novembro 03, 2015

"Assassin’s Creed V" (2014)

Tinha enormes expectativas em relação a “Assassin’s Creed Unity” essencialmente por retratar um dos períodos históricos que mais admiro, a Revolução Francesa. É um período fulcral da era moderna que ficou marcado pelo grito: “Liberté, Egalité, Fraternité”. Parece um simples mantra, mas foi imensamente relevante na mudança das nossas vidas, o destronar das hierarquias sociais, ainda que muito se tenha revirado novamente por via da economia de mercado, mas o mundo mudou e isso temos de o agradecer a quem lutou pela mudança, e que nos permite hoje gritar: “Viva a Liberdade”.


“Unity” tem imensos problemas, ainda assim e não desiludindo os fãs da série, habituados a muitos desses problemas, consegue impactar fortemente todos aqueles que tenham um mínimo de gosto por História, já que é nesse campo que o artefacto brilha, com o mais intenso poder da simulação virtual. É impossível entrar no jogo com indiferença, porque facilmente sentimos ter regressado a 1789, toda a técnica e tecnologias de simulação foram trabalhadas ao mais alto nível da representação artística visual, gerando-se um espaço, ainda que virtual, verdadeiramente único.

A Simulação,
Existem dois componentes na simulação que é "Unity", que facilmente nos fazem abrir a boca de espanto, o detalhe arquitectónico da cidade e a vida que a habita. A Ubisoft não se poupou a esforços, e apresenta neste jogo um mapa realizado à escala real, a partir da Paris real. Podemos caminhar da Sorbonne ao Louvre ou Notre-Dame dentro do jogo, como se o fizéssemos em Paris, como se estivéssemos no Google Maps, com a diferença de que tudo aquilo que nos rodeia diz respeito a uma cidade de há 200 anos atrás. Não se ficando apenas pelas fachadas, como acontecia nas gerações anteriores, mas indo ao detalhe no desenho dos interiores que são também navegáveis, em muitos dos edifícios monumento, mas também bares, casas, quartos, etc. Existe todo um trabalho de análise histórica e artística que teve de ser realizado e que é absolutamente espantoso.




Por outro lado, todo este cenário, toda esta cidade é habitada por milhares de “pessoas” com os mais diversos guarda-roupas da época, ocupando as mais diversas profissões - agricultores, lenhadores, pescadores, sapateiros, vendedores, barmen, padres, políticos, militares, prostitutas, ladrões, magistrados, etc. - e dos mais diversos estratos sociais, do rei ao vagabundo de rua. A dinâmica gerada em todo o mapa é absolutamente impressionante, criando uma verdadeira impressão de orgânico, de um sistema vivo.

Esta simulação é o melhor do jogo, disso não tenho a menor dúvida, pecando apenas por uma interatividade mais limitada à navegação, permitindo pouca manipulação e quase nenhuma participação. Contudo esta limitação acontece apenas na relação direta com o mundo, sendo totalmente colmatada pela resposta ultra-abundante de missões alternativas espalhadas por toda a cidade, com grande variação de tipologia (enigmas, salvamentos, assassinatos etc.), assim como de grau de dificuldade, e ainda algumas com a variante de jogo em modo cooperativo.

A Arte,
A simulação só é o melhor de "Unity" porque tem ao seu serviço uma das melhores equipas de artistas 3d de toda a indústria, liderada pelo fantástico Raphael Lacoste. O brilho desse trabalho começa por surgir logo com o sistema climatérico, que opera sempre nuns tons quentes. A chover ou a fazer sol o clima serve para adornar e intensificar a sensação de vida, por via da luz que trabalha na produção de sombras com sol, ou nos rasgos e brilhos dos reflexos da água quando um céu nublado. Claro que este sistema funciona assim porque tudo é extremamente trabalhado e filtrado em termos de correcção de cor, o que garante não só a uniformidade e coerência da composição, mas garante acima de tudo uma saturação intensíssima, ainda que sem nunca ultrapassar a fina linha do espalhafatoso.




