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dezembro 01, 2018

Ajudar a libertar um reino

Muito já se escreveu sobre "Kingdom Come: Deliverance" (2018) (KC:D), nomeadamente que é um jogo para jogadores pacientes porque se começa com muito poucas capacidades — enquanto mero plebeu não sabemos manejar espadas ou arcos — o que acaba por o tornar mais interessante para quem procura experiências mais realistas, para quem busca agência narrativa, ou seja, possuir autonomia e controlo sobre a progressão da experiência. Em termos temáticos e visuais, podemos rapidamente evocar “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015), em termos de jogabilidade as referências vão mais para “The Elder Scrolls V: Skyrim” (2011) e “Fallout 3” (2008), ainda assim, KC:D vai além, não apenas porque se furta à fantasia da FC e da Magia, algo muito raramente visto, mas também porque constrói um dos mundos de jogo e história mais detalhados e intrincados de sempre, mantendo as escolhas e a emergência sempre bastante vivas. Por isso, não tenho dúvidas em afirmar que KC:D é um dos grandes jogos deste ano e da última década.
KC:D é mais do que um jogo de mundo aberto realista, ao seu lado “Legend of Zelda: Breath of the Wild” (2017) é mero brinquedo para crianças. A experiência gerada por este mundo não se limita a mera simulação, no caso de época, existe jogo e existe narração, claramente assentes em factos históricos dignos de qualquer grande romance histórico. Mas aquilo que diferencia totalmente KC:D de Zelda, é o design que junta jogo e narrativa capaz de os colocar ao mesmo nível, fazendo depender um do outro, criando uma experiência una, em que o jogador nunca pensa, “estou a jogar” ou “estou a ver uma história”, mas antes “habito este mundo e tenho de me dar a estas pessoas”. Dan Vavra em entrevista dizia: "My philosophy, let's say, is that the gameplay experience generally should be natural, believable, it could be complex, but shouldn't be complicated", e é isso mesmo que temos, e que fica facilmente demonstrado pela imensidade de verbos que o jogo utiliza, todos baseados em fenómenos perfeitamente naturais para um ser-humano: andar, correr, montar, comprar, trocar, caçar, regatear, roubar, tirar, enganar, fugir, render-se, aprender, treinar, obedecer, desobedecer, matar, lutar, reparar, lavar-se, esconder-se, tratar-se, comer, dormir, repousar, esperar, namorar, ajudar, procurar, investigar, etc. Isto explica também porque o jogo é muito mais do que combates e lutas, não senti nunca que estava farto de lutas como acontece em tantos jogos, porque elas são bastante espaçadas em todo o jogo (claro que no meu caso optei por ir desenhando o meu perfil mais pela "fala" e menos pela "força" o que ajuda a minimizar essas lutas). Mas por exemplo, os mini-jogos como o de dados que se podem jogar nas tavernas, foi a primeira vez que me dei ao trabalho de aprender as suas regras, jogar mesmo, e ter vontade de ganhar ao adversário dentro de um mundo virtual, senti completamente a ânsia pela incerteza do lançamento dos dados. Já o mesmo não posso dizer dos “lockpicks”, não consegui entrar na lógica, que pelo que li é muito mais acessível via teclado do que gamepad, mas graças ao sistema de jogo aberto pude jogar todo o jogo sem ter nunca de abrir uma única fechadura por esse método, o que só por si é uma demonstração impressionante do game design do jogo.

O guião final de KC:D tem cerca de 1 milhão de palavras. Na imagem podemos ver o papel ocupado quando impresso.

Na intersecção entre o design e a arte temos o guião, parte escrita parte estrutura de jogo, no qual é preciso destacar os imensos conflitos desenhados para sustentar o nosso interesse ao longo de todo o jogo. Claro que se sente por vezes uma narrativa um tanto artificial pela força dos padrões de Hollywood, influencia clara do script doctor contratado, mas no geral, os 7 escritores sob o comando de Vavra deram muito bem conta do trabalho. Principalmente nos diálogos que demonstram uma relação com os costumes da época, dos seus interesses e diferenças, fazendo com que estejamos sempre interessados em ouvi-los para compreender melhor o mundo para onde viajámos. Do mesmo modo a descrição e resolução dos problemas dos personagens e sua especificação no design de jogo é algo a que não é alheio os mais de 20 consultores em História utilizados. No meio da imensidão de mundo e ações a realizar, muitas delas impõem tempos específicos, o que acaba por conseguir gerar todo um ritmo naquele mundo, e que por vezes apesar de toda a agência quase nos parece linear, ou melhor dizendo, parece o nosso próprio tempo naquele mundo, em que temos de fazer escolhas, mas essas fazem parte das condições daquela realidade, e é quase como se só tivéssemos uma opção porque estamos completamente absorvidos pela história e pela sua progressão. Tudo isto consegue fazer com que as horas se vão acumulando e o jogo só muito raramente acuse saturação narrativa, o nosso empenho no seu progresso é mantido até ao final.

7 escritores, vários consultores e um script doctor, tudo para que a narrativa funcione e suporte o jogo do início ao final.

Para perceberem um pouco melhor como funciona o sistema de escrita, simulação e emergência, vejam este pequeno trecho de uma das quests do início do jogo.

Se o design é brilhante e a escrita muito boa, a arte visual é sumptuosa. O mundo é enorme (16 km2), ainda assim passei dezenas de vezes por alguns dos caminhos e, no entanto, nunca senti o efeito de repetição, tal é a ordem de detalhe colocada na arte. Seja nos caminhos em pedra, seja na relva, seja nas construções, nas roupas, nos utensílios, nas armas, no sistema atmosférico, tudo segue referências reais e altamente pormenorizadas, no sentido de providenciar uma experiência intensa e rica de uma época efetiva, o final da Idade Média (sobre esta componente aconselho uma comunicação de Vavra que dá conta da componente histórica e sua importância artística para o jogo). Daria nota máxima a tudo neste campo, menos ao design de som e música, já que a opção por não saturar o ambiente de música, como acontece nas produções mais hollywoodescas, acaba por ser exagerada, atirando o som para o fundo, não servindo nunca o jogo como motivo. Não falo apenas de música para gestão emocional, mas também das paisagens sonoras naturais — do roçagar das árvores, do correr dos coelhos, dos veados, dos riachos, etc. Senti um pouco falta dessa componente, que tenho a certeza teria tido um enorme feito no incremento do ambiente experiencial, nomeadamente porque em momentos de jogo mais individuais e belos visualmente, teria incrementado o bucolismo das cenas. Aliás, ainda neste sentido, as vozes inglesas pecam também por não possuir um trago de maior autenticidade de época.
Comparações entre o real e os modelos implementados no jogo. Arrisco a dizer que o nível de detalhe colocado na modelação do mundo vai para além daquilo a que a Ubisoft nos tem habituado na sua série Assassin's Creed.

