia de esforço para atingir um objetivo concreto, e de se estar muito perto de o conseguir. A ideia de praticar muito não pode ser um mero exercício de repetição e esforço, mas deve ser antes uma busca por atingir algo que ainda não se atingiu, repetindo e iterando,
  1. "Pick a target.
  2. Reach for it.
  3. Evaluate the gap between the target and the reach. 
  4. Return to step one."
Ou seja, como diz Coyle, uma lista de palavras que nunca ouviu nos locais de treino foi - "natural, effortless, routine, automatic" - ou ainda "genius". Não que não existam génios, mas todos os mestres confirmam o mesmo, que eles surgem apenas num ratio de um para um milhão. A generalidade do talento humano é filho do treino, esforço, repetição, e aperfeiçoamento continuado.


VECTOR 2: Ignição (Motivação)

Se o primeiro vector depende exclusivamente do indivíduo já o segundo vector é uma mistura entre o indivíduo e o ambiente, ambos têm que dar para que as coisas funcionem e o talento possa emergir. Ou seja, o indivíduo necessita de estar atento ao mundo que o rodeia, procurar pistas, seguir pistas, auto-motivar-se, construir a sua ideia do mundo, mas para o fazer precisa que o mundo lhe prepare o terreno, construa um ambiente adequado a tal.

Nesse sentido nós, pais, temos trabalhado contra a criação destas condições. Quando acreditámos que o ideal seria garantir as condições óptimas, ou garantir o acesso ao máximo de actividades para que as crianças pudessem escolher o que lhes falava ao coração, estávamos a entrar por um caminho completamente contrário à realidade das necessidades do treino do talento. Sei que custa ouvir isto, porque também me custa a mim, porque é muito difícil aceitar que o caminho para a construção de competências seja penoso e duro, mas é o que é. E é por isso que a prática deliberada, ou em profundidade, exige ignição, “combustível motivacional” como lhe chama Coyle.

Assim quando falamos do futebol no Brasil, do futebol de salão, isso não chega como condição para criar tantos bons jogadores. Existem duas outras condições que são fundamentais na criação de grandes jogadores brasileiros: a pobreza e a dureza das condições de vida. As mesmas que fizeram surgir Kournikova, que fazem surgir grandes violinistas em meios pobres da periferia, ou que fazem surgir grandes visionários da ciência ou construtores de fortunas. As condições de que se parte estão longe daquelas a que se pretende chegar, e é essa distância que dinamiza a força necessária para conquistar terreno. A tenacidade incutida pela dureza dá-lhe capacidade para aguentar o árduo caminho que terá de ser realizado para lá chegar. Ter um instrumento só meu, aceder a uma escola boa sem esforço, ter todo o tempo disponível para treinar, se tudo isto existir à partida, quer dizer que já chegámos a meio do caminho sem termos dado muito de nós, e assim sendo só muito dificilmente se poderá fabricar "combustível" para dar os passos que ainda são necessários dar até se conseguir atingir o talento.

Mas o ambiente é ainda responsável por criar o objectivo último a atingir, porque ninguém caminha por sentir um chamamento esotérico. O ser humano aprende por imitação, segue copiando e imitando. Para isso são precisos exemplos, ídolos, ícones, celebridades, estrelas que nos mostram o caminho, e nos referem o que podemos almejar. São eles que dizem que é possível. É o Cristiano Ronaldo que veio da aldeia mais pobre da Madeira e chegou a melhor Jogador do Mundo, que nos diz que todos podem também conseguir. É a Kournikova que todas as meninas tenistas da Russia querem imitar, ou a Madonna ou Michael Jackson que todos querem seguir. Todas estas pessoas, abrem o caminho para que os outros sigam os seus exemplos. Como se pode ver no atletismo, sempre que alguém quebra um recorde impossível, logo a seguir temos vários atletas a conseguir quebrar esse mesmo recorde. É um fenómeno de imitação, de cópia, “se outro alguém consegue, eu também consigo”.

Antes de avançar, preciso de fazer aqui um parênteses sobre um dos maiores problemas da atualidade, que veio toldar esta formula da imitação. Falo da televisão e revistas do jornalismo cor-de-rosa. Ou ainda dos reality shows, não dos Big Brothers, mas dos concursos de talentos, que têm emergido como cogumelos por aparentarem trazer algo de útil à sociedade. Ora o que todos estes realmente fazem, é destruir tudo aquilo de que falei até aqui. De que é preciso muita prática, muito esforço, muita dedicação para se atingir o auge. Porque estes nos mostram apenas partes da realidade, como faz normalmente o discurso audiovisual. O concurso de talentos não mostra tudo o que deu origem aos indivíduos que nos aparecem pelo ecrã adentro. Vozes são lançadas em programas de televisão como se nunca tivessem praticado em toda a sua vida e que de repente por chegarem à televisão surgem tal qual o cisne que emerge de patinho feio. Ou seja, a televisão vende-se a si própria como caixa mágica capaz de produzir talento, e as pessoas seguem porque querem acreditar que o talento depende de sorte, de ser bonito, de ser famoso, de um concurso!

"Everybody said Jessica [Simpson] was a Texas girl who'd been singing in her church choir. That's ridiculous — that girl worked to become the singer she was. They said [American Idol winner] Kelly Clarkson was a waitress, like she never sang before. Waitress? Excuse me? Kelly Clarkson was a singer — we all knew Kelly Clarkson. She had training, and she worked her tail off like anybody else does. She didn't come from nowhere any more than Jessica came from nowhere. It's not magic, you know." Linda Septien professora de voz
Voltando à ideia da imitação, ela continua sendo central, porque é a partir dela que se constrói a Ignição, ela é central e determinante para o futuro do talento. Como demonstra um excelente estudo de Gary McPherson que procurou perceber o factor que determina a progressão das crianças no estudo de um instrumento musical. McPherson realizou estudos com centenas de crianças que aprendiam instrumento, para perceber porque umas eram melhores que outras, e foi eliminando variáveis - IQ, IE, sensibilidade, capacidades motoras, nível financeiro, etc -. A diferença fez-se notar fortemente apenas quando este lhes lançou uma simples questão, how long do you think you'll play your new instrument?"
"They mostly say Th, I dunno' at first… But then when you keep digging and ask them a few times, eventually they will give you a real solid answer. They have an idea, even then. They've picked up something in their environment that's made them say, yes, that's for me."
As hipóteses de resposta eram: “ao longo deste ano”, “ao “longo da primária”, “até ao liceu”, ”toda a minha vida”. Isto foi condensado em Pequeno, Médio e Grande Comprometimento. Estes dados foram cruzados com o tempo que cada criança praticava por semana  - 20, 45 e 90 minutos por semana. O que daria o gráfico abaixo,

Os alunos quando motivados por um comprometimento de longo termo com o instrumento, conseguem performances 400% superiores aos que apresentam um comprometimento de curto termo.