Por baixo do clima e cor, surge então o trabalho mais árduo de texturas e shaders, que garantem o realismo, e aqui em concreto o sentimento de ter viajado no tempo, estar em Paris 200 anos antes. São as paredes brancas sujas, de madeira ou simplesmente pedra pesada, é o chão e as suas terras batidas de vários tons, com água ou levantando pó, é a natureza com as suas diferentes árvores, flores, jardins, ervas ou palha seca, são as roupas de cada personagem que perfazem um guarda-roupa assombroso, são os próprios tons de pele e cabelo. Na sua generalidade tudo isto é estático, mas uma parte considerável é animada, e quando o é, nada é deixado ao acaso - andar, baixar, saltar, mergulhar, nadar, apanhar, rodopiar - tudo se move com enorme leveza mas grande credibilidade. Claro que tendo tanto para mostrar, é preciso encontrar a melhor forma de o fazer, e nisso também "Unity" faz muito bem, a câmara está sempre, de forma inteligente, à procura da melhor composição da ação, sem no entanto descurar o impacto estético do seu enquadramento.

Do todo criado pela arte, emergem inevitavelmente os monumentos parisienses, a sua recriação numa escala 1:1, o que trabalhado sob este manto de mestria artística acaba por tornar o mundo de jogo algo monumental. Poder ver de cima de telhados, passear em redor, escalar aos seus pontos mais altos, entrar e escrutinar todos os seus cantos, é algo imperdível para quem quer que alguma vez tenha visitado, ou tenha desejado visitar Paris. Desde a magnificente catedral de Notre Dame, ao Palácio de Montmartre, passando pela Sorbonne, o Jardim das Tuileries, o Panthéon, ou o Louvre até ao próprio Palácio de Versailles, é toda uma viagem turística e educativa ao mesmo tempo que profundamente gratificante. Neste plano "Assassin’s Creed II" era até agora imbatível, mas aqui foi ultrapassado, não sé pelo que a tecnologia permite, mas também por todo o empenho colocado na sua criação.

A Narrativa,
No campo formal da narrativa nada de novo, temos uma estrutura linear que não dá qualquer hipótese de participação ao jogador, recorrendo às cutscenes para contar e fazer progredir a história. Esta é uma estrutura que apesar de limitada em termos de possibilidades e escolhas para o jogador, continua a servir os propósitos da grande indústria, garantindo um maior controlo autoral do fluxo emocional da história.

Em termos da história que Unity conta, temos um bom arranque, mas que rapidamente se perde  sem nunca mais nos conseguir verdadeiramente entusiasmar. O início em Versailles com Arno criança, enfrentando a morte do seu pai é inspirador, prometendo muito, mas depois disso acabamos por assistir a uma mera sucessão de eventos de vingança, em que cada assassinato vai desvelando, por via das memórias, um novo culpado escondido, tal boneca russa, o que acaba por nos desligar do personagem. Os grandes momentos da Revolução, apesar de servirem de linha condutora a todo o jogo, raramente envolvem em profundidade o que estamos a fazer, raramente somos levados a sentir aquilo que se sentia naquelas ruas, algo que contrasta fortemente com tudo o que vinha sendo anunciado nos trailers cinemáticos (abaixo). Alguns dos melhores momentos acabam por acontecer, tal como noutros AC, quando surgem figuras emblemáticas, neste caso Marquês de Sade, Madame Tussaud ou Napoleão Bonaparte.



Uma das melhores inovações na história de "Unity" foi o facto da Ubisoft ter ouvido os jogadores, e ter praticamente eliminado a Abstergo e a realidade virtual da equação. Em Unity raramente saímos do ambiente histórico, e raramente somos recordados de que estamos a jogar uma simulação. As poucas vezes em que acontece, serve mais para mostrar Paris em épocas diferentes.