Mas os jogos não se fazem apenas de design e arte, requerem um terceiro elemento vital, a informática, e nesse campo não posso tecer louvores. Bem sei que se trata de uma pequena empresa, de um pequeno país europeu, mas ainda assim facilitaram demasiado. O jogo foi lançado em Fevereiro de 2018, carregadíssimo de bugs, o que lhes valeu dezenas e dezenas de más análises na imprensa internacional. Muitos analistas até gostavam do jogo mas a experiência, que relato acima, não era sustentada tecnologicamente à data. Para se ter uma ideia, eu comecei a jogar apenas em novembro, 10 meses depois, e já ia na versão 12, entretanto passei para a 13, e mesmo assim tenho de dizer que foi o meu jogo em consola com mais problemas informáticos de sempre. Saves que desapareciam; cutscenes cortadas a meio ou simplesmente que não me apareciam numa passagem, mas apareciam noutra; saltos entre ações necessárias de jogo sem que eu tivesse feito algo efetivo; cenários sem chão, paredes sem portas, personagens no ar. Tudo a fazer recordar o horribilis lançamento de “Assassins Creed: Unity” (2014), o qual só consegui jogar, também meses depois, após um patch de 17Gb. Na verdade, os problemas informáticos não são algo completamente alheio a este tipo de jogos, os immersive sims, por causa da complexidade envolvida. Desde sempre a Bethesda foi associada a problemas de bugs, nomeadamente com as séries “Fallout” e “Elders Scrolls” (veja-se o que está acontecer com o recém lançado "Fallout 76"), o que dá conta da questão subjacente, a complexidade do universo, nomeadamente aquela que a narrativa introduz, e que se fosse suportada tecnologicamente com certeza levaria mais do que 10% dos jogadores até ao final.

Não estamos a falar de uma grande área de jogo apenas, mas estamos a falar de simulação que se dá à agência do jogador, que tem ainda de permitir emergência, ou seja, reações do mundo de jogo não planeadas pelos designers, tudo em grande escala, ao que se junta uma estrutura narrativa imensamente detalhada, recortada e ramificada à qual se ligam os cenários, os personagens, as cenas e as cutscenes, tudo ao longo de dezenas de horas de modo a garantir que as sempre presentes escolhas e variações de abordagem de cada jogador funcionam. Aliás, esse é para mim talvez um dos grandes pecados de KC:D, a enormidade de produção de conteúdo. Vavra fala em 110 horas de voz off, só em cutscenes temos quase 9 horas de animação integral, eu fiz 103 horas de jogo para realizar apenas a Main Quest, e mais 3 ou 4 side quests. No YouTube existe um playthrough apenas da Main Quest, e apenas de uma perspetiva, com partes aceleradas e todos os momentos de espera cortados, e mesmo assim são precisas 17 horas. É verdade que, ao contrário da Bethesda que criou o seu próprio motor (Creation Engine), a Warhorse utiliza o CryEngine que sendo desenvolvido por terceiros, tem a vantagem de ser amplamente utilizado e por isso estar imensamente testado. No entanto, esse engine serve apenas a construção e renderização de cenas, para o design de jogo nas suas múltiplas frentes — missões, personagens, diálogos, objetos, locais, ações e interações, mapas, vozes, cutscenes, etc. — a Warhorse teve também de criar a sua própria ferramenta, o SKALD, que é o responsável pelo design assim como toda a gestão do pipeline de produção. Ou seja, grande parte dos problemas são originados nesta ferramenta, o que vem demonstrar mais uma vez o quão importante continua a ser a tecnologia e a informática enquanto arte de produção de videojogos.
CryEngine, construção de cena [fonte]
Interface de SKALD, visualização do mapa
Interface de SKALD, construção dos diálogos não-lineares. SKALD fez-me recordar o projeto europeu INSCAPE em que trabalhei, de 2004 a 2008, e que tinha como objetivo exatamente a construção de uma ferramenta de suporte à autoria de mundos narrativos interativos, algo que continua por definir e standardizar.

Apesar de tudo isto, KC:D exala paixão, espírito de missão e isso só é possível porque existe por detrás do jogo um líder, um diretor que busca dar forma e vida a toda uma visão, capaz de aguentar o projeto vivo durante 7 anos, e que é Dan Vavra (n. 1975; licenciado em Design). Este tem sido atacado por alguns comentários que foi fazendo sobre os media e nomeadamente sobre o GamerGate, mas se virem as suas várias entrevistas sobre o jogo, e o modo como trabalha em equipa e a sua abordagem contra a violência nos videojogos, verão como isso está longe de o caracterizar como pessoa. Daí o meu interesse em tentar perceber também como é que um jogo com estas dimensões pôde nascer num pequeno país Europeu, com a mesma população de Portugal, e fazendo uso da sua própria História. É que apesar de ser independente, estamos a falar de um jogo que custou, incluindo já despesas de marketing (o que pode ir de 30% a 50% nos dias de hoje), cerca de 35 milhões de euros, dos quais só 1 milhão veio pelo Kickstarter. Se tiverem o mesmo interesse que eu, aconselho-vos a ver o "Kingdom Come: Deliverance Documentary" (2018). Deixo a seguir alguns dos pontos do mesmo e que captei também em outras entrevistas, que me parecem essenciais para compreender o que aqui temos.


Dan Vavra começa, em 1998, num novo jogo, "Mafia" (2002), por mero acaso acabando a dirigir uma equipa de 9 pessoas, todos, ele incluído, sem qualquer experiência, nem de jogos nem de trabalho. Conseguem sucesso internacional e atraem um grande publisher, a 2K, para fazer uma sequela, "Mafia II" (2011). Mas como artista está pouco interessado em trabalhar sob as ordens da grande produção, por isso tenta ir à procura de outra sorte. Não emigra, nunca sai da Rep. Checa, começa a sua própria empresa. Para o efeito, desenha uma ideia assente numa abordagem inovadora, um RPG realista situado no centro da Europa no final da Idade Média. Com isso procura o primeiro financiamento antes de lançar qualquer desenvolvimento, que só começa em Setembro 2011. Em 2013 vão surgir os primeiros verdadeiros problemas quando o primeiro protótipo está pronto e se inicia o périplo pelos publishers internacionais, estes gostam mas respondem que não querem um jogo de História, não querem realismo, querem fantasia pura e visceral. Entra então o Kickstarter, não para financiar o jogo, mas para demonstrar que há mercado interessado naquele tipo de jogo. O oxigénio do Kickstarter permite passar o número de pessoas envolvidas, das 15 para as 40, e permite assegurar o interesse de mais financiamento e assim fazer chegar a equipa às 100 pessoas ao longo de 4 anos.

