abril 26, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume II

À Sombra das Raparigas em Flor” é o segundo volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust. Se no primeiro volume tinha sentido o êxtase e o deleite, posso dizer que neste segundo volume o extâse elevou-se ainda mais durante toda a primeira parte, para depois declinar durante toda a segunda parte. Ou seja, como um todo, continua sendo muito bom, embora menos equilibrado que o primeiro.


Todo o tomo se concentra na descoberta, adolescente, do amor pelo sexo oposto, dedicando-se Proust a dissecar o ruminar que nos assombra em cada nova relação que se enceta. Na primeira parte temos a primeira relação com Gilberte, filha de Swann e Odette, e na segunda parte surge Albertine.

A primeira parte surge com maior intensidade, provavelmente por se tratar da descrição da primeira verdadeira paixão do narrador/Proust, o que lhe permite uma verdadeira escalpelização das emoções, sentimentos e ideias. É delicioso ver Proust a trabalhar as ideias vertidas em texto no sentido de nos dar a entender o que se sente em cada momento, o que cada esgar ou palavra é capaz de estimular dentro de nós, como o nosso cérebro equaciona, se melindra e esconde, ou avança destemidamente para raciocínios não-lógicos, carregados de emoção, toldados pela paixão. Neste sentido toda a primeira parte apresenta um trabalho de enorme profundidade na desconstrução da psicologia humana, do estudo dos processos da consciência, cognição e experiência humanas.
"Se verdadeiramente, como julgámos, nada distinguimos na primeira audição, a segunda, e a terceira, seriam outras tantas primeiras, e não haveria razão para se compreender alguma coisa mais à décima. Provavelmente o que falta, da primeira vez, não é a compreensão, mas a memória. Porque a nossa, relativamente à complexidade das impressões que tem de enfrentar enquanto escutamos, é ínfima, tão breve como a memória de um homem que, enquanto dorme pensa em mil coisas que imediatamente esquece, ou de um homem meio caído na infância que não se recorda no minuto seguinte do que acabaram de lhe dizer. A memória não é capaz de nos fornecer de imediato a recordação destas impressões múltiplas. Mas tal recordação forma-se nela a pouco e pouco, e relativamente às obras que ouvimos duas ou três vezes somos como o estudante que releu várias vezes antes de adormecer uma lição que julgava não saber e que a recita de cor na manhã seguinte.” (trad. Pedro Tamen, p. 107)
Já na segunda parte entra-se num registo mais leve, com o narrador a partir para uma estância balnear (Balbec), deixando para trás Gilberte, para desse novo cenário ver surgir o seu segundo amor, Albertine. Nesta segunda parte vão entrar alguns novos personagens, nomeadamente o pintor Elstir que me decepcionou um pouco. Esperava mais da relação, que as descrições do espaço assumissem um patamar mais visual, mas isso não acontece. Talvez porque estamos aqui demasiado focados sobre as raparigas de Balbec, quem verdadeiramente atrai o jovem. Em termos visuais, o primeiro volume consegue ter partes mais ricas que aquelas que aqui vão decorrer a partir das conversas sobre várias telas.

Balbec, nome dado por Proust à praia de Cabourg, aqui representada numa obra de René-Xavier Prinet "La plage de Cabourg"

E agora, resta-me avançar para o terceiro volume. Fica a ligação para as minhas impressões do Volume I.

[Marcel Proust, (1919), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume II - À Sombra das Raparigas em Flor”, Relógio D'Água, ISBN 9789727087365, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 542]

Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

abril 25, 2015

“The Walk” (2015), simples e belo

The Walk” (2015) é uma curta de animação com um trabalho de ilustração verdadeiramente adorável. Uma simples caminhada, sem propriamente um objectivo, embora se nos apresente por fim, é o motivo para encenar, durante pouco mais de um minuto e meio, todo um enorme esplendor visual e alimentar assim a nossa imaginação.




Falando da componente estética, temos paletes de cores diversas mas imensamente coerentes, fazendo uso de uma luz que irradia sobre toda a superfície e lhes confere vivacidade. Por outro lado o traço é todo ele bastante geométrico, desprovido de alguma vida, fechado sobre a monotonia do que nos quer ser contado. Contudo é deste confronto que surge a singularidade deste trabalho, atribuindo-lhe um carácter único que se imprime sobre nós e assim nos impressiona.