O Jogo,
Apesar de ter sido acusado em várias críticas por nada se ter alterado, não é bem assim. É verdade que em traços gerais continuamos a jogar um Assassin’s Creed, mas existem dois elementos que foram alterados em profundidade e que levam a série numa direcção nova, para além do que tínhamos. O primeiro, menos relevante, é que o jogador é manifestamente recompensado quando opta por jogar furtivamente. Ou seja, não só o modo de combate continua a apresentar bugs, como é muito mais duro e difícil, o que nos leva a optar muitas vezes por ser furtivo. Por outro lado em termos de pontos internos do jogo, para progredir no ranking de assassino, somos mais recompensados quando agimos pela calada. As próprias competências que podemos ajustar no nosso personagem à medida que vamos progredindo, dão mais relevo ao “stealth” do que ao “melee”, com por exemplo a capacidade para percepcionar as pessoas através de paredes tal como em “The Last of Us”, ou ainda a possibilidade de assumir a identidade de outros personagens, à lá “Dishonored”.

O segundo elemento, tem que ver com o design das missões, e segue mais uma vez uma lógica “Dishonored”. Os grandes assassinatos decorrem em grandes edifícios, nesses existem vários pontos possíveis de entrada, que por sua vez se desdobram em várias possibilidades de se chegar ao indivíduo, o que abre todo um modo interativo que eleva o patamar narrativo do jogo, permitindo que seja o jogador a desenhar o modo como cada um dos sujeitos morre. Ou seja, podemos decidir entrar por uma janela lateral, pelo telhado, pelas catacumbas, ou por uma porta lateral fechada a cadeado, cabe a nós encontrar o melhor acesso ao grande puzzle espacial, parar para olhar o todo e encontrar a melhor solução. Não sendo revolucionário, é um enorme passo em frente na série, na direcção de maior autonomia e participação, e que em certa medida compensa o lado mais linear da narrativa.

Os problemas,
Os bugs, problemas com cadeiras, mesas, muros, problemas com entradas em janelas, com suspensão. São inúmeros os NPCs que vão desaparecendo e reaparecendo, que ficam suspensos no ar, que param em loop e não reagem. Tudo isto torna-se mais irritante quando acontece no modo combate, invalidando muitas das nossas ações, frustrando as expectativas. Por outro lado os “loadings” ao longo de todo o jogo - sempre que acaba uma memória, fazemos uma fast travel, ou reentramos no jogo - são demasiadamente longos, muitas vezes mais de um minuto, perturbando a jogabilidade e narrativa.

Na generalidade,
Assassin’s Creed Unity” é uma experiência única, poder vivenciar uma simulação da Revolução Francesa com estes níveis de extensão e profundidade, faz deste um dos jogos obrigatórios desta geração. Dentro da série e por este motivo, ombreia com o melhor, "Assassin's Creed II" que nos tinha dado acesso ao belíssimo mundo da Renascença Italiana, perdendo em parte na jogabilidade e história.

novembro 02, 2015

"Player Stories vs. Designer Stories"

Já aqui falei antes de "Middle-earth: Shadow of Mordor" e também da Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, mas agora venho dar conta da ligação entre ambos, estabelecida por Michael Plater, CEO da Monolith Studios, numa talk dada na DICE este ano, "Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World", na qual desvelou um pouco mais do véu sobre o sistema que suporta a jogabilidade e que ficou conhecido como Nemesis.


No essencial Plater vem dizer que a base de trabalho para o desenho do jogo partiu da teoria de Deci e Ryan, ou seja, do triângulo motivacional suportado pela Competência, Autonomia e Ligação. Deste modo, em vez de se limitarem a seguir os vagos e ambíguos desígnios do Fun ou Flow, agarraram-se a uma teoria com parametrização clara, e procuraram a partir daí conceber toda a experiência do jogador. Para tornar a base de Deci e Ryan mais diretamente presente no desenho de jogos, conectaram-na com a teoria dos RPGs, a GNS (Gamist, Narrativist, Simulationist), uma teoria que vem sendo desenvolvida por Ron Edwards. A ligação resultou na essência do design de "Middle-earth: Shadow of Mordor":