Só para fechar, deixo uma pequena lista que fiz há dias, dando conta de grandes jogos europeus que têm surgido nesta década, que dão cartas em todo o mundo, e que mostram que é possível fazer muito mais a partir de pequenos países como o nosso:
França - "Dishonored" (2012)
Suécia - "Brothers: A Tale of Two Sons" (2013)
Polónia - "This War of Mine" (2014)
Polónia - "The Witcher 3: Wild Hunt" (2015)
Dinamarca - "Inside" (2016)
Holanda - "Horizon Zero Dawn" (2017)
Suécia - "Wolfenstein II: The New Colossus" (2017)
França - "Prey" (2017)
Bélgica - "Divinity: Original Sin II" (2017)
República Checa - "Kingdom Come: Deliverance" (2018)

novembro 04, 2018

A importância das escolhas nos jogos narrativos

“Detroit: Become Human” (2018) vai muito para além do mero entretenimento, por baixo dessa capa aparente de filme de Hollywood de ficção científica, lança-nos num mar de reflexões sobre a inteligência artificial e a robótica, que vão desde a motivação para a singularidade na IA (autonomização do ser) às necessidades e vontades associadas pela robótica (existência física) terminando na relação com o humano. À superfície parece oferecer pouco mais do que aquilo que já nos foi oferecido em filmes como “Bicentennial Man” (1999), baseado no conto homónimo de Asimov, “A.I. Artificial Intelligence” (2001) de Spielberg e Kubrick, “I, Robot” (2004) de Alex Proyas ou “Ex Machina” (2014) de Alex Garland, e no entanto, o facto de se tratar de um videojogo baseado em narrativa interativa, coloca-nos face a uma experiência completamente distinta, simplesmente porque somos obrigados a tomar partido.


Detroit apresenta um universo ficcional futurista, no qual os andróides convivem com os humanos em todo o lado, do mesmo modo que muitas outras tecnologias — dos carros aos sistemas de apoio ao humano — com a diferença de terem a mesma fisionomia que um humano, porque lhes facilita o apoio a essas tarefas mais humanas. Contudo, essa forma humanoide associada a capacidades sociais, afetivas e cognitivas torna-os excessivamente humanos a ponto de serem apenas permitidos nos EUA, enquanto o Canada e outros países mantém a sua proibição.


Ainda sobre o universo, e tendo em conta que se trata de narrativa interativa, reportar que Cage levou as suas possibilidades muito para além daquilo que nos tinha dado nos seus jogos anteriores —  “Fahrenheit” (2005), “Heavy Rain” (2010) ou “Beyond: Two Souls” (2013) —, aqui praticamente todas as nossas escolhas e decisões têm consequências, e essas conseguem aparentar ser ilimitadas. O melhor exemplo disso é que o cerne narrativo, constituído de três personagens andróides que devem carregar toda a história aos ombros do início ao final, na minha primeira passagem completa pelo jogo, morrem os três, nenhum chega ao fim, algo que pelas estatísticas apresentadas acontece muito pouco, mas demonstra a enorme elasticidade da ficção interativa apresentada. Note-se que podemos rejogar cada capítulo e alterar as consequências, contudo somos aconselhados, no jogo, a fazer um primeiro playthrough completo sem rejogar qualquer decisão, que foi o que fiz, mesmo quando em algumas decisões, por me sentir demasiado pressionado para decidir, decidi coisas com que não me identificava totalmente. Aconselho vivamente a que façam o mesmo, pois é dessa primeira experiência completa sem rejogar que poderão extrair os maiores impactos da experiência da narrativa interativa proposta.



Do ponto de vista tecnológico e empático, é interessante verificar como apesar de muitos arautos da tecnologia defenderem a proximidade do momento de singularidade, ou da possibilidade de substituir professores por robôs, num videojogo criado em 2017, em que ironicamente os três principais personagens são andróides, ainda estamos completamente dependentes de humanos, não só para lhes dar forma mas para garantir as performances de corpo e voz.

Porque jogar é experienciar, é viver de forma simulada e virtual. Ou seja, colocados dentro daquele universo de possibilidades, somos questionados e interrogados, somos colocados face a questões que ainda não existem no mundo atual, e para lhes responder só nos resta procurar dentro de nós as respostas. Puxar pelas nossas convicções, princípios e morais, mas também todo o conhecimento que detemos sobre as matérias (neste caso o meu conhecimento sobre o design e implementação de máquinas e formação dos seus sistemas de IA), confrontando argumentos para responder às situações, ainda que hipotéticas e ficcionais, colocadas pelo jogo. Sentimos que “Detroit” nos coloca contra a parede, no que à relação futura entre humanos e andróides dotados de consciência IA concerne, porque atira sobre nós toda a responsabilidade sobre como lidar com eles, obrigando-nos a decidir e a reagir. E se durante o jogo, um pouco pelo que considero excessivo design de pressão sobre o jogador ainda que sirva bem a dramatização necessária ao contar de uma história, senti as decisões por vezes mais distantes, no final do jogo elas caíram-me todas em cima.

Marcha de andróides lutando pelos seus direitos

Por exemplo, ter deixado morrer os três personagens não foi algo simples, impactou a minha experiência, criou frustração mas foi além, porque o jogo não se fica, não se resume a um mero “game over”, algo que Cage detesta nos videojogos. As ausências dos personagens tornaram-se parte do meu universo jogado, e a minha culpa pela sua perda foi transposta para os eventos que continuaram a suceder-se, o que se foi agravando quanto mais as suas ausências se foram tornando consumadas em mim. Mas isto também levanta enorme peso na discussão da autoria, do que tem para dizer um autor, e aqui Cage luta claramente nessa fina linha entre o quanto está disposto a oferecer-nos de controlo sobre os eventos e aquilo que nos quer dizer com a sua obra. Li em algumas resenhas, caracterizações de inconsistência narrativa, ou seja, que Cage não saberia ou não teria conseguido construir uma mensagem completa. Contudo, por muito que me custe dizer, mais ainda tão habituado a defender a intenção autoral no cinema e na literatura, aqui a intenção autoral não pode prevalecer sempre, correndo o risco da interatividade não passar de ilusão. Por isso se o jogo parece mover-se entre barricadas ideológicas ao longo da experiência, deve-se mais àquilo que vamos decidindo fazer, porque o jogo permite que façamos, e menos a uma vontade ou falta de determinação do autor e do jogo em passar uma ideia redonda. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a determinação do autor bastaria recuar a 2012, "ver a demo/curta "Kara" e perceber como "Detroit" não surgiu de um simples desejo de fazer mais um jogo, mas vem carregado de intenções (entrevista com Cage).

"Kara" (2012) de David Cage

Posto isto, o jogo consegue algo que nem o livro nem o filme conseguem, levando-me a considerar que retirei desta experiência, algo que é notável para um videojogo, uma melhorada compreensão da minha relação com a tecnologia e sua hipotética singularidade futura. O jogo puxa imenso pela nossa ambivalência, usa truques para confundir o nosso sentir para com os andróides, que servem também para que possamos ir traçando o nosso caminho. Já estamos habituados, no cinema, ao desenho de situações de pura empatia para com os andróides, mas aqui somos também brindados com situações completamente contrárias, e somos conduzidos a passar pelos dois sentimentos, o que consegue mexer com algumas das nossas convicções. Existem algumas questões apresentadas de modo muito simplista, nomeadamente o modo como a generalidade dos humanos vai reagindo, algo que como já se disse, não é alheio ao modo como vamos jogando, ou seja, à medida que vamos jogando a narrativa vai-se ajustando e naturalmente partes dessa vão sendo secundarizadas. Contudo, pelo que vi de possibilidades jogadas por outros, é possível aceder a maior elaboração dessas partes, dita mais simplistas, rejogando partes mais decisivas que alteram o rumo dos eventos finais.

