fevereiro 16, 2010

Antichrist é visceral


Não me vou alongar muito na análise de Antichrist (2009) acima de tudo porque o meu grau de admiração pelo trabalho de Lars Von Trier foi igualado pelo sentimento de estupefacção. Decididamente não é uma obra para pessoas sensíveis, o impacto de todo o filme, a força bruta de algumas cenas impossibilitam que se passe pelo filme de modo indiferente. Não vou entrar em detalhes da mensagem, interessa-me, como quase sempre os seus aspectos mais formais e de criação.


Poderia pensar-se que estava num dia de maior sensibilidade mas para não deixar qualquer réstia de dúvida, antes de ver Antichrist tinha estado a ver Eden Lake (2008) de James Watkins um dos filmes de terror mais eficientes dos últimos tempos e em termos de verdadeiro terror só comparável a Frontière(s) (2007) de Xaviens Gens. Posso dizer assim que Antichrist supera o terror desenvolvido por estes dois filmes, ainda que de um modo totalmente distinto dado o carácter sublime de vários pontos: narrativa, realização, performance e cinematografia. O terror está longe de ser gratuito, está longe de aparecer como algo estilizado e desenhado apenas para estimular as emoções. O terror é aqui algo natural, que vem de dentro da psique dos personagens de um modo perfeitamente plausível e nos assalta através de choques naturalmente criativos.


Quando refiro sublime sobre os quatro elementos deste filme acima, digo-o com toda a convicção. O filme começa por entrar por nós adentro com uma estonteante cena que nos arrebata pela fotografia, o magistral contraste preto-e-branco de sombras e brilhos conseguido por Anthony Dod Mantle. De sublinhar que o filme foi inteiramente rodado em digital com recurso à famosa camara RED One em conjunto com a Phantom HD para os planos ultra-lentos. Mantle já antes foi reconhecido ao receber o Oscar para melhor cinematografia com Slumdog Millionaire (2008). Esta cena inicial é uma das mais belas aberturas do cinema de sempre com a fotografia colada numa música angelical sublinhando tudo o que se vai passando à frente dos nossos olhos. Por sua vez a narrativa que se vai construindo na cena e culmina no conflito de todo o filme agarra-nos, transporta-nos e impossibilita que possamos desligar do filme até ao seu final.


Na realização é impressionante ver o controlo da câmara, a trepidação da imagem, das decisões de focagem e desfocagem. Interessante perdermo-nos nesta análise para ver quantas vezes vimos estas técnicas serem utilizadas sem sentido, apenas como adorno. A realização de precisão milimétrica conjuntamente com uma cinematografia de excelência elevam o filme a um patamar estetico-visual que filmes com grandes orçamentos e dos melhores técnicos do mundo em efeitos visuais não conseguem sequer igualar (ex. Avatar).

E porque é de cinema que falamos, os actores, a sua performance. Esta é uma daquelas poucas vezes em que posso concordar com a mania americana de citar os filmes pelos actores em vez dos realizadores. Apesar de Lars Von Trier ser um génio, quer gostemos ou não, o seu trabalho seria de todo perdido se não tivesse tido dois actores capazes de se superarem. Vemos em cena performances de pura transcendência. É brutal a forma como Charlotte e Dafoe se dão a Lars, se abrem e entregam por completo ao seu controlo, permanecendo eles próprios.


Finalmente e apesar de não ter referido acima, a montagem em Antichrist é a mãe da união de todos os elementos referidos. Aliás muito do que refiro na realização, fotografia e em grande medida das performances se deve a um apertadíssimo rigor de montagem. Esta montagem socorre-se ainda de um design de som que reconstrói todo um universo psicológico.

Não posso fechar o texto sem referir que este é um daqueles filmes de autor onde a técnica em quase todas as áreas é conseguida com enormes níveis de qualidade. Refiro porque muitas vezes os baixos orçamentos deste tipo de cinema impossibilitam que se atinjam determinados picos de qualidade.