"The Walk" (2015)

A animação foi criada pelo pequeno estúdio Art&Graft.

abril 17, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume I

Êxtase e deleite, são os adjetivos que me ocorrem ao terminar de ler “Do Lado de Swann”, o primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust, publicado em 1913. Contudo estas sensações não se deram facilmente. Este primeiro volume acompanha-me há mais de dez anos, comprei-o no ano de lançamento da tradução portuguesa de Pedro Tamen, em 2003, influenciado por todo o burburinho de imprensa. Desde então tentei lê-lo várias vezes mas nunca passava da página 50. Em 2013 pela comemoração do centenário do lançamento do primeiro volume voltei a pegar-lhe como atesta o meu Goodreads mas nada. As impressões de cada uma dessas tentativas falhadas, invariavelmente reportavam enfado e sonolência. Proust descrevia tudo tão minuciosamente, aborrecia porque ausente de conflito e desse modo de enredo, tornando um suplício a sua leitura. E no entanto desta vez, ao chegar à página 150 um clique ocorreu dentro de mim, sim em mim porque na escrita nada se alterava até esse momento. A partir desse momento a minha leitura e a escrita de Proust entravam em sintonia, o ritmo que até aqui era lento e sonolento passava a sentir-se como sereno e tranquilo. A minuciosidade era agora assimilada com ritmo compreendendo musicalidade, impressionava a cada novo parágrafo, criando ânsia pelo parágrafo seguinte, pela página seguinte, por continuar a ler deleitando-me a cada novo instante.


Não quero entrar em muito detalhe sobre o texto já que este é apenas o primeiro volume de sete, 450 páginas de 3200, mas farei o possível por ir escrevendo impressões, ainda que breves, sobre cada um dos volumes que for lendo. Se conseguir, no final procurarei então escrever sobre os temas e a obra como um todo.

Deste modo, e falando apenas deste primeiro volume, devo dizer que após o primeiro dia de reflexão sobre o que li, discerni três abordagens, ou três dimensões, distintas de acesso à obra, cada uma origem de diferentes formas de prazer, o que dá conta do potencial estético do texto. Antes de as descrever, dizer que apesar de ser uma obra seriada, este primeiro volume apresenta um claro arco, com um fechamento que sabendo nós que não o é, se sente, porque o livro como que realiza um círculo, voltando ao ponto de partida, embora mais tarde no tempo. Proust liga as pontas, conecta os personagens, e provavelmente prepara o terreno para os próximos volumes. Indo agora às dimensões de que falava, temos:


1 - As histórias de amor
Este é, para mim, o nível menos relevante mas é o nível no qual o texto assume um carácter mais standard, seguindo a lógica realista de crítica de costumes, encaixando nas tradições do romance do século XIX, início de XX. Ele está mais presente no miolo do livro, ou seja na segunda parte do primeiro capítulo (“Combray”) e em todo o segundo capítulo (“Um amor de Swann”). É uma componente do texto em que o enredo assume domínio sobre a forma escrita, em que somos levados pelos relatos de acontecimentos, em que o conflito surge, seguimos atrás de um homem que se esvai em ciúme. O melhor desta parte acaba sendo a minuciosidade como Proust descreve esse ciúme, o detalhe que nos faz recordar momentos das nossas vidas, questões que nos colocámos a nós próprios em situações semelhantes.
“Talvez não soubesse o quanto ele fora sincero durante a briga, ao dizer-lhe que não lhe mandaria dinheiro e procuraria fazer-lhe todo o mal possível. Talvez tampouco soubesse da sua sinceridade, se não com ela, pelo menos consigo mesmo, em outros casos em que, em prol do futuro da sua ligação, para mostrar a Odette que era capaz de passar sem ela, havendo sempre possibilidade de um rompimento, resolvia Swann passar algum tempo sem visitá-la.” (tradução de Mario Quintana)

2 - A análise estética do real e social
Este é um ponto muito rico, embora de mais difícil acesso para a generalidade dos leitores, já que diz respeito ao modo como Proust usando toda a sua sensibilidade estética, construída durante os anos em que dedicou textos à análise de várias obras de arte, se dedica a desconstruir a realidade, usando metáforas a partir de uma tríade de artes – literatura, pintura e música. Esta desconstrução acontece com maior força na primeira e última partes do livro. Em que Proust assume a primeira-pessoa, e nos fala diretamente, ainda que pela voz de um personagem por si criado. É neste registo que surge, logo no início do livro, o famoso episódio da Madalena, que não irei citar agora, e toda a discussão sobre o poder das "memórias involuntárias", sobre o que espero falar no final.

