Nos últimos anos temos assistido a uma demonização da aula expositiva (a lecture), não apenas no discurso mais comum de quem está focado na profissionalização do ensino, com artigos como “Põe as crianças a dormir — mas os professores continuam na mesma a dar aulas”, mas também dentro da própria academia com a revista Science a fazer artigos como — “As aulas não são apenas aborrecidas, são também ineficazes”. Ou ainda agora com a pandemia e o ensino online em que se diz que "Os alunos não detestam o Zoom, eles detestam é as aulas". Tendo em conta a enorme recetividade que as diferentes comunidades têm manifestado a este discurso, percebe-se o contínuo ataque cerrado a que a Escola está votada. É contra esse ataque que escrevo este artigo, porque não podemos permitir que a Escola, o único elevador social consequente e o único garante de uma democracia harmónica, seja rotulada como inconsequente ou nefasta.
Muitos dos que atacam a Escola não estão contra a escola, defendem apenas uma escola diferente e têm toda a legitimidade de o fazer. Viver em democracia é isso mesmo, conciliar mundos e perspetivas diferentes, encontrar as melhores soluções. Mas mesmo assim custa-me bastante aceitar alguma leviandade em certas considerações. Por exemplo, a ideia de que a Escola começou com a Revolução Industrial, seguindo abordagens fabris, apenas porque se democratizou nessa altura é um absurdo. Existem registos de escolas e cadernos diários desde a Antiga Roma, que procuravam seguir modelos anteriores da Antiga Grécia, nos quais se inclui a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles. Quintiliano deixou-nos o “Institutio Oratoria” em 95 d.C., uma obra constituída por doze volumes dedicado inteiramente a práticas e métodos do ensino da oratória, que foi utilizado durante séculos por professores de toda a Europa, enquanto era criticado por outros. Obviamente que as tradições existem para ser transformadas e evoluídas, mas se criámos a História foi porque percebemos que temos mais a aprender e a evoluir com o que já foi feito, do que estando sempre a rasgar tudo e a partir do zero.
Os colegas das Ciências da Educação em resposta, mas também como parte de todo este largo movimento, não têm parado de procurar respostas e alternativas, desde o design das salas de aulas, aos modos letivos (flipped, blended, etc.), temos assistido a uma profusão de propostas, que se socorrem de todas as possibilidades que as tecnologias de informação e comunicação têm potenciado. Na verdade, estas mesmas tecnologias transformaram muitas indústrias ligadas à comunicação tal como a do jornalismo, do cinema ou da música. E por isso, muitos sentem ânsia por ver acontecer o mesmo na Educação. E muito haveria a dizer sobre isso, desde logo como o Livro ou o Teatro não sofreram qualquer dessas transformações, porque em essência a transformação operada aconteceu apenas ao nível dos processos de distribuição, processos nascidos apenas no século XX, e não nos processos criativos.
O texto já vai longo, e o meu motivo para o escrever tem que ver apenas com o discutir da ideia de Aula, e explicar porque é, foi e continua a ser importante. Como tinha dito, o prolongamento de um processo por mais de 2000 anos, deve alertar-nos para a possibilidade de se poder ter esgotado parte da sua possível inovação. Isso aconteceu com a Roda, com o Garfo, a Faca, a Cadeira, e no caso da Aula, para mim, estamos no mesmo ponto. Obviamente que posso fazer garfos de muitos e novos materiais, e posso continuar a reimaginar a Cadeira, mas isso não me dará uma nova especificidade em termos da física da Roda. Mas então porque é a Aula eficiente?
A principal razão é que ela é um enorme facilitador do acesso ao conhecimento humano. Aquilo que um professor faz numa Aula é sintetizar de forma estruturada, em menos de 1 hora, um manancial enorme de ideias, adaptando-as ao contexto e mundividência dos alunos que estão à sua frente. O livro também sumaria, mas não lemos um livro numa hora. Mais, se quisermos saber sobre algo de que nunca ouvimos nada, nem sequer saberemos que livro ler. Por outro lado, entrar numa matéria de que nada sabemos, sem o contexto de outros livros, obriga-nos a ir a esses outros livros buscar definições para conseguir compreender o que estamos a ler. Isto só se torna mais complicado com a internet, onde a quantidade quase infinita de opções acaba ofuscando as poucas fontes de confiança. No final, um livro que poderíamos ler em 10 horas, leva 30 ou 40. Em termos puramente comunicacionais, o livro também não se adapta ao seu público, fala de forma igual para todos, estejam em que país ou cidade estiverem, sigam que religião seguirem, vivam segundo os valores culturais que vivam. Por último, o livro não responde de volta. Qualquer dúvida, terei de ir atrás de outros livros, e se tiver sorte encontrarei a resposta concreta à minha dúvida. Ou seja, se pensarmos o livro como o equivalente mais próximo (a internet é apenas um depósito gigantesco de informação, ao contrário do livro que circunscreve o tema a trabalhar) em termos de guia para o conhecimento, as vantagens de ter um professor a lecionar um grupo de estudantes são enormes.
Agora, é preciso ter a consciência de que o Ensino não é feito apenas de aulas expositivas, não o é porque nunca o foi. Existe uma tendência para estereotipar todo o ensino como aulas em que o professor, tipo autómato, se senta na frente de alunos a debitar informação, mas isso não tem qualquer relação com o mundo real. Quando entrei no jardim-escola, em 1978, a primeira coisa que aprendi foi a usar cores nos meus desenhos, a construir castelos, e a escrever o meu nome. Quando cheguei à primária, comecei a fazer cópias, ditados, cálculos e experiências com a natureza. Na Universidade, onde hoje leciono, por cada 1 hora de aula expositiva, leciono em média 2 a 3 horas aplicadas, em que os alunos usam o que foi discutido na exposição para desenvolver os seus projetos.