A primeira sequência do jogo, de resposta a um rapto, abre muitíssimo bem o tom do jogo, e nem queria acreditar quando vi na net que podia ter 6 finais completamente distintos.


Ao contrário dos jogos anteriores de Cage, e talvez motivado pelo facto de termos as árvores de nós narrativos a serem apresentadas no final de cada capítulo, mas especialmente porque as variações narrativas são tão acentuadas, sinto o desejo de voltar e rejogar, de voltar a experienciar, de decidir de outras formas para confrontar as minhas decisões naquele universo.

outubro 08, 2018

Uncharted: The Lost Legacy (2017)

Teria preferido que "The Lost Legacy" fosse um DLC já que não nos dá mais do que isso e porque as expectativas teriam sido mais baixas. Eu sei que a sua duração não é compatível com um DLC e que a dimensão do trabalho executado mais do que justifica fazer do mesmo um tomo de qualquer série de videojogos. O problema é que "Uncharted" não é uma qualquer série, e basta olhar para o que escrevi sobre os anteriores tomos, em particular o mais recente, "Uncharted 4" (2016), para perceber isso mesmo. "Lost Legacy" é, para mim, apenas um DLC, não diferindo de "Left Behind" (2014) para com "The Last of Us" (2013). Deste modo não aprofundarei a análise, farei apenas alguns reparos sobre a narrativa e o design.


Na história, temos uma extensão de "Uncharted 4", a história estende alguns dos personagens não principais, o que sendo interessante por abrir dimensões menos exploradas em toda a série, nomeadamente a perspectiva feminina, falha em inovação. Não posso dizer que não seja interessante a afirmação do duo feminino, todo o humor envolvido e subtileza com que nos vão conduzindo pela trama, mas senti tudo muito colado aos grandes estereótipos do género: não é Nate, mas mudar para Lara Croft e a sua relação com o pai, e dar-lhe um sentido de humor à la Nate, revela muito pouca imaginação. E não é apenas a proximidade entre Lara e Chloe que me lembra "Tomb Raider", é o pior de Tomb na comparação com Uncharted, o exagero narrativo. Talvez eu já esteja demasiado velho, mas encontrar cidades inteiras feitas de ouro e jóias, quase uma por capítulo, destrói qualquer sensação de surpresa. Por muito que se queira crer no mundo-história, acaba fazendo que tudo se desmorone, pois se um El Dorado é bom, muitos é uma banalidade.

Para agravar a banalidade do excesso do cenário narrativo, temos que a arte desenvolvida para "Lost Legacy" fica bastante aquém de "Uncharted 4". Apesar do jogo incentivar tirar fotografias, foram raras as vezes que o fiz, porque os cenários apenas pareciam ser fantásticos, faltando-lhes todo o detalhe e estudo a que "Uncharted 4" já nos tinha habituado. Depois de provar um café com natas, darem-nos mero café sem açúcar, não é que seja mau, mas é bem diferente em termos do que nos pode fazer viajar experiencialmente.




Por último, li várias excelentes resenhas sobre o jogo, nomeadamente sobre o design, com o que tenho de discordar. Não sendo mau, elogiar "Lost Legacy" parece-me completamente despropositado. A experiência de jogo é altamente afunilada, o sentimento de agência, mesmo nas grandes secções de condução do jipe é reduzida, não comparável ao que já nos tinha dado a série. Posso até aceitar que a sequência do comboio supera a de "Uncharted 2" (2009), mas apenas porque se passaram muitos anos, e se nota que houve um cuidado particular com toda esta sequência no jogo. Ainda assim, se o design funciona muito bem, nem por isso a narrativa que envolve a sequência faz mais sentido. De uma forma geral, o design de jogo é muito fechado e completamente arrastado pela linearidade narrativa, não gerando qualquer surpresa.

Joga-se como um DLC, apesar de vendido como jogo independente, e apesar da crítica ter oferecido os mais elogiosos louvores e defendendo essa opção de lançamento independente, não passa disso mesmo, de um DLC. Ou seja, a jogar por quem tenha jogado "Uncharted 4" e queira estender um pouco a experiência, sabendo que o aqui vai encontrar é café sem natas, nem açúcar.

setembro 14, 2018

"Celeste", design de joalharia

“Celeste” é puro flow. Todo o design contribui de forma efetiva para a geração de uma experiência extremamente coesa, em que a visceralidade imprimida pela jogabilidade caminha a par com o significado da narrativa. É um jogo de plataformas que não inova na fórmula, mas que por elevar os patamares de qualidade da jogabilidade e da história consegue criar algo novo. Uma pequena jóia.

"Celeste" (2018) de Matt Thornson

“Celeste” apresenta a história de uma personagem frágil, Madeline, que sofrendo de depressão resolve iniciar a subida da montanha Celeste. Pelo caminho encontramos outros personagens que vão servindo para nos dar a conhecer mais sobre o sentir de Madeline, até que encontramos o duplo interior de Madeline com quem ela terá de se confrontar no resto da viagem, para se poder encontrar a si mesma. É uma história existencial, que apela a um público mais maduro, que se serve na perfeição da metáfora de obstáculo, a montanha, para significar a história e alimentar o design de jogo. Em termos narrativos existe aqui alguma proximidade com "Journey" (2012), e no entanto o mais interessante é verificar como a jogabilidade é trabalhada em polos opostos. "Journey" opera o flow pela quase inibição dos obstáculos, enquanto "Celeste" o desenvolve pela elevação desses obstáculos quase ao limite da impossibilidade. No entanto, o modo como Celeste foi concebido não afasta a experiência em termos de sentimento interior de "Journey". Falarei sobre o design à frente, para se perceber como isso foi conseguido.


Arte visual é da autoria de Amora Bettany e Pedro Medeiros

Se a história é apelativa, num sentido de profundidade de significado, e a jogabilidade brilha pelo modo como exige simultaneamente destreza e inteligência, “Celeste” acaba por se elevar acima de ambos, não apenas porque a narrativa se funde com as ações de jogo, mas porque todo o jogo se torna um artefacto uno gerador de uma experiência plena. Não é a história que nos agarra, nem é a jogabilidade que nos mantém, é a sua união que cria um objeto que não existe sem ambas. Jogamos como Madeline, assumimos a sua fragilidade, e insistimos no ultrapassar de cada novo obstáculo, sofregamente, ansiosamente.

Para se perceber melhor esta descrição e compreender como se chega a este nível de criação artística, aconselho vivamente o visionamento da comunicação de Matt Thorson, o director do jogo, na GDC 2017. Thornson apresenta os vários atributos do jogo, nomeadamente o design de “multiple approaches” que garante maior liberdade na resolução dos puzzles, assim como explica como ao longo do jogo vai “ensinando silenciosamente” a jogar por via do design. Mas o que me fica da comunicação é: a unificação entre história e jogo; a experimentação e o perfecionismo; e o playtesting.

O design segue uma abordagem dinâmica que permite múltiplas formas de resolver um mesmo puzzle. Esta abordagem acaba sendo fundamental no desenho do flow, já que oferece autonomia ao jogador, ou seja, oferece a essência daquilo que estimula a ação, que é a liberdade de agir, de escolher. [GDC 2017]

O "ensino silencioso" de que como se joga é extremamente bem conseguido, estando ao nível do melhor da Nintendo com Zelda ou Mário.