Ou seja, tendo em conta o mesmo tempo de prática/semana entre crianças, nada além do comprometimento tinha impacto no nível que se atingia de evolução na performance. E quando se juntava o comprometimento de longo termo com a prática mais elevada, a performance disparava para mais de 400% face aos restantes. Ou seja, duas crianças poderiam treinar o mesmo tempo toda a semana, mas aquela que estava profundamente motivada conseguia fazer disparar o rendimento dessa prática. Ou seja, não era a mera repetição, mas aprendizagem profundamente produtiva.
“We instinctively think of each new student as a blank slate, but the ideas they bring to that first lesson are probably far more important than anything a teacher can do, or any amount of practice. It’s all about their perception of self. At some point very early on they had a crystalizing experience that brings the idea to the fore, that says, ‘I am a musician’. That idea is like a snowball rolling downhill.”
Algo que nos deve fazer refletir enquanto pais, mas também enquanto professores. Ensinar alguém que não tem uma motivação interna, pode muito bem não representar mais do que o velho ditado “chover no molhado”. Por isso continuo a defender as escolas técnico-profissionais, profissionalizantes, vocacionais, o que lhe queiram chamar. Nada pode ser pior do que manter uma criança fechada num espaço durante 18 anos a fazer de conta que aprende. Esta é também a razão pela qual digo a todos os meus mestrandos e doutorandos que uma tese com valor, só se pode fazer sobre algo que se ama, de outra forma é tempo perdido, para eles e para mim.


VECTOR 3: Mestres de Instrução

Apesar de tudo o que se disse até aqui, do primeiro vector fundamentalmente dependente do indivíduo (interno), do segundo vector dependente deste e do meio-ambiente (interno-externo), existe um terceiro vector extremamente relevante e totalmente dependente do ambiente (externo). Falo do professor ou simplesmente instructor (coach). Aquela figura que por vezes é tida como secundária, como quase irrelevante, que qualquer um pode fazer! Aliás de tanto se acreditar na sua irrelevância nos últimos anos começámos a pensar que seria possível substituir o mesmo por meros jogos de computador, ou criar cursos para milhares de alunos em simultâneo.

Coyle abre o capítulo com uma ideia muito atual nomeadamente no campo do treino animal, os Whisperers. E é verdade que costumamos olhar para estas pessoas como dotadas de um qualquer dom mágico, porque capazes de comunicar numa linguagem indecifrável para nós, normalmente a do animal. O que não anda muito longe da realidade.

Na realidade o velho provérbio, “quem não sabe fazer, ensina” é meia verdade, porque só quem já soube fazer, e já não faz, pode ensinar. Normalmente quem ensina são pessoas que por algum motivo pararam de o fazer, e se dedicaram desconstruir os processos de fazer, a compreender o detalhe e as minudências, a ponderar os prós e os contras, a encontrar os defeitos e os atalhos, a definir as metas e os objectivos. Se dedicaram a criar uma linguagem, o “whispering”, capaz de colocar em palavras entendíveis por quem faz, os processos para atingir a melhoria. Quando lá atrás se disse que temos de, escolher um objectivo, trabalhar para o atingir e avaliar a diferença entre o que se atingiu e o que falta, é preciso compreender aquilo de que falamos. É preciso perceber que objectivo nos falta atingir, compreender quais devemos percorrer em primeiro lugar, compreender porque não conseguimos ainda lá chegar, compreender que treinos podemos realizar em repetição, para aperfeiçoar e chegar a ser aquele modelo abstracto que temos em mente. E é isso que faz o professor, o coach, comunica e guia, orienta e claro motiva. Mas é ele quem desconstrói as etapas a realizar por nós, que nos mostra os passos que já demos, e aqueles que ainda nos faltam dar, que nos mostra por onde podemos seguir para conseguir dar os passos em falta, e mais importante de tudo, que nos faz ver que além do objectivo final, existem múltiplos objectivos intermédios que precisamos de atingir para chegar ao que tanto desejamos.

A propósito dos treinadores Coyle fala de um contraste muito interessante entre as certezas e o conhecimento em profundidade que estes detêm sobre os detalhes da arte em si, e as dúvidas que estes demonstram sobre o todo, sobre a capacidade um indivíduo pegar em tudo o que sabe e ir além, de uma equipa de estrelas se superar. Na verdade, isto faz todo o sentido, e demonstra apenas a humildade imprescindível a qualquer professor que se reflecte no simples facto de que por mais que se faça, a última palavra depende sempre da capacidade interna do indivíduo, o coach é apenas um dos vectores como já vimos. Ele molda, ele ajuda a crescer, mas é o indivíduo quem decide, quem a determinada altura tem de tomar em mãos o seu caminho.

Deixo um estudo empírico sobre o treinador de basquete, John Wooden, considerado o melhor treinador da história da NCAA, realizado por dois psicólogos educacionais, Ron Gallimore e Roland Tharp que procurava compreender a sua fórmula de sucesso.
“practice began… Wooden didn't give speeches. He didn't do chalk talks. He didn't dole out punishment laps or praise. In all, he didn't sound or act like any coach they'd ever encountered… Wooden ran an intense whirligig of five to fifteen-minute drills, issuing a rapid-fire stream of words all the while. The interesting part was the content of those words… teaching utterances or comments were short, punctuated, and numerous. There were no lectures, no extended harangues ... he rarely spoke longer than twenty seconds… Here are some of Wooden's more long-winded "speeches":

"Take the ball softly; you're receiving a pass, not intercepting it."
"Do some dribbling between shots."
"Crisp passes, really snap them. Good, Richard—that's just what I want."
"Hard, driving, quick steps."

Gallimore and Tharp were confused… This was great coaching?… As weeks and months went by, an ember of insight began to glow… it came mostly from the data they collected in their notebooks. Gallimore and Tharp recorded and coded 2,326 discrete acts of teaching. Of them, a mere 6.9 percent were compliments. Only 6.6 percent were expressions of displeasure. But 75 percent were pure information:

What to do, how to do it, when to intensify an activity.