Pode-se dizer que nos últimos anos houve até alguma evolução na sistematização terminológica destes processos, para minimizar de algum modo a estereotipização nefasta da escola. Veja-se a imagem abaixo em que procuro dar conta do modo como se cruzam os Conhecimentos, as Aptidões e as Competências.
Assim, temos que os Conhecimentos são particularmente trabalhados nas Aulas Expositivas, enquanto as Aptidões o são nas Aulas Aplicadas, para depois poderem então emergir nos estudantes na forma de Competências. Conhecimentos e Aptidões são ambas fundamentais. Saber fazer qualquer coisa, ter desenvolvido uma aptidão que serve uma indústria sem substrato de conhecimento, sem desenvolvimento de pensamento sobre o quê, como e porquê, limitará o potencial desse Estudante à pura mecanicidade da tarefa. Ficando-se por aí, a escola não poderia funcionar como elevador social, já que treinar apenas para fazer não oferece as ferramentas — as competências — para que se ultrapasse o reduto da realidade imediata e sonhe com um futuro diferente.
Mas continua a ser comum ouvir a sociedade queixar-se e mesmo a questionar publicamente o valor da aula, dizendo que nada ali aprenderam, que nada recordam do tempo em que andaram na escola, ou como os estudos que demonstram como os alunos recordam pouco do que é lecionado na aula expositiva. Ora, o problema aqui não pode ser atirado para a Escola e para os Professores. Parem para pensar nos livros que leram no ano passado, e há 2, 3, para não dizer 10 anos, e pensem no que se lembram? Aparentemente e à superfície nada. Mas isso acontece apenas à superfície. Porque se o simples facto de nada se lembrarem fosse suficiente para descartar uma atividade, então os livros e o ato de leitura já teriam sido banidos pela sua enorme ineficiência. O problema é que o nosso cérebro não funciona assim, ou seja, nós não somos apenas aquilo que recordamos de modo consciente, 3 dias ou 1 ano depois, nós somos feitos de tudo aquilo com que contactamos. Umas coisas marcam mais do que outras, mas cada uma à sua maneira vai deixando a sua marca em nós. Mas talvez o mais expressivo disto fique perfeitamente enquadrado na seguinte frase de Emerson:
“Não consigo lembrar-me dos livros que li mais do que das refeições que comi; no entanto, foram eles que fizeram de mim aquilo que sou".
― Ralph Waldo Emerson
Não faltam estudos explicando porque acontece este esquecimento, e também como se evita o mesmo, e a fórmula é única e igual desde que nos tornámos Sapiens Sapiens, ou seja, pela Repetição. Se deixarmos de voltar ao livro, às ideias que o professor explicitou na aula, elas vão acabar por se desvanecer da nossa cabeça (ver "Make it Stick", uma obra de Henry L. Roediger, Mark A McDaniel e Peter C. Brown). Elas não permanecem ali como acesso fácil, a lá Google, mas o efeito que elas têm sobre aquilo que somos é muito mais profundo do que recordar um facto, nós somos, queiramos ou não, o mundo em que vivemos, e isso inclui todas as pessoas com que nos relacionamos, e obviamente os livros, filmes, e jogos que consumimos.
A aula expositiva do professor é fundamental para lançar a semente, mas cabe ao estudante regá-la, e tratar bem dela, sem o que ela nunca chegará a florescer. Aliás, a semente para ficar bem plantada exige uma presença efetiva na sala de aula, algo que nem sempre acontece. Se o aluno está lá, mas não está a ouvir, a tentar fazer sentido do que está ser dito. Se está lá sentado, mas não faz questões, nem tenta compreender as perguntas que os seus colegas fazem, então ter lá estado ou ter ficado a dormir é praticamente o mesmo. E não digam que cabe ao professor ser ator e seduzir, porque o professor é mero veículo do conhecimento, ele deve facilitar a aprendizagem, mas não tem a obrigação de entreter ninguém.
Aliás, quem mais se queixa do professor não ser bom é, tendencialmente, o mesmo grupo dos que não leem porque dá trabalho, mas dizem que é por não ter tempo. Podem até ver maratonas de séries, esgotando 15 ou 20 horas de um fim-de-semana completo, mas dizem que para ler falta tempo. Mas o processo de leitura, seus benefícios e ganhos, não é comparável ao processo de visionamento audiovisual. Tal como a presença e participação numa aula não é comparável a qualquer livro, filme ou videojogo.
Excelente exposição! Concordo totalmente! Há uma crescente desvalorização do professor e da Escola, enquanto instituição e trave mestra da nossa sociedade. A pedagogia, obviamente, tem de evoluir, adaptar-se, criar novos mecanismos par captar a atenção cada vez mais escassa dos alunos. Há abordagens interessantes como as de Paulo Freire ou de Rabindranath Tagore; acima de tudo há pouca motivação pela aprendizagem e isso tem que ver também com os inúmeros estímulos diários a que estamos sujeitos, com o facto de que abrimos demasiados pacotes e descascamos poucas coisas, há uma habituação aos resultados rápidos, há resistência à dor e sofrimento que o processo de aprendizagem acarreta. Nada poderá substituir a magia de um professor motivado e que motiva. Espero que a Escola não morra.
ResponderEliminarNa verdade, do ponto de vista cognitivo continuamos a ser meros sapiens sapiens, por isso não existe grande alternativa à realização de esforço para aprender e erguer-se enquanto ser pensante. A dor da aprendizagem pode ser atenuada com a facilidade genética ou com o prolongar da experiência de aprendizagem, mas ainda assim, não existem formas de construir passadeiras vermelhas para ninguém.
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