Thornson discute o modo como cada nível (a que se refere sempre como parte da história, para Thornson cada nível comporta história em si) se vai desenhando em modo experimental. Não existe um planeamento prévio, existe um objeto narrativo, e é para ele que se desenha. Isto comporta problemas de produção, já que pode acabar com menos níveis do que precisa, ou mais. Thornson dá o exemplo de uma parte do jogo em que tiveram de jogar fora 20 níveis por não se encaixarem na componente narrativa. Porque como diz a determinada altura, “estamos sempre a tentar descarregar o máximo possível da narrativa no design dos níveis”. Ou seja, o todo tem de fazer sentido, Thornson não quer apenas uma boa jogabilidade, ela tem de estar conectada com aquilo que se está a tentar dizer em cada nível, dentro de cada área, e por sua vez na história completa. A explicação do segundo nível dada por Thornson é brilhante (o sonho de voar por entre as estrelas que dá lugar ao pesadelo de ser perseguido pelo duplo), ajuda-nos a significar algo que apenas intuímos durante o jogo. Existe um claro objetivo de criar um artefacto que faça sentido, que seja coeso, e não se tem receio de jogar fora dias inteiros de trabalho para que o artefacto funcione. Isto só é possível num jogo indie, num jogo de autor, em que se procura dar vida à visão desse autor e não justificar os meios investidos (Nesta comunicação, um ano antes do jogo sair os Lados B ainda não tinham sido definidos, mas aqui percebemos indiretamente como acabariam por surgir).

Cada área do jogo é todo um quadro narrativo que Thornson procura trabalhar como uma melodia, com as suas variações de ritmo, assim como príncipio, meio e fim.

Podemos ver as alterações introduzidas no level design pelo playtesting continuado e presencial.

Não menos importante, embora quase arriscasse, dada a minha preocupação com o UX, a dizer que foi o mais importante, temos o playtesting. É fascinante ouvir Thornson falar das sessões de teste do jogo, como o faz de forma totalmente aberta e descomplexada, como assume a evolução e progressão do design na relação com a comunidade que o foi testando. Fica-me a sua descrição do que considera ser o melhor modo de testar o jogo: “O meu modo favorito de playtest é ter as pessoas no sofá a jogar juntas, e que podem até estar a trocar os comandos, e vão conversando umas com as outras sobre o jogo, e aí conseguimos perceber melhor os seus modelos mentais, ver as rodas dentadas moverem-se nas suas cabeças”.

Por fim, “Celeste” apresenta um design brilhante, na união de jogo e narrativa, mas não podia ser o artefacto que é sem a banda sonora de Lena Reine, nem a arte visual de Amora Bettany e Pedro Medeiros. “Celeste” venceu o prémio de áudio no IGF 2018, por outro lado, o seu imaginário visual está de tal modo conseguido que o simples vislumbre de uma imagem ou excerto do jogo, consegue automaticamente ligar-nos ao jogo, tal a força da identidade visual criada.

julho 23, 2018

5 anos depois

Voltei a "The Last of Us" (2013), rejoguei o jogo completo, algo que há anos e anos não acontecia, e tenho de dizer que a experiência foi tão, ou mais, intensa que a de há 5 anos. Reli agora o que escrevi na altura e nada se alterou, nem tão pouco o jogo foi ultrapassado por qualquer outro. Entre as duas experiências li "A Estrada" (2007) de Cormac McCarthy, uma das principais influências de "The Last of Us" (TLOUS) e tenho de dizer que Neil Druckmann ombreia com McCarthy, bastante mais do que a adaptação cinematográfica homónima de John Hillcoat, mesmo não lhe sendo tão fiel.


Não vou realizar qualquer análise ao jogo porque como já disse, o que escrevi há 5 anos mantém-se tudo, mas quero aproveitar estas linhas para enfatizar algo que nessa altura louvei mas julgo não ter sentido tanto como desta vez, falo dos personagens. Os personagens são a essência da literatura, ela melhor do que qualquer outra arte consegue dar-nos a conhecer quem se nos apresenta, porque nos permite entrar nas suas mentes e escrutinar o que pensam em cada momento. Contudo, como sabemos do cinema, é possível chegar a muito disso pelo que estes decidem fazer em cada momento, e os videojogos não são exceção. Sendo o videojogo muito mais extenso que o filme, passamos muito mais tempo na sua companhia, temos mais oportunidades para ir conhecendo aqueles com quem seguimos na narrativa. E TLOUS aproveita bem as mais de 20 horas que o jogo requer da nossa atenção, criando situações, atividades e escolhas que se vão desenrolando num modo imensamente rico no que toca a expressividade dos personagens. Quando disse acima que Druckmann ombreia com McCarthy era especialmente por esta riqueza narrativa, de situações que nos permitem entrar de forma tão profunda no sentir dos seus personagens.

O personagem principal Joel não é nenhum santo, apesar de começar como um simples pai de classe média americana, com um conjunto de valores iguais a tantos outros, o confronto com o apocalipse transforma-o completamente, algo a que assistimos logo ao abrir do jogo, e o resto do jogo acaba sendo toda uma travessia em busca do Eu perdido de Joel, o que abre espaço constante para a luta moral interior, entre os resquícios da bondade de outro tempo e a violência própria do novo tempo. Diga-se que TLOUS é bastante violento, não sendo mais que "A Estrada", mas por ser mais longo, faz-nos sentir mais vezes essa violência. Por várias vezes questionei-me que não era precisa, e que estaria a ser gratuita, mas saindo da redoma da minha segurança sei que não, tal com McCarthy também sabia.

Este desfiar moral sobre a identidade de Joel está presente até ao fim e é mesmo a chave para explicar o final narrativo mais surpreendente de sempre dos videojogos. As opções apresentadas são: salvar a humanidade ou salvar uma adolescente com quem se desenvolveu uma relação de pai e filha. A decisão é um dilema filosófico sobre o sentido utilitarista da vida, em que nós como jogadores não participamos, mas que define por completo a jornada encetada com Joel, servindo de chave para compreender de onde se parte e onde se chega. Nós não somos Joel, mas Joel pode ser todos nós. Druckmann obriga-nos a refletir sobre algo que McCarthy acaba, em parte, descartando, as relações humanas. No fundo, só investimos tanto na nossa sobrevivência por causa dos outros como nós.



Veremos o que "The Last of Us II" tem para nos oferecer.

janeiro 21, 2018

Dishonored 2 (2016)

O principal atributo do primeiro "Dishonored" (2012) assentava no game design, nomeadamente o impacto do level design na emergência narrativa (ler análise). Nesse campo “Dishonored 2” mantém a elegância do primeiro, aprimorando e refinando toda a abordagem. Em termos menos bons, temos a história, pouco instigadora, desfocada, incapaz de nos agarrar. De modo que não subsiste muito para dizer, além do que já foi dito sobre o primeiro, a não ser que é bom, com um design por vezes brilhante, mas incapaz de superar o primeiro pela ausência de uma boa história.



