dezembro 10, 2016

“Stranger in a Strange Land” (1961)

Cada vez me convenço mais que os livros de maior sucesso, que vendem milhões, são livros que as pessoas compram com múltiplos fins, excepto o da sua leitura. “Stranger in a Strange Land” parece-me ser um desses casos. Um livro que se apresenta como de Ficção Científica, mas que de científico tem zero, e que deveria antes apresentar-se nas prateleiras das “Ciências” do Esotérico.


A razão porque vendeu tanto é, em parte, explicável. Saiu em 1961, passou totalmente despercebido. Apesar de receber o prémio Hugo em 1962, as várias análises da época foram bastante destrutivas, e o livro acabou por passar ao esquecimento. Em 1968 com o ressurgimento em força do Programa Apollo da NASA, com o lançamento do primeiro americano no espaço, o livro foi reeditado, mesmo a tempo da loucura que seria o ano 1969 com a chegada à Lua. E é assim que o livro acaba a ser o primeiro livro de FC a entrar na lista do The New York Times Bestsellers, ultrapassando a marca dos 100 mil livros vendidos. Desde então, o facto de ter sido o primeiro livro FC bestseler do NY tem servido fortemente a promoção levando-o a vender mais 5 milhões.

Por mais mal que se diga, se o livro vendeu bem e ainda por cima tem um prémio Hugo, o mais importante da FC, alguma coisa deve existir no livro. Foi isto mesmo que também pensei, contudo, nem sempre os prémios tudo explicam, mais ainda no caso do Hugo que na altura ainda nem 10 anos tinha de existência. Depois, Heinlein na altura era já um grande nome do meio, com uma grande quantidade de contos publicados e alguns livros. Aliás Heinlein costuma surgir ao lado de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke como os três grandes da ficção literária de FC. Contudo, só o consigo equiparar em pioneirismo, tudo o resto deixa muito a desejar, basta pensar no livro que precede este, "Starship Troopers" (1959).

Vejamos então ao que vem “Stranger in a Strange Land”. A premissa surgiu de uma ideia da sua esposa, Ginny Heinlein, depois de ler “The Jungle Book” (1894) de Rudyard Kipling. A ideia assentaria numa personagem que em vez de ter sido criada por animais, teria sido criada por marcianos. Uma premissa que se parece estimulante à partida, peca por um problema de base, a ausência de qualquer conhecimento sobre marcianos. Se no Livro da Selva, Kipling procura fusionar as características dos animais com as dos humanos, no caso de Heinlein, não existindo marcianos, resta-lhe fusionar humanos com humanos.

Assim sendo, e de modo a minorar a desconfiança do alcance do seu texto, Heinlein vem dizer que na verdade não tinha feito um livro de ficção científica, mas antes uma “sátira sociopolítica sobre o sexo e a religião na cultura contemporânea”, com o que mais concordo. Na verdade já tivemos algo parecido no passado, naquele que é hoje tido como o primeiro livro de FC, “As Viagens de Gulliver” (1726), e que Heinlein cita a meio do seu livro. Então o que os diferencia? Em essência, a ciência.

Como Heinlein não usa qualquer base científica sobre a potencial vida em Marte, ou qualquer outro planeta, o que nos apresenta limita-se a dois mundos idênticos, com ideologias políticas distintas. Mas percebendo a insuficiência desse embate, e seguindo Swift, que coloca em confronto ideias sociopolíticas, mas a partir de posicionamentos distintos (pessoas muito pequenas, pessoas muito grandes ou pessoas racionalistas), Heinlein vai optar por embarcar no oposto, e gisar os marcianos enquanto pessoas esotéricas, desenhando toda uma sociedade baseada no misticismo, superstição e inexplicável, fazendo mesmo uso da astrologia para conduzir muito do seu enredo.

Só isto seria suficiente para atirar o livro por terra, mas é todo o restante enredo que é também tão pobre e subdesenvolvido. Temos um adulto de 25 anos que nasceu em Marte, mas filho de humanos que para lá viajaram numa nave. Esta pessoa vai depois apresentar poderes de telepatia e telecinese, apesar de biologicamente ser um simples humano que viveu toda a vida em Marte. Ou seja, Heinlein não consegue delimitar o seu trabalho, passando entre o social, o psicológico e o físico como se tudo fosse igual. Acabamos por perceber porque assim é, o foco do seu interesse nunca foi os marcianos, mas antes e só projetar os seus ideais sociais, defender por meio de uma historieta, uma quantidade de banalidades, pseudo-filosóficas, sobre a religião e o sexo, apresentando assim uma espécie de sociedade pré-New Age.


Para agravar tudo isto, o livro inicial tinha sido fortemente editado e reduzido em mais de 60 mil palavras, mas depois de Heinlein morrer a sua esposa encontrou a versão não editada, e resolveu publicá-la, dizendo que era a versão em que o marido sempre tinha acreditado. Assim, para quem quiser ler hoje estas desventuras, tem de sofrer mais uma centena de páginas em que nada acontece, a não ser montes de diálogos inconsequentes, em que se discutem banalidades do quotidiano, e que podem sim, servir a quem quiser traçar os hábitos à época, anos 1960, apesar do livro supostamente ser passado no futuro.

dezembro 07, 2016

“Inside”, uma obra incontornável

"Inside" é uma obra dotada de imensa maturidade que assenta numa enorme consciência do que é um videojogo, ao que se junta uma vasta cultura artística áudio/visual/ficcional, e por fim grande competência criativa no modo como constrói a integração do todo. Dito isto, existe imenso para analisar num jogo com este alcance, do que tentarei dar aqui conta, apenas à superfície, de alguns dos elementos que considero mais relevantes, mas acreditando e esperando ver algumas teses de mestrado futuras sobre o mesmo. Assim, e independentemente da dimensão que ocupa num disco duro, ou do tempo que se leva a terminar, se não for Game of the Year ombreará de muito perto.






