novembro 13, 2016

“O Castelo” (1926)

O Castelo” (1926) é o terceiro e último romance de Kafka (1883-1924), depois de “O Desaparecido” (1927) e “O Processo” (1925), todos incompletos, todos publicados postumamente e contra à sua vontade. Este conjunto de dados, parcos, mas capazes de ilustrar um padrão, conseguem muito rapidamente e de forma algo óbvia dar conta do tipo de autor que temos pela frente, do seu mundo e forma de estar na vida. Kafka viveu apenas 40 anos, viveu-os intensamente e totalmente dedicados ao amor pela literatura, mas sem nunca alcançar o desejado. Insatisfeito com o pai, com o mundo, com a sua escrita, foi alguém que se dedicou mais aos obstáculos da vida, do que àquilo que esta tem de bom para nos oferecer. A narrativa de “O Castelo” reflete totalmente esta personalidade.


Ao longo de quase 400 páginas seguimos K. na sua demanda, podemos dizer quixotesca, por chegar ao Castelo, enfrentando mil e um obstáculos — mesquinhos, incompreensíveis, obscuros, obtusos, lógicos, humanos, burocráticos — que contribuem para o desenho de um labirinto, que facilmente se compreende porque fez as delícias de Jorge Luís Borges. “O Castelo” é um jogo, cabendo a K. e o seu leitor, encontrar a fórmula correcta para aceder ao centro do labirinto, o seu significado.

Kafka constrói aqui um romance profundamente espacial para dar conta da vastidão do sentimento de desolação. Ou seja, Kafka é brilhante no trabalho psicológico, mas é-o de uma forma muito particular, totalmente distinta da abordagem tradicional, já que não se dedica a traçar os perfis dos seus personagens, e talvez por isso não seja uma obra fácil para muitos dos que se aproximam na esperança de encontrar mais uma obra dentro do alinhamento geral. Por outro lado, este modo de trabalhar a psicologia pelo espaço, acaba por acarretar consigo uma outra particularidade, que é o de se desligar do particular para abraçar o abstracto. Ou seja, para dar conta espacialmente do seu objeto, Kafka tem de projetar os conflitos humanos num espaço e conjunto de obstáculos que impedem o acesso ao seu centro. Esta abordagem evita a particularização e afasta-se do concreto, levando consigo um grande grupo de leitores, mas atrai um outro grupo, o mais embrenhando na reflexão, particularmente a interpretação. Assim, não admira que não só este “O Castelo”, como toda a obra de Kafka, seja uma das obras do cânone mais estudadas academicamente, com leituras interpretativas que vão das abordagens Marxistas, Existentialistas, Psicanalistas às Deconstrucionistas e Estruturalistas, passando pelas Religiosas e Esotéricas.

No final do livro, mesmo que este não tenha fecho, termina a meio de uma frase, não por falta de tempo de Kafka, mas porque simplesmente não o quis ou não conseguiu, podemos encontrar a chave, o significado. Cada um de nós vê ali o seu Castelo, cada um de nós projeta nos obstáculos encontrados por K. os obstáculos das suas vidas, cada um de nós encontra-se em direcção à sua própria demanda interior, e por isso a chave deste Castelo somos nós mesmos.

novembro 12, 2016

“Kinoautomat” (1967), o primeiro filme interativo

Uma das razões que me trouxe à conferência ECREA 2016 em Praga, foi poder ver ao vivo o primeiro filme interativo da história, “Kinoautomat” (1967). A sua produção teve como objetivo uma demonstração tecnológica no pavilhão da antiga Checoslováquia, na Expo 1967, em Montreal. O filme além de requerer comandos distribuídos pela audiência, requer ainda um apresentador que interage com a audiência e com o filme. Neste caso tivemos a sorte de ter a realizar esse papel, a filha do realizador Raduz Cincera, Alena Činčerová.



A sessão dura cerca de uma hora e um quarto, para um filme que terá à volta de trinta minutos. Os comandos originais estavam fixados aos sofás da sala de cinema (com cerca de 124 lugares), neste caso deram-nos comandos portáteis, que tivemos de devolver no final, estando na sala cerca de 60 pessoas. O filme é a preto e branco, e é fundamentalmente uma comédia negra, muito típica dos anos 1960, recorrendo a alguns dos estereótipos mais banais, como “a vizinha do lado”, a “família que chega da província”, o “louco que tudo sabe”, ou ainda “a velha inocente que é muito pouco inocente”. Contudo, e apesar de todos estes clichés, fez-me rir como já não ria há bastante tempo, recordou-me imenso o cinema de Louis de Funés. Claro que estar inteiramente predisposto e altamente expectante terá ajudado, mas a verdade é que Cincera consegue imprimir ritmo, produzir cenas curtas carregadas de leitura de enredo que nos fazem ver múltiplas possibilidades muito rapidamente, e por isso ainda mais desejosos de participar nas escolhas propostas.

O cliché, da vizinha bonita do lado que fica trancada fora do seu apartamento, é o mote para todo o conflito.

O sistema de escolhas, e tendo em conta que é coletivo, funciona numa lógica de maioria. Ou seja, existem sempre apenas duas opções, verde e vermelho, e as cenas são escolhidas em função daquilo que a maioria presente em sala escolhe. Parecendo um sistema meramente mecânico, devemos relembrar que em 1967 a Checoslováquia vivia debaixo de uma sistema totalitário comunista, sem direito a eleições, votos, nem escolhas de maiorias. Nesse sentido, uma das grandes questões que terá estado na base da invenção deste sistema terá sido a crítica ideológica. Num país em que não se pode escolher, poder escolher como deve prosseguir o filme, é no mínimo instigador, mas na verdade revolucionário! Não admira que o filme tenha sido proibido no país, e mesmo impedido de circular durante muito tempo pelo próprio governo da Checoslováquia.



Algumas escolhas são triviais, não nos movem particularmente, outras são até bastante duras, ainda que tratando-se de comédia negra, deixam-nos hesitantes, questionam-nos sobre o tipo de pessoa somos, "Eu não posso deixar de...". Por outro lado, por vezes, a questão passa a um estado meta, em que deixamos de nos colocar no lugar do personagem, e passamos a pensar no efeito na história e no que desejaríamos ver acontecer no filme e com os personagens.

A inovação, ou melhor, a grande distinção, face ao cinema interativo que veio a suceder a "Kinoautomat" está no apresentador, o entertainer. O seu papel era o de orientar a audiência no processo de escolha, explicar e garantir que estes realmente interagiam, já que aquela era uma experiência nova. Mas do que pude apreciar, acaba servindo muito mais do que isso, o facto de termos uma pessoa que fala connosco, que dá ordens ao filme, e nos questiona, faz com que as pausas para interatividade, tão malfadadas pela quebra de ritmo, se tornem prazeirosas, e sejam elas parte da obra. Ou seja, o filme interativo não é apenas o que vai surgindo na tela, nem a interação é apenas o que nós escolhemos no comando, é antes um todo, uma instalação, uma performance, um jogo, que cria um espaço de relação interno à audiência e desta com o apresentador, e desses todos com os personagens no filme, na tela. E é por isso que se gera uma experiência tão vívida, tão entusiasmante. Não sou apenas eu que escolho, enquanto escolho penso nos outros, sinto-os ali, meço-lhes o pulso pelo que a maioria escolhe, a própria apresentadora vai fazendo comentários ao tipo de audiência que temos ali naquela noite — conservadores, curiosos, impulsivos, pecaminosos, etc.