One of Wooden's most frequent forms of teaching was a three-part instruction where he modeled the right way to do something, showed the incorrect way, and then remodeled the right way, a sequence that appeared in Gallimore and Tharp's notes as M+, M-, M+… Wooden's demonstrations rarely take longer than three seconds, but are of such clarity that they leave an image in memory much like a textbook sketch… The information didn't slow down the practice; to the contrary, Wooden combined it with something he called "mental and emotional conditioning," which basically amounted to everyone running harder than they did in games, all the time."
O coach ou mestre é isto, alguém que dá feedback muito objectivo e muito concreto sobre cada uma das acções, alguém que indica se estamos no caminho correcto, e se não estamos explica como podemos retomar esse caminho. A construção de talento não acontece no vazio, por mais motivação que se detenha, aprendemos com os erros mas precisamos de saber como fazer na vez seguinte. Podemos até fazê-lo a solo, por tentativa e erro, mas isto vai demorar muito mais tempo, correndo o risco sério de destruir o combustível motivacional que se detém. A motivação é algo frágil que precisa de ser continuamente alimentada, e um desses alimentos é o sentimento de progressão, se nos sentirmos a encalhar mais facilmente entraremos na espiral de desistência.


Para concluir, Coyle tudo faz ao longo deste livro para demonstrar que o talento é algo que se constrói, algo que se produz, algo que todos podem atingir. O talento não é dom, não nasce, não é mágico, nem existe sob a forma de pó de estrelas. Ou seja, a velha discussão Natureza ou Cultura é aqui bem evidenciada, e fica claro que apesar da natureza nos criar diferentes, podemos cada um gerar os nossos próprios talentos e destacarmo-nos à nossa maneira. Ainda assim Coyle sabe, e todos sabemos, que de tempos a tempos vão surgindo indivíduos fora do normal, os que apelidamos de génios, o tal um num milhão, mas mesmo esses se não tiverem a sorte de ter em seu redor a triangulação - Prática, Motivação e Mestres - dificilmente emergirão.


Epílogo

No final do livro Coyle tenta aplicar algumas destas ideias à Educação, e na verdade podemos questionar-nos, porque sabendo a fórmula isto não funciona nas nossas escolas? Não me julgo detentor de respostas, mas ao fim de alguns anos a trabalhar como professor e a estudar este assunto, julgo que o centro nevrálgico acaba por estar na motivação, na Ignição. Por isso falei lá em cima que acredito na escola vocacional. Julgo que tudo neste mundo é possível para todos quando estes estão motivados, sem essa motivação nada se pode fazer. E se é verdade que o sistema escolar americano KIPP tem conseguido enormes resultados, para mim não restam dúvidas que se devem ao meio social em que se inserem, um pouco como acontece com o futebol no Brasil. A filtragem para essas escolas acontece de uma forma natural, sendo procuradas por um grupo de pessoas muito específico, pais e filhos fortemente motivados pela ideia de que para sair do ciclo de pobreza é preciso chegar à Universidade. Daí que as ideias de mais horas de escola, mais dias por semana, menos férias, mais exames e testes, etc. funcionem muito bem, porque tudo isso é apenas mais combustível para manter a motivação acesa.

Mas esta abordagem se aplicada a crianças de classe média, com pais com estudos superiores em casa, ou com acesso a uma boa qualidade de vida, simplesmente não funcionará. E é por isso que numa grande maioria das escolas, um pouco por todo o mundo, os professores em vez de funcionarem como instrutores de cada área de conhecimento, têm de funcionar como psicólogos, produtores de motivação, para manter os alunos interessados em algo que na verdade não lhes interessa, não os motiva, não lhes acende a combustão. E desiludam-se aqueles que pensam que para produzir essa combustão basta adicionar tecnologias ou videojogos à equação...

A questão que temos então de nos colocar neste momento é saber como orientar para a motivação, e não tanto como motivar. Este é um assunto que Ken Robinson tenta trabalhar em "The Element: How Finding Your Passion Changes Everything" (2009) mas que é complexo e de difícil resposta. A ideia central passa por estar atento, às crianças e pessoas, e contribuir para que estas possam auto-descobrir-se, mas a linha entre o ajudar e o formatar é muito ténue. E o risco é elevado, já que quando a pessoa se sente empurrada, pode sentir-se acossada, com a liberdade individual posta em causa, e pode reagir pela negação. A motivação para funcionar com toda a sua combustão, tem de ser algo interno, algo muito próprio, muito individual, só nosso. Algo que outros seguem, mas que apenas alguns conseguem seguir tanto como nós, dá-nos prazer ter uma área em que nos destacamos dos demais, em que temos ídolos, mas no nosso contexto somos nós os melhores naquela atividade. Não é uma questão competitiva com o mundo, é antes uma afirmação da nossa identidade, do nosso ser perante os outros.


Links de interesse
“Outliers” de Malcolm Gladwell, in Virtual Illusion
"The Element" de Ken Robinson, in Virtual Illusion
"O Talento é Sobrestimado", in Virtual Illusion

março 24, 2014

“Enslaved: Odyssey to the West” (2010)

Bruce Straley é co-diretor de “The Last of Us”, juntamente com Neil Druckmann, ambos já suficientemente elogiados, Druckmann na área da narrativa cinemática, e Straley no campo do design de jogo. Ambos trabalham na Naughty Dog há bastante tempo, mas Straley passou pela Ninja Theory antes, onde foi o designer de “Enslaved: Odyssey to the West” (2010), jogo que acabei de jogar por estes dias. Nesse sentido não deixa de ser interessante verificar os pontos de contacto entre ambos estes projectos, ainda que continue a considerar que "The Last of Us" é o jogo, até à data, mais completo do meio.



Assim, e se “The Last of Us” tem uma belíssima história trabalhada por Neil Druckmann, “Enslaved: Odyssey to the West” não lhe fica atrás, contando com Alex Garland, autor de “The Beach” para escrever o jogo. Desta forma “Enslaved” é capaz de apresentar personagens completos, partindo no início do jogo a uma certa distância de nós, no caso do personagem masculino sente-se até algum desdém, mas que depois vão amadurecendo imenso, contribuindo assim para o aumento da empatia em curva ascendente até ao final, momento em que os conseguimos sentir bastante próximos, porque os passamos a compreender. O epílogo apresentado é do melhor que podemos encontrar no mundo dos videojogos em termos de finais, surpreende-nos e apela à contemplação, não por ser uma ideia completamente nova, difícil não pensar em "The Matrix", mas por ser muito coerente com todo o jogo, fazer sentido e estar muito bem escrita. "Enslaved" demonstra não apenas que os jogos conseguem contar grandes histórias, mas que para o fazer são precisos grandes contadores de histórias.