Competence <-> Gamist (jogo e mecânicas)
Autonomy <-> Simulationist (estratégia e credibilidade)
Relatedness <-> Narrativist (foco na história)
Assim temos de um lado a autodeterminação do jogador e do outro o seu resultado em termos concretos do artefacto. Plater não vai ao detalhe que gostaríamos nesta triangulação, focando-se mais sobre os dois aspectos mais salientes do sistema: memória e emergência. Ou seja, a forma como eles conseguiram desenvolver o,
Empowering players to tell stories, not us telling them (..) We had to give people detailed anchors so their imagination would fill in the gaps (..) We had to understand how much was enough to give…
Isto foi conseguido por meio da criação de estruturas de memória de eventos passados, que permitiam aos jogadores sentir a ligação com os personagens, e desse modo exponenciar a sua motivação. Plater apresenta um vídeo de um jogador a jogar, no qual podemos ver como a memória de conflitos anteriores cria a ligação, e como esta acaba sendo responsável pelo enorme envolvimento deste com o jogo. 


Por outro lado o modo como os designers suportaram a sistematização das memórias, apesar de se referir a base narrativa, não foi baseada numa lógica como a literatura, o cinema ou a televisão, mas antes no desporto, nomeadamente nas histórias que se criam à volta deste. Não deixa de ser algo com que não nos tenhamos já debatido, já que um jogo não é um filme, mas tem muito deste, assim como não é um desporto, mas também tem muito desse. Dessa forma as memórias, sendo bastante simples diga-se, acabaram por se servir de uma lógica desportiva, que trabalha numa base de conflitos de hierarquia, domínio e tribalismo.


Uma das questões levantada por Plater que surge por via desta repescagem de eventos passados no âmbito de um jogo em mundo aberto e sua recolocação em jogo, foi o da necessidade de improvisar on-the-fly argumentos para responder ao jogador, daí que tenham recorrido para o design, a um conjunto de técnicas de stand-up e teatro de improviso para dar suporte à credibilidade dos NPCs. 

"Player Stories vs. Designer Stories – Empowering Players Around The World" (2015) Michael de Plater 

novembro 01, 2015

"Her Story" (2015)

Na semana passada foram anunciados os vencedores do IndieCade, com o grande prémio a ser conquistado por um dos mais interessantes videojogos deste ano "Her Story" de Sam Barlow, ao que se juntou o interessantíssimo facto, da entrega do prémio carreira a Brenda Laurel. A leitura da lista de premiados gerou impacto pela conexão entre os dois prémios o que me levou de imediato a dedicar-lhes a minha coluna no IGN: "A Narrativa nos Indies".


"Her Story" é uma viagem no tempo, mas e por isso mesmo mesmo é uma consagração de algo que pensávamos perdido no tempo. Usando os rudimentos da linguagem interativa dos anos 1990, Barlow apresenta um artefacto que consegue ir muito para além de tudo o que conhecíamos assim caracterizado, consegue agarrar a nossa atenção e emocionar a nossa experiência. Na verdade só a superfície é dos anos 1990, por baixo temos toda uma lógica e algoritmia a que não tínhamos ainda chegado noutros tempos, por isso acabamos sendo apanhados totalmente desprevenidos, como que enganados pelas inferências imediatas que vamos realizando ao entrar no jogo. Não posso deixar de agradecer ao Carlos Mendes que teve a enorme amabilidade de me oferecer uma chave para o jogo em junho, assim que saiu.

Brenda Laurel no IndieCade 2015 recebendo o Trailblazer Award

Brenda Laurel é nada menos que a musa inspiradora de todo o meu interesse pela Interatividade. Nos anos 1990 o meu mundo girava em redor da arte cinematográfica. Foi o contacto com Laurel e o seu livro "Computers as Theatre" que me fizeram mudar a agulha dos interesses, nomeadamente fizeram perceber que existia ali algo relevante que precisava desesperadamente de ser estudado e aprofundado. Passados 20 anos, ainda por cá continuo, e ela também.

outubro 26, 2015

Tarkovsky, plano por plano

Juntei a leitura de um texto do BFI com o visionamento de um ensaio de Antonios Papantoniou, e senti um arrepio nostálgico, com enorme vontade de voltar aos mundos experienciais de Tarkovsky. Por isso aproveito para deixar aqui o ensaio audiovisual, que apesar de longo vale todos os minutos, para quem quiser perceber Tarkovsky, mas especialmente para quem quiser compreender em maior profundidade a linguagem cinematográfica, nomeadamente a sua amplitude, e neste caso a sua capacidade para trabalhar a psicologia humana, para nos levar ao íntimo do ser.