As escolhas da sala surgem no ecrã, em pequenas bolas, que crescem de baixo para cima, como um gráfico que sobe, até que se identifica o lado escolhido pela maioria.


Fluxograma de "Kinoautomat" criado por Brian Moriarty, no qual se pode ver como a maior parte das escolhas, são mera ilusão. Por outro lado, não podemos esquecer que a projeção em 1967 era feita com grandes máquinas de projetar película, controladas manualmente, o que impossibilitaria uma criação real de vários ramos de nós.

Em relação ao desenho das escolhas, e pelo que consegui ver, e depois pesquisar online, elas são bastante limitadas, como seria expetável, criando-se muito mais ilusão de escolha, do que consequência efetiva. Contudo, a audiência não sente essa ilusão, a audiência participa ativamente, envolve-se fortemente, e deseja agir nessas escolhas. Instigada pela força questionadora do filme, mas também pela apresentadora que nos espevita a curiosidade do que poderá vir a seguir. Aliás, um dos elementos que mais funciona para esta ativação da audiência, é que em cada paragem do filme, para cada escolha, a apresentadora levanta ligeiramente o véu do que pode vir a acontecer, deixando rolar alguns frames de cada uma das diferentes opções, o que torna ainda mais estimulante todo o processo de escolha.

Trailer recente da experiência

Para fechar, foi sem dúvida uma sessão de cinema, ou experiência, não só muito animada, mas imensamente participada e sentida, a demonstrar todo o poder do cinema interativo, quando bem pensado. Mesmo que recorrendo a ilusão de interação, mesmo que recorrendo a clichés, o trabalho é irrepreensível, o que acredito ter contribuído, e continuar a contribuir, para inspirar muitos dos que se aventuram por estes caminhos.

novembro 11, 2016

Storytelling minimalista

O projeto Future of StoryTelling traz-nos um belíssimo filme com Dan Pinchbeck, a passear-se pelos cenários que inspiraram o videojogo “Everybody's Gone to the Rapture” (2015), enquanto discute o modo como a sua empresa de jogos, a The Chinese Room, funde jogo com história.





Para Pinchbeck é acima de tudo uma questão de espaço, a criação de uma arquitectura capaz de envolver o jogador, de o colocar no centro, a ponto de o obrigar a iniciar ele próprio o processo de contar a história. Ou seja, o que se objetiva, não é contar uma história, mas antes plasmar o universo da história num espaço tridimensional capaz de receber o jogador. No fundo Pinchbeck fala de algo que já conhecemos, o “environment storytelling”, que baseia o seu processo de dar conta da história nos detalhes colocados num ambiente em que se lança o recetor.

Ao longo dos quatro minutos do filme, Pinchbeck vai insistir na ideia de co-autoria e colaboração na criação da história, defendendo o universo de jogo como impulsionador, no qual um conjunto de blocos de história são dispersos, cabendo ao jogador juntar as peças do puzzle, e encontrar a sua própria explicação, em vez de esperar que esta lhe seja ditada pelo jogo.

Aquilo que aqui se discute, e que é a força motriz deste tipo de storytelling, é minimalismo, algo que estava já antes definido como storytelling minimalista, que podemos encontrar múltiplos meios expressivos. Ou seja, a criação de uma linha de eventos subtis, sem conexões fortes, que garante nós da história em branco, abrindo assim espaços a serem preenchidos pelo recetor. O minimalismo não é apenas um modo de minimizar a informação dada, é também um modo de obrigar o recetor a participar na criação dessa informação em falta, o que acaba contribuindo para um maior sentimento de agência, de participação, e claro, co-autoria.

O uso de storytelling minimalista funciona bem nos videojogos porque se torna menos intrusivo, dá espaço ao jogador para que ele se vá inteirando do mundo, e ao mesmo tempo, fazendo desse mundo, o seu também. Da mesma forma, liberta o jogador de um esforço cognitivo dual, entre o jogar e seguir uma história, já que a história lhe chega ao ritmo que o próprio jogador define, podendo este optar por investir no jogo, sem nunca perder nada da história.

Dan Pinchbeck — Parachuting into the Story (FoST 2016)

Assim, e como Pinchbeck acaba por aceitar no final do filme, os videojogos não estão aqui a fazer nada de propriamente novo. Mais do que tudo, o que interessa reter de mais esta conversa, é que as histórias constroem-se nas mentes das pessoas, tudo aquilo que desenhamos, desenvolvemos e criamos materialmente são apenas estímulos à imaginação, são formas de ativar o processo criativo de cada um.

novembro 10, 2016

“Austerlitz” (2001)

Tinha talvez demasiadas expetativas, tinha lido algumas notas sobre o modo como Sebald trabalha as memórias, as fronteiras entre o real e o imaginado, entre a ficção e não ficção, e ao entrar em “Austerlitz”, apesar de ver tudo isso, não o senti. O discurso apesar de erudito e fluído, cria uma sessão de prisão, de repetição, sem movimento, como se nunca saísse do mesmo lugar...


Reconheço que o trabalho é original, que existe aqui um esforço, mais académico mas talvez por isso menos emotivo, no sentido em que tudo parece demasiado refletido, pensado para produzir um determinado efeito, mais como se o livro fosse desenhado e não tivesse brotado criativamente. Esta minha crítica, pode não fazer muito sentido, já que muitas obras nascem desta forma, nomeadamente as mais complexas, contudo neste caso, sinto que esta estrutura pesa na leitura, que o livro não consegue ser suficientemente orgânico para se dar a uma leitura tradicional, acabando por nos obrigar mais a uma leitura em modo de estudo.

Os livros de Sebald são fruto de um desencantamento com a academia, cansado de publicar trabalhos académicos, que pouco ou nenhum impacto tinham nos estudos literários, resolveu começar a testar as suas ideias na criação de obras literárias. O interessante em Sebald é que ele não cria uma divisão clara entre o seu trabalho académico e ficcional, ele acaba por desenvolver antes uma nova técnica para fundir o real com o ficcional. Tanto que é o próprio Sebald a dizer que o seu trabalho é do tipo “ficção documental”, o que em literatura é mais difícil de aceitar, do que por exemplo no cinema. O cinema pela sua essência colada à fotografia, cópia do real, sempre se digladiou entre o real e o ficcional.


Aliás, repare-se como Sebald vai exatamente buscar a fotografia para intensificar essa sua necessidade de real. A presença de fotografias no texto, é uma das coisas que mais gostei neste livro, já que existe uma espécie de pavor do mundo literário face às imagens, o que até percebo. Se a imagem pode ampliar o símbolo texto, no sentido em que nos ajuda a ver o que está escrito, ela tem um outro lado, pernicioso, que é o de encurtar e encerrar o processo imaginativo do leitor. Ou seja, a imagem cola rostos específicos, elementos visuais concretos, ao texto, que impossibilitam o leitor de criar os seus próprios. Isto no fundo é a velha discussão entre o poder do texto e da imagem, ambos são imensamente relevantes, mas possuem funções e propriedades narrativas muito distintas. E nesse sentido, quando Sebald opta por trabalhar com fotografias de forma tão abundante no livro, acaba por criar uma tensão na leitura, entre os momentos de texto que nos libertam para imaginar o mundo de Austerlitz, e as fotografias, que nos aprisionam num mundo específico.