A nossa viagem começa, como em “The Last of Us” num cenário pós-apocalíptico, situado num futuro bastante distante do nosso, e avançado tecnologicamente. E assim durante todos os anos passados após a destruição, o planeta teve tempo para recuperar o seu estado inicial e voltar a ser imensamente verde e azul. Aqui The Last of Us” segue exactamente o mesmo padrão, menos verde porque passaram-se menos anos no seu caso. "Enslaved" leva-nos através de uma jornada a dois, com a bela e inteligente Trip e o musculado e capaz Monkey, para oeste através de uma suposta América do futuro, permitindo que a história se desenrole de forma muito diversificada em termos de cenários e atmosferas. Nenhum dos personagens se assume verdadeiramente como principal, apesar de controlarmos quase exclusivamente Monkey, o que cria espaço para o jogador(a) assumir interpretações a partir de ambos.

Trip e Monkey, personagens principais de "Enslaved"

Além da história que é talvez dos elementos de maior qualidade do jogo, existem mais três elementos de excelência em "Enslaved" que contribuem para a sua memorabilidade: a banda sonora, as expressões faciais, e a arte. Podemos dizer que grande parte da emocionalidade do jogo é dirigida através da componente musical a cargo de Nitan Sawhney que detém um percurso muito interessante em matéria de composição para televisão, cinema e videojogos.

Tema principal de “Enslaved: Odyssey to the West” (2010)

No campo das expressões faciais a Ninja Theory trabalhou não apenas a componente tecnológica de captura, mas foi ainda buscar nada menos que Andy Serkis, conhecido por interpretar um dos personagens em motion capture, Gollum da trilogia “The Lord of the Rings”, mais bem conseguidos até hoje. Para o papel de Trip foram buscar Lindsey Shaw conhecida pelo seu trabalho em várias séries de televisão. Ambos os actores contribuem não apenas com interpretação para a captura de movimento, mas também com a voz que acaba a garantir a capacidade de projecção dos personagens dentro da narrativa.




O quarto e último elemento de excelência, a arte, é algo em que os videojogos têm vindo a realizar um belíssimo trabalho nos últimos anos, podendo nós encontrar inúmeros trabalhos de enorme qualidade visual, desde o próprio "The Last of Us", a "Bioshock Infinite", passando por "Prince of Persia", entre outros. Em "Enslaved" a direcção de arte está a cargo de Stuart Adcock, capaz de nos dar a experienciar num detalhe magnífico o espaço do jogo, conferindo-lhe credibilidade e grande atractividade, vale a pena ver as "fotografias" do Dead End Thrills. "Enslaved" resolveu cortar com uma tradição de apresentação do pós-apocalypse como algo deserto, para apresentar um ambiente futurista muito verde, cheio de natureza. Adcock faz referência ao documentário que veio determinar este novo padrão visual do pós-apocalypse, "Life After People" (2008) do History Channel.

"The Last of Us" acabaria por usar também este padrão, mas o facto de "Enslaved" trabalhar um futuro mais distante leva-nos para ambiente de ficção científica, carregado de tecnologia, ainda que muita destruída e abandonada, mas muito ativa ainda, e nesse sentido a arte visual é extremamente coerente e capaz de criar o mundo ficcional para onde nos quer levar. Sente-se alguma influência oriental em termos da atmosfera visual em certas áreas abertas com o confronto do verde com o azul, ou seja na escolha de cores, no desenho de maquinarias, assim como nos movimentos dos personagens. De tudo o menos conseguido julgo que acaba sendo o excesso de saturação, embora se perceba que faz parte da marca daquele universo, mas um pouco menos de saturação poderia ter contribuído para gerar um universo ainda mais coerente e equilibrado.



Deixo para o final o design na sua especificidade, e admito que apesar de ser um jogo de Straley que admiro, apresenta algumas fragilidades, algumas acredito que mais potenciadas pela tecnologia e talvez também por falta de tempo para afinação. Será difícil jogar "Enslaved" e não pensar em "Prince of Persia" (2008) em termos de design, porque existem vários pontos de contacto, desde logo pela forma acrobática como se movimentam ambos os personagens jogáveis. Ambos possuem uma companheira que os acompanha e os ajuda, sem a qual não poderiam avançar no jogo, assim como ambos assentam a jogabilidade em duas mecânicas principais, os puzzles plataformas e as lutas, que se vão intercalando para não cansar o jogador.

Em termos comparativos "Enslaved" não consegue incutir no desenho da jogabilidade a mesma fluidez e diversidade que PoP mostra. O principal joga-se nos movimentos do personagem que conjuntamente com as suas possibilidades de interacção no jogo, não funcionam tão bem como em PoP contribuindo para a geração de problemas ao nível do ritmo da jogabilidade e da percepção das nossas acções sobre o mundo de jogo. Por vezes sentimos que algo nos prende, que a navegabilidade se entrecorta, influenciando completamente a percepção que construímos da jogabilidade. Para além disso, existe alguma repetição e alongamento de lutas e puzzles, mais a meio do jogo, mas isto é algo que vamos vendo acontecer em quase todos os jogos, desde "Tomb Raider" (2013) a "Bioshock Infinite" (2013), exceptua-se aqui "The Last of Us" que consegue desenhar uma experiência, diria praticamente perfeita, e em parte também "Uncharted 2" (2009).

Apesar dos problemas identificados, "Enslaved" continua a ser um jogo com enormes qualidades,  e que vai continuar a ser jogado por muitos mais anos. Aliás apesar de ter saído para as consolas em 2010, foi re-lançado em 2013 para PC no Steam.


Links a seguir...