O problema da história começa desde logo pelo universo, algo exótico, criado para o primeiro jogo, uma espécie de steampunk com espadas, com o qual já na altura tive alguma dificuldade em me conectar. Ainda assim, no primeiro, tínhamos alguns valores universais em jogo no campo das relações entre os personagens, que puxavam facilmente pela nossa empatia. Neste segundo volume o universo mantém-se, mas falta essa teia entre os personagens, que acaba por contribuir para a fragilização dos mesmos, demonstrando uma falta de volição dos mesmos, que contribui para uma história menos eficaz.



Se no primeiro volume, dada a inovação do modelo de jogo, a história podia até dar-se ao luxo de não ser tão trabalhada, neste segundo volume, isso não era opção. Como falámos ainda esta semana, a propósito de "Wolfenstein II: The New Colossus" (2017), a história faz toda a diferença quando o gameplay é aquele que já conhecemos. Ainda que gostemos dessa jogabilidade, se não houver uma motivação que atribua significado ao que estamos a fazer, o engajamento dificilmente acontece.

O melhor mantém-se então no campo da jogabilidade, do que se pode fazer, mas essencialmente nas escolhas sobre o como se pode fazer. Cada jogador determina em cada momento o modo de jogo — stealth, combate, com ou sem poderes, etc. — por meio das suas ações, não existem seleções, não existem alterações de fundo, são as ações do jogador que determinam o que acontece no jogo, dada a sua capacidade emergente. Destaco dois níveis como os mais impressionantes nesse campo, e valem por todo o jogo: um castelo em que as salas se movem em 360º, modificando completamente a jogabilidade a cada passo; e um mais perto do final, em que viajamos no tempo, alterando coisas no presente e passado, que afetam o desenrolar do jogo.

Através da ferramenta Transition in Time, temos acesso ao Fold Timepiece, que nos permite ver simultaneamente o passado e presente, por meio de uma janelinha, abrindo um poderoso espaço à inovação do game design.

Diga-se que os quebra-cabeças criados nos vários níveis nos dão a volta à mente, e por isso não admira que tenha demorado tanto tempo a terminar este jogo. É para ser ir jogando e admirando. E se o universo escolhido não é o meu preferido, nem por isso posso deixar de elogiar o belíssimo trabalho de direcção de arte que nos vai enchendo os olhos ao longo de toda a experiência.

janeiro 18, 2018

Wolfenstein II: The New Colossus (2017)

Não joguei o primeiro, essencialmente porque os FPS não são o meu tipo de jogo, mas de tanto ouvir falar da narrativa deste segundo, acabei por o comprar e jogar. Valeu a pena, apesar da montanha-russa de tiros e sangue, entre cada uma das sessões de shooting é-nos oferecido um filme, que ainda que cortado às postas, apresenta enorme peculiaridade, nomeadamente extravagância e excentricidade, valendo toda a experiência. Mas fica a nota, este é mesmo um jogo para M18, a loucura é pouco sã!


No campo do FPS, não sendo grande jogador tenho de dizer que senti enorme fluidez na ação, o level design é muito bom, a ponto de mesmo em grande velocidade praticamente nunca me perder nos ambientes, conseguir seguir os caminhos esperados, sem ter de estar sempre a recorrer a mapas. Por outro lado, não gostei do mapa providenciado, é pouco claro e ajuda pouco, não fosse o design extremamente intuitivo dos níveis e poderia ter-se estragado uma boa parte da experiência. No geral, temos cerca de uma dezena de níveis com boa diversidade, incluindo missões em submarinos, barcos, esgotos, ao ar livre, em prédios abandonados, incluindo mesmo uma passagem pelo planeta Vénus!




Relativamente a ações de jogo, é um FPS, por isso sobra muito pouco para além dos tiros. Ainda assim existe alguma progressão nas armas disponibilizadas, e nos movimentos que podemos executar (com as chamadas “contraptions”), o que eleva o interesse na jogabilidade. Aliás, não posso deixar de enaltecer o primeiro nível pelo facto de jogarmos numa cadeira de rodas, algo que já foi um meme no passado, apontando o dedo à falta de diversidade dos videojogos. A 2/3 é-nos dada a possibilidade de conduzir um enorme cão robótico, o Panzerhund, que lança fogo e a diversão é total pela quase invencibilidade que se nos oferece, ainda que seja uma experiência curta. No campo das armas é possível fazer upgrades, mas o controlo dado ao utilizador neste campo é muito reduzido. Aliás, toda a lógica de RPG parece surgir nas interfaces do menu, contudo fica-se pela amostragem da progressão, não permitindo ao jogador desenvolver esse campo.

Mas se “Wolfenstein II” é recomendado, é-o pela história e sua representação. Estamos nos anos 1960, nuns EUA alternativos, dominados pelo regime Nazi, somos colocados na pele de um soldado americano, William Blazkowicz, com um background rico em emocionalidade familiar, e somos lançados aos lobos para salvar o país, para fazer a revolução e libertar os EUA. A linha condutora é simples, mas começa desde cedo a mostrar que tem muito mais para dar, desde logo quando somos atirados por meio de flashbacks para o passado de Blazkowicz, mas são imensos os detalhes ao longo de todo o jogo que nos vão agarrando e mostrando que estamos perante um jogo distinto. Temos um Hitler representado de um modo asqueroso nunca antes visto, temos mulheres negras líderes, temos grávidas em luta taco a taco com homens, viagens no espaço, temos Frankenstein, temos sangue, muito sangue, mas temos essencialmente muita diversão, muito humor negro, tudo isto misturado com muito, e bom, heavy-metal.

Posso dizer que fiquei imensamente contente com o jogo porque aponta o dedo, com uma força terrível a John Carmack, e à sua visão do valor da história para os videojogos, refletida na célebre afirmação — “Story in a game is like a story in a porn movie. It's expected to be there, but it's not that important.” — a propósito de “Doom” (1993). No caso de “Wolfenstein II”, não é apenas importante, é o mais relevante do jogo, é aquilo que nos faz atravessar nível atrás de nível. O humor negro não me permite criar uma grande relação com os personagens, ainda assim sente-se, com o passar do tempo, que vamos conhecendo melhor cada um deles, vamos nos habituando aos mesmos, e sentindo a sua “companhia”.

Porque se não existiu grande esforço em desenhar a relação da jogabilidade com as cutscenes — como dizia acima, podemos ver uma espécie de filme, visualmente sumptuoso, entrecortado por "túneis de tiro" — a verdade é que a escrita dos personagens, e as relações entre eles, estão tão bem desenhadas que sentimos o jogo como um todo, e não como mero artefacto que junta jogo e filme. No final do último nível, sentimos vontade de voltar ao mundo de “Wolfenstein II”, de encarnar novamente Blazkowicz e ir atrás dos restantes “Uber commanders”, se bem que os acordes de “We're Not Gonna Take It” dos Twisted Sister, aqui num cover dos Veilröth, ajudam a sentir todo esse ânimo.

janeiro 06, 2018

Entrevista com o criador de "Storyseeker" (2017)

"Storyseeker" é um minijogo muito interessante, desde logo porque coloca em evidência a principal relação existente entre os jogos e as narrativas. Uma narrativa é sempre um jogo, no sentido em que move as crenças do recetor para a busca de evidências que comprovem as suas teses sobre o mundo ficcional. Ao longo de um filme ou livro, passamos todo o tempo a lançar hipóteses sobre o que vai acontecer a seguir, de modo que a narrativa se dedica a gerir as nossas expectativas e tensão por encontrar as respostas. O jogo funciona num modo parecido, só que em vez de facilitar o acesso às respostas, coloca-nos obstáculos para aceder às mesmas.