:: Design de jogo
“Inside”, tal como “Limbo”, funcionam mais como walking simulators, com a particularidade de se apresentarem através de um ponto de vista único, na forma de sidescroller, ao que se adiciona um conjunto de obstáculos, na forma de puzzle, sendo que a sua essência reside no ambiente, e na história contada por este. Ou seja, falamos aqui fundamentalmente de environment storytelling. Neste campo, ambas as obras são virtuosas, assentes num minimalismo soberbo, capaz de conferir todo uma imensidão de significados, algo ainda pouco trabalhado na arte dos videojogos. Arnt Jensen, o diretor de ambas as obras, vem de um país com forte tradição no campo, apesar de no cinema, podendo inspirar-se em autores como Carl T. Dreyer, Lars Von Trier ou Joachim Trier.

O design pode ser analisado a partir de um particionamento do jogo em quatro categorias — Ambiente, Personagens, Eventos, Obstáculos — estando o design mais focado nos obstáculos (puzzles), mas não podendo separar-se dos restantes elementos. De modo que apesar de Arnt Jensen dirigir, encenar, tem de o fazer sempre em cocriação com o lead designer, Jeppe Carlsen.

Se adoro tudo o que engloba, dos ambientes aos eventos, no caso dos obstáculos surgem-me algumas resistências. Porque se temos de admitir que os mesmos são desenhados com enorme perspicácia, totalmente embebidos no ambiente, são parte, nunca surgem como extrínsecos, nem sequer extemporâneos, fica-me um certo amargo de falta de conexão com os eventos. Ou seja, os obstáculos são desenhados na sua relação com o ambiente, e nesse campo funcionam muitíssimo bem, acabando por se dar à personagem de forma lógica e coerente, contudo contribuem muito pouco para a definição dos eventos. Reduzem-se a meia-dúzia, os obstáculos que realmente produzem eventos, narram, dão conta daquilo que o ambiente desesperadamente tenta dar conta quase sozinho. As exceções vão para os tipos de morte que sofremos, nomeadamente quando atacados por forças do mundo, ou quando ativamos e controlamos algo supostamente “inteligente” desse mundo, embora neste segundo grupo surjam também imensas estruturas inconsequentes do ponto de vista narrativo.

Isto não minora o design de jogo que a partir do que digo, sobre a relação com o ambiente, é brilhante. Podia realmente conseguir uma maior sintonia narrativa, mas aqui admito que os posicionamentos quanto ao que um jogo, um filme, e uma história interativa devem ser, possam distanciar-se. Ou seja, o design de “Inside” é ele próprio uma mina de perspetivas de análise, podendo variar imenso o que se interpreta em função do ponto de partida, se procuramos mais narrativa ou mais jogo. Apesar de “Inside” pouco espaço dar a um posicionamento exclusivo de jogo, mesmo que o seu criador diga que não está focado na narrativa, o que só por si daria toda uma outra discussão sobre a artes e os processos criativos. E seguindo esta possibilidade, foco no ponto seguinte a arte de “Inside”.

:: Arte Visual
Mais uma vez falando também de “Limbo”, a arte é extraordinária no campo da ilustração, pode-se dizer que em certos quadros falamos mesmo de pintura, em que o propósito de comunicar uma ideia é ultrapassado, deixando espaço aos criadores para se incluírem a si próprios no trabalho final. São os cenários que criam os ambientes que acabam por dar vida ao mundo narrativo. Ambos os jogos trabalham agarrados a uma técnica da pintura, que o cinema em tempos também recuperou, o chiaroscuro, uma técnica cara a Caravaggio, que contribui para a criação de mundos, pintados, que formam uma espécie de duas dimensões que se entrechocam: o da presença de luz, e o da ausência dessa luz.

Mas existe todo um campo da arte de jogo em que “Inside” vai muito além de “Limbo”, é o da animação, nomeadamente da câmara e do personagem principal, a cargo de Andreas N. Grøntved com a contribuição visual de Morten Christian Bramsen. A câmara, apesar de condicionada pela perspetiva 2D, trabalha imenso com a profundidade, muito graças aos cenários tridimensionais. Assim, e por via da animação da câmara, a interação que se desenha sempre num plano bidimensional, ganha um escopo tridimensional. Não raras vezes o plano 2d surge em diagonal e profundidade, e a câmara segue, ao que se junta todo um enorme trabalho de cenarização para criar efeitos de parallax e assim construir uma ideia de mundo completo e vivo. No entanto todo este poderio técnico nunca se torna centro de si próprio, surge sempre ao serviço do que se pretende mostrar ou fazer.

Mas se a câmara surpreende, o personagem principal é o verdadeiro ex-libris da animação. Sendo a sua forma visual tendencialmente abstrata, desde logo pela ausência de cara, é na linguagem corporal, essência animada, que tudo se joga, literalmente. Bastam poucos segundos de contato com o gamepad e o jogo, para percebermos que não se trata de um simples personagem do sidescroller tipo. A forma como salta, agacha, cai e quase cai, espreita, pega em objetos, toca em superfícies, nada, vira frente/trás, ou cai morto, é absolutamente impressionante. Não se trata de mero movimento, nem sequer de criar a impressão de vida, é muito mais do que isso, é pura comunicação, é a expressão de pensamento e sentimento. Sendo a animação grandemente responsável por grande parte do relacionamento que vamos criando com esse personagem. Para quem quiser deter-se mais neste ponto, deixo a ligação para um conjunto de gifs recolhidos pelo Rock Paper Shotgun que servem bem uma análise inicial, não invalidam jogar para experienciar interativamente as animações.