Quando Proust entra neste registo é como se o texto assumisse o lugar de pincel ou batuta, e sentimos o mundo escrito como borrões de tinta, ou rasgos de notas. As suas descrições dos campos de Combray são tão esteticamente detalhadas que não apenas nos sentimos transportados para o espaço, mas para um espaço especial criado pela sua capacidade oratória que plastifica e embeleza toda aquela realidade.
“O meu maior desejo era ver uma tempestade no mar, não tanto como um belo espetáculo, mas como a revelação de um instante da verdadeira vida da natureza; ou antes, para mim só eram belos os espetáculos que eu sabia não terem sido artificialmente arranjados para me agradar, mas que eram necessários e imutáveis — a beleza das paisagens ou das grandes obras de arte. Apenas tinha curiosidade e avidez daquilo que julgava mais verdadeiro que o meu próprio ser, aquilo que tinha para mim o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou graça da natureza, tal qual se manifesta quando entregue a si mesma sem intervenção humana. Assim como o lindo som de uma voz, isoladamente reproduzido pelo fonógrafo, não nos consolaria da perda de nossa mãe, uma tempestade mecanicamente imitada me deixaria tão indiferente como as fontes luminosas da Exposição.” (tradução de Mario Quintana)
“Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com essa justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorraçado. ” (tradução de Mario Quintana)

3 - A forma da escrita
Por fim a forma da escrita, cerne da estética da obra Proustiana, está presente em todo a extensão do livro, por vezes de forma mais leve, outras assumindo um pendor pesado, como que a dizer: “olha para mim, olha para cada palavra escolhida, olha para as frases que se entrelaçam sem fim, os torvelinhos de ideias tecidas em mim e sobre mim através do que prendo os teus olhos, cerco a tua mente, e carrego sobre o teu coração”. Não admira que Proust tenha demorado anos a concretizar a obra, e tenha deixado dezenas e dezenas de cadernos de notas sobre a construção da mesma, já que o que aqui vemos, apesar de poder brotar da sua competência literária, é também fruto de um trabalho de grande minúcia artesanal, uma atenção obsessiva com o detalhe.
“Mesmo quando não pensava na pequena frase [da sonata de Vinteul], ela existia latente em seu espírito, da mesma forma que algumas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e realça o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez se extingam, se voltarmos ao nada. Mas, enquanto vivermos, e tal como acontece no tocante a qualquer objeto real, não podemos fazer como se as não tivéssemos conhecido, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que se acende diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança das trevas.” (tradução de Mario Quintana) 

Não quero terminar sem deixar de citar as palavras de Woolf enquanto lia este primeiro volume da obra de Proust, que agora depois de o ter lido, e sentido, percebo completamente:
“Proust so titillates my own desire for expression that I can hardly set out the sentence. Oh if I could write like that! I cry. And at the moment such is the astonishing vibration and saturation and intensification that he procures — there’s something sexual in it — that I feel I can write like that, and seize my pen and then I can’t write like that. Scarcely anyone so stimulates the nerves of language in me: it becomes an obsession. But I must return to Swann.”

“My great adventure is really Proust. Well what remains to be written after that? I’m only in the first volume, and there are, I suppose, faults to be found, but I am in a state of amazement; as if a miracle were being done before my eyes. How, at last, has someone solidified what has always escaped and made it too into this beautiful and perfectly enduring substance? One has to put the book down and gasp. The pleasure becomes physical like sun and wine and grapes and perfect serenity and intense vitality combined.”
Virginia Woolf

Edição lida: Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido - Volume I - Do Lado de Swann”, Relógio D'Água, ISBN 9789727087303, trad. Pedro Tamen, 2003, p. 450

Nota sobre os excertos: uso a tradução de Mario Quintana para os excertos porque não tenho acesso ao texto em digital da tradução lida. Espero falar sobre as traduções no final, mas das várias que tive oportunidade de folhear, e comparar com o original, as duas melhores são sem dúvida a de Quintana e Tamen.