Grief, Pain and Despair

fevereiro 15, 2010

dos benefícios do Fracasso e a importância da Imaginação

Um discurso profundo e sentido de JK Rowling aos finalistas de 2008 da Universidade de Harvard. Um discurso que deve servir de alento a muitos dos que vão terminando os cursos e não conseguem emprego no imediato, ou dos que buscam algo melhor. Fica o vídeo do discurso e abaixo podem ver excertos das passagens mais interessantes.


I have decided to talk to you about the benefits of failure. And as you stand on the threshold of what is sometimes called ‘real life’, I want to extol the crucial importance of imagination.

...a mere seven years after my graduation day, I had failed on an epic scale. An exceptionally short-lived marriage had imploded, and I was jobless, a lone parent, and as poor as it is possible to be in modern Britain, without being homeless...

So why do I talk about the benefits of failure? Simply because failure meant a stripping away of the inessential. I stopped pretending to myself that I was anything other than what I was, and began to direct all my energy into finishing the only work that mattered to me. Had I really succeeded at anything else, I might never have found the determination to succeed in the one arena I believed I truly belonged. I was set free, because my greatest fear had been realised, and I was still alive, and I still had a daughter whom I adored, and I had an old typewriter and a big idea.

You might never fail on the scale I did, but some failure in life is inevitable. It is impossible to live without failing at something, unless you live so cautiously that you might as well not have lived at all – in which case, you fail by default.

..
..

Imagination is not only the uniquely human capacity to envision that which is not, and therefore the fount of all invention and innovation.
In its arguably most transformative and revelatory capacity, it is the power that enables us to empathise with humans whose experiences we have never shared.

Unlike any other creature on this planet, humans can learn and understand, without having experienced. They can think themselves into other people’s places.

Plutarch: "What we achieve inwardly will change outer reality"

If you choose to use your status and influence to raise your voice on behalf of those who have no voice; if you choose to identify not only with the powerful, but with the powerless; if you retain the ability to imagine yourself into the lives of those who do not have your advantages, then it will not only be your proud families who celebrate your existence, but thousands and millions of people whose reality you have helped change. We do not need magic to change the world, we carry all the power we need inside ourselves already: we have the power to imagine better.

Seneca: "As is a tale, so is life: not how long it is, but how good it is, is what matters."

[a partir da TED]

Persepolis, uma viagem de mão dada


O trabalho de ir vendo um pouco de tudo o que se vai fazendo no cinema tem problemas como o atraso na visualização de certas obras. Persepolis (2007) foi apanhado com grande atraso na minha lista de filmes a ver. Lançado em 2007, passou por Cannes (2007), pelos Oscar (2008) e pelos BAFTA (2009) mas só ontem vi finalmente o filme.

É um filme que faz lembrar (seria o inverso se os tivesse visto no momento de produção) Waltz with Bashir (2008). Acima de tudo por tratarem o mesmo local geográfico, o médio-oriente, que pela distância e insuficiência de informação que temos nos aparece como algo exótico. Depois são ambos filmes de algum modo autobiográficos o que lhes confere uma maior densidade dramática. Apesar disso Persepolis como obra de animação é superior a Waltz, e não seria para menos se tivermos em conta os meios de produção e o facto de filme ter nascido de uma série de comics de 2000, famosa antes mesmo de chegar ao cinema. Por esse canal artístico, Persepolis atira-nos para referências como Maus (1972-1991).


Quanto ao filme é uma experiência apaixonante, o traço e a música fundem-se por completo com a ingenuidade seguida de revolta da pequena Marjane. O filme transporta-nos para um outro mundo, diferente, e por isso o preto-e-branco funciona tão bem porque lhe confere esse distanciamento. Viajamos de mão dada com a ternurenta narradora do filme.


Por outro lado Persepolis é um filme que todos os ocidentais deveriam ver para perceber um pouco melhor o que é viver num país com a cultura milenar do Irão. Ver as diferenças que esse caldo cultural tem sobre um modelo ditatorial. Podemos perceber que as leis emanadas pelo estado não são cegamente seguidas e aceites em pensamento por uma grande classe média que tem acesso a educação. Diferentemente de outras ditaduras como foi a portuguesa em que se levou a grande massa a um quase-analfabetismo. Não quero com isto definir o Irão como algo suave ou até aceitável, antes perceber o que nos separa.