:: Arte Sonora
Este campo costuma dividir-se, de forma bastante acentuada, entre o design de som e a música, contudo no caso específico de “Inside” essa divisão não nos oferece grande proveito, uma vez que a fronteira é ténue, sendo o diretor de ambas a mesma pessoa, Martin Stig Andersen. Diria que a principal razão para tal assenta no minimalismo musical. Assim, não raras vezes damos por nós na dúvida se o som que ouvimos é melodia de fundo, ou faz parte do universo em que estamos incluídos, já que raramente esta se destaca do fundo narrativo. Para isto contribuí imenso o desenho de sonorização dos espaços, que de algum modo se vai misturando de forma muito imbricada com o score. Desde os ruídos emitidos pela maquinaria, aos ruídos emitidos pelo personagem, o áudio parece mais um todo, do que a tradicional pista musical, sobre a qual se trabalham efeitos de som.

Esta fusão não surge sem um propósito, é minimalista, mas não é só isso, o minimalismo áudio procura, dada a sua influência emocional, seguir o minimalismo da escrita, daquilo que a obra tem para dizer. E é disso que falo no próximo ponto. Deixo ainda sugestão para quem quiser mais sobre esta parte de uma entrevista dada ao Kill Screen.

:: Arte Ficcional
Optando Jensen por dizer de forma tão pouco explícita ao que vem, dentro e fora da mesma, já que raramente dá entrevistas, ou quando dá evita explicações, toda a estética se sintoniza com esta abordagem. “Inside” é extremamente contido no que diz, cria quadros de ideias, mas não os liga causalmente de forma evidente, nem se detém nunca para explicar, explanar, ou expor argumentos. Opta por apresentar uma ideia geral, macro, a partir da qual escalpeliza alguns eventos, coloca o jogador no centro dos mesmos, via interatividade e inferência, e depois espera que seja o jogador a preencher os espaços deixados vazios, propositadamente, com as suas experiências do mundo. Ou seja, a história não está fechada: um mundo é apresentado e um personagem introduzido. Na progressão do jogo percebemos como evolui o nosso personagem, que vai ganhando capacidades que o separam do mundo inicial e o aproximam do estranho mundo em que entrámos (“Inside”), mas cabe ao jogador, recetor, definir exatamente que mundo é esse (estamos “Inside” de quê), o que representa, o que quer dizer!

Não existe uma única forma de interpretar o que nos é apresentado, e por isso cada um poderá ver diferentes significados no mundo narrado pelo jogo. Como disse, e dizia Eco no seu “Obra Aberta” (1962), o mundo que lemos e vemos, é o mundo apresentado conjugado com o mundo de que somos feitos. Ou seja, para quem tiver lido, e vivido, obras como “Brave New World” (1932), “Animal Farm” (1945) ou “1984” (1949) representará, ainda que próximo, algo diferente de quem tiver lido obras como “The Simulacra” (1964) ou “Neuromancer” (1984), ou ainda tiver visto filmes como “The Thirteenth Floor” (1999) ou “Matrix” (1999), ou ainda de quem tiver seguido filmes como “Dark City” (1998), “Prometheus” (2012), e claro “Existenz” (1999). Para quem não tiver lido/visto nada de Ficção Científica, representará algo distante de muito disto, dependente do tipo de mundo que contém dentro de si. Apesar de tudo, “Inside” não deixa de se inclinar para a distopia, para uma melancolização em redor do progresso tecnocientífico. E fá-lo de forma erudita, minimal e profundamente coerente.

Ficha técnica

Dito tudo isto, concordo com o Rui Craveirinha quando diz que “Inside acaba a ser um marco para o género da ficção científica videolúdica”, e vou mais longe, é um marco da Ficção Científica, enquanto género ficcional. Um género que começou pela literatura, ganhou toda uma nova dimensão no cinema, mas de há alguns anos para cá, tem encontrado no meio dos videojogos um espaço de cada vez maior relevância (recordemos por exemplo "SOMA" do ano passado).

dezembro 01, 2016

"Virginia" (2016)

Uma experiência de grande envolvência, fundamentalmente graças à ilustração, cinematografia e música. Contudo acaba por falhar em termos do desenvolvimento narrativo e da interação, e se a mensagem se perde por entre a abstração e o surrealismo, a interação nunca chega verdadeiramente a surgir. Apesar disso, é mais um passo em frente no experimentalismo com a linguagem dos videojogos.





“Virginia” não se arroga por inovar ou experimentar o novo, já que assume a total inspiração em “Thirty Flights of Loving” (2012), contudo, ao transformar uma experiência reduzida de 15 minutos numa experiência com a duração de um filme regular, 100 minutos, vê-se na obrigação de experimentar novas abordagens, de experimentar e tentar fazer funcionar algo que era apenas mero conceito.

“Thirty Flights of Loving” e “Virginia”, socorrem-se de estruturas padrão do contar de histórias cinematográficas para desenvolver os seus modelos experimentais de jogo. Daí que o posicionamento de câmara surja sempre forçado e fortemente restringido. Por outro lado, o modo como ambos usam a montagem dá-lhes todo um sabor estético raramente presenciado noutros videojogos, capaz de intensificar bastante a sensorialidade de toda experiência. Também, ambos trabalham as suas mensagens com recurso a um surrealismo com fortes pontos de contactos com o realismo, aproximando-se totalmente de um discurso que tem sido cunhado nas últimas décadas por David Lynch.