É claro que o trabalho de Sebald, e a originalidade, não se esgotam na junção de imagens e texto, aliás nesse caso concreto existe já toda uma enorme tradição de livros ilustrados, e talvez por existir toda essa tradição, Sebald não se limita, nunca, a usar as imagens como ilustrativas do texto. O modo como ele cola as imagens é, diria eu, algo subliminar. Ou seja, as imagens não são muito claras, nem o pretendem ser, elas como que servem apenas de “alimento” ao texto, sem fechar demasiado a sua leitura. Por outro lado o texto, e o seu contorno circunspecto e ocluso, de que falava no início, serve-se das imagens para ampliar o seu sentido. Sebald, cria uma espécie de círculo, ou elipse, entre o texto e as imagens, que acaba por contribuir para a intensificação dessa indiferenciação entre o ficcional e não-ficcional.

Esta construção claramente serve o grande propósito de Sebald, de trabalhar imagens presentes nas memórias, por natureza difusas, com falta de evidências e muitas dúvidas. Quantas vezes demos por nós na dúvida se algo era uma memória real, ou se era algo imaginado. Isto é tanto mais verdade com memórias abaixo dos 5 anos, que é o foco deste livro. As que tenho dessas alturas, foram, e tenho hoje essa quase certeza, implantadas pela repetição de histórias dos meus pais, junto com meia-dúzia de fotografias que sobreviveram desses tempos. Por isso quando reflito sobre esses tempos, acabo por me questionar muitas vezes, se estou verdadeiramente a recordar algo que vivi, ou antes, algo que construí mentalmente a partir de imagens e histórias.


Se no meu caso, consigo facilmente distinguir as memórias que tenho anteriores à idade dos 6 anos, porque vivia noutro país, no caso de Austerlitz isso é bem mais gritante porque não só vivia noutro país, como vivia aí com os seus pais verdadeiros, tendo depois disso passado a viver com pais adotivos. E é isto que motiva a viagem nas memórias de Austerlitz, tentar recuperar os pais pelas memórias, visitando de novos os lugares, procurando impressões perdidas nas paisagens, nos lugares, nas pessoas que ainda aí se mantêm. Como se não bastasse, essas memórias vão cruzar-se com o tempo do início da Segunda Guerra Mundial, e aquilo que Austerlitz acaba por descobrir sobre os seus pais, as suas origens, é desolador, aqui o livro por momentos assume um pendor mais tradicional, com um enredo movido por eventos de descoberta, claramente objetivando produzir em nós algumas das emoções mais fortes da leitura.


Por outro lado, e aqui mais uma vez o cruzar entre ficcional e não ficcional, senti um certo embelezar da recuperação das memórias, no sentido em que podendo recordar-se muito, existe uma clara ampliação dessa capacidade por parte de Sebald, já que falamos de uma criança com 5 anos, muito do que se memoriza nestas alturas é perdido no tempo, se não for reimprimido pela repetição, como dizia acima, seja por continuar a viver nos mesmos locais e com as mesmas pessoas, seja porque se mantém registos (fotográficos ou outros) que se revisitam, seja porque nos vão recontando o que vivenciamos. Contudo, e como acontece na relação entre imagens e texto, apontada acima, essas repetições servem mais como ilhas, ou âncoras de memórias, já que o resto é criado pela fantasia do nosso imaginar. Deste modo, acaba sendo esta mesma fragilidade das nossas memórias que Sebald dá conta muito bem, na certeza e incerteza, mais ainda quando aceitamos que somos apenas estas, ou seja, enquanto seres, enquanto pessoas, o nosso Eu só existe enquanto conjunto de memórias... e é por isso talvez que o Alzheimer se torna tão aterrador…

Por fim, e para fechar, como dizia no início, este texto de Sebald, serve mais a reflexão do que o prazer imediato da sua leitura. Senti várias vezes algum tédio na sua leitura, custou-me ligeiramente terminar, e no final senti que me sabia a pouco. Contudo, agora que me obriguei a refletir sobre o livro, vejo o quanto mais existe ali, que não se dá à superfície. E por isso mesmo acredito que aqui terei de voltar, para poder chegar mais perto das intenções de Sebald.

novembro 09, 2016

"The Progress Principle" (2011)

Teresa Amabile e Steven Kramer, ambos professores de psicologia, realizaram um estudo com 238 empregados em 7 empresas, a quem pediram para todos os dias preencherem um diários das suas atividades, tendo tudo resultado em mais de 12 000 entradas que foram depois analisadas qualitativamente. O seu achado, dá nome a este livro, e apesar de ser bom, sabe a pouco. Não que o estudo não seja válido, mas porque a conclusão não difere tanto de outros estudos sobre motivação já existentes, e que são aqui completamente ignorados.


Este estudo interessava-me em particular, porque a variável de Progresso é essencial nas narrativas e nos jogos, e é por isso que a tenho trabalhado, no sentido de a identificar melhor para assim compreender melhor o seu uso criativo, desde logo entender melhor como nós nos movemos em função desse progresso. Mas o que aqui se apresenta é parco.

Ou seja, como resultado final Amabile acaba por nos dizer que aquilo que mantém as pessoas motivadas no seu trabalho, é receber feedback que dê conta dos avanços nas tarefas. E que para tal é preciso que os chefes e gestores, sejam capazes de dividir o trabalho, e esforço, e por sua vez sejam capazes de garantir que o feedback é realizado. Concordo em absoluto, mas isto é aquilo que já está contido na segunda variável de Deci, a "competência”, de que já aqui falei antes, e que como digo também, já tinha sido identificado por Vygotski, bastante antes. Ou seja, nada de novo.

Este livro de Amabile é curto, porque ao centrar-se apenas nas competências, esquece os outros dois princípios de Deci, a Autonomia e os Relacionamentos, sem esses ficamos com todo o processo coxo. Um empregado, sem autonomia, que seja obrigado a fazer apenas o que lhe mandam, que não possa dar nada de si para o processo, é um trabalhador desmotivado, o progresso só, não chega, é preciso significado, e esse advém daquilo que cada um faz com o mundo com que interage. Por outro lado, o trabalhador precisa de poder discutir essas tarefas com os pares, compreender como se equipara, o que faz melhor, ou menos mal, precisa de ter um espelho que contribua para correção e melhoramento.

Neste caso concreto, e já que Amabile escreve o livro orientado a gestores, as suas preocupações não deveriam centrar-se tanto no design do processo, mas mais nas pessoas, nomeadamente nos tais gestores. Porque se o Progresso é um bom indicador sobre como agir, não chega no caso do gestor ser apenas um bom técnico, é preciso ser-se muito mais na capacidade de relacionamento pessoal e social, enquanto líder.

Amabile limita-se no final a apresentar meia-dúzia de conselhos e recomendações aos gestores, baseados no tal Progresso, mas que não dizem muito, parecem simples senso comum, ficando a sensação que mais valia ter feito um livro para divulgar os resultados das entrevistas, dos diários analisados, e não se terem focado em criar grandes teorias, menos ainda dar grandes conselhos.

novembro 04, 2016

"Piper" (2016)

A nova curta de animação da Pixar usa e abusa da emoção empática, sem necessitar de para isso antropomorfizar excessivamente os seus personagens, bastando o comportamento, os movimentos, sons e expressões para nos converter, nos colocar no lugar de Piper e compreender o que sente, e o que está prestes a descobrir. A Pixar é sobejamente reconhecida, e quando digo Pixar falo da empresa, e não de autores, porque falo do sistema criativo que eles têm montado e que lhes permite espremer ao máximo as nuances expressivas, e assim alavancar em 6 minutos, um leque diverso mas intenso de emoções.