Para saber mais vejam o trailer, e dediquem algum tempo ao sítio do filme que está muito bom, com pequenos filmes de making-of, muita música, e manifestos de consciência... para além da excelência da estrutura de navegação em termos estéticos.

fevereiro 05, 2010

narrativa criativa

Um filme de prevenção rodoviária com uma nova abordagem, não recorre a imagens ou acontecimentos violentos, a efeitos incapacitantes, nem faz uso de qualquer grafismo de choque, antes tudo pelo contrário. No entanto não deixa de produzir um violento choque emocional.


O guionista e realizador Daniel Cox diz que:
“It was central to the development of the project that we root the concept of wearing a seat belt firmly in the family domain, and create the advert so that it could be viewed by anyone of any age. Children are so important as opinion formers within their family that we felt it imperative to have a child take a pivotal role in relaying our message.

“One key aspect to the storytelling is that we developed Embrace Life to be non-language specific, so that the message wouldn’t become lost when viewed by visitors to, or residents of, the UK where English might not be their first language. [Sussex Safer Roads]”

magnífico

Um hino à cinematografia.



"This epic 7-minute short film goes well beyond that, with one jaw-dropping followed by another. Philip Bloom’s blog post on the shoot is also a useful guide into his process and his gear.

With this level of quality coming from the current and newer breeds of DSLR cameras, this undoubtedly changes the game for studios of all shapes and sizes, allowing just about anyone to create high-end live action work." 05.02.2010 Motionographer

fevereiro 04, 2010

Mapa cronológico dos Videojogos

É um trabalho excepcionalmente extenso, completo e bem conseguido o mapa cronológico da história dos videojogos realizado por Mauricio Giraldo Arteaga. Mauricio é professor de Design de Videojogos na Universidad de los Andes, Colombia. Um trabalho que vem ajudar-nos a perceber melhor toda a evolução da arte dos videojogos pelo modo como sintetiza visualmente numa linha de tempo centenas de eventos relacionados com o desenvolvimento dos videojogos.
O mapa está organizado de modo a poder ser visualizado com toda a informação em simultâneo ou em separado por 8 eventos:
1. people (birthdates) of relevance: game designers and developers, scientists, artists, entrepreneurs.
2. business: companies or important business events.
3. consoles (or hardware such as PCs) where videogames are executed.
4. games
5. accessories and controls: peripherals that are connected to consoles.
6. technologies of importance.
7. cultural: events that have somehow influenced the world of videogames (books, movies, ideas or theories, etc.).
8. other events that contextualize what was happening worldwide when the other types of events happened.
Por sua vez cada evento pode estar relacionada com outros de três formas:

* creation (event A created event B): mostly used to relate a person with the games he/she created
* inspiration (event A was inspired or is “plainly” related to event B)
* series (event A precedes event B): for “sequences” of events (eg.: the “Mario” series by Nintendo are assumed to be sequential editions even though they were developed for different consoles)
Para além de todo o trabalho que Maurício teve com o desenvolvimento deste mapa, este colocou não só toda a informação disponível, como o código fonte realizado em AS3.0 no Google Code.

[A partir do Martinho e do Montfort]

fevereiro 03, 2010

Filmes de Janeiro 2010

A partir deste ano e por razões que já levantei num post anterior vou passar a colocar aqui todos os filmes que vi no mês que passou com a respectiva classificou. Espero que o facto de revisitar alguns títulos e classificações me ajude a guardar um pouco mais as suas memórias.

No mês de Janeiro de 2010 não vi nenhum titulo digno de 5 estrelas, mas vi um que mereceu uma estrela, isto porque resolvi não ter bolinha nas minhas classificações. Por outro lado foi um excelente mês com 7 filmes muito bons.