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

abril 09, 2015

“Way to Go”, uma viagem interativa sensorial

Mas que experiência mais deliciosamente interativa acabei de experienciar com a obra interativa “Way to Go” (2015). Criada pelo estúdio AATOAA, produzida pelo National Film Board of Canada e co-produzida pela France Televisions, “Way to Go” é o mais recente trabalho interativo da equipa que já nos tinha dado o genial “Bla Bla” (2011). O multi-premiado realizador Vincent Morisset tem-se afirmado como grande defensor da arte interativa, sendo mesmo um dos assinantes do Digital Storytelling Manifesto, mas nem por isso deixa de desenvolver trabalho não-interactivo como são os casos dos documentários para os Sigur Ros e Arcade Fire, o que demonstra que o seu interesse está centrado na expressividade e não na mera exploração tecnológica.




Way to Go” é um trabalho de enorme qualidade artística, nomeadamente pelo seu carácter único conseguido nos domínios visual, sonoro e expressivo. "Way to go" foi criado a partir da captura de vídeo a 360º que é depois animado e mesclado com personagens 2d e 3d, a que se justapõe uma interatividade minimal baseada no mero ato de caminhar (com variações de correr, saltar e voar) no espaço. O cenário base é uma floresta que se vai transformando por via de filtros visuais, dando por vezes lugar a espaços abertos ou montanhosos. Os personagens apesar de meras abstracções de folha de papel, são fortemente enriquecidas em linguagem não-verbal capazes de operar a necessária ligação empática com os interatores. No campo sonoro o trabalho composto por Philippe Lambert funciona em articulação com as necessidades da interactividade, sendo capaz de gerar ritmos que nos motivam "a ir atrás".

Way to Go” é uma experiência brutalmente sensorial, dificilmente conseguimos extrair significado directo do que se experimenta, isso fica a cargo de cada um, elaborar sobre o mundo audiovisual interactivo que lhe é dado a vivenciar, criando padrões a partir da estimulação dos seus próprios esquemas mentais. Mas enquanto incentivo sensório "Way to go" funciona muitíssimo bem, essencialmente porque opera a interactividade de forma estimulante, motivando-nos a agir, a interagir, a desejar mais, a querer saber o que está por detrás de tudo o que vemos, ouvimos e sentimos e por isso vamos atrás, não nos rendemos, mesmo quando o "The End" surje na nossa frente, permanecemos ali com a vontade de continuar a experienciar aquele espaço-mundo.



Em essência esta obra consegue envolver-nos por dois grandes motivos, a interacção com a música e com os personagens. Os personagens, como disse acima, são ricos em expressividade o que garante o nosso elo de ligação emocional ao objecto, mais ainda quando estes nos conseguem surpreender ao longo da experiência. Existem dois ou três momentos do mais puro deleite em que os personagens "fogem" ao nosso controlo e ficamos ali totalmente surpresos, imersos, abismados com a qualidade do jogo de interação desenhado. Por outro lado a sonorização ou musicalização do espaço está tão bem conseguida que eu diria que o modo como interajo é muitas vezes realizado em função de seguir a pista sonora. Não que em outros momentos, não esqueça a faixa sonora, parando para contemplar visualmente o que me é dado a sorver, nomeadamente quando chego a cada novo ambiente.




"Way to go" é uma obra interactiva, podemos dizer que é videojogo, mas não somos obrigados a tal. É evidente que o mundo dos videojogos sendo tão rico, e o maior responsável pela evolução da linguagem interactiva, está aqui presente como nenhum outro meio. É o próprio Vincent Morrissey que diz que a grande influência adveio de "Sword and Sworcery" (2011), assim como "Journey" (2012), embora eu apostasse mais em "Dear Esther" (2012) ou "Proteus" (2013). Não é apenas pelo crácter limitado da interacção, navegação tridimensional sem manipulação, mas pelo que brota da experiência, embora partindo de tecnologias muito diferentes, e abordagens conceptuais também muito distintas, julgo que "Way to Go" aproxima-se bastante do universo explorado por "Proteus".