Claro que para isso contribui muito a autonomia que se garante aos criadores, e o tempo reservado à investigação. A partir de um simples teste com escolopacídeos (os pássaros do filme), que Alan Barillaro costuma encontrar no caminho para o trabalho, veio a incitação por parte de John Lasseter e Andrew Stanton para que avançasse para a criação de uma curta. Aceite a indicação, Barillaro passou 3 anos a desenvolver esta mesma curta. Não são 3 meses, o que seria normal numa pequena empresa de VFx, aliás 3 meses passou Barillaro só a investigar as aves no local, a analisar os comportamentos, o modo como as penas se movimentam.

Podemos questionar o tempo dedicado, mas é totalmente compensado, a primeira vez que vi a imagem do pequeno pássaro depois de molhado, foi uma total surpresa, nada ali é cliché, mas antes imensamente detalhado, permitindo uma qualidade que se impregna na curta, elevando-a acima do mero contar de história.


Contudo deve-se dizer que a curta não foi criada apenas para bel-prazer de Barillaro, ou como capricho de Lasseter ou Stanton, muito menos como postal de preparação emocional para “Finding Dori” (2016), com o qual se estreou no cinema. O objetivo de fundo, e que garante o financiamento de algo tão caro, está relacionado com a necessidade da Pixar de desenvolver projetos que avancem a sua tecnologia de computação gráfica, neste caso concreto, os avanços desenvolvidos foram quase todos na área das penas, mas também da espuma da água do mar.


Trailer "Piper" (2016) da Pixar

Para fechar, e voltando ao início, o realismo, quase naturalismo, apresentado pela curta, é algo recente na Pixar, mas é algo que acaba funcionando muito bem. Tanto na exatidão dos comportamentos dos pássaros, na ausência de linguagem restringindo-se aos chilreios, ou na apresentação do ambiente, o mar, com a movimentação da ondas e das conchas submersas, ou ainda os detritos ambiente e as bolhas, como ainda, e aqui interessante por ser cópia de algo artificial que passou a convencionar o real, falo dos movimentos de câmara e montagem, que imitam na perfeição os tradicionais documentários de vida selvagem.


"Piper" (2016) da Pixar [Filme completo em streaming]

outubro 31, 2016

"Far Cry Primal" (2016)

Não apresenta nada de propriamente novo, é simplesmente Far Cry, mas no seu melhor. Desta vez optou-se por realizar um mudança drástica no tempo, recuando 10 mil anos, e assim lançar-nos em plena Idada da Pedra, o que acaba criando o cenário perfeito para o tipo de jogo estimulado pela série, a sobrevivência.





"Far Cry Primal" pode-se dizer que tem potencial para surpreender quem nunca tenha jogado a série, funcionando melhor até que os restantes, já que dada a época em que acontece, a violência e sobrevivência são perfeitamente justificadas. Por outro lado, para quem tenha seguido a série nos últimos anos, vai sentir-se tão à vontade, que tudo aquilo que o jogo lhe pede funciona de modo intuitivo, criando uma enorme sensação de flow, puro prazer de jogo, ao longo de toda a main quest, talvez com alguma sensação de repetição mais perto do final.

Se tenho criticado a história nos anteriores, aqui não tenho como fazê-lo, já que estamos num mundo pré-história, interessa a sobrevivência, e como tal, temos um mundo aberto completamente gamificado, capaz de oferecer ao jogador recompensa pelas suas escolhas, opções, e liberdades, e ao mesmo tempo garantir um sentimento de progressão, sem contudo necessitar, em parte, da narrativa.

Se quiserem saber mais sobre o tipo de experiência produzida pelo jogo, dêem uma vista de olhos nas minhas análises do Far Cry 3 e Far Cry 4, que dão conta de muito do que se pode encontrar neste Primal.

outubro 23, 2016

A não-linearidade de género

“The Affair” é uma simples série de televisão, mas podia facilmente ser uma grande obra literária, tal é o trabalho de escalpelização psicológica dos personagens, assim como a estrutura não-linear que serve a apresentação. Sendo um produto audiovisual a escrita não chega e aqui podemos dizer que o conjunto de atores foi não só bem escolhido como consegue obter mais ainda de algo já imensamente bom. Estas palavras resumem a minha experiência do primeiro episódio, sendo que a série segue já para 3ª temporada.

Ilustração de Zohar Lazar

Cartaz para a segunda temporada

A história parece seguir o cliché do homem de meia-idade que se questiona sobre o pico da sua vida, o enfrentamento do declínio, enterrado numa relação de décadas com 4 filhos, e que vê novas oportunidades nas mulheres com que se cruza. Contudo, e apesar do cliché, é tudo desde logo escrito de forma tão detalhada, de modo tão íntimo-realista, que o nosso interesse se desperta, seduzido pelas personagens.

Se fosse só isto, a série seria interessante, mas quando na segunda parte passamos a rever alguns dos momentos já passados pelos olhos de uma potencial amante deste homem, tudo muda. Revemos, reavaliamos e reestimamos tudo o que foi dito, tudo o que por nós foi imaginado e projetado sobre aquele homem. A  escrita sobe a patamares novos, mostra e reamostra o real, dando conta das teias de complexidades, mas acima de tudo dando conta do quanto cada um de nós fabrica o seu próprio mundo, demonstrando que o real é muito mais do que aquilo que pretendemos que seja, que não se termina em algo que podemos simplesmente encerrar num igual para todos.

Esta abordagem não-linear, de reapresentação do real em função dos olhos de quem vê não é nova, é até considerada tipicamente borgeana, podendo também, pelo lado do cinema, ser apelidada de rashomoniana. É também uma abordagem muito cara ao mundo das histórias interativas, nomeadamente pelo modo como permite a personalização dos conteúdos em função das diferenças patentes em cada recetor. Contudo, e falo apenas deste primeiro episódio, o seu uso não é aqui meramente estilístico, e mesmo sentindo alguma rigidez pela estereotipagem, serve um desígnio específico da história, o posicionamento de género e sua intensificação dramática. Ou seja, o mundo que o homem em declínio e aberto a um novo mundo vê, é distinto do mundo que uma mulher à beira do precipício vê. Não temos caminhos diferentes, nem temos gostos ou interesses diferentes, mas temos pequenas ações que obrigam o recetor a trabalhar, nomeadamente no desmontar de preconceitos já estabelecidos, obrigando ao questionamento não apenas do que viu, mas mais importante, do que sentiu em cada perspectiva e que entrechoca agora dentro de si…

outubro 22, 2016

Espreitando pelo orifício da culpa

“Borrowed Time” surge a partir de um esquema interno da Pixar que permite que os seus empregados possam dedicar tempo e recursos da empresa a um projeto mais pessoal, sendo por surpreendente que pareça, a primeira animação a surgir do programa, até agora tinham sido todos curtas de imagem real.




“Borrowed Time” socorre-se do principal ingrediente do sucesso da Pixar, o storytelling. Para além de ter uma premissa muito forte, que assenta sobre a emoção complexa da culpa, trabalha tudo de um modo absolutamente perfeito, como tudo o resto que temos vindo nascer nesta empresa de animação. Os primeiros embates e twists são por demais referenciais a toda a história da empresa, que tem sabido gerir emoções fortes, desde a mãe de Nemo à fundição de Toy Story.