xxxx, Tonari no Totoro, 1988, Japan, Hayao Miyazaki
xxxx, Away We Go, 2009, USA, Sam Mendes
xxxx, Design For Life, 2009, UK, Sarah Wood
xxxx, Vals Im Bashir, 2008, Israel, Ari Folman
xxxx, Inglourious Basterds, 2009, USA, Quentin Tarantino
xxxx, Hunger, 2008, Ireland/UK, Steve McQueen
xxxx, The Wrestler, 2008, USA, Darren Aronofsky

xxx1/2, Surrogates, 2009, USA, Jonathan Mostow

xxx, Zack and Miri Make a Porno, 2008, USA, Kevin Smith
xxx, Sinbad: Legend of the Seven Seas, 2003, USA, Patrick Gilmore
xxx, Shrink, 2009, USA, Jonas Pate
xxx, Lymelife, 2008, USA, Derick Martini
xxx, Happy-Go-Lucky, 2008, UK, Mike Leigh
xxx, The Counterfeiters, 2007, Austria, Stefan Ruzowitzky
xxx, Boy A, 2007, UK, John Crowley
xxx, Le Fils, 2002, Belgium, Irmãos Dardenne

xx, 2012, 2009, USA, Rolan Emmerich
xx, The Spirit, 2008, USA, Frank Miller
xx, The Lazarus Project, 2008, USA, John Glenn
xx, Vent Mauvais, 2007, France, Stéphane Allagnon
xx, Chaos Theory, 2007, USA, Marcos Siega
xx, Confessions of a Shopaholic, 2009, USA, P.J. Hogan

x, Second Life, 2009, Portugal, Miguel Gaudêncio & Alexandre Valente


Ordem: Nota, Título, Ano, País, Realizador
Classificação: x - insuficiente; xx - a desfrutar; xxx - bom; xxxx - muito bom; xxxxx - obra prima

fevereiro 02, 2010

Avatar, um mundo de influências

Avatar é um filme que em termos de preferências jogará nos extremos para os menos ciosos da arte cinematográfica. Pelo meu lado limito-me a apreciar mais um artefacto fílmico e a deixar-me levar pela experiência. Claramente que gostei de muitas coisas assim como gostei menos de outras. O que mais gostei foi evidentemente do brilhantismo tecnológico, é um dos objectos mais perfeitos nesse campo. Do que menos gostei, do storytelling, da incapacidade de Cameron em nos entregar uma história criativa, ou pelo menos com uma progressão e um ritmo acertado. Assim dito até parece que me ficaria pelos 50%, mas não, na verdade não podemos condenar um filme porque falha num item (que é dos mais importantes sem dúvida), tendo em conta que actua em níveis de excelência em áreas formais como os efeitos visuais, os cenários, a atmosfera, os personagens. Nesse sentido sinto-me encalhado a meio dos restantes 50%.


Roger Ebert
refere "I've complained that many recent films abandon story telling in their third acts and go for wall-to-wall action. Cameron essentially does that here, but has invested well in establishing his characters so that it matters what they do in battle and how they do it. There are issues at stake greater than simply which side wins."

O que Ebert aqui refere na primeira parte desta afirmação é o mesmo que já referi em relação ao videojogo Uncharted 2 (2009). Mas discordo por completo com ele na segunda parte desta citação, assim como Zacharek (2009). Fico a pensar porquê 160 minutos, qual a razão. Para que seja considerado um épico?! É no terceiro acto que o filme se espalha por completo. Ao contrário de Titanic aqui sabemos que os nossos heróis não morrerão, e é por isso mesmo que Cameron mata um importante personagem perto do final, para ainda assim tentar criar a dúvida e a incerteza no espectador sobre o futuro do herói. “Se aquele pode morrer, então o herói também pode”. Mas desde o momento em que se inicia a ligação entre o herói e aquele povo que sabemos que só um final pode existir. E isso demonstra a total inabilidade de Cameron para lidar com o balanceamento narrativo necessário a uma produção desta magnitude. Aliado a esta fraqueza aparece em jeito compensatório e climático, a seguir toda uma estrutura típica da narrativa de horror, o retorno do vilão quase imortal, uma e outra vez, procurando despoletar no espectador sensações, e receios por algo que sabemos não poder existir.