Para quem desejar entender melhor aquilo que se pode experimentar em "Way to Go", nomeadamente comparar as suas impressões com as ideias que conduziram o autor a esta criação, leia-se o excerto abaixo da belíssima entrevista de Vincent Morrissey ao Libération:

"Je suis ornithologue amateur, j’observe les oiseaux depuis que je suis petit. Et j’adore ce moment où tu es dans le bois, les jumelles autour du cou, et pschhh ! Tu as soudain une sorte d’hypersensibilité à ce qui t’entoure. Et puis le lendemain, quand on va au travail, il y a mille détails qui se passent autour de nous mais on ne les voit plus. Je dis une banalité, mais il y a quelque chose là-dedans qui m’anime. Je voulais explorer la notion de l’espace, du temps et notre perception de l’environnement. Comment on se déplace d’un point A à un point B? Quel est l’impact de ce passage sur notre façon de voir les choses, notre état d’esprit à cet instant? Ce à quoi j’ai toujours aspiré avec les projets web, c’est explorer cet intangible, les émotions qui transcendent les histoires et les mots."
"Comme pour Bla Bla, on avait envie d’un truc universel qui transcende les cultures, les langues et les générations, dans lequel tout le monde pourrait se projeter. La forêt a cette qualité d’être familière et mystérieuse à la fois. On se dit : c’est qui ce bonhomme avec son métronome ? Que fait-on ici, quelle est la finalité de l’affaire ? On va à l’encontre du jeu vidéo traditionnel qui donne des objectifs et récompense la performance. Ici, que tu sois un enfant hyperactif ou ma mère, l’expérience fonctionne. Tu peux traîner dans la forêt et t’arrêter tous les deux pas, ou courir comme un malade : ça sera cool dans tous les cas. Tu sautes, tu voles, mais si tu fais une pause tu vas découvrir des petits instants de beauté. Comme si le temps était élastique. On donne l’illusion de se déplacer dans l’espace mais, en réalité, on se déplace dans le temps. On se déplace dans une vidéo que j’ai moi-même filmée, dans mon costume noir. Le trajet est déjà tout tracé. Je trouve très angoissants ces jeux vidéo avec des mondes infinis où on peut aller partout. Ça me fait comme un vertige…" 
Em termos de tecnologias usadas, foi tudo feito para correr directamente em qualquer browser, daí que a base seja o WebGl, socorrendo-se de Javascript, html5, THREE.js e Web Audio API. Existe ainda a particularidade de se poder correr o trabalho directamente em Oculus Rift e assim experienciar tudo isto de uma forma completamente distinta. Já para a produção do trabalho, a lista de necessidades e acções ficou bastante mais extensa do que à partida poderíamos pensar:




  • Dynamic control of 360° videos
  • 83 custom shaders to change in real time lights, grain and visual effects
  • Infinite amount of 3D worlds rendered from drawings on paper
  • Custom system for integration and synchronization of 360° video mappings, 3D environments and 2.5D elements
  • Management and live mixing of thousands of sounds
  • Generative and interactive music score
  • Enveloppes, ADSR, filters and dynamic spacialisation
  • Sound granulation
  • Convolution and reverb
  • Unique techniques for video stiching of 360° shooting in narrow environments
  • Video analysis and tracking system for dynamic integration and creation of heightmaps and 3D scenes
  • Live video stabilization
  • WebVR - Adaptation for the Oculus Rift on a web browser
  • Gamepad API - Game console controllers connection to web browser

Aproveito por fim para vos deixar o prefácio do trabalho, que apesar de estar no site, no canto inferior esquerdo, passa um pouco despercebido, e julgo que vale a pena como leitura de introdução à experiência que vos espera, se decidirem entrar.

"YOU ARE ON YOUR WAY.