Em termos visuais, “Virgina” é absolutamente espantoso, não só a montagem mas nomeadamente a arte gráfica, com uma palete de cores vibrante que contrasta com a modelação quase low-poly. É fácil entrar no mundo criado e deixar-se ficar aí, mesmo quando não entendemos o que o jogo nos está a querer dizer. O universo visual é tão intenso e doce que só pensamos em continuar, seguir em frente, na esperança de encontrar a chave que descodifique tudo aquilo em que nos vamos deixando envolver. Confesso que no final pouco percebi do que ali vivi, mas a sensação de ter experienciado um mundo particular, distinto e belo não me permite sentir qualquer arrependimento do tempo investido.

Por fim, e sobre a interação. Apesar de ser um grande defensor dos walking simulators, considero que a linha do walking simulator é aqui ultrapassada, aproximando o objeto muito mais de uma animação interativa. A razão baseia-se no facto de não existir verdadeira agência, ou seja, não são dadas opções ao interator, e não falo de diálogos ou história, mas de espaço, de estratégia, ou até de jogo. Tudo o que se pode fazer é apenas carregar em Play e Pausa. Tudo o que apresenta propriedades interativas, são na verdade propriedades reativas à espera de serem meramente ativadas pelo jogador. Nunca o interator é chamado a refletir sobre que faz e/ou porque faz. Deste modo, não temos jogo, não temos história interativa, nem sequer temos mundo interativo, temos antes animação interativa, um artefacto de animação que nos permite, a tempos, atuar sobre os cenários da animação.

Natal com Wes Anderson

Wes Anderson volta à publicidade para criar uma curta de Natal absolutamente deliciosa, para a H&M. Neste pequeno trabalho o que mais me impressiona é ver como a marca autoral de Anderson transpira em toda a estilística do trabalho, desde a direcção dos atores ao design dos ambientes, passando pelo design de som e claro, todo o tratamento do tema.




A curta conta com Adrian Brody como chefe maquinista e líder de um grupo de pessoas sui generis que se dirigem para as suas festas de Natal, mas que por motivos de um atraso inesperado terão de o passar juntos no comboio. São apenas 4 minutos, mas Anderson consegue a nossa atenção durante todos os segundos, fazendo esquecer totalmente a marca publicitária. Mas será mesmo assim? Na verdade a marca surge apenas no início e no final, mas até que ponto não perdurará nas nossas cabeças, como a marca que permitiu a criação desta belíssima obra? E se assim é, não servirá na manipulação dos nossos sentimentos da próxima vez que tivermos de escolher entrar na H&M ou noutra qualquer loja de roupa?!

"Come Together" (2016) de Wes Anderson

novembro 30, 2016

"Odisseia" de Homero

Ler um livro com mais de 2700 anos e sentir prazer genuíno com a sua leitura é por si só admirável, e leva-me a constatar de imediato que: o seu criador era alguém extremamente dotado na arte narrativa; e que existe uma estrutura base no modo como contamos histórias que se tem mantido bastante estável ao longo dos últimos milénios.

Ulisses (1 a.c.)

“Odisseia” e “Ilíada” são comumente reconhecidos como os poemas épicos, ou histórias completas, mais antigos da nossa história, pertencendo a um movimento, o Ciclo Épico, em que surgiram várias obras do mesmo género, por distintos autores, tendo sido estes os únicos dois grandes poemas sobreviventes. Na verdade, antes deste ciclo existiu um outro, por volta de 2100 a.c., na Suméria, do qual sobreviveu ainda, o chamado “Épico de Gilgamesh”, contudo, e apesar do relato ser de algum modo aproximado dos relatos destes épicos gregos, com reis heróis e muito valentes, nem a sua preservação nem a complexidade da sua estrutura se aproximam dos dois poemas de Homero.

É verdade que os académicos andam há séculos entretidos com a discussão daquilo que pertence verdadeiramente ao poema original da “Odisseia”, ainda assim, descontando aquilo que pode não ter estado na criação original, ou aquilo que foi “remendado” para tornar mais completo, mais “redondo”, o esqueleto essencial da estrutura do poema continua sendo uma peça brilhante de arte narrativa. Temos uma história que se inicia ’in media res’ mas não se limita a progredir daí em diante, usa narração dentro de narração para criar analepses, ou flashbacks, e assim dar à compreensão do leitor o que se passou e como se passou, num modo completamente não-linear. Ou seja, Homero não se limita a relatar algo que terá acontecido, mas desenha um enredo com claro objetivo de envolver, estimular e provocar os seus leitores.

A mestria da não-linearidade da ocorrência dos eventos é tanto mais evidente à medida que nos vamos aproximando do final e Homero começa a gerir a informação relatada, no sentido de retardar o acesso do leitor a determinadas partes do que está acontecer, conseguindo assim produzir verdadeiras sequências de suspense, tal qual o cinema de hollywood desenvolveu durante o século XX. Mas a estimulação não se dá apenas a partir da estrutura, esta surge impregnada em toda a estilística do poema, nomeadamente no posicionamento do narrador, com Ulisses a variar entre terceira e primeira-pessoa, para reproduzir mais intensamente o sentimento do seu personagem, ou com a variação de narrador de Ulisses para Telémaco de modo a reforçar o relato do mundo que contextualiza Ulisses, tornando-o cada vez mais vivo e presente na efabulação.

Apesar de toda esta diversificação do modo de contar, entre diferentes narradores, diferentes vozes, diferentes tempos cronológicos, a “Odisseia” utiliza uma linha condutora central, que atravessa a todo momento tudo o que está a acontecer, e permite assim não apenas situar o leitor, mas também mantê-lo envolvido, e que é o retorno de um herói a casa. Não um retorno qualquer, mas de alguém que esteve perdido 20 anos, e que por isso mesmo, viu o seu lugar ser tomado por quem tenta a qualquer custo apoderar-se do que é seu, incluindo a amada esposa. Ou seja, esta linha é como uma coluna vertebral que tudo sustenta, baseada no arquétipo “homem reencontra mulher”, e que permite a qualquer momento parar a progressão e contar histórias adicionais que contribuem para a definição dos diferentes personagens e eventos, sem que os recetores percam de vista para onde se dirigem. Sendo um artifício, não deixa de impressionar o modo como é tão bem explorado ao longo de todo o poema épico.