Tarkovsky é visto como um criador único, dotado de uma capacidade expressiva especial no campo da linguagem audiovisual. Contudo, não é o único como ele próprio admite quando reflete sobre as suas grandes influências, que podemos ligar claramente à estética das suas obras. No texto "10 great films that inspired Andrei Tarkovsky", Patrick Gamble dá conta de dez influências essenciais na filmografia do autor: Alexander Dovzhenko, Charlie Chaplin, Jean Vigo, Robert Bresson, Kenji Mizoguchi, Akira Kurosawa, Luis Buñuel,  Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman, Sergei Parajanov. O artigo abre com "Terra" de Dovzhenko o que me rendeu logo ali, Tarkovsky tinha razão comparando-se com este, o sensorial e experiencial é vital nesta obra, e é dessa forma que ambos os criadores conseguem nos fazer passar através do interior dos seus personagens, sentir como eles sentem, ver como eles vêem, quase sem ocorrências de expressão verbal.

"Terra" (1930) de Alexander Dovzhenko

Mas o que me fez escrever este apontamento foi o ensaio "Andrei Tarkovsky - Shot By Shot" (2015). Se a recordação da sua obra é suficiente para me fazer viajar, poder escrutinar o trabalho à lupa, como Papantoniou faz neste documental, é francamente impressivo. É verdade que o filme se foca na pedagogia, servindo com excelência esse propósito, mas ao mesmo tempo podermos olhar, ver e sentir pausadamente a linguagem audiovisual de Tarkovsky, é toda uma viagem de emocionalidade racionalizada feita com enorme mestria.

"Andrei Tarkovsky - Shot By Shot" (2015) de Antonios Papantoniou

outubro 24, 2015

"Dimensões do Diálogo" de Svankmajer

Jan Svankmajer (1934) é um reconhecido animador checo com uma obra que remonta aos anos 1960, sempre polémico e desconfortável, ora pelos objetos a que recorre nas suas animações, ora pelas ideias que exprime com estes, sendo muitas vezes rotulado de surrealista grotesco. Contudo o filme de que aqui hoje dou conta, fica-se mais pelo grotesco, deixando o surrealismo à porta, uma vez que a mensagem é coesa, seguindo o molde base do processo narrativo.


Ainda que eu o apresente como de traço narrativo, a veia surrealista de Svankmajer impede-o de ser completamente objetivo, mesmo quando o título é direto e as secções do filme são entrecortadas com subtítulos, permitindo múltiplas leituras e interpretações. Estas acontecem e podem ser encontradas na crítica rede afora, direcionando a nossa leitura em função da experiência e conhecimento de quem interpreta. Nesse sentido, a interpretação que aqui vos ofereço deve funcionar como complemento, sendo lida apenas após visionamento do filme. Da minha perspectiva o filme é obrigatório para qualquer amante da Comunicação.

"O Bibliotecário" (1566) de Giuseppe Arcimboldo

Em termos meramente plásticos Svankmajer assume neste filme a influência direta de Arcimboldo, nomeadamente das obras, "As Quatro Estações" e o "Bibliotecário", entre outras. Como se Svankmajer entrasse pelas telas de Arcimboldo adentro e lhes desse vida, como compete à animação, mas indo além, conferindo-lhes desígnio, narrativa e sentido.

Dimensões do Diálogo” (1982) de Jan Svankmajer, Checoslováquia

A minha interpretação,

Parte I - A Evolução (subtítulo: "Diálogo Eterno")
A primeira parte surge como o início dos tempos, a criação e evolução do ser humano, do ser pré-histórico ao ser atual, construído pela via do Diálogo. Svankmajer oferece-nos aqui uma leitura particular do homo-sapiens e da sua inteligência como fruto da interação humana, responsável pela filtragem e aprofundamento de tudo aquilo que somos hoje.