Em termos de inovação temos pela primeira vez o desvio do público infantil para um público maduro, algo que foi claramente assumido como objetivo pelos criadores, e algo que podemos dizer totalmente conseguido.  Comprová-lo estão as dezenas de prémios em festivais, o que também me leva a relembrar que esta colocação online, integral e gratuita, do filme é algo limitado no tempo, por isso é aproveitar para ver agora.

O facto do score estar a cargo de Gustavo Santaolalla eleva todo registo dramático a um nível que contribui intensamente para o esquecimento do formato, de animação, ligando-nos apenas à personagens e ao que estas sentem. Tudo em conjunto desenvolvem uma curta de animação que prefiro definir através das palavras do colega Albertino Gonçalves: "Há algo de cósmico nesta curta-metragem. Abarca o mundo e a vida com um punhado de pormenores." 


"Borrowed Time" (2015) de Andrew Coats e Lou Hamou-Lhadj

Esta curta vem amenizar a espera que ainda temos pela frente para entrar no mundo de “Red Dead Redemption 2”.

“A Chave de Casa” (2007)

A escrita de Tatiana Salem Levy é simples mas poética, gera ritmo que nos envolve, cria fluir que nos arrasta. Com uma história que apesar de também simples, está estruturada de modo não-linear, por meio do entrelaçamento de 4 histórias, em paralelo, que se unem na figura da família da narradora. Enquanto primeira obra e enquanto trabalho de projeto a apresentar como parte de uma tese de doutoramento em literatura, é um trabalho surpreendente.


Abertura do livro: “Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. ”
Levy começou a sua tese da forma mais tradicional, desenvolvendo um trabalho de fundo sobre a literatura brasileira contemporânea, contudo a insatisfação com o academismo do mesmo acabaria por a conduzir à criação deste romance, que surge desta forma como a sua primeira obra literária. A essência deste seu trabalho acaba assim por residir na exploração das raízes do Si por meio de uma análise em detalhe das suas ramificações familiares, que são particularmente instigantes pelo resumo que se pode ver aqui:
Excerto: “Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal.”
Na temática, o título da obra, “A Chave de Casa”, e seu leitmotiv, baseiam-se exatamente num mito em redor da partida dos judeus de Portugal. Os judeus, perseguidos pela inquisição em Portugal, fugiam levando consigo as chaves de casa, na esperança de poderem voltar um dia ao que era seu. O livro por sua vez leva-nos do Brasil, à Turquia, na volta passa por Portugal, criando um circuito de costumes, sonhos, ideais, e muitos fantasmas que são a motivação das nossas vidas.

Em termos de estrutura, o entrelaçar narrativo a 4 tempos é sedutor, mantém-nos em suspenso, sempre na espera do próximo trecho de cada história, embora soe por vezes algo formulaico, pouco orgânico, algo que não é alheio à inexperiência de uma primeira obra.

outubro 20, 2016

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881)

Um livro que precisa de ser encarado de dois ângulos distintos, o da história da literatura e o do prazer de leitura. Ou seja, o livro é um marco na literatura brasileira, não apenas por ser do "pai" da sua literatura, mas por ter aqui iniciado, na sua escrita e na do Brasil, todo o Realismo. Na língua portuguesa, tinha Eça iniciado o movimento com “O Crime do Padre Amaro” (1875), ao que Machado não foi indiferente, tal como não vinha sendo indiferente a Zola e Flaubert. Esta obra de Machado de Assis é assim o primeiro tomo da trilogia realista do autor, a que se sucedeu "Quincas Borba" (1891) e "Dom Casmurro" (1899).


Tendo em conta a inovação procurada por Machado de Assis nesta obra, com toda a mudança de registo operada, é natural que no texto se sintam fragilidades, como se sentem na obra de Eça. Estamos a falar de experimentação, da procura de novos modos, o que implica sempre falhar para conseguir ir além. Não estou com isto a dizer que a obra é falhada, longe de mim, antes quero dizer que lhe falta alguma fluidez, algum ritmo, mas que acaba sendo compensado pelo modo como apresenta o seu realismo, com um narrador, diria agressivo, que nunca deixa o leitor em paz, que assume um constante vai-e-vem entre o espaço ficcional e a nossa realidade. Algo que em minha opinião advém da experimentação com o real, parecendo a momentos, não estarmos a ler um romance, mas um texto não ficcional, mas que por outro lado Machado torna praticamente impossível com a premissa de partida, em que o narrador que conta a sua história está morto, o que por sua vez parece também querer aproximar-se de um certo realismo mágico que viria a surgir em força na América Latina do século XX.

Para quem quiser aprofundar a leitura, existe muito por onde se iniciar, desde logo porque o texto está pejado de referências, desde Shakespeare a Stendhal, passando por Homero, Virgílio, Erasmo, Schopenhauer, Bocage, Sterne até às “Mil e Uma Noites”. Sobre a obra em si, muito, mas mesmo muito existe, leituras entretanto realizadas capazes de encontrar traços referenciais desde a sua estrutura à filosofia apresentada na figura de Quincas Borba. Nada que nos admire, já que se o livro foi recebido com algum desconfiança, muito motivado pelo que dissemos acima sobre a experimentação e o novo, a verdade é que Machado de Assis viria a fundar a Academia Brasileira de Letras em 1897, sendo o seu primeiro presidente.


Nota: a obra foi publicada no formato de seriado no ano de 1880, surgindo em livro apenas em 1881.

outubro 17, 2016

Na Síria com uma mãe, em banda desenhada

A Marvel e a ABC News juntaram-se para criar a banda desenhada online “Madaya Mom” (2016), a partir de uma mãe real e do seu diário, escrito por meio de SMS partilhados com Rym Momtaz, produtora da ABC, que por sua vez contactou o artista croata, Dalibor Talajic, para juntos criarem a novela gráfica. O trabalho final é absolutamente brutal, autêntico e doloroso, toda a empatia aqui criada deixa-nos sem margem para continuar a olhar para o lado, e se alguém ainda tinha dúvidas de que é preciso parar o que está a acontecer na Síria, fica aqui mais uma chamada de atenção profundamente humana.



Arte e jornalismo para chegar ao sentir das pessoas

Madaya Mom” é a demonstração do poder da banda desenhada para comunicar, para ser literatura, para elevar a expressividade e tocar as pessoas no seu íntimo mais retraído. É autêntico horror psicológico o que aqui vemos, mas não é de fantasia, é sofrimento de uma família com 5 crianças reais, que passou do dia para a noite, de condições de vida do século XXI para condições de vida pré-históricas, sem acesso a comida, saúde, electricidade, nem aquecimento. Dá vontade de chorar e gritar no virar de cada página...

Não quero dizer mais nada, o trabalho é absolutamente sublime, e atinge todos os objetivos dos autores, que podem perceber melhor vendo o vídeo do making of. Para os professores que queiram usar este belíssimo trabalho nas suas aulas, a ABC disponibiliza ainda todo um Guia para o Professor. Esta não é a primeira banda desenhada sobre o conflito na Síria, já antes aqui tinha trazido “Syria's Climate Conflict" (2014).

Ler "Madaya Mom" na íntegra e gratuitamente.