Yes, you are on your way.
It is not your first journey but Way to Go is the next journey before you. A walk through strange country - strange, familiar, remembered, forgotten. It is a restless panorama, a disappearing path, a game and a feeling. Way to Go is a small experience that gets bigger as you uncover it.
And the trees will change their shape, and the sky will widen.
And you will fly.
We go away every day. We plunge through the city, skate down roads, tunneling toward a destination without remembering the quests we are on. A journey is a collection of moments - we are here, we are here, we are here, and yet we miss these moments. A journey is a collection of choices - turn here, stop here, choose here, and yet we surrender these choices.
What if we quit surrendering? What if we didn't miss?
Here is a world enclosed in a screen. Here is an adventure. A landscape of leaves and wildflowers, teeming with hidden life. A garden and a wilderness, a wistful blink of dream. You are Jean Painlevé, Marco Polo, Maria Merian. You are Alice, Sonic, Osvaldo Cavandoli. You are a visitor, a cartoon of face and limbs, and you are going on a walk.
Using hand-made animation, music, 360° capture technology and webGL sorcery, Way to Go imagines a dream-world of journeys. Walk, run, fly; crouch in the grass and remember what's hidden all around. Slip like a rumour from one place into another; chase your shadow; listen to the slow pulse of the metronome, black-clad, following in your wake.
Are you alone? Are you not alone? Are you dreaming or awake? Can you ever reach the mountains?
Can you see what's here before you?
Set out through woods and fields, sunlight and aurora, grey and colours.
Set out, in deliberate lucid looking
   and you'll find,
   perhaps,
the present." 
Preface by Sean Michaels

Podem experienciar, de forma completa e gratuita, em Way to go, a duração aproximada da experiência anda à volta dos 6 minutos.

abril 02, 2015

Infinite Jest / A Piada Infinita

Wallace conseguiu. David Foster Wallace (DFW) tinha um objectivo muito concreto para "Infinite Jest" (IJ) (1995) (traduzido para português como "A Piada Infinita" (2012)) que passava por retirar-nos do cisma do quotidiano, os automatismos com que lidamos e aceitamos a realidade à nossa volta, levando-nos a assumir um papel participativo, não apenas na construção de sentido da obra, mas essencialmente pelo confronto de ideias, diálogo com o outro. Uma rápida pesquisa online pelo nome do livro dá-nos uma ideia muito concreta do alcance desse diálogo concretizado em páginas inteiras dedicadas, wikis, blogs, fóruns, livros e congressos que continuam sendo alimentados 20 anos depois da obra ter sido lançada.

Capa da edição portuguesa, traduzida por Salvato Telles Menezes e Vasco Menezes.

DFW defendia que o Entretenimento ombreia com a Arte na capacidade de nos fazer sentir e refletir [1]. O que mais o incomodava era divisão entre as chamadas artes alta e baixa, o elitismo da crítica na proteção dos seus e rebaixamento dos demais. DFW acreditava que se sentia algo quando em contacto com o entretenimento fosse literatura ou televisão, então isso não podia ser relegado, esquecido, fazer-se de conta que nada se sente [2]. Isto é uma das características mais fundamentais na pessoa de DFW, a sua sinceridade e aceitação do mundo tal como ele é [3]. Deste modo IJ tinha um segundo propósito para DFW, conseguir unir o Entretenimento e a Arte, juntar o melhor de cada num único artefacto, e conseguiu, IJ consegue ser ao mesmo tempo: trivial e complexo; coloquial e erudito; conciso e diarreico; profundamente linear e completamente não-linear; absolutamente divertido e terrivelmente chato.

Capa da edição brasileira (traduzida como "Graça Infinita" (2014)), a melhor do ponto de vista de design.

IJ é uma obra arquitectada, planeada ao milímetro, desenhada para produzir efeitos muito concretos na sua audiência. Nesse sentido é fruto do mais objectivo design literário, sem nunca abandonar o profundamente subjetivo artístico que lhe confere a pessoalidade, a experiência e vivência únicas do seu autor. IJ é ao mesmo tempo um manifesto de DFW, capaz de demonstrar toda a sua filosofia de vida, e um legado capaz de demonstrar todo o alcance do seu arcaboiço intelectual.

Para suportar todas estas ideias DFW criou um mundo muito particular para contar a sua história. IJ situa-se num futuro alternativo próximo, o livro foi escrito em 1995, com a história a situar-se na primeira década dos anos 2000. Ou seja, para nós já é passado, mas isso acaba por não ser muito relevante, já que o foco narrativo não se centra nos efeitos dessa passagem de tempo, mas nas pessoas, seus desejos e vidas. O futuro aqui serve mais para facilitar ao imaginário do leitor o deslocamento para uma realidade alternativa. A história decorre em dois pontos centrais, uma escola de ténis e uma casa de desintoxicação, por onde os personagens vão passando, apresentando-se e confrontando-se. O cerne da caracterização de IJ fica a cargo de uma família, James Incandenza (pai) Avril Incandenza (mãe) e os três filhos Orin, Mario e Hal.

