setembro 02, 2010

HD: Produção, Projecção e Percepção

Trago uma reflexão sobre as questões do excesso de informação gerada pelo acesso a cópias HD de filmes antigos e sua comparação face ao estado original aquando sua produção. Uma discussão gerada no Facebook a partir do artigo The devil is in Blu-ray's detail de Shane Danielson no Film Blog do The Guardian. Algo que tinha equacionado quando ouvi falar pela primeira vez em Full HD. Trabalhando nos 1920x1080 pixels estamos quase três vezes acima do standard 720x480 pixels. Ou seja a imagem é maior logo possui mais detalhe informativo e foi isto que me aconteceu há cerca de 10 anos quando fiz uma pequena curta em 3d. A minha primeira versão dos cenários do filme estava feita para algo com cerca de 450 pixels de largura. Quando mais tarde quisemos renderizar todo o filme para depois converter em Betacam, e comecei a renderizar os meus lindos cenários em 720, comecei a entrar em pânico, viam-se defeitos onde antes tudo tinha sido tão perfeito.

Pode ver-se maquilhagem no actor no transfer blu-ray que nunca se tinha visto antes no cinema.

Deste modo devo dizer que o interessa aqui reflectir é sobre o material produzido nos primeiros 100 anos de história da arte cinematográfica e não sobre os últimos 10 anos em que já se levou em conta o DVD e o HD. Assim a dúvida que se coloca é: então mas se o filme tem mais resolução porque não a havemos de extrair e ver?

Antes de mais interessa desde já olhar para estes dois exemplos em termos comparativos, um frame de um filme de 1939 e um de um filme de 2007. Repare-se no detalhe e clareza (clicar para ver frames originais) presente no frame de 2007 face ao de 1939.

Exemplo de uma imagem de um filme de 1939 retirado directamente do transfer de película


Transfer de um filme de 2007 em Blu-ray

A película claramente tem mais resolução do que aquilo que vem no DVD. Segundo uma lógica analógica poderíamos dizer que esta é infinita porque contínua. Mas claramente que isto é irrelevante quando o que queremos é ver o conjunto e não os pontos que constituem as sombras e luz impressas. Em termos de resolução a película tradicional terá um máximo de eficiência por volta dos 3000 pixels (largura). Quando trabalhamos em digital para depois converter para película vamos aos 4000 pixels mas apenas por razões de compensação das perdas de conversão. Aliás ao ler agora um artigo sobre o processo de restauração do The Wizard of Oz (1939) vi que a transferência realizada a partir do "Negativo Original" foi realizada a 8000 pixels. Isto é a loucura mas aqui o objectivo era o restauro. Ou seja claramente que vou ficar com problemas na aquisição mas vai permitir trabalhar detalhes e eliminar às posteriori defeitos no processo de downsizing. O Master Digital criado ficou com metade dessa resolução, nos 4000 e daí então foram extraídos os Blu-rays. Ou seja estes números à partida dão muito espaço de manobra, uma vez que o Full HD está abaixo de metade nos 1920 pixels. Mas isto é matemática, faltam aqui ainda todas as variáveis do lado da Produção, Projecção e Percepção.

Produção
Nos tempos do analógico a película utilizada numa sala de cinema, estaria várias gerações abaixo do Negativo Original. O próprio Master utilizado para criar as cópias a serem distribuídas pelas salas não era o Negativo Original. Isto porque o Master era um negativo que combinava todos os negativos utilizados na gravação que depois de revelados eram editados num único conjunto. Assim num processo óptimo o Master já seria uma segunda geração, e a primeira cópia distribuída em sala terceira, mas isto falamos num ideal, sem efeitos especiais, sem pós-produção complexa.

Sobre o factor gerações, ou cópias de cópias, e a introdução de ruído, para quem ainda se lembra dos processos de conversão analógicos (de qualquer media) sabe bem o que se perde de informação em cada geração.
E os realizadores e principalmente os directores de fotografia estavam perfeitamente cientes desta questão. Como tal muitos problemas identificados em sessões de rushes do dia anterior eram facilmente desculpados por se saber que ao fim de algumas gerações seriam imperceptiveis. Problemas como os tais fios de pendurar actores ou outros, redes para segurar cabelos, nos cenários a ilusão de um céu e paisagem pintados numa tela, ou de madeira/plástico que se faz passar por metal, etc. E são estes problemas que hoje em dia são detectados quando os estúdios para transfers HD vão directamente ao Negativo Original. Como se pode ver nas palavras do arquivista Robert Harris, os materiais não eram retirados ou deixados ficar por razões de preguiça ou estéticas, mas
"The rationale behind wire and physical artifact removal has nothing to do with the ability of the filmmaker to remove them in the past. The point is that there was no necessity to remove them. They could not be seen in final prints, and Director of Photography of the time knew this with precision."
Projecção
Assim quando o filme chega a uma sala de cinema já está longe da impressão original, do que estava em cena no momento em que o Realizador gritava Acção. Mas aqui entramos numa segunda fase do processo, em que volta a acontecer mais deterioração do sinal. Desta vez o ruído é introduzido pelos projectores, pelas telas, pelas distâncias de projecção e até pelas condições climáticas.