Porque é inovador, "The Last of Us”?,  in Virtual Illusion, 
A sintonia entre História e Jogo, in Eurogamer, 
"Prince of Persia" (2008), in Virtual Illusion, 
O universo visual de "The Last of Us”, in Virtual Illusion,
Fotografias tiradas dentro do jogo, in Dead End Thrills 

março 13, 2014

Narrativa e Motivação, "Bioshock Infinite" (Parte II)

Depois de ter analisado o tema e arte de Bioshock Infinite trago agora uma análise sobre o design de jogo e de narrativa. Bioshock Infinite soube trabalhar muito bem a gratificação narrativa com um final de jogo intensamente compensador. A impressão muito positiva criada no final conseguiu optimizar toda a experiência do jogo, isto porque as memórias de uma experiência estão mais ligadas aos momentos intensos e essencialmente ao modo como terminam.



Em termos de história partimos da ideia básica de “salvar a princesa”, mas à medida que avançamos percebemos que a premissa não passou disso mesmo, de um motivador. Bioshock Infinite apresenta uma das narrativas mais elaboradas que podemos encontrar nos videojogos, não sendo fácil de seguir, já que se socorre de uma não-linearidade à lá "Inception" (2010) permitida por uns portais de tempo, as “lágrimas” os "rasgões". Apesar da complexidade, o jogador acaba sendo conduzido pela mão, e apesar de nunca chegar a compreender plenamente tudo, tal como em Inception, aos pouco vai percebendo que foi enganado e instrumentalizado. Toda esta confusão narrativa bem balanceada contribui para que no último quarto do jogo a história atinja um clímax raramente visto em videojogos, permitindo uma total imersão no imaginário narrativo, ganhando-se apenas aí a compreensão do que representou aquela viagem. Se o jogo nos envolveu e conduziu por meio da visceralidade visual, a última hora é inteiramente liderada pela narrativa, que toma o controlo total da acção e gratifica intensamente o jogador por ter persistido e ter levado a aventura até ao final.

Para tudo isto contribui a IA de Bioshock Infinite, nomeadamente de Elizabeth da qual falei aqui antes. Embora tenha a dizer que Elizabeth desenhada quase 10 anos depois de Alyx (Half-Life II , 2004) ou 12 depois de Yorda (Ico, 2001) não conseguiu tocar-me tão profundamente como estas. Sinto Elizabeth demasiado distante, o facto do jogo ser em primeira-pessoa não ajuda, mas por isso mesmo no seu desenho deveriam ter sido incluídos olhares directos para nós, mais incisivos, como acontecem com Alyx. Sem corpo, resta-nos o olhar para criar a sensação de conexão humana, a empatia, algo que não se cria apenas com a forma e o diálogo. Depois julgo que o desenho do seu comportamento, nomeadamente em momentos de luta poderia ter sido desenhado de forma a criar maior proximidade, as ajudas dela são interessantes, mas no final do jogo sente-se a mecânica e perde-se a química. 

E é esta constatação de mecanicismo e repetição que me leva ao cerne deste texto para discutir as questões sobre o design de jogo, as opções sintácticas dos criadores para cruzar a narrativa e jogo. Porque mais uma vez tive de sofrer a angústia de me forçar a terminar o jogo, quando já nada em mim o queria fazer. As intermináveis batalhas, tiros e mais tiros, explosões e destruições a roçar o mecânico, repetitivo, vazio de significado ou propósito. Por isso mais uma vez me questionei sobre a dualidade expressiva dos jogos de Acção e Aventura. Daqui lanço várias questões: 

Porque temos de passar todo o tempo a matar? Porque apenas podemos sorver história quando entramos num momento de pausa? Porque não podemos interagir com a história? O que quer dizer interagir com a história? O que diferencia a interacção com a história da interacção com os tiros, as lutas, as mortes? E os tiros e as lutas não fazem parte da história?

No meu livro sobre Emoções Interactivas (2009), apresento um estudo no qual detectamos que a maioria dos jogos prima por explorar emoções negativas ativas - Raiva, Medo, Tensão, Nojo, Stress. Por outro lado no livro “Contagious” (2013) de Jonah Berger, os seus estudos demonstram que estas mesmas emoções são as mais capazes no que toca a conduzir as pessoas a partilharem mensagens online. Daqui podemos entender que uma parte do problema desta discussão assenta numa questão que já tinha levantado antes a propósito da tristeza nos jogos, e que lida com o Paradoxo da Emoção Interativa (Zagalo, 2009:299). Ou seja, para eu agir sobre o mundo, interagir, preciso de ser estimulado a isso, e o que verificamos é que as emoções negativas ativas são as mais eficazes. Já se estimularmos emoções negativas inactivas - Tristeza, Melancolia, Aborrecimento - as pessoas tenderão a não querer interagir.

Isto explica em certa medida porque os jogos tendem a propor-nos o acto de matar, ou  talvez melhor seja dizer, o acto de “não ser morto”. O que nos leva a querer interagir é a tensão criada pela avalanche de inimigos (obstáculos que temos de transpor) atirados sobre nós com o objectivo de nos eliminar. O que nos motiva é não morrer, não perder, para poder continuar dentro da história. O medo de morrer (ex. Medal of Honor) pode ser ainda explorado e potenciado pela raiva do que nos fizeram antes (ex. Max Payne), ou o nojo (ex. Silent Hill).

No fundo os videojogos usam e abusam de todas as formas capazes de nos colocar sobre o fio da navalha do “Game Over” - inimigos, armas, plataformas, etc - sendo o medo de perder que nos mantém ativos, que nos mantém capazes de continuar a apertar botões, a empurrar sticks e a resolver puzzles. Aliás a motivação para a interacção nos videojogos de acção acaba sendo quase sempre feita com base em situações de morte eminente. Ou seja a situação de perda mais grave, no caso de existência de personagens envolvidos numa história.

Mecanicamente esta forma de desenhar um videojogo de acção difere muito pouco da forma como se desenha um qualquer jogo competitivo - futebol, corrida de carros, luta - porque no fundo falamos de mecânicas que motivam os humanos a agir. Se numa corrida tudo fazemos para manter o carro dentro da pista, é porque queremos ter hipótese de chegar ao final. Em Bioshock Infinite tudo fazemos para nos manter vivos, e assim chegar ao final da história. Se no futebol tudo fazemos para defender e marcar golo, é para não perder o jogo, assim como em Bioshock Infinite tudo fazemos para matar todos, para que não nos matem a nós, e não nos façam perder espaço ou itens já conquistados, para ganharmos e podermos continuar a avançar.