Vejamos a história. Todo o aspecto de guerrilha em busca do mineral é ridículo porque de tal forma exacerbado acaba por contaminar todo o aspecto espiritual do povo indígena. E contamina porque esta é a velha história do cowboy e do índio, do colonizador e colonizado, do agressor e da vítima. Ou seja, elementos tão básicos e tão vulgares que se não forem tratados de modo minimamente interessante ou subtil acabam por corroer tudo à sua volta. Por outro lado esse lado espiritual soa todo muito rebuscado e pouco interessante porque mais uma vez se mostra demais, se fala demais, se explica demais. Algo de tão mágico e divino deveria ser menos acessível. Um utilizador, Kyle M, no Metacritic refere mesmo “the entire story was a ripoff of other movies, the characters were all stereotypes.”. E tem razão ao dizer isto, em Avatar passamos grande parte do tempo a realizar comparações com outros filmes – Star Wars (1977), The Neverending Story (1984), The Emerald Forest (1985), Aliens (1986), Willow (1988), Dances With Wolves (1990), Stargate (1994), Final Fantasy: The Spirits Within (2001), Apocalypto (2006), District 9 (2009). Num outro artigo Christopher Campbell afirma “James Cameron’s Avatar is supposed to be like nothing we’ve ever seen before. So why does it look so familiar?” A resposta é muito simples, porque um filme tão caro como este teria de agradar a Gregos e Troianos. Porque para isso acontecer a única forma era transformar o produto em algo o mais fácil possível de assimilar, o mais fácil de compreender e logo familiar assim como o mais emocionante ainda que do ponto de vista das emoções simples – medo, raiva, tristeza e alegria.


Neste sentido da familiaridade mas em relação ao que fez melhor e no campo dos efeitos visuais Avatar partilha imenso com Star Wars a começar pela criação de todo um universo novo alternativo, uma sociedade externa à humana com todos as suas peculiaridades de forma e habitat. Ao mesmo tempo várias coisas os separam a começar pelas criaturas e as suas formas mais familiares: panteras, rinocerontes, dinosauros voadores. Isto permite-nos aproximar mais daquela realidade. Em Star Wars as formas são tão estranhas que nos deixam pouco há vontade e nos obrigam a uma descolagem maior.


Tecnicamente as qualidades de Avatar estão na captura de performance, no qual claramente investiram muita pesquisa e desenvolvimento de soluções para criar o que podemos agora ver. Estes impactos percebem-se melhor quando vemos os making of, e vemos a tecnologia envolvida e mais do que isso vemos o efeito da captura directamente sobre o desenho 3d. Contudo e apesar do brilhantismo das técnicas, e superioridade face a muito do que se tem feito, não são elas as responsáveis por eliminar o efeito uncanny valley, é antes um conjunto de dois vectores: iluminação e cartoon. Ou seja é a superioridade da iluminação verdadeiramente fotorealista que cai sobre os personagens e lhes confere um acetinado realista ao mesmo tempo que as suas feições são meramente hominídeas. Se compararmos Sigourney Weaver em Avatar e Angelina Jolie em Beowulf (2007) conseguimos de imediato ver o efeito de uncanny a acontecer com Angelina mas o mesmo não se sucede com Sigourney aqui. Mas se olharmos novamente para "Sigourney Avatar" veremos que esta é uma Sigourney com formas exageradas (olhos e orelhas aumentadas, pele de cor diferente) tal como o aquilo que fazemos com um cartoon. E por isso funciona tão bem. Aliás não podemos deixar de referenciar todo o trabalho feito por Andy Serkis com Gollum, e no quão credível Andy Serkys tornou esse personagem 3d.


Para além da captura de performance temos todo este universo criado em CGI, "Of the 162 minutes of film, 117 minutes equaling 1,832 shots was created by Weta's angels, over 2,000 if you count the omits." (CGSociety). Com uma selva construida de modo generativo ou procedural, ou seja em que as árvores embebidas em código crescem e se multiplicam de forma "natural" sem a ajuda de qualquer modelador humano. Um universo que inicialmente deveria ter sido criado em tons de azul à semelhança das criaturas mas acabou por ficar verde. Motivo da alteração: "demasiado azul". Em minha opinião mais uma vez por questões de familiaridade. Um universo de plantas azuis seria algo surreal e distante para nós, por outro lado um universo verde é do mais exótico e ecológico que se possa imaginar.