“Ulysses cegando o Ciclope” (1 a.c.), conjunto de esculturas encontradas numa caverna da Villa de Tiberio, Sperlonga, Itália

Neste sentido, enquanto lia questionei-me bastantes vezes sobre o modo como Homero terá conseguido chegar a este nível de elaborada complexidade narrativa. Sabemos que as histórias não surgiram da escrita, que a oralidade era abundante, e existiam pessoas que mais pareciam enciclopédias ambulantes. Aliás, recorde-se que Sócrates sempre detestou a figura da escrita, por achar que ela implicaria a perda e o treino da memória, que ela seria um convite à preguiça. Contudo, e apesar de termos de reconhecer o trabalho excepcional, o desenvolvido por muitos dos contadores de historias assim como dos filósofos que dissertavam pelas ruas da cidade, o alcance, em termos de elaboração, permitida pela oralidade é bastante mais circunscrita. Neste sentido, é provável, como apontam muitas das evidências, que a origem da “Odisseia” seja oral, como conjunto de cantos que foi sendo alargado com a passagem do tempo, mas que provavelmente só terá ganho a forma que hoje tem, ao ser passada a registo efetivo, permitindo-se revisões, re-organizações, re-elaborações, arredondamentos e balanceamentos. Neste mesmo sentido, fica a dúvida também tantas vezes levantada, se a “Odisseia” terá surgido mesmo de um único poeta, denominado Homero, ou antes de um conjunto de poetas, que foram mantendo vivas as diferentes histórias que mais tarde formariam os Cantos passados ao objeto escrito.

Outra questão ainda que se levanta é o porquê da sua sobrevivência. Terá sido pela sua elaborada complexidade, ou terá sido mais pelo modo como se fez propagar, não apenas através dos diferentes contadores de histórias de rua, como através de diferentes meios como o teatro, a pintura ou a escultura, e mais tarde pela literatura e audiovisual, ou ainda das próprias escolas e seus professores, ao longo de séculos e séculos. Acredito mais na questão da propagação, motivada pelo facto de se tratar da marca inicial da literatura ocidental, e a que ainda hoje podemos assistir, com uma enorme percentagem do cânone ocidental a citar direta e repetidamente Homero, o que acaba por tornar ambas as suas obras completamente obrigatórias para quem pretenda compreender este mesmo cânone. Aliás, passados 26 séculos, podemos ainda ver surgir uma das obras basilares da literatura contemporânea, que não só cita, como segue de forma rígida toda a sua estrutura — “Ulisses” (1922) de James Joyce. Aliás, esta foi uma das razões pelas quais resolvi criar a minha própria listagem da estrutura da "Odisseia", e que aqui deixo, para poder comparar com os capítulos de Joyce.

"The Siren Vase" (~470 a.c.)

''Ulysses and the Sirens'' (1891) de John William Waterhouse

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A Estrutura Dramática

Cantos 1 a 4
Telémaco e os pretendentes.

Cantos 5 e 6
Ulisses liberta-se de Calipso e inicia a viagem de regresso.

Cantos 7 a 8
Recebido por Nausícaa, inícia a narração das aventuras passadas.

Canto 9
Passagem pela terra dos Ciclopes

Cantos 10 e 11
Viagem de Ulisses ao Hades

Canto 12
Enfrentando o canto das sereias

Canto 13 e 14
Regresso de Ulisses a Ítaca

Canto 15
Regresso de Telémaco a Ítaca

Canto 16
Reunião de Ulisses e Telémaco

Cantos 17 a 20
Preparação da vingança de Ulisses

Cantos 21 e 22
A vingança de Ulisses

Canto 23
Reencontro com Penélope

Canto 24
Encerramento
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Aproveito para deixar aqui também, juntamente com a estrutura, um friso cronológico dos eventos relatados pela "Odisseia", e que dão conta dos 20 anos em que Ulisses andou fora de casa. Podemos ver o primeiro período de 10 anos, dedicado à guerra em Tróia, e depois o modo como se dividem os 10 anos que demorou no caminho para casa, ou seja, os eventos relatados na "Odisseia".

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Friso cronológico da odisseia de Ulisses


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Por fim, não posso deixar de louvar o trabalho de Frederico Lourenço, e julgo que nada do que direi poderá fazer jus ao seu trabalho, nomeadamente por tudo o que representa o seu esforço para a cultura de língua portuguesa (a ter em conta que o próprio Brasil recorreu à sua tradução, numa edição da Penguin). Digo isto porque a tradução não realiza apenas um esforço de manutenção da rítmica, quase impossível de traduzir, como o faz por meio de um esforço de tornar o texto muito mais legível, diria mesmo tornando o texto quase prosa. Passei os olhos por três outras traduções, de Portugal e do Brasil, nenhuma se lhe compara em clareza.

novembro 27, 2016

Skyrim, agência colossal

Demorei 5 anos a chegar a Skyrim, sobrevivi a toda uma onda de fundo que não só vangloriou o jogo como desenhou e construiu para o mesmo centenas de MOD que mantiveram Skyrim plena de vida, muito para além do seu tempo. Para um jogo com 5 anos, continua perfeitamente atual, tanto no aspeto (mais ainda agora na nova versão remasterizada) como no design, tendo em conta o modelo de RPG da Bethesda. Contudo, não me comoveu particularmente, pelas mesmas razões que “Dragon Age” também não o fez, e que são as premissas narrativas, baseadas em simples mundos de fantasia.