Atualização: 17.10.2016 19:43
Vi esta notícia no Arts.Mic, entretanto depois de ter publicado percebi que o Público também tinha feito matéria hoje com o tema, e por acaso fiquei bastante bem. Ficam as referências.

outubro 15, 2016

"Vozes de Chernobyl" (1997/2013)

Fez em abril 30 anos o acidente de Chernobyl, um acontecimento trágico da nossa história recente, com ramificações dramáticas em múltiplas frentes, nomeadamente na relação entre o homem e a Terra que nos obriga a refletir sobre o conhecimento que andamos a criar. A tragédia arrepia tanto como fascina, pela nossa incapacidade de lidar com o resultado desse conhecimento, exercendo simultaneamente uma atração por um desconhecido imensamente poderoso, como se miticamente, tivéssemos despertado um Deus da Matéria que contra nós se virou. É sobre isto que Svetlana Alexievich escreve, usando para tal todo um estilo literário muito pessoal, humano, intenso e único.

"Do Deus da ciência e do conhecimento, ou do Deus do Fogo? Neste sentido, Chernobyl ultrapassou Auschwitz e Kolymá. Ultrapassou o Holocausto. Chernobyl sugere finitude. Vai de encontro ao nada.” (p.53)
Em 1986 compreendia pouco do mundo que me rodeava, mas o impacto do acidente chegou-me, mais histórias e mitos do que factos e informação, o que serviu para criar todo um imaginário que nunca deixou de se ampliar com os anos, com a queda do Muro e o jornalismo, com a banda desenhada, o cinema, e depois a internet. Nos anos mais recentes começaram a chegar imagens da Zona, dando conta do abandono e da retoma do espaço pela natureza, e ao mesmo tempo de um fascínio que continua intacto.

"Hotel Polissia" de Quintin Lake2007, Pripyat, Ucrânia

As Vozes de Chernobyl” foi publicado pela primeira vez em 1997, como fruto de 10 anos de entrevistas, tendo sido revisto e atualizado em 2013, podendo assim encontrar-se na versão atual menções a eventos recentes da história humana, contudo a generalidade dos relatos situam-se nessa janela temporal que medeia a primeira década após o acidente. À semelhança de outras obras da autora o registo resulta de entrevistas a centenas de pessoas reais, compostas num todo encadeado que dá corpo a um estilo descrito como polifónico, principal responsável pelo prémio nobel atribuído em 2015.

Quero contudo dizer que apesar de apresentado como não-ficcional, e de se enfatizar o  jornalismo como profissão da autora, a obra deve pouco a esses registos, essencialmente porque não se coíbe perante a falta de prova ou contraditório, não buscando nunca o mero ato informativo. É verdade que a obra de Alexievich brota do real, mas que obras não brotam, existirá outro espaço de onde alguma criação humana possa emergir além do real? São pessoas reais que falam, mas não são máquinas de registo de verdade, são seres criadores de mitos e histórias, por sua vez filtrados pela autora do texto.

O facto das entrevistas serem realizadas com pessoas reais, não torna o texto de Alexievich mais não-ficcional, já que ele se apresenta filtrado de modo assumidamente autoral. O exemplo fotográfico acima dá bem conta do poder significativo da filtragem do real.

Porque a técnica de Alexievich, que dá forma ao seu estilo polifónico, não se limita à filtragem ou escolha dos melhores relatos, não se podendo falar de mera curadoria. O trabalho resulta antes de todo um processo criativo que recorre às entrevistas como material base para a criação do texto final. Das 500 pessoas entrevistadas, a autora selecionou cerca de uma centena, que por sua vez entrevistou mais de vinte vezes, resultando cada pessoa numa “voz”, que se faz representar num bloco de mais de 100 páginas. Alexievich refere em entrevista, no prefácio, que era “como pintar um retrato. Continuava a contactar as pessoas, e de cada vez acrescentava uma nova pincelada.” Estas “vozes” formam assim as unidades de trabalho de Alexievich, que podem funcionar como as tintas do pintor mas que são muito mais densas do ponto de vista humano, contribuindo diretamente para o traço autoral do trabalho.

Aliás, e apesar da obra de Alexievich ter mais de 30 anos, o seu reconhecimento agora, é imensamente representativo da época em que vivemos, do momento em que finalmente aprendemos a reconhecer o valor do remix na cultura humana, em que compreendemos como a criatividade não existe sem esse mesmo processo de remix, já que não pode surgir do vazio. Sempre o soubemos, mas foi necessário o surgimento das tecnologias criativas e de comunicação, e de toda uma geração capaz de criar e recriar obras completas com recurso a uma mera conexão à internet, para que nos questionássemos sobre leis que tínhamos criado no passado (ex. copyright) que impedem exatamente todo esse processo criativo profundamente humano.

E também, porque somos tapeçaria, somos coletivo, somos fruto de gerações e gerações que nos precederam, e da que nos rodeia em cada momento, é por isso que a obra de Alexievich nos fala tanto. Porque não é apenas ela, o indivíduo que fala, mas como disse antes, as suas unidades de trabalho, as "vozes", dão-lhe toda uma força, não apenas por estarem ali, mas porque ela soube tão bem, por meio delas, reconstituir o espaço por meio do tempo, e assim criar uma história.

Em termos de experiência, recomendo uma contemplação faseada, já que a tapeçaria de vozes apresentada por Alexievich é intensamente dolorosa. Enquanto lia, acabei descrevendo o que sentia como "murros no estômago, uns atrás dos outros". O livro reflete uma realidade passada na Bielorússia, um país pequeno e distante, do qual pouco conhecemos, mas é daí que vem o filme mais doloroso que alguma vi, "Come and See" (1985) de Elem Klimov, que apresenta uma reflexão sobre uma tragédia anterior noa país, a ocupação Nazi. Os entrevistados de Chernobyl comparam amiúde os dois eventos, e um deles chega mesmo a falar da impressão forte deste filme (p.267) para definir o que sente face a tudo o que vive.


Neste sentido, preciso de aprofundar e referir que apesar de aqui desmontar o trabalho de Alexievich em termos da sua ficcionalidade, de o apresentar enquanto obra que vai para além do mero rótulo de não-ficcional, essencialmente por apresentar uma visão pessoal do mundo, existe nesta, tal como acontece no filme de Klimov, uma subliminaridade de verdade, um traço de fundo que a todo o momento clama, dizendo, 'estas pessoas são reais', 'o seu sofrimento aconteceu'.

Por outro lado, à medida que vamos adentrando no livro uma certa capa de insensibilização vai-se formando em nós, como que para nos proteger dos choques seguintes, ainda assim a construção narrativa funcionando em crescendo nunca nos dá verdadeiro descanso, o que por outro lado acaba contribuindo imenso para a manutenção do interesse na leitura. Num trabalho desenhado a partir de tantas vozes sobre um mesmo assunto, seria expectável alguma redundância e sensação de repetição, contudo isso nunca chega a acontecer, o que dá bem conta do trabalho em detalhe realizado pela escritora, e do modo como manipula as vozes para construir a sua própria visão narrativa do tema.
"Bétulas leves... Abetos pesados... Não vou voltar a ver nada disto? Prolongar a vida por mais um segundo, mais um minuto! Para que passei tanto tempo, horas, dias, em frente da televisão, entre pilhas de jornais? O mais importante é a vida e a morte. Nada mais existe. Não dá para os pôr nos pratos de uma balança... Percebi que só o tempo vivo tem um sentido... O nosso tempo vivo..." (p.250)
Ler "Vozes de Chernobyl" é importante porque ajuda a compreender Chernobyl, mas não só, ajuda a compreender o ser-humano, o modo como funcionamos individualmente e em colectivo, dando conta da resistência humana, tanto no campo biológico como cognitivo. Em certa medida até apazigua, porque atira alguns mitos de Chernobyl borda-fora, embora o faça à conta de evidenciar a relação perversa entre políticos, cientistas e o povo. Do mesmo modo lança luz sobre a manipulação de informação dos estados comunistas, e como isso contribuiu para o fim desses mesmos estados, o que não nos descansará muito se pensarmos no quão pouco tudo o que aqui se descreve, sobre essa manipulação, se diferencia daquilo que os estados capitalistas hoje fazem (ex. Edward Snowden).