Parte 2 - A sobrevivência (subtítulo: "Diálogo Apaixonado")
Se na primeira parte Svankmajer nos fala do processo de evolução e aprimoramento da consciência, aqui fala do corpo, do como a espécie depende do diálogo com todo o seu espectro emocional do amor à raiva, para a sobrevivência da carne, sua reprodução e manutenção.

Parte 3 - O fim (subtítulo: "Diálogo Desgastante")
Por fim, já cansados e gastos, o diálogo começa a perder-se, começam a surgir as primeiras indicações de que o diálogo não se está a efetivar, o desentendimento ou falha na comunicação, e assim começa a nossa degradação até à extinção do ser.

outubro 17, 2015

Profissão: Animador

Bruna Berford criou uma pequena animação, do tipo ensaio audiovisual, onde dá conta dos requisitos necessários ao cumprimento da profissão de animador. Um filme curto com excelente ritmo, no qual se dá conta, dos primeiros passos ao resultado final da acção do criativo. É um filme relevante por não assumir o deslumbramento que a profissão provoca, mas antes por enfrentar o esforço que a prática requer com grande honestidade.



Este filme é o resultado de um trabalho realizado por Berford para a disciplina de Stop Motion Experimental na Academy of Art University, onde se licenciou em Animação. Berford é atualmente Cinematic Artist na Telltale Games.

 
"Occupation: Animator" (2014) de Bruna Berford

outubro 15, 2015

Book review

Just a quick post for the record of the first review of our book, "Creativity in the Digital Age" published by Springer this year. The review was written by Cecilia Manrique, University of Wisconsin, for the ACM Computing Reviews.



outubro 14, 2015

Montaigne, criador do Ensaio

Os “Ensaios” de Montaigne criam a partir da sua leitura uma experiência magistral em termos da aprendizagem de si, obrigando-nos a confrontar a importância da leitura e do seu impacto sobre o nosso ser. Montaigne começou esta obra em 1571, com 38 anos, tendo terminado a mesma apenas na sua morte, em 1592, com 59 anos. Os “Ensaios” foram um projeto de vida, mas mais do que isso ou talvez por isso mesmo, demonstram em si o processo de transformação intelectual de um ser humano. Neste caso falamos de alguém com elevada curiosidade intelectual e uma capacidade tremenda para se dedicar ao estudo em busca de respostas.