Mas aqui estamos apenas a falar das lutas, das batalhas, dos tiros, matar ou morrer, que acabam configurando um dos “modos de jogo” de um videojogo de acção. Porque quando as lutas acabam, iniciam-se diálogos, encontramos notas de leitura, vídeos explicativos que contam o que aconteceu ali, ou seja entramos no chamado “modo história”. E aí desaparece a guilhotina do game over, desaparecendo assim a tensão, consequentemente fazendo-nos entrar no modo relaxe, no modo passivo. Aliás se reflectirem o que acontece quando entramos nas cutscenes (interactivas ou não), é que relaxamos, são momentos desenhados no jogo exactamente para nos permitir respirar da tensão passada nos confrontos de Jogo.

Mas isto quer dizer que as histórias não podem gerar tensão? A questão que se deve colocar, é se as histórias conseguem gerar suficiente tensão para nos fazer agir fisicamente? Mentalmente sabemos que é suficiente, adoramos cinema e séries, sendo que o género mais popular é o Drama e não a Acção ou Horror. As histórias motivam-nos a agir mentalmente, apenas lançando problemas e questões que procuramos resolver mentalmente. Mas serão então, simples questões, suficientes para nos fazer agir fisicamente?

Talvez. O género específico de Aventura Gráfica viveu disso apenas. Myst (1993) não tinha mortes, nem tiros, não tinha sequer game over! O que nos motivava a agir era o mesmo que nos motiva a agir num livro ou filme, a busca de respostas às interrogações que o jogo nos colocava. Mas sabemos bem como as Aventuras Gráficas são menos dinâmicas que a Acção/Aventura. Mas será que tem de ser mesmo assim? Será que não conseguimos criar condições de perda como os inimigos ou o cair de plataformas, para avançar uma história de forma dinâmica?

Não julgo que nos falte descobrir um graal como continuamos a advogar sobre a relação jogo/história nos videojogos, julgo que o que é necessário são criadores com capacidade de usar as ferramentas à sua disposição para de modo equilibrado obter o melhor dos dois mundos. Conseguir obter a intensidade das emoções activas do jogo, e fundi-las com as emoções inactivas da narrativa. Temos bons exemplos disto mesmo, e sempre que os re-analiso - The Last of Us - verifico que dependem não de inovação técnica ou tecnológica, mas de Equilíbrio e Balanceamento. Apesar de geralmente encontrarmos o desequilíbrio a tender para o jogo, ou seja a competição com luta, tiros e morte, podemos encontrar o desequilíbrio contrário, em jogos como Heavy Rain (2010) ou Beyond Two Souls (2013), a tender para a história em detrimento do jogo.

Ou seja, respondendo às questões que me lancei quando acabei BioShock Infinite, podemos interagir com a história sim, e os tiros e as lutas podem fazer parte dessa história também, isso só requer equilíbrio por parte dos criativos. Essencialmente evitar prolongar áreas artificialmente apenas porque é possível tecnicamente, as áreas devem durar apenas a duração que a narrativa permitir. Se a narrativa não aguenta mais, e precisam de fazer durar mais o jogo, reescrevam a história, as histórias são tão elásticas como os jogos, basta olhar para o que é feito nas séries de televisão. Elas só precisam que lhe seja garantindo o timing, para que o seu significado tenha valor e compense o jogador. De certo modo talvez esteja a colocar o jogo ao serviço da narrativa, mas a narrativa organiza sentidos, compreensão, o jogo está mais focado em estimular a emoção. Não é por acaso que depois da montanha russa de batalhas Ken Levine necessite de quase uma hora de jogo em modo narrativo para dar sentido a tudo o que vimos, e recompensar os jogadores.


Parte 1 da análise a Bioshock Infinite

março 10, 2014

Damásio fala da Criatividade e do Social

António Damásio esteve em Porto Alegre no Brasil a participar na conferência Fronteiras do Pensamento 2013, organizada pelo Instituto CPFL Cultura. Mário Mazzilli aproveitou a sua passagem pelo Brasil para lhe realizar uma interessante entrevista que foi entretanto vertida para um pequeno documento audiovisual e colocada online.


Ao longo dos 30 minutos que dura a entrevista, Damásio, de um modo muito calmo, vai discorrendo sobre vários temas que para muitos deveriam ser tratados separadamente mas que são impossíveis de dissociar quando queremos tratar as questões do cérebro e consciência. Falo do facto de Damásio ter um discurso fortemente contaminado pelas Artes e Ciências Sociais em conjunto com as Neurociências e a Biologia. Num tom académico e humilde Damásio consegue permear todas estas áreas, sem as sobrepor, num contínuo de coexistência e codependência, porque no fundo é como Damásio diz, quando falamos de cérebro, falamos de Vida.

Logo a abrir a entrevista, uma afirmação rápida deixou-me a reflectir, Damásio refere-se ao Teatro e ao Cinema como "artes complexas", em face das clássicas Pintura, Escultura e Música. Em parte isto deve-se ao facto de o Teatro e o Cinema serem artes de síntese das artes ditas clássicas, e por isso em termos de produção requererem conhecimento não apenas da arte em si, mas também das anteriores. Mas é interessante como continuamos ainda assim a assistir a algum desdém por parte do meio das artes clássicas face a estas. Julgo que pode estar relacionado com algum purismo face aos discursos, a singularidade de cada uma destas, e isso pode explicar também em certa medida a relutância em aceitar os videojogos como arte. Por isso escrevi aqui há algum tempo o texto “A singularidade da linguagem dos videojogos" e ainda por estes dias escrevi a propósito da multiplicidade de especialistas requeridos para se criar um jogo como "The Last of Us".

Ao longo da entrevista Damásio vai tocando o tema da criatividade, já que ele é director do Brain and Creativity Institute da USC. Gosto da abordagem que faz quando coloca a Criatividade a par da Memória e da Imaginação, defendendo que não existe criatividade sem memória, porque a criatividade emerge através de um processo de colagem, de "montagem cinematográfica", das memórias que preexistem em nós. Isto vem de encontro ao que ando a defender há muito, a propósito da ideia de que a criatividade se encontra no remix. E é por isso que quando leio algumas tiradas levianas como as de Umberto Eco, defendendo que não é importante as crianças saberem história porque o Google lhes diz quem fez o quê e quando e que o que é importante é saber filtrar a credibilidade de páginas web, me arrepio.
“a memória é absolutamente indispensável para que exista criatividade… é do facto de poder relembrar e manipular imagens que nasce a nossa fonte criativa… as memória são imagens, não visuais, são representações mentais…” Damásio na entrevista
Damásio defende a uma certa altura uma visão humanista da ciência. Uma ciência que se preocupa com a cultura humana, que para perceber o que temos hoje, investiga o que tivemos no passado, uma ciência que se preocupa com os problemas de forma longitudinal e em profundidade. Porque não quer uma ciência que apenas está preocupada em resolver problemas, em realizar avanços tecnológicos por realizar, porque como ele diz, nem toda a ciência é boa e “é possível fazer ciência que é horrível”.