Nota final: sobre o filme “Voices from Chernobyl” (2016) de Pol Cruchten, baseado neste livro, que tem tido boa recepção da crítica, mas que eu, apesar de apenas ter só visto o trailer, não tenho intenção de ver. Como disse acima, estamos perante uma obra profundamente autoral, criadora de profundas impressões em nós, e se até gostei visualmente do trailer, pouco ou nada o consegui relacionar com a minha experiência pessoal da leitura do livro, que prefiro preservar.

outubro 14, 2016

A manipulação do anonimato

Ainda não li Elena Ferrante, conto começar a ler a tetralogia apenas em janeiro do próximo ano, contudo não posso deixar de comentar o cansaço que sinto com toda esta defesa do anonimato da autora [1, 2, 3]. Percebo o que as pessoas querem dizer, mas estamos a incorrer num endeusamento de algo que verdadeiramente não queremos, e não estou com isto a defender a investigação do jornalista italiano.


Um texto não existe no vácuo, é sempre criado num tempo, espaço e por um ser humano. Essas são condições essenciais para poder estudar esse texto, para o poder compreender na sua plenitude, podendo inicialmente não o ser para dele usufruir, mas se quisermos chegar ao seu âmago, delas precisaremos. Sem qualquer uma destas variáveis presentes, podemos sempre tentar adivinhar por meio da obra, mas não a podemos verdadeiramente contextualizar, suportar, edificar, enquanto criação humana.

Se considero isto hoje importante, mais será no futuro, quando tivermos nas livrarias/cinemas, livros e filmes criados por máquinas. Para quem defende que a obra de Ferrante é o que importa, que não interessa absolutamente nada saber quem a criou, não está a dizer toda a verdade, porque na sua cabeça criou já uma identidade para essa autora, criou um imaginário que responde ao perfil de quem escreveu, onde e quando. Podem até defender que lhes chega, aceito, mas estão simplesmente a viver uma ilusão, uma ficção dentro de outra ficção.

O que pergunto, e porque de arte se trata, não mero entretenimento em que a autoria está por norma ausente, onde fica a verdade? Quem fala ali, quem é a pessoa que escreve, o que se passou com ela, o que viveu, o que sofreu, o que a fez/faz feliz? Como posso na verdade identificar-me com ela? As ideias não existem sem contexto, as histórias de vida não existem sem um autor que tenha vivido o mundo.

Defender, como parece Ferrante defender, que precisa do anonimato para criar com autenticidade, não é nada de novo, a literatura deve ser a arte com mais pseudónimos à procura de manter os seus autores anónimos. Até pode ser uma recusa da fama louvável, mas quantos criadores a recusaram e souberam viver sem necessitar destes subterfúgios! Se alguém quer verdadeiramente ser anónimo, não cria obras de arte, que só se realizam em atos de comunicação. A arte cria-se pela partilha, e a partilha não se faz no vazio, precisa de sujeitos, do lado criador e do lado recetor.

Vou mais longe, o anonimato é, nestes casos, profundamente manipulador, já que coloca em desvantagem quem está do lado da receção. O autor usa o desconhecimento no recetor para o conduzir, para construir na sua cabeça um ideal do autor, que nunca se poderá confirmar, porque nunca lhe será dita a verdade, atirando por terra todos os valores de lealdade e transparência que se esperam de quem a nós se dirige.

Não defendo que se invada a privacidade, que se vasculhem contas, mas também não aceito que se diga que é irrelevante saber quem é Elena Ferrante.

outubro 09, 2016

“Somewhere Down The Line” (2014)

Mais uma animação premiada que se pode finalmente ver online na íntegra. “Somewhere Down The Line” foi dirigida por Julian Regnard em 2014, e de entre vários prémios, arrecadou o prémio de Melhor Curta de Animação no 37th Clermont-Ferrand International Short Film Festival em 2015. A obra destaca-se pela qualidade da ilustração e tratamento da história.




Na ilustração temos um trabalho que por vezes roça a textura do óleo, com uma riqueza de camadas e cores que nos agarra o olhar e mantém seduzidos. Por outro lado, a composição de cor ao longo da animação acompanha com grande proximidade o que se vai narrando conferindo uma enorme coesão ao todo.

No campo da história, temos algo já bastante visto, a obra sobre o amadurecimento, ou a passagem pela vida, mas o que funciona muito bem é o modo como o tema é trabalhado em termos de originalidade, recorrendo à estrada e fundamentalmente ao objeto carro, para trabalhar a metaforização das principais ideias.

No campo da animação em si, temos um trabalho algo rígido, mas que acaba por servir imensamente bem os objetivos emocionais da obra. Tendo em conta tratar-se de um trabalho profissional, seria expectável maior detalhe, nomeadamente a animação dos diálogos, embora aqui se possa compreender como opção estética.

“Somewhere Down The Line” (2014) de Julian Regnard

outubro 08, 2016

“Os Buddenbrook” (1901)

Mann é um dos representantes literários da grande erudição e riqueza lexical — a par com Proust, Pessoa e Nabokov — capaz de comunicar o que tem para dizer de forma não apenas imensamente acessível, mas ao mesmo tempo envolvente e sedutora. A elevação do seu registo, apesar de complexo nunca se enreda em palavreado desnecessário ou meramente exibicionista. A construção do texto, por mais trabalhada que surja, parece nunca dizer de mais, nem de menos, como se tocasse sempre o acorde harmonicamente correto, permitindo-nos seguir o desenrolar da narrativa sem notar qualquer dissonância entre forma e conteúdo.