Em "The Elder Scrolls V: Skyrim" somos um mortal detentor de uma alma que está de algum modo conetada às almas dos dragões e que por essa via nos garante determinados poderes. A trama principal assenta no retorno do dragão Alduin, o Comedor de Mundos, cabendo-nos a nós trabalhar para ganhar experiência, procurá-lo e eliminá-lo. Todo o nosso trajeto é feito praticamente sozinho, e mesmo quando passamos a ser reconhecidos como Dragonborn, raramente o jogo se dá ao trabalho de criar relações com outros personagens. Skyrim é completamente orientado ao enredo, secundarizando as personagens, tanto na sua caracterização como dramatização.

Por outro lado, Skyrim apresenta uma das experiências de jogo mais abertas que encontrei até hoje. É possível fazer praticamente tudo, tomar quase todas as decisões, ir a quase todo o lado no mundo, interagir com praticamente tudo. Diria mesmo que em termos de interatividade e agência, Skyrim é colossal. Não existem caminhos lineares. Quando seguimos caminho pelos prados, montanhas, dungeons e túneis, existem sempre espaços alternativos que podemos investigar, que nos levam a quests alternativas que de algum modo se ligam sempre às que estamos a realizar, e mesmo quando não levam a lado nenhum, apenas mais um cofre com meia-dúzia de itens à espera de loot, acabam contribuindo para dar forma à nossa agência. Do mesmo modo, quando numa quest se espera que ajamos de determinada forma, ou que se obtenha determinado item de alguém, os diálogos são suficientemente abertos para se agir contra o propósito original da quest, contribuindo para a criação de uma aura de total liberdade no mundo de jogo.

De certa forma, é desta obsessão da Bethesda por criar o mundo mais aberto possível que emergem muitos dos problemas que lhe são apontados, e que resumo aqui como maior problema, a secundarização dos personagens. Ou seja, não falta escrita, nem esta é fraca, o que acontece é que o jogo é tão aberto que obriga a que a escrita dos personagens e sua ações, sejam elas próprias mais abertas, mais flexíveis, e consequentemente, menos dramáticas. Se a causalidade de cada ação no mundo pode ser atribuída a diferentes variáveis, que por sua vez ainda se subdivide em cadeias de subvariáveis, é natural que os conflitos narrativos percam força. Ou seja, os problemas apontados ao grafismo pouco evoluído — nomeadamente os personagens rígidos, tipo madeira — não são o cerne da questão.

Basta comparar com "The Witcher 3: Wild Hunt" para percebermos que são experiências completamente distintas. Apesar do mundo aberto, a trama principal funciona como funil que nos vai conduzindo dramaticamente pelo mundo, e à medida que nos vamos ligando aos personagens, vamos comprometendo muita da flexibilidade da nossa agência. Esta é uma discussão antiga que vem dos tempos de "Grand Theft Auto III" (2001) e "The Sims" (2000), quando se pensava que o melhor dos mundos estaria na sua junção. Hoje, percebemos que são modelos de jogo muito distintos, que apelam a diferentes tipos de jogadores. Se uma parte gosta de experimentar o mundo e moldá-lo à sua maneira, uma outra parte está muito mais interessada em participar no tomar de decisões sobre o modo como a trama se desenrola. Claro que "Skyrim" podia dar toda a liberdade nas quests secundárias e criar uma main quest mais focada, menos livre, mas isso desvirtuaria o seu conceito central de design.


No final, se sentimos que as quests são desprovidas de vida — são apenas ir de X a Y, falar com A e B, obter Z e W, e voltar a X — é porque não compreendemos o tipo de jogo que estávamos a jogar. Skyrim é muito mais jogo do que narrativa. A história e sua linearização é pano de fundo, o que verdadeiramente conta e produz emocionalidade no jogo acontece quando tomamos o mesmo nas nossas mãos, fazemos valer toda a nossa agência, e jogamos contra o que nos é pedido. É nesses momentos que sentimos Skyrim, porque é nesses momentos que se dá o não expectável, em que a história emerge imprevisível e agarra as nossas emoções. A maior prova que podemos ter disto mesmo, acontece quando chegamos ao final e liquidamos Alduin, e percebemos o quão pouco relevante era toda a quest principal.

novembro 25, 2016

“Uma Questão de Beleza” de Zadie Smith

O que me cativa em Zadie Smith (1975) é o mesmo que me cativa em Philip Roth, o seu virtuosismo na forma escrita, na argumentação ficcional e nos diálogos estruturantes. Se Roth é judeu, Smith é multirracial, mãe negra jamaicana, pai branco inglês, nascida em Londres, o que lhe permite trabalhar o mundo e os seus personagens a partir de uma perspectiva refrescantemente multicultural. O seu primeiro livro, “Dentes Brancos” (2000), criou imensas expectativas quanto ao seu futuro, que se vieram a confirmar neste seu terceiro livro, ganhador do Prémio Orange Ficção e finalista do Prémio Man Booker.

Recorte da obra "A Woman bathing in a Stream" (1654) de Rembrandt, uma das chaves do livro.

“Uma Questão de Beleza” (2005) junta dois reconhecidos modelos da literatura, o “campus novel” e a “crónica de costumes” para nos dar aquilo que podemos definir como sátira académica. Situada temporalmente no pós 11/9, num vai-vem entre Londres e Boston, Zadie Smith abre uma janela para dissecar relações de poder, envolvidas em ideologia política (conservadores vs. liberais), por meio de duas famílias do mundo académico, dos seus pais e filhos, das suas raças, valores morais, sociais e intelectuais. O romance é um verdadeiro frenesim, são tantos os temas, pontos de vista e antagonismos que enfrentamos, que por vezes nos custa a acreditar como conseguimos todos viver neste pequeno planeta. Mas é exatamente desse frenesim que podemos dizer que emana o estilo Zadie Smith, como se o livro fosse uma tela e os personagens pinceladas de tinta, óleo espesso em jogos de misturas, criando um todo que se vai formando ao longo das 500 páginas.