Neste pequeno jogo, Miles Äijälä apresenta tudo isto num modo muito simples, tornando evidentes estas caracterizações de jogo e história. "Storyseeker" não é mais do que um grande mapa, no qual foram distribuídos elementos, peças de um puzzle maior, que é uma história. Deste modo, jogamos, ao tentar ir a todo mapa, e ao tentar juntar os elementos, formando o puzzle, e entretemo-nos com a história que vamos apreendendo à medida que vamos montando puzzle mentalmente. Sim, não difere daquilo que hoje conhecemos como walking simulators, mas o facto de o assumir em título, torna-o interessante, nomeadamente do ponto de vista do metajogo.


Falei com o Miles, que é um artista visual de videojogos, a arte visual de "Storyseeker" assim o demonstra, e questionei-o sobre os objetivos e conceitos por detrás da criação do jogo. Talvez não seja má ideia experienciarem primeiro o jogo, está online e é gratuito (Windows, Mac e Linux), e lerem a entrevista depois.


1 - How did you get to the idea?
R - Originally Storyseeker was supposed to be a quick two week experiment to create a minimalistically simple game. (The scale of it kinda got out of hand over the following 6 months…) The core of it stayed true to the original idea, though: a game where the only mechanic is walking around, and the only thing to do is exploration.
I’m a big fan of non-combat games, and as a dev, focusing on a single idea made the game quicker to make in that original 2 week plan. As I kept making more and more art assets, I started asking questions about the random things I drew and coming up with little stories of where they came from. That’s how it expanded—in order to have a cool footprint in the desert, I had to draw a giant statue who laid that footprint, and then the place where it came from, and so on and so on. Pretty soon I realised that this is what the game really is about, following the stories of where all these creatures and land formations come from or go to.

2 - How do you see the interrelation between games and stories?
R: I see games as an excellent storytelling medium. I mostly play narrative-driven games, but I think there’s stories pouring out of every type of game. Completing a level is a story of success, dying against impossible odds is a tragedy… Good games notice this and play up that story through their presentation and mechanics. 
In terms of the narrative-driven games, as it’s been stated by many sources, their unique strenght is how players can experience stories themselves, instead of just reading about it or watching it happen. I think this quality makes them especially suited to tell stories of places and events, as opposed to the more classical narratives about characters that we’re used to in traditional media. 
One of my favourite unique possibilities of storytelling in games is emergent narrative: stories that stem from what the player does. While the player has very little control over Storyseeker, I still wanted to emulate that in the sense that it’s on the player tell to themselves the history of the world. What is the connecting narrative between the little bits and bobs they witness? Most players end up with differing backstories, depending on what they’ve seen and in which order. 
That kind of player creativity is interesting to me.

3 - The puzzle of stories is interesting, but had you think about any possible obstacles or objectives for the player, to push forward the gaming feeling?
R: For Storyseeker, I very much wanted non-gamified experience. What I hoped to see was how far a player’s curiosity would take them, with no external push. (I must say I’m quite pleased with the results; human curiosity is a force to behold.) 
One of my early playtesters mentioned how Storyseeker didn’t feel like a game, and suggested adding collectibles of some sort. That’s when I realised I didn’t particularly want it to feel like a game. It’s more of a weird exploratory experience. The only reward system is very natural: by climbing a mountain, you get to see what’s on top, and by following a trail you get to see who left it. 
While my notions for what’s interesting might differ drastically from what the majority of gamers find interesting, in a zero-budget indie game I felt free to follow my vision. (Although I did end up developing those symbol rocks for some sense of progression and an unlockable secret zone.) 
In terms of obstacles, there are some stuff that could’ve been interesting that didn’t make it into the final game. Originally, the player wasn’t able to walk on water—instead, they’d have to find a boat to access the ocean. My poor attempt at coding it was a terrible mess, so it got scrapped. 
I also would’ve liked to do more with natural barriers like mountain ranges restricting entry to certain places; but playtesting proved that with the flat art style it’s hard to tell where you can and can’t walk, and also backtracking long distances is the worst. So in the end, the world is very open, and the danger of not following roads isn’t finding some blocking wall but getting lost. 
Luckily, getting wonderfully lost is exactly what Storyseeker is about.

dezembro 31, 2017

Jogos de 2017

Foi dos anos, recentes, em que joguei menos, e ao contrário do que dizia o Rui Craveirinha no IGN, não fiquei com a ideia que tivessem saído muitos jogos, talvez por ter andado menos atento. Senti que foram sempre saindo jogos, mas não propriamente jogos que nos marcassem. Desde logo a grande desilusão de “Mass Effect: Andromeda” na primeira metade de 2017 não ajudou, mas serviu pelo menos para mostrar que nem sempre usar uma série de sucesso é garantia de investimento seguro, tanto para as empresas como para nós. Daí que este ano me limite a fazer uma lista dos 5 melhores jogos que joguei.


Os melhores jogos que joguei em 2017
1 - Horizon: Zero Dawn
2 - What Remains of Edith Finch
3 - Gorogoa
4 - Bury me, My Love
5 - NieR Automata 
(análise mais tarde)

Joguei outros jogos que marcaram este ano de 2017, uns melhor outros pior, sendo que alguns deles surgem mesmo destacados em listas e prémios, não sendo o meu caso.
- Mass Effect: Andromeda
- Assassin’s Creed: Origins
(análise mais tarde)
- Super Mario Odyssey
- The Legend of Zelda: Breath of the Wild
- Persona 5 
- Little Nightmares 
- Storyseeker (análise e entrevista no início de Janeiro)
- Far From Noise

Por fim, deixo os jogos de 2017 que ainda quero jogar, embora não alimente esperanças excessivas pela investigação que fui fazendo à volta dos mesmos, e por isso também não captaram suficientemente o meu interesse para os jogar quando saíram.
- Hellblade: Senua’s Sacrifice
- Observer
- Get Even
- Late Shift
(talvez não seja aqui o lugar apropriado, ou talvez sim)
- Middle-earth: Shadow of War
- Tacoma
- Rime
- Wolfenstein II: The New Colossus
- Last Day of June 

dezembro 28, 2017

Far From Noise (2017)

Quando o tema se aprofunda e enreda em questionamentos sobre o ser, a interatividade reduz-se, porque mais do que conduzir à ação, interessa provocar a reflexão. "Far From Noise" (2017) de George Batchelor é um desses artefacto interativos, que tem como intuito introduzir-nos nas discussões do Transcendentalismo, corrente filosófica promovida Ralph Waldo Emerson e defendida por Henry David Thoreau numa das suas mais emblemáticas obras, "Walden" (1854), de que não gostei particularmente. Somos introduzidos num único cenário que se vai alterando em pequenas variações, restando-nos conversar com os elementos que vão surgindo em nosso redor.