Os Buddenbrook” é antes de mais a primeira obra de Mann, publicada com apenas 25 anos, mas iniciada com 22 anos, o que só por si é verdadeiramente impressionante. Custa a perceber como é que alguém, tão novo, consegue o registo de elevação acima identificado, mas também como é que consegue o grau de amadurecimento para chegar às análises sociais e psicológicas apresentadas. Lobo Antunes estava claramente errado, quando criticou o prémio Leya 2014 dado a "O Meu Irmão" de Afonso Reis Cabral, com apenas 24 anos. São idades tenras para se criar com fôlego, mais ainda em literatura, mas as excepções existem, e Mann foi único. Não é por acaso, que apesar do Nobel (1929) lhe ter sido atribuído já depois de publicado “A Montanha Mágica” (1924), que o texto da Academia Sueca faça menção explícita ao seu primeiro livro, dizendo que o prémio lhe era atribuído, “principalmente pelo seu grande romance “Os Buddenbrook”, que conquistou crescente reconhecimento como um das obras clássicas da literatura contemporânea”.
"E o resto do dia obedecia a um ritmo livre e despreocupado, seguindo o rumo de uma vida maravilhosa dedicada ao ócio e ao bem-estar, sem sobressaltos nem preocupações: de manhã, enquanto lá em cima a banda executava o seu programa matinal, Hanno permanecia à beira-mar, deitado ou sentado aos pés da cadeira de praia, entretido, no seu jeito sonhador e distraído, com a areia fina e pura, os olhos, sem esforço ou dificuldade, vagueando e perdendo-se na imensidão verde e azul, os ouvidos envoltos num doce rumor que se desprendia, com liberdade e desembaraço, das ondas infinitas, uma brisa poderosa, fresca, selvagem, portadora de um perfume divino, apta a aturdir, a inebriar suave e subtilmente os sentidos, produzindo um mudo e aprazível esbatimento da noção do tempo, do espaço e de todas as fronteiras…" (p.528)
“Os Buddenbrook” é como poderão saber das sinopses, um épico familiar, seguindo uma influência de final do século XIX, à semelhança do nosso “Os Maias” (1888). Mann por sua vez, mais do que concentrar-se sobre as relações de amor, concentra-se especificamente sobre as relações que unem a família — avô, pai, irmãos, e laços de casamento — analisando a sucessão geracional, começando pelo auge do bem estar e terminando na perda de tudo. A obra é muitas vezes definida simplesmente pela história de decadência da família Buddenbrook, uma decadência que ultrapassou as fronteiras da literatura, e serve hoje áreas como a história e a economia, para identificar o que ficou conhecido por “efeito Buddenbrook”, ou seja, o facto de que a riqueza acumulada através dos negócios tende a declinar ao longo de um período de três gerações.

Mann procura alguma neutralidade no modo como apresenta a família e sociedade que a envolve, não tomando partido pela religião ou política, deixando no entanto emergir aquilo que em sua opinião marca as nossas vidas, opondo o materialismo ao espiritualismo, nomeadamente a oposição entre a vida burguesa (Thomas, pai e avô) e a vida de artista (o irmão Christian, e o filho Hanno). A primeira com as suas regras e rituais que obrigam a casamentos combinados em função do bem de toda a família, ao respeito das normas e complacência com o funcionar da sociedade. A segunda que a nada obedece, a ninguém segue, e tudo rechaça, baseada na frugalidade material, buscando apenas a imaterialidade das ideias. O momento que marca esta clivagem acontece quando Hanno toma contato com o diário da família, uma espécie de jornal-diário das várias gerações de Buddenbrook, e resolve deixar ali o seu testemunho, é algo tão simples mas tão poderosamente significante que nos arrepia e obriga à reflexão e aprofundamento do choque entre estas duas visões do mundo.

Aliás, não fica claro até que ponto Mann não tende para a culpabilização dessa componente artística pelo fim da família. Digo que não fica claro, porque existem outras variáveis em campo, nomeadamente o ponto em que o senador Thomas Buddenbrook se deixa levar pela leitura de “O Mundo como Vontade e Representação” (1819) de Schopenhauer. Mas essencialmente, e como acaba discutindo recentemente Riemen em "Nobreza de Espírito" (2008), baseado em Mann, existe algo que não é propriamente de neutralidade, mas antes de busca de uma certa integralidade humana, de essência humanista, que apoquenta Mann e que o conduz à aceitação da divergência da norma, da subversão artística, reconhecendo-a como própria do humano, mas que apesar disso deve ocorrer por meio de um paradigma de elevação, de respeito pelos demais, acima tudo de diálogo construtivo.

Dito tudo isto, pergunto, como se pergunta a responsável pela belíssima tradução no posfácio, Gilda Lopes Encarnação, porquê ler “Os Buddenbrook” mais de 100 anos depois? A realidade retratada é-nos distante, em nacionalidade e mesmo mecanismos sociais ou negociais. Julgo que a resposta está exatamente na forma, na beleza da obra, no brilhantismo do seu criador, na recompensa pela boa progressão da narrativa, e que não poucas vezes nos surpreende, mesmo sendo tão regrada. Mas essencialmente porque ler duas páginas de Mann, mesmo que pouco avance na história, é como insuflar ar em estado puro, faz-nos sentir vivos, ajuda-nos a compreender a força e relevância da arte literária, verdadeiramente estruturante para o modo como pensamos e nos edificamos enquanto seres conscientes.

outubro 07, 2016

A glória de Unity, e sem programação

Demorou alguns anos, mas podemos agora dizer que 2016 ficará como o ano de coroação do Unity enquanto ferramenta de desenvolvimento de videojogos. Isto é relevante pelo modo como democratiza o processo de criação de videojogos, mas não se fica por aqui, alguns dos jogos que marcam este ano, não só recorreram ao Unity, como recorreram ao seu plugin Playmaker.




Se olharmos à lista dos 2016 Unity Award encontramos nela: Firewatch (Campo Santo); Inside (Playdead); Superhot (Super Hot Team); Virginia (Variable State); Oxenfree (Night School Studio). Tudo jogos criados por pequenos estúdios, que apesar disso foram distribuídos em multiplataforma e conseguiram enorme sucesso, junto da crítica e público internacional.

Todos aqueles que já trabalham, ou procuram iniciar-se, no Unity sabem que as linguagens de referência são o C# e o UnityScript (que usa uma sintaxe semelhante ao Javascript). O C# já tinha sido eleito pelo XNA, tendo aí começado a sua introdução na comunidade de desenvolvimento de videojogos, com o surgimento do Unity e o suporte da mesma, foi-se tornando na linguagem de partida para quem trabalha na produção de conteúdos multimédia, nomeadamente pequenas equipas de criação de jogos.

E é aqui que surge um novo dado ainda mais interessante, o Playmaker. Um plugin criado em 2011 que permite desenvolver toda a componente de authoring multimédia, dentro do Unity, sem recurso a qualquer programação. O Playmaker permite dar instruções, criar acessos interativos, gerar comunicação entre objetos, tal como se de uma linguagem de programação se tratasse, mas apenas por meio de caixas interconectadas na forma de fluxograma, pura programação visual. E o mais impressionante é que o consegue juntando dois atributos que nestes casos dificilmente navegam juntos, facilidade e flexibilidade, a prová-lo temos dois dos jogos acima elencados, que foram desenvolvidos com recurso ao Playmaker: Inside (Playdead) e Virginia (Variable State).

O uso do Unity com o Playmaker recorda-nos inevitavelmente o defunto Virtools, uma ferramenta que gerou imensa expectativa, mas que nunca conseguiu afirmar-se, tendo contudo apontado o caminho. Depois disso o Flash ainda tentou criar um modo 3d, e outras ferramentas foram surgindo aqui e ali. Diga-se que o Unity não está completamente isolado neste campo, desde o fim do Flash e o surgimento em força do HTML5, foram muitas as ferramentas a surgir no mercado com vontade de ocupar o lugar deixado em aberto pela Adobe. Contudo o desenvolvimento em HTML5 e WebGL obriga a entrar no mundo menos estável e demasiado aberto do Javascript, tornando-o menos apetecível para quem trabalha com plataformas de authoring, que normalmente busca ambientes delimitados e facilmente reconhecíveis, no sentido de eliminar as preocupações com a tecnologia para se poder concentrar nos conteúdos.

Deste modo podemos dizer que até ao momento nada conseguiu chegar ao nível de aprimoramento e amplitude do motor de Unity, que juntamente com o Playmaker acaba por assim criar, talvez, uma das ferramentas mais acessíveis e poderosas de sempre no campo do authoring multimédia.


Mais info:
Tutoriais de Playmaker