O livro deambula entre duas linhas de enredo principais: a relação conflituosa entre dois académicos, Monty, o conservador negro, e Howard, o liberal branco; e a relação de casal entre Howard e Kiki, a sua mulher, negra, na casa dos 110kg, não-académica (enfermeira). Estas duas grandes linhas cruzam-se constantemente, e se de um ponto de vista de mais valia cultural podemos dizer que o conflito entre os dois académicos é a essência, na verdade, a chave do livro está na relação do casal, e podemos mesmo dizer, em Kiki, a não-académica. Uma relação de 30 anos, com 3 filhos adolescentes/adultos, aparentemente perfeita, está à beira da ruptura, e de cada vez que Zadie Smith nos deixa a sós com Kiki, é como se o mundo se encerrasse ante tanta clarividência.

O grande conflito entre Monti e Howard surge a partir de um artigo em que Monti, enquanto conservador, pretende convencer os colegas a retirar o termo liberal das artes liberais. Este termo conjunto foi usado na época medieval para definir os estudos universitários, ou estudos do pensamento abstracto — engloba: lógica, gramática, retórica, aritmética, música, geometria e astronomia — opondo-se às artes mecânicas, que trabalham o mundo do físico e concreto. A discussão não é detalhada, e ainda bem se não afastaria todos os não interessados no tema do livro, mas é relevante, e obriga-nos a refletir.
“Li o artigo dele de domingo no Herald sobre o tirar o “liberal” das Artes Liberais… sabe, então agora é como se andassem a tentar dizer-nos que os conservadores são uma espécie em vias de extinção — como se precisassem de protecção no campus ou coisa assim.” Aqui Zora deu-se ao trabalho de revirar os olhos e sacudir a cabeça e suspirar ao mesmo tempo. “Aparentemente, toda a gente tem tratamento especial — negros, gays, liberais, mulheres — toda a gente excepto os pobres machos brancos.” p. 178
"[Rembrandt] um artesão meramente competente que pintava o que quer que os seu ricos patronos solicitassem”. Howard pediu aos seus estudantes que imaginassem o belo como a máscara que o poder veste. Que reclassificassem a Estética como uma linguagem rarefeita de exclusão. Prometeu-lhes uma cadeira que iria desafiar as crenças deles na humanidade redentora daquilo que é tratado habitualmente por “Arte”. “Arte é o mito ocidental”, anunciou Howard, pelo sexto ano consecutivo, “com o qual nos consolamos como nos fazemos.”” p.185
Até que ponto é que aceitamos verdadeiramente estas duas visões do mundo, a conservadora e liberal? Nomeadamente, nós académicos, que vemos o mundo a partir de uma matriz científica, que implica a constante renovação e refutação do passado. Mesmo no campo das humanidades, como podemos aceitar o Belo? O liberal Howard, é um caso clássico, é um académico especialista em Rembrandt, mas não gosta de Rembrandt, aliás está mesmo à beira de publicar um livro “Contra Rembrandt”. Porquê? Porque para si o belo não existe. Os alunos definem Howard, como o “não gosta de tomates”, porque é o professor que não gosta de nada, que tudo desconstrói, tudo discute, tudo compartimentaliza intelectualmente, mas nada verdadeiramente o afeta emocionalmente. O belo é um artifício conservador, é antiprogressista, já que opera pela incrementação, ou seja pela simples melhoria técnica do que já existe, enquanto o liberal, o progressista, procura constantemente o diferente, a ruptura. Mas a verdade é que o próprio Monti, defensor máximo dos valores conservadores, pouco ou nada se envolve também com o Belo, porque no fundo, apesar de estarem em campos políticos opostos, acabam seguindo a base motivacional da academia, movida pelas ambições, focados em dar conta da sua própria distinção intelectual, da sua capacidade para estar na frente do pensamento. 

Deste confronto emerge umas das mais fortes críticas de Zadie Smith à academia, já que ambos, Monti e Howard, vendo diferentes mundos, impondo diferentes ideologias às suas famílias, esqueceram que o mundo não é uma equação. Neste sentido, e apesar de se poder tentar colar o selo de pós-moderno à obra de Zadie Smith, ele fica-se pelos aspetos da multiculturalidade, já que segue todo um registo clássico, tanto na forma — com a escrita a gritar pelo lado virtuoso — como por toda a base de discussão estética. Zadie Smith está aqui claramente à procura de algo que o simples progressismo não lhe oferece, daí que lhe custe tanto aceitar a quebra dos laços familiares, vendo o amor entre o casal como um núcleo quase indestrutível. O seu personagem, Kiki, assume a vida como um dar-se ao outro, uma escolha consciente, um sacrifício de si em função da família, que define para si o amor, o estar vivo. Howard, classicamente, segue todo o livro sem conseguir ver o belo na mulher, imbuído do espírito académico que tudo disseca e com nada se envolve, acabando por ganhar consciência de tudo isso num momento de reviravolta final, contida, mas intensa psicologicamente, em que Zadie Smith funde brilhantemente um quadro de Rembrandt e uma troca de olhares entre Kiki e Howard.


No final da leitura, andei a ver os quadros e desenhos de Rembrandt mencionados ao longo do texto de Zadie Smith, e por isso aproveito para os deixar aqui, para quem quiser usar como guia durante a leitura, deixo-os por ordem aproximada de citação no livro.