Isto vem de encontro ao que Morozov tem defendido e vem apelando, que não se embarque na ideia do progresso inevitável da tecnologia, da obrigatoriedade de nos adaptarmos aos efeitos da tecnologia. Pode ler-se sobre isto no seu último livro, "To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism" (2013) (farei a análise do mesmo aqui em breve). Nesta sintonia entre Damásio e Morozov, que pode parecer complexa e paradoxal, defendermos que a ciência tem limites, ajuda-nos a relembrar que o mais importante é aquilo que defendemos enquanto seres humanos, e não ideias no abstracto por mais lógicas que nos possam parecer.

"Entrevista com António Damásio" (2013) por Fronteiras do Pensamento e Instituto CPFL

Na senda desta abordagem ao mundo e à ciência, Damásio fala dos problemas das "dores morais", ou da depressão, e relaciona-as com "a velocidade a que a informação e a cultura entram no nosso cérebro" nos dias de hoje, para nos relembrar que "não fazemos a mais pequena ideia se isto é bom ou mau", porque teremos de estudar as consequências de tudo isto ao longo dos próximos anos. Uma opinião de enorme sensatez, como seria de esperar, e que vem mais uma vez de encontro a algumas ideias que me venho interrogando muito sobre a questão da velocidade da sociedade de informação e comunicação.

Penso desta mesma forma porque quando me aproximo da ideia de culpar a velocidade atual a propósito do excesso de entropia, percebo que no passado as coisas não foram tão lentas como pensamos, porque não estamos a comparar realidades, mas antes a realidade que vivemos atualmente com representações da realidade que fomos construindo a partir da cultura sobre esse passado. Por outro lado, sabemos também que passámos por imensos estádios de desenvolvimento tecnológico, nomeadamente nos últimos 200 anos, mas que soubemos sempre adaptar-nos.

Agora essa adaptação não quer simplesmente apenas dizer que a tecnologia seguiu o seu rumo, e nós aceitámos, e evoluímos, mas antes que soubemos adaptar o mundo, as tecnologias e nós próprios em função daquilo que seria melhor para a espécie. Ou seja, o tal processo de "homeóstase sociocultural" de que Damásio fala, em que muitos de nós podem contribuir para fazer evoluir e progredir a ciência e tecnologia, enquanto muitos outros contribuem para reflectir, criticar e chamar à razão sobre a mesma. Por isso mesmo é que não podemos apostar tudo apenas na Ciência e Tecnologia, precisamos das Artes e Humanidades para contrabalançar, precisamos de ouvir vozes dissonantes, de ouvir diferentes pontos de vista sobre cada inovação, sobre cada avanço, para podermos evoluir sim, mas de forma equilibrada.

dezembro 16, 2013

"Papers, Please", o jogo da culpa

"Papers, Please" (2013) tem sido amplamente referenciado como um jogo com forte carácter emocional, nomeadamente pela sua capacidade de gerar culpa no jogador. Se esse é um dos maiores atributos do jogo, o modo como nos torna conscientes da regulação das nossas vidas pelos sistemas de informação, e da transformação destas em verdadeiros jogos, não é um atributo menor.



"A Dystopian Document Thriller"

Ainda há dias discutia com colegas que a gamificação decorrida nas nossas vidas ao longo das últimas décadas, não era uma consequência dos videojogos como nos diz Brooker, em How Videogames Chnaged the World (2013), mas antes uma consequência dos usos que nós fazemos dos sistemas de informação, e da sua evolução em termos de cálculo e abrangência. Nos últimos anos informatizámos quase todas as nossas acções, e no entanto em vez das nossas vidas se terem tornado mais simples, calmas e relaxadas, aconteceu precisamente o contrário. Vivemos acossados pelos sistemas de informação que nos perseguem em busca de informação para se justificarem a si próprios enquanto sistemas relevantes para as nossas vidas. Já não são as máquinas que nos servem, passámos nós a servir as máquinas.

Ora em "Papers, Please" o que vemos é isso mesmo, o modo como toda uma abstração da realidade assente numa camada de informação regula a vida das pessoas. Todas aquelas pessoas que pretendem atravessar as fronteiras em busca de novas vidas, novos trabalhos, reencontros de amizades e famílias são controladas em função de listas e burocracias de um sistema atolado num enredo de regras. "Papers, Please" dá conta na perfeição do modo como todos estes sistemas de informação servem o controlo, mas mais do que isso, como tudo não passa de um grande jogo, com o detalhe de que aquilo que se joga aqui são as vidas das pessoas.

"Papers, Please" encarna o objecto do jogo como nenhum outro media o poderia fazer, porque nos coloca no lugar do protagonista, colocando as decisões deste nas nossas mãos. Não vemos o que o aduaneiro faz, somos nós quem faz acontecer. Somos nós os responsáveis por deixar passar, ou não deixar passar as pessoas nas fronteiras. As regras são-nos apresentadas, sabemos que existem consequências para as pessoas, mas também existem para nós. Temos uma família para alimentar, aquecer, pagar alojamento e comprar medicamentos. Se não cumprirmos com as regras do nosso trabalho, e não formos eficientes a fazê-lo (não falhar o controlo das pessoas e em tempo útil) não conseguiremos manter a nossa família saudável.

E é aqui que a culpa emerge, quando começamos a receber pedidos das pessoas que desesperadas nos pedem para as deixar passar para irem ter com a família, ou para fugirem de raptores, percebemos que se as ajudarmos seremos punidos, nós e a nossa família, mas que se nada fizermos ficaremos com o peso na consciência. Da mesma forma quando percebemos que o dinheiro que estamos a receber não chega para cobrir as despesas, e percebemos que temos de escolher entre manter a casa aquecida, comprar comida, ou medicamentos para um filho doente.