Podia ser uma banda desenhada interativa, mas o facto de estar centrado num plano único retira-lhe o necessário efeito de sequencialidade, ao que se junta a apresentação de um jogo de frases que condicionam o desenrolar dos eventos. Pensando na ficção interativa, o facto de termos variabilidade visual suportada por vários parâmetros — "Colour grade & tint; Sky gradient colours; Light rotation, intensity and shadow strength; Vignette intensity; Sea, Stars and Sun animation" — retira também qualquer sentido a essa classificação. Julgo ser melhor pensar antes que estamos perante um videojogo que opta por reduzir o nível de interatividade, pelas razões já apontadas acima. Para muitos não é aquilo que convencionaram no seu modelo mental como videojogo, mas isso não faz do artefacto algo menor, antes pelo contrário.

O resultado é uma obra sóbria, que apesar de imensamente simples não perde nada na sua capacidade de nos engajar, de nos manter interessados e atentos ao desenrolar dos eventos, sentido gratificação sempre que o cenário se modifica, seguindo a discussão e questionando o que está a ser experienciado.



Pode ser jogado na PS4, PC ou Mobile. Precisam apenas de 2 horas, mas de preferência façam-no pela noite dentro, "longe do ruído" do dia, dos outros, de tudo, para poderem sentir a experiência completa.

dezembro 23, 2017

Gorogoa (2017)

“Gorogoa” de Jason Roberts é o videojogo sensação deste final de 2017, apanhando muita da crítica de surpresa, apesar de estar em desenvolvimento desde 2012, tendo mesmo ganho vários prémios antes mesmo de ser lançado — Visual Art no Indiecade 2012, Visual Art no IGF 2014, e já este ano nomeado na lista de melhores da E3 2017. Se a arte visual tem sido o elemento mais laureado, aquilo que eleva o seu  design para o nível de arte, é o desenho de jogo inovador que acaba por ser o principal responsável por nos fazer fazer submergir totalmente no universo representado.

"Gorogoa" (2017). Criado e ilustrado por Jason Roberts

O primeiro impacto é forte, parecendo não existirem quaisquer referências possíveis, contudo elas existem. A minha primeira associação surgiu pelo lado da banda desenhada, em especial a sua variante ainda pouco desenvolvida, dos interactive motion comics (ver por exemplo: "The Art of Pho" (2012) "The Random Adventures of Brandon Generator" (2012); “CIA: Operation Ajax” (2014)). Mas percorrendo as relações entre os videojogos e a BD podemos encontrar outros casos de interesse, surgindo à cabeça um caso de relevo, “Framed” (2014). Se dúvidas restassem quanto a estas referências, atente-se nas próprias palavras de Jason Roberts:
"The idea began long ago as an idea for an interactive comic whose panels could be moved around and interact with each other to effect the story. I abandoned some of the complexities of that idea for something that would be a little bit freer of strict narrative structure and a bit more abstract, which allowed different parts and layers of the game's world to dissolve together more easily. The design was also inspired by card games in a roundabout way, especially the idea of playing a card game that is simultaneously a magic trick." Jason Roberts em entrevista à Eurogamer, 11/10/2012
Este comentário de Roberts é particularmente relevante para se compreender a natureza de “Gorogoa” tanto no seu design quanto na sua narrativa. Não é fácil chegar à compreensão daquilo que o jogo está a tentar dizer por esse abandono da estrutura narrativa que Roberts refere, claramente em nome do impacto sensorial produzido pelo efeito das imagens dentro de imagens, seguindo, penso eu, o modo como os nossos pensamentos se vão formando, numa lógica de descasque de cebola. Por outro lado, a história escolhida é particularmente pessoal, como se pode ver nos dois comentários de Roberts abaixo, que recorrendo à fantasia do seu próprio imaginário e sem a devida contextualização, nos deixa completamente à deriva.
"The title is a word I invented when I was a kid for an imaginary creature, and since the game contains no language I wanted a title that is not a word in any language (or not meant to be) (..)  [it's about] "a boy seeking an encounter with a possibly divine monster." Jason Roberts em entrevista à Eurogamer, 11/10/2012
"There's the notion that the first thing you make—like if you make a book at 26, you've spent 26 years making that book in a way" Jason Roberts em entrevista Kotaku 11/14/12
Pode-se argumentar que o engenho inventivo no campo do design, pela sua necessidade de recriar a forma, é pouco dado à obediência à forma narrativa, o que não é completamente falso, contudo não faltam exemplos de inventividade capazes de dar resposta às necessidades do contar de histórias. Aliás, como disse acima, parece-me que o problema de comunicação do universo se prende mais com o facto do autor ter recorrido a um mundo fechado de sentidos, não tendo realizado o devido esforço para o dar a conhecer.

Neste mesmo sentido é inevitável convocar para esta conversa uma das bandas desenhadas mais inovadoras que li nos últimos anos, “Here” (2014) de Richard McGuire, não apenas pela inovação mas por apresentar claras proximidades com o trabalho criado por Roberts. “Here” é provavelmente a obra mais impactante criada por recurso à técnica de imagem dentro de imagem, recorrendo a uma lógica temporal para gerir o puzzle da representação que se vai desfilando na nossa frente. Não é neste caso também fácil chegar à história, contudo o foco de abstração escolhido por McGuire, por ser muito mais universal, facilita o nosso acesso, tornando a experiência imensamente compensadora. “Gorogoa” não usa o tempo mas em sua vez usa a interatividade que acaba por exponenciar a representação em puzzle e elevar a imersão do jogador.

Here” (2014) de Richard McGuire

O factor exponencial do puzzle é real, se em “Here” vamos sentindo a exigência de manter na mente as várias datas e alterações de cenário ao longo do virar de páginas, em “Gorogoa” tudo se complica ainda mais já que não podemos avançar sem fechar cada puzzle. No fundo falamos da essência que separa o videojogo do livro, ou seja, só podemos aceder aos passos seguintes se conseguirmos compreender o que a obra nos pede, não que faça muito sentido avançar num livro sem compreender o que se vê ou lê, mas nada impede o leitor de tentar avançar para ver se com mais informação consegue compreender o que antes não conseguiu.


Neste sentido “Gorogoa” é bastante exigente, não é que os puzzles sejam muito difíceis, a complexidade advém mais pelo uso da técnica da imagem dentro de imagem, que Roberts acaba por trabalhar em múltiplas camadas, obrigando o jogador a trabalhar também mentalmente com múltiplas imagens em simultâneo. Naturalmente, se conseguimos reter um máximo de 5 a 7 elementos na memória de curto prazo, sempre que nos pedem que a usemos em toda a sua dimensão, acabamos por sentir o esforço drenar-nos interiormente. Por outro lado, esta exigência de atenção, obriga-nos a um nível tão elevado de focagem, que se torna impossível pensar em algo mais para além de “Gorogoa” enquanto jogamos, o que produz uma imersão total.


"Gorogoa" pode ser jogado na Switch, Android e iOs.