Rembrandt, "The Shipbuilder and his Wife", 1633

Rembrandt, "The Anatomy Lesson of Dr. Nicolaes Tulp", 1632

Rembrandt, "Jacob wrestling with the angel", 1659

Rembrandt, "Naked Woman Seated on a Mound", 1631

Rembrandt, "The Sampling Officials", 1662

Rembrandt, “A Woman bathing in a Stream”, 1654

Deixo para o final os dois quadros que Carlene procura deixar em testamento a Kiki, um de Hopper e outro Hyppolite. Sobre o quadro de Hector Hyppolite, “Maîtresse Erzulie” (~1940) é particularmente interessante o modo como Zadie Smith trabalha o seu processo de reconhecimento, já que foi André Breton que numa passagem pelo Haiti, em 1945, descobriu as obras, adquiriu na altura um conjunto, provavelmente imensamente baratas, e lhes deu a fama que fariam destas, mais tarde, peças valiosas.

Hector Hyppolite, “Maîtresse Erzulie”, ~1940

E por fim o quadro de Edward Hopper, 

Edward Hopper, "Road in Maine", 1914

novembro 22, 2016

"False Alarm", em primeira-pessoa

Ilya Naishuller voltou aos assaltos e à primeira-pessoa, vulgo câmara subjetiva ou POV. Os meios de produção são muito superiores aos de "Insane Office Escape 2" de 2013, ainda assim julgo que me impressionou mais nessa altura, talvez por ser novidade, ou então por se basear mais no parkour, enquanto aqui temos uma câmara que viaja mais sobre rodas, ganhando menos em dinâmica visual.




Não há muito para dizer sobre o filme, que é também teledisco. Usa o recurso à câmara subjetiva para intensificar a ação, nomeadamente levar o espetador mais próximo do horror, e assim provocar visceralmente. Tal como o anterior, é imensamente violento, moral e graficamente. A primeira-pessoa funciona muito bem, porque em ambos os casos são experiências curtas, de 4 minutos, e a história que se conta é baseada na sucessão de eventos, os personagens limitam-se a seguir o que se lhes apresenta. Ainda assim, Naishuller consegue inserir, de forma bastante ligeira, uma pontinha de romance pelo meio, mas de forma bastante hábil.

O filme anterior, com mais de 3 anos de presença na rede tem 36 milhões de visualizações, enquanto este em apenas 1 mês, já leva 46 milhões. O facto de o realizador ser conhecido, ajuda, nomeadamente porque muitos sites e blogs da área têm falado bastante do mesmo. Por outro lado, talvez a banda seja suficientemente conhecida para também aportar os seus fãs ao filme.

"False Alarm" (2016) de Ilya Naishuller

Verifiquei entretanto que Naishuller criou em 2015 uma longa-metragem, "Hardcore Henry", pelo que leio quase toda também em POV. Procurar ver, e assim que conseguir, deixarei aqui mais algumas notas.

novembro 20, 2016

"Lore" (2012), do lado do inimigo

Ter descoberto, e visto, hoje “Lore” (2012) de Cate Shortland, é para mim justificação suficiente para o quanto me custou a mensalidade do serviço FilmIn. Um serviço que parece oferecer aquilo que MUBI tinha prometido e não conseguiu, e que o Netflix está muito longe de poder oferecer. Por meros 6,95 o FilmIn oferece um catálogo de produção Europeia como é difícil encontrar noutro local, apesar de nem tudo estar em HD, a qualidade é boa, e as legendas estão em português.





“Lore” apresenta uma perspectiva completamente distinta dos efeitos da Segunda Grande Guerra, algo que até agora estava calado, já que dos maus não deve a história falar. Vemos o mundo pelos olhos de um grupo de crianças, cinco irmãos, abandonados pelos pais nazis, que têm de atravessar a Alemanha para chegar a casa da avó, e que ao longo dessa viagem, pelo confronto com o outro, vão descobrir os valores que lhes foram incutidos, apreender o mundo que lhes tinha sido vedado, e assim confrontar-se consigo próprios.

O tema é poderoso, mas é o filme que o faz ganhar vida, muito graças aos atores, cinematografia e score. Saskia Rosendahl, com apenas 19 anos, enche o ecrã de pulsação humana, num jogo constante entre os resquícios da educação elitista nazi e a nova realidade que se lhe vai apresentando. Com um tema desta dimensão, poderia existir aqui o risco da empatia excessiva, mas isso não é aqui facilmente permitido. A educação elitista funciona bem nesse sentido, gerando afastamento pela frieza, mesmo para com um bebé que chora.

A emocionalidade é de uma forma geral contida, mas intensa, sempre rente à tensão, que por sua vez é imensamente trabalhada pela excelência da cinematografia de Adam Arkapaw, de quem já aqui tinha falado a propósito de "Macbeth" (2015). Arkapaw fixa-se aqui menos no belo, e mais no sentido dos olhares, alimentando desta forma a densidade dos personagens. Vemos o que estes vêem e vemos os seus rostos, estáticos e tensos mas carregados de vida, quase sempre sem palavras, porque não são precisas serem ditas, porque é nos seus corpos e na perspectiva destes que reside o todo.

Claro que a experiência se torna única, muito graças ao magnífico score de Max Richter, que desenvolve do ponto de vista sonoro todo um mundo particular, o mundo do filme, o mundo em que vivem aquelas crianças, em que ouvimos os violinos chorarem em nome de milhões de vidas que se perderam.

“Lore” é uma experiência de sentimento e confronto humanos, de um ponto de vista que não serve o choro, mas deve ser compreendido, e que só se consegue se sentido. A guerra, tendo inimigos e aliados, é sempre uma guerra, e nela sofrem sempre os mais fracos, estejam de que lado estiverem.