Uma das histórias de IJ encenada em Lego pelo Brickjest

A versão original do livro tinha mil páginas, contudo com letra bastante pequena, nomeadamente as notas que ocupam mais de 100 páginas. A versão alemã tem 1500 páginas, o que a julgar pelos números de "locs" no meu Kindle, e comparando com outros livros, me parece muito mais próximo do real, caso fosse utilizada uma letra de tamanho dito normal nas versões impressas. Neste sentido IJ é praticamente uma saga em termos de tamanho, cerca de 60 horas de leitura, o que se reflete na imensidade de pequenas histórias e nas dezenas e dezenas de personagens. Mas não se pense que o livro é difícil pelo tamanho. As dificuldades que enfrentamos na leitura são criadas pelo próprio DFW, de forma propositada, no modo como organiza a informação. DFW não segue estruturas narrativas clássicas (em que tudo vai sendo explicado à medida que se avança, montado e estruturado para produzir prazer), nem tão pouco modernas (meramente experimentalistas), embora também as utilize, DFW é um pós-modernista, e enquanto tal usa tudo o que a literatura lhe dá para agir sobre a cognição dos seus leitores, destruturando e estruturando, obrigando o leitor a sair do conforto da aceitação do que o autor vai debitando, para procurar as peças do puzzle e assim construir os seus significantes e significados, sempre duvidando se estes estão ou não alinhados com os do autor.

Como livro extraordinariamente aberto que é, pelo que disse atrás, mas também pelo modo polifónico utilizado, DFW regista quase todos os modos discursivos – directo, indirecto, indirecto livre – olhando e caracterizando personagens a partir do seu interior ou do narrador que tanto fala em primeira como em terceira pessoas, e que nem sempre conseguimos situar, IJ dá-se a cada um de nós de formas totalmente diferentes, produzindo respostas emocionais e cognitivas bastante distintas. Existe quem adore, quem deteste, quem se aborreça, quem ri às gargalhadas e quem chora profundamente. Neste sentido é possível encontrar pessoas que ficam agarradas a IJ desde as primeiras páginas, quem só se comece a ligar pelas 200, quem como eu só começou a sentir a partir das 500, e quem nunca se ligue. Quase todos, quando terminam, eu incluído, têm vontade de recomeçar imediatamente. Esta vontade de recomeçar a leitura impressionou-me bastante porque se aproxima imenso do objecto que está no cerne do enredo, um filme de entretenimento, chamado também "Infinite Jest", que as pessoas não conseguem parar de ver. Ou seja, DFW claramente objectiva a este efeito, e consegue-o.

Para o conseguir coloca a trabalhar toda a complexidade estrutural de IJ. A primeira leitura serve apenas de primeira passagem, de reconhecimento. O mundo criado por DFW é próximo, mas é profundamente alternativo, estranho e distante, muito do que parece não é, e muito do que nada parece tem imenso valor. DFW não é apenas um pós-modernista, com vontade de destruturar a literatura e nos colocar a pensar, é alguém dotado de uma forma muito peculiar de ver o mundo, suportado por uma enorme bagagem descodificadora desse mundo. Ou seja, formado em Filosofia, DFW lia de tudo e de forma compulsiva. IJ é mera janela para um mundo inteiramente construído pela mente de DFW, um mundo enorme e detalhado, dotado de uma imensidade de camadas de significado. DFW usa depois a literatura para verbalizar todas essas camadas, servindo-se de todo o arsenal formal para lhes dar corpo. É por isso que DFW usa e abusa das notas de rodapé (existem capítulos inteiros dentro de notas de rodapé); usa e abusa de palavras inventadas, de discursos entrecortados, viagens no tempo, personagens secundários ou meramente figurantes. DFW não pretende ser directo, nunca, tudo tem sempre segundo, terceiro ou mais significados e cabe-nos a nós, enquanto leitores, trabalhar para chegar a esses significados. A vontade de reler advém exatamente da tomada de consciência de tudo isto, com o fechar da última página sentimos que descortinámos apenas a primeira camada e partes das outras camadas, sentimos que o livro tem ainda muito mais para nos dar.