Quanto ao 3-D fiquei convencido da sua possibilidade, não da sua necessidade. Ou seja por nenhum momento me senti perturbado pelo mesmo, nem pelos óculos. Mas também não senti nunca que a minha experiência tivesse sido enriquecida face a um visionamento normal 2d. Aliás senti em certas alturas um efeito de túnel, no qual se perdia o poderoso efeito do wide scope tão característico do 2:35. A experiência de paisagem em toda a dimensão do olhar porque tudo se concentra no centro e em profundidade. Quando tomamos atenção ao detalhe perdemo-nos por vezes a ver a beleza do recorte dos personagens sobre o fundo, mas isto parece surgir como layers (camadas) de elementos independentes no filme. Julgo mesmo que este modo acaba por elevar mais barreiras de artificialidade do que aquelas que retira. Sentimo-nos a olhar para dentro de um mundo “plástico”. Apesar de feito com um nível de excelência muito grande, apesar de eu não ter sentido absolutamente qualquer desconforto, sou muito sincero, não sinto que tenhamos ganho algo com esta tecnologia. Por outro lado acredito que se esta tecnologia for antes pensada para preencher todo o muro frontal mais uns 50% das paredes laterais de uma sala de cinema, aí julgo que poderemos ganhar algo.


Finalmente e sobre o conceito de Avatar em si, julgo que vem levantar questões bem diferentes das levantadas por Matrix e a sua realidade substituída, aliás as mesmas questões recentemente levantadas em Surrogates (2009). Aqui já não temos as questões cartesianas da mente desligada de um corpo refutadas por Damásio. Ou das realidades injectadas (ex. Matrix, 1999), caso do cérebro numa tina, dependente de informação que lhe chega por via de eléctrodos. Temos antes uma pessoa completa, mente e corpo, que por sua vez controlam um outro corpo em pleno estado acordado. Aliás o filme exemplifica este modo constantemente através dos robôs grandes que são controlados por militares no seu interior.


Posto tudo isto Avatar é uma aventura através da imaginação de um criador, é mais um mundo-história do tipo dos criados na arte dos videojogos do que propriamente a narrativa finita de um filme. É um mundo-história atractivo e cativante, um escape do nosso mundo. Avatar não nos deixa indiferentes, ficamos colados naquele universo durante muitas horas após o seu visionamento...

fevereiro 01, 2010

Narrativa em Haneke

Excelente momento da entrevista da Film Comment (Nov.-Dec. 2009) a Michael Haneke na senda do seu último filme The White Ribbon (2009) em que este desmonta e explica o modo como constrói narrativamente os seus filmes.
FC: Except for a brief and vague remark at the beginning, the narrator does not reflect on anything beyond this one story and these local characters. And his last words are: “I never saw any of them ever again.” The paradoxical effect, of course, is that we immediately start to think of where and when we might have encountered them in other shapes—throughout history or in our own lives. This is a good example of your double strategy to leave some things open but also leave enough traces for substantial interpretation.

MH: I always look for the places in a story where leaving things open can become really productive for the viewer. I often compare filmmaking with building a ski jump; the actual jumping should be done by the audience. For the filmmaker, this is pretty hard—it’s much easier to do the jump yourself, to do it for the viewer. Because there’s always the fear of frustrating them. What do I have to indicate? What do I leave out? How much can I not spell out when constructing a film and still not frustrate the audience? Such strategies have become widely accepted in modern literature, but much less so in cinema. That’s a bit sad.

FC:When writing a script, do you always have too much stuff at first, too much explanation, and then you hack away at it?

MH: It’s an issue at an earlier stage—during construction. That’s when I ask myself all these questions. When I start writing the actual script, the storyline is already set. The actual writing is a pleasurable process that also involves the unconscious. But before that I need to know in detail the economy and the means of the narrative. I don’t think that any artwork based on a vector of time can be constructed in a free-flowing manner. You can certainly write a novel or a poem without knowing at the start where it will lead you. The author of a book can navigate differently from its reader. But the distinct vector of time involved in any drama, film, or musical piece asks of you to include a notion of the viewer or listener in your artistic construction. In film this presupposes, of course, that the mise en scène will be on the same artistic level as the writing. The films that have really excited me, emotionally and intellectually, were always created from such a unity, the unity of form and content. It may sound old-fashioned, but I don’t know any sensible approach that would have superseded it.