"Papers, Please" é um pequeno jogo não muito complexo tecnicamente, mas muito coerente. Apesar de ter um modo história, esta tem 20 finais possíveis, sendo um dos primeiros jogos que rejoguei várias vezes para testar os diferentes finais. Como jogo-história, é um dos poucos que faz sentido rejogar, já que a cada rejogar podemos mudar as variáveis e alterar por completo a progressão do jogo. Além de que a cada rejogar as nossas jogadas anteriores ganham mais relevo, uma vez que ficamos cada vez mais familiarizados com o tema do jogo, e os seus elementos, o que nos permite acelerar a nossa eficiência, embora isso não nos proteja das duras decisões que possamos ter de tomar.

Criativamente o jogo brilha pela forma como brinca com as nossas emoções e nos obriga a reflectir, e ainda pelo modo como soube potenciar o lado operativo e de agência da comunicação dos videojogos. O jogo não surge do mero exercício de querer fazer um jogo, mas antes de uma reflexão do seu criador, Lucas Pope, um americano a viver no Japão que quis verbalizar alguns dos sentimos que lhe atravessavam a cabeça quando tinha de passar as fronteiras entre ambos os países.

Trailer de Papers, Please (2013)


Mais sobre "Papers, Please"
Vencedores do 16º Independent Games Festival, in Virtual Illusion

dezembro 10, 2013

Luxuria Superbia, interatividade sensorial

Luxuria Superbia (2013) é um videojogo experimental criado pelo coletivo Tale of Tales que procura testar os limites da estimulação sensorial por meio de quatro vetores: movimento hipnótico, a cor, a música, e o toque proporcionado pelas interfaces tablet. Ao contrário de muito experimentalismo é fácil envolver-se com o mundo de Superbia, e a razão para tal prende-se com os objetivos estipulados pelo coletivo desde o início, a busca pelo belo (como nos disseram na Videojogos 2013). Este trabalho acaba por me marcar bastante, nomeadamente porque me fez recordar e refletir sobre várias coisas que tenho feito ao longo dos anos na área dos media interativos.


Assim e começando pelas recordações, Superbia fez-me recuar mais de 15 anos no tempo, aos meus primeiros trabalhos com a interatividade, nomeadamente uma obra que realizei como trabalho de curso, denominada "Sonhar o Real, com Emoção" (1998). Nesse trabalho procurava desenvolver um ambiente tridimensional animado, com camadas de interatividade, que pudessem estimular emoções específicas nos utilizadores. O objetivo como diz o título, era estimular um impacto sensorial forte, ao ponto de fazer as pessoas sonharem acordadas. Nessa altura tive imensas dificuldades para levar o conceito até ao fim, primeiro técnicas, e depois conceptuais. O 3d que podia produzir em 1998, com a qualidade final que queria e em tempo-real, era de todo impossível, por outro lado as ideias para levar avante o objetivo foram sempre muito difíceis de conter e domesticar num âmbito encerrado de narrativa com três atos. Olhando para Superbia posso dizer que este encarna tudo aquilo que eu gostaria de ter feito para esse trabalho. A facilidade com que nos envolve por meio do movimento e estética visual, cria progressão e gera um mundo próprio sempre em total consonância com a interação e narração atmosférica, é extraordinário.

"Sonhar o Real, com Emoção" (1998) de Nelson Zagalo e Luís Mouta

Nesta busca experimental pela estimulação do belo puro, capaz de nos levar ao orgasmo estético, como nos disse Samyn em Coimbra, os Tale of Tales acabam por evocar os elementos principais e fundamentais do ser feminino. A noção de beleza que emerge da sua busca assenta totalmente na sensualidade feminina, e esta abordagem mais uma vez não me é de todo alheia. Quando andei a desenvolver o meu protótipo Emotion Wizard, no final dos estudos que fiz sobre a estimulação de emoção humana percebi porque razão a publicidade recorreu, recorre e continuará a recorrer a uma estética altamente sexualizada. Porque se queremos produzir em alguém uma forte sensação emocional, e uma sensação positiva de êxtase face ao que se está a experienciar, a forma conceptual mais concreta e por outro lado formal mais simples de o fazer, é por via da estimulação da libido. A razão é simples, a necessidade sexual está no patamar das necessidades humanas mais básicas, ao nível da alimentação, e por isso tudo o que estimule essa vertente provocará reações fortes, e assim inesquecíveis nos receptores.

Neste sentido, o uso da sexualidade per se teria pouca relevância já que a poderíamos catalogar como grau zero da estimulação estética, mas o que ganha verdadeira importância é o modo abstrato e invulgar como os Tale of Tales o conseguem fazer. O desenho do prazer feminino é feito com base numa componente visual interativa que assenta num túnel que se movimenta em profundidade e continuamente ao longo de todo o jogo, obrigando o jogador a interagir com este, simulando uma espécie de interação masturbatória feminina. Para credibilizar esta interação, uma camada de narração ou incitação atmosférica é sobreposta às nossas ações, que nos leva a agir, a manter a ação, e por sua vez ilumina o sentido da gratificação e recompensa do jogo.

Luxuria Superbia cria um espaço virtual constituído por vários pilares que simbolizam cada um dos jardins nos quais podemos entrar e completar os objetivos propostos. Completado cada jardim, a cor preenche o pilar e chão adjacente. O jogo termina quando todo o espaço virtual estiver pintado.

Superbia poderia ter sido tudo isto mantendo-se completamente experimental, mas os Tale of Tales preferiram optar por criar um enquadramento de videojogo com níveis definidos, objetivos de curto, médio e longo prazo, para assim desenvolver uma linguagem mais convencional e reconhecida pelos jogadores. Se por um lado esse enquadramento está bem executado, julgo que acaba por fazer o jogo perder em termos emocionais, e assim em termos conceptuais. Isto porque a partir do momento em que sentimos que estamos a interagir para atingir mais um objetivo proposto pelo jogo, a ligação sensorial esmorece, e a nossa emocionalidade dá lugar à racionalidade. Nesses momentos, a imersão falha e o artefacto como mero objecto digital emerge. De qualquer modo não censuro o coletivo já que criar uma experiência deste género. sem um enquadramento concreto, obrigaria a criar um objeto sem contornos definidos para o utilizador, o que contribuiria para diminuir a importância da obra como um objeto coeso e uno.


A experiência é curta, mas para quem ande à procura de novas experiências nos videojogos é mais do que recomendada. De qualquer modo aconselha-se vivamente que o façam em tablet, já que a interação está completamente desenhada para uma manipulação direta com os dedos.