Por isso mesmo o final de IJ tem sido imensamente debatido online, em busca de fechamento, algo que a Gestalt nos diz ser uma necessidade humana profunda. DFW disse em entrevistas que o fechamento estava lá, que bastava apenas olhar para além da última página. Neste sentido não deixa de ser interessante que uma das explicações para o final de IJ mais amplamente aceite e citada seja de Aaron Swartz, uma outra mente prodígio do nosso tempo. Trabalhando em frentes bem diferentes, Wallace e Swartz tinham em comum a luta pela franqueza e tolerância por via da comunicação com o outro contra o individualismo. DFW pôs fim à sua vida em 2008, Swartz leu e escreveu a sua explicação de IJ em 2009, pondo também fim à sua vida em 2013.

É possível encher páginas sobre IJ, e muitas se têm escrito, por isso mesmo opto por deixar aqui alguns links para textos que fui lendo ao longo da leitura, e outros que li apenas após o virar da última página. DFW conseguiu mesmo o que pretendia, porque ler IJ dá-nos vontade de constantemente confrontar as nossas ideias com as de outras pessoas, de ouvir o que os outros pensam, e refletir sobre o que pensámos nós, umas vezes mudando de ideias, outras mantendo, optando pelas nossas deduções e intuição.

Para fechar, quero apenas recomendar a leitura de dois textos de DFW que podem ler mesmo antes de iniciar a leitura de IJ, pois irá ajudar a compreender melhor DFW e consequentemente IJ. O primeiro texto foi escrito em 1993, na altura em que DFW estava a escrever IJ, e dá conta da tese que subjaz a IJ, falo de “E unibus pluram: Television and US fiction”. O segundo texto foi aquele que me deu a conhecer DFW há uns anos, “This is Water”, que sintetiza toda a filosofia de DFW e IJ, inclusive usa uma imagem presente em IJ (os peixes que se questionam: “o que é a água?”). Este segundo texto, ganhou entretanto uma interessante visualização em vídeo a qual fiz menção aqui no blog quando saiu.


Fecho. Anotei centenas de trechos no texto, alguns de uma linha apenas, outros páginas inteiras de discurso sem qualquer ponto final. Não coloco aqui nenhum desses excertos, optando por transcrever apenas um pequeno ponto que julgo ser capaz de dar conta do estilo de DFW, tanto na forma como junta o vulgar ao intelectual, como na forma como plasma em texto uma ideia,
“Olha-Para-Mim-A-SerTão-Completamente-Sincero-E-Aberto-Que-Desprezo-Toda-A-Pose-Insincera-Do-Processo-De-Engatar-Uma-Pessoa-E-Transcendo-A-Hipocrisia-Normal-Do-Vulgar-Frequentador-De-Bares-De-Uma-Forma-Paricularmente-Fixe-Espirituosa-E-Consciente-E-Se-Me-Deixares-Engatar-te-Não-Só-Vou-Continuar-A-Ser-Esprituosa-E-Transcendentemente-Aberto-Como-Te-Introduzirei-Neste-Mundo-Transcendente-De-Falsidade-Social”

Textos para acompanhar IJ
Acompanhamento de Leitura da Ed. Brasileira - Posfácio (2015)
Acompanhamento de Leitura da Ed. Americana - Infinite Summer (2009)
Dezenas de detalhes explorados em detalhe
Site dedicado a DFW
IJ Wiki

Teorias sobre o final de IJ
A mais citada, de Aaron Swartz
De Dan Schmidt
De Daniel Pellizzari


Análises recentes e em português
Camila von Holdefer
Isabel Lucas
Taize Odeli
Mário Rufino

Livros sobre IJ
David Foster Wallace’s Infinite Jest: A Reader’s Guide” de Stephen Burn
Elegant Complexity: A Study of David Foster Wallace’s Infinite Jest” de Greg Carlisle

Sobre a tradução Portuguesa
Traduzir uma piada de 1000 páginas (Público)


Referências
[1] DFW 10 Favorite Books, in J. Peder Zane, (2007), The Top Ten: Writers Pick Their Favorite Books, W. W. Norton & Company
[2] Wallace, D. F. (1993). E unibus pluram: Television and US fiction. Review of Contemporary Fiction, 13, 151-151.,
[3] Wallace, D. F. (2009). This is water: Some thoughts, delivered on a significant occasion, about living a compassionate life. Hachette UK.