Ou seja uma coisa é pegar numa fita de película e aplicar-lhe luz e visualizar imagem sobre materiais altamente reflectivos e com muito pouca distância entre a película e a superfície, como em boas mesas de montagem de película. Outra é aplicar uma fonte de luz, lâmpadas que por vezes já ultrapassaram o limiar do seu uso, que projectará a imagem a dezenas de metros e que por sua vez pode estar regulada para aumentar a imagem mais do que aquilo que aquela lâmpada consegue obter. Sendo a imagem depois projectada sobre um material que apesar de reflexivo, varia muito na sua capacidade de reflexão do sinal.

Assim e logo à partida enquanto no cinema a imagem é um reflexo de luz, num ecrã a imagem é uma emissão directa de luz, o que tem logo uma enorme diferença no que toca à capacidade de produção de brilho e luminosidade. Ou seja o sinal é injectado sobre uma superfície que emite luz e que consegue à partida extrair muito mais detalhe porque contém menos ruído de transmissão. E é por isto que muitas vezes temos aquele sentimento de "artificial" ou "plástico" em face de um filme clássico num LCD HD, como bem refere Danielson na sua conversa com o vendedor da Virgin Megastore,
"Shit don't look real no more." He pointed to the screen. "Look at that." He indicated Pacino, now making his getaway from Louis's restaurant. "My boy looks like he's drawn by Pixar."
O que acontece com o Pacino é a brutalidade do contraste e brilho aplicados pela força da emissão de luz do ecrã que o recorta de tal forma que este parece desenhado artificialmente sobre os cenários do filme. Mas isto não é culpa dos LCDs. Isto só acontece por mal calibragem dos ecrãs. Ou seja ver um filme, jogar um videojogo ou ver um jogo de futebol são actividades que não devem ser realizadas com a mesma calibragem do ecrã. Claro que nas lojas o que se pretende é mostrar a potência do ecrã e isso faz-se com recurso ao brilho e contrastes intensos até para compensar toda aquela luz existente nas salas.

No fundo a projecção é uma arte seja no cinema ou na tv de casa. Por isso este foi um dos grandes motivos que me tirou das salas de cinema nos últimos 10 anos, desde que saiu o DVD. Eu conseguia em minha casa reproduzir a imagem em condições mais perfeitas do que aquilo que via nas salas. Aliás as últimas duas experiências em salas de cinema com projecção analógica foram um trauma o Matrix 3 (2003) e o Harry Potter 3 (2004). Claramente que tudo isto se alterou drasticamente com o aparecimento da projecção digital, apesar de agora estarem novamente a destruir a beleza da projecção com o 3-D.

Percepção
Por fim não podemos esquecer quem reconstrói o filme mentalmente e em que condições o faz. Temos vários factores de ordem não patológica, ou seja não estou aqui a falar em diferenças de percepção visual que todos temos. Falo aqui de aspectos bem mais simples mas que fazem uma enorme diferença: distância à imagem, tamanho da imagem, e presença de outros sujeitos no local de visionamento.

Qualquer bom comunicador sabe que antes de criar qualquer objecto audiovisual deve antes saber como vai ser o mesmo visualizado: Telemóvel, Internet, TV, Cinema, IMAX, 180º, 360º. Isto porque cada um destes meios de apresentação da imagem diferem drasticamente em termos de tamanho de uma imagem, assim como a distância a que se vê.

E é bem diferente levar conteúdos a um espectador que vai ver uma mensagem audiovisual num telemóvel ou num IMAX. A acrescentar temos ainda o local onde vai ser visto: no metro em andamento; num ecrã de uma paragem de transportes públicos sem som; num mega-ecrã de rua, numa sala de estar com crianças pequenas, numa sala de home-cinema, numa sala de cinema. Ou seja a envolvente pode possuir tantas variáveis de distracção que se alterará drasticamente o modo como o sujeito irá percepcionar a mensagem.
Mesmo seguindo apenas a sala de cinema é bem diferente estar sentado na primeira fila ou na última, isto numa sala grande claro. É bem diferente ir ao cinema em 2010, de ir em 1990 ou de ir em 1940. As reacções das pessoas são completamente diferentes e têm sobre nós impactos também eles bem diferentes.


Assim se juntarmos as três variáveis - Produção, Projecção e Percepção - e colocarmos lado a lado Blu-ray e Cinema para um exemplo de um filme de 1940, veremos de forma muito simples como as diferenças são mais que muitas e como não só a experiência se altera mas o próprio acesso ao filme se altera drasticamente face ao modo como foi desenhada a sua recepção no momento de produção.

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