As distopias nunca estiveram tanto na moda, na última década tivemos para todos os gostos, desde o erudito “A Estrada” (2006) de Cormac McCarthy às várias séries juvenis “Os Jogos da Fome” (2008) de Suzanne Collins, “Maze Runner” (2009) de James Dashner, “Divergente” (2011) de Veronica Roth, ou ainda “O Silo” (2012) de Hugh Howey, para não falar dos universos zombie, da banda desenhada “The Walking Dead” (2003) e homónima série (2010) ou videojogos “The Last of Us” (2013), não esquecendo o retorno do culto de “Mad Max” (2015). Não sendo de agora, a lista de histórias criadas, independentemente do meio, principalmente ao longo do último século é deveras impressionante. O fim do mundo, o fim da espécie, ou o fim da vida/costumes como a conhecíamos, são tópicos imensamente atrativos para quem se aventura na escrita de histórias a partir do imaginário, científico ou fantasioso, quanto mais não seja por se darem imensamente bem ao questionamento próprio das boas histórias: “e se?” ou “e depois?”
Como confessa Margaret Atwood, muito do trabalho do escritor assenta no “brincar com hipóteses”, e este livro surgiu-lhe a partir de uma hipótese simples, baseada nos credos de grupos religiosos extremistas: “Se o lugar da mulher é em casa, então o quê? se decidirmos forçar isso, o que se segue?”, embora como ela diz nesta mesma entrevista, o objetivo não tenha sido o da defesa do lugar da mulher, mas antes “um estudo sobre o poder, como ele opera e como ele deforma ou modela as pessoas que vivem dentro desse tipo de regime” Atwood (1986).
Deste modo, na distopia de Atwood apesar da mulher surgir no centro, como o género a quem tudo se pede e nada se dá em retorno, na verdade isso só assim é, porque o relato é feito por uma serva, já que ao longo de todo o livro podemos perceber como ninguém, mulher ou homem, está live da imposição totalitária do governo. Os homens são vistos como meros animais, sedentos de sexo, que precisam de ser domesticados a qualquer custo, enquanto as mulheres são vistas como meras ferramentas, garante da manutenção da espécie.
As distopias, enquanto conceitos, são interessantes por funcionarem como modelos que nos permitem reequacionar a civilização, já que por norma surgem a partir da necessidade de dar resposta a problemas concretos que impedem a sociedade de funcionar como antes (ex. vírus, água, clima, gestação). Por outro lado acabamos por verificar que os verdadeiros problemas estão em nós, ou seja, o que dá origem à maior parte dos problemas a que assistimos assenta no balanceamento entre o individual e o coletivo. Somos uma espécie mamífera, como tal só conseguimos sobreviver em grupo, por outro lado somos dotados de consciência de nós, o que nos impele à construção de identidade, e por conseguinte à necessidade de espaço individual. Politicamente, e de forma simplista, isto define-se como esquerda e direita, a esquerda preocupada com o coletivo, e a direita com o indivíduo, mas como diz o ditado, “a virtude está no meio”, o que faz desse meio, ou centro, uma utopia, já que para agradar a uns é preciso desagradar a outros, daí que os extremos acabem por vezes a conseguir angariar seguidores e assim a produzir sociedades distópicas.
No cerne de “A História de uma Serva” temos Offred, a quem tudo foi retirado — mãe, marido, filha, emprego, dinheiro — pedindo-se em seguida que tudo dê à espécie — ofereça o corpo para a gestação de bebés de outras famílias, por forma a garantir a continuidade da espécie, que entretanto se viu ameaçada por alterações na natureza. Percebe-se que Atwood procurou trabalhar a ambivalência dos dois pólos — negativo e positivo —, acabando por criar uma personagem ambígua, com quem que se torna difícil empatizar. Por outro lado, o facto de tudo aquilo que esta perdeu ser concreto, mensurável, e aquilo para que ela trabalha ser de certo modo abstrato, existir ainda apenas em potência, torna-se ainda mais complicado compreender porque não reage ela de forma mais efetiva, porque parece aceitar tudo, mais ainda quando ao contrário de outras distopias é uma personagem de transição, ou seja, que conhece bem a sociedade que precedeu aquelas novas regras.
Do meu lado, e mais em concreto, julgo que o problema não surge tanto dessa ambiguidade, que diga-se é característica dos protagonistas de distopias, que têm de lidar com a enormidade da situação, mas antes pela leveza, ou superficialidade de alguns dos seus sentires, como a preocupação com o creme para as mãos, assim como muitos dos comentários que vai fazendo sobre a esposa ou o comandante, que dão conta de uma personagem ligeira, que parece a tempos ser capaz de passar ao lado daquilo que nos pareceria ser à partida um verdadeiro terramoto psicológico.
Apesar destes problemas com a personagem considero-o um livro relevante, nomeadamente por ser capaz de levantar a discussão em redor dos problemas de género, assim como e à semelhança de outras distopias nos fazer lembrar que o totalitarismo pode estar ao virar da esquina, mas também pelo modelo não-linear que a autora escolheu para nos dar acesso ao passado e presente, que funciona muitíssimo bem na manutenção do nosso interesse. Ainda assim, não o colocaria a par de obras como “1984” ou “Admirável Mundo Novo”, ou pelo menos das recordações que mantenho dessas obras, já que foram lidas em idade bem diferente.
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