Os “Ensaios” surgem a partir da reclusão a que Montaigne se votou a si mesmo. Em 1571 retirou-se da sociedade e família, e fechou-se numa torre juntamente com a toda a sua biblioteca de mais de 1500 obras, até 1580. O que podemos ler nos “Ensaios” é assim o resultado desse esforço, mas ao mesmo tempo o crescimento e amadurecimento intelectual de alguém, que depois de ter vivido quase 40 anos em plena sociedade, decide retirar-se para tudo analisar ao microscópio da dúvida sobre si mesmo. O primeiro e segundo livros são publicados em 1580 quando Montaigne resolve pôr fim ao processo de exclusão, de recusa da vida vivida apenas através dos livros, e assim voltar à sociedade, viajar e voltar a assumir cargos políticos.
“Os livros são agradáveis, mas se por frequentá-los perdermos, por fim, a alegria e a saúde, nossas melhores qualidades, abandonemo-los: sou dos que pensam que seus frutos não podem compensar essa perda.”
Deste modo o terceiro livro, que surge passados 8 anos após a saída da reclusão, assume todo um novo figurino, não apenas pelo amadurecimento, mas também porque realmente Montaigne se transformou, passou a ver o mundo pelos seus próprios olhos, colocando em causa tudo o que tinha lido, tudo o que tinha ouvido, passando a filtrar o mundo à sua volta por meio da observação e experiência pessoal.
“Estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física.”
Fico a pensar que existe um risco para quem leia apenas o Livro 3, que surge em todos os séculos, e aquele em que vivemos não é excepção, de se pensar que basta isso, a experiência e observação, para se compreender o mundo que nos cerca. Por isso se torna tão perigoso descontextualizar escritos e expressões, que é aquilo em que se especializam alguns dos vendedores de sonhos, que promovem o mundo ausente de escolas, ausente de passado, centrado no presente, centrado no Eu apenas. Montaigne se o fez e disse no seu terceiro livro, foi por ter atingido uma maioridade intelectual, o que lhe permitiu ganhar um nível de consciência raro, de si, dos outros e do mundo, algo que em grande parte se ficou a dever às leituras que realizou, e que tão profusamente cita ao longo dos três livros.
“Abraço com mais gosto os princípios da filosofia que são os mais sólidos: isto é, os mais humanos e nossos. Minhas opiniões correspondem ao meu comportamento, humildes e modestas. A meu ver, a filosofia finge-se de criança quando levanta a crista para nos pregar que é uma aliança selvagem casar o divino com o terrestre, o sensato com o insensato, o severo com o indulgente, o honesto com o desonesto. Que o prazer é qualidade bestial, indigna de ser provada pelo sábio. E que o único prazer que ele tira da fruição de uma bela jovem esposa é o prazer de sua consciência por estar praticando uma ação segundo as regras. Como calçar suas botas para uma cavalgada útil. Possam os sequazes dessa filosofia ter, no desvirginamento de suas mulheres, tão pouca firmeza, e nervos e suco quanto têm seus argumentos! Não é o que diz Sócrates, preceptor deles e nosso. Ele aprecia, como deve ser, o prazer corporal, mas prefere o do espírito, por ter mais força, constância, facilidade, variedade, dignidade. Este não anda sozinho, segundo ele (que não é tão fantasioso assim), mas é apenas o primeiro. Para ele, a temperança é moderadora, não adversária dos prazeres. A natureza é um guia gentil, mas não mais gentil do que sábio e justo.”
“É uma perfeição absoluta, e como divina, saber gozar lealmente de seu ser. Procuramos outros atributos por não compreendermos a prática dos nossos, e saímos de nós mesmos por não sabermos o que nele se passa. No entanto, pouco adianta subir em pernas de pau, pois mesmo sobre pernas de pau ainda temos de andar com nossas pernas. E no trono mais elevado do mundo ainda estamos, porém, sentados sobre nosso traseiro. As mais belas vidas são, a meu ver, as que se conformam ao modelo comum e humano, bem ordenadas, mas sem milagre, sem extravagância.”
Estas duas citações foram retiradas do final do seu livro, e dão conta do ponto  a que chegou Montaigne. No início do livro dizia-nos que procurava descrever o Homem (estamos em plena Renascença), do modo mais franco e honesto, o que fez através da enorme quantidade de obras lidas e da enorme capacidade para entreter a dúvida constante. Ao fazê-lo criou toda uma nova abordagem ao modo de escrita de não-ficção, desenvolvendo o modelo daquilo que viria a ficar conhecido como o Ensaio Académico, e que ainda hoje se realiza nas Universidades.

No final deste livro assumo por completo a dívida que temos para com o período da Renascença. Sempre a reconheci, mas enquanto conhecedor dos méritos nas artes plásticas e visuais (Michelangelo, Donatello, Botticelli, Raphael) e ciências (Maquiavel, More, Copernicus, Galileo, e claro Leonardo Da Vinci). Mas os efeitos de todo este período, que teve o seu auge no final do século XV, estenderam-se no tempo até ao que podemos considerar a última fase do Renascimento, final do século XVI e início do século XVII, com a Literatura a dar-nos o trio: Miguel Cervantes (1547-1616), William Shakespeare (1564-1616) e Montaigne (1533-1592).


Versões seguidas:
Montaigne, Michel, (1571-1792), “Os Ensaios”, Ed. M. A. Screech, Trad. Rosa Freire d'Aguiar, Companhia / Penguin, ISBN: 9788563560063, (2010)
Montaigne, Michel, (1571-1792), “The Complete Essays of Montaigne”, Trad. Donald M. Frame, Narração: Christopher Lane, Brilliance Audio, Inc. (2011)

outubro 11, 2015

Filmes da Gobelins 2015

Mais um ano, mais uma vaga de filmes de fim de curso da Gobelins chega à rede. Os filmes deste ano parecem-me um pouco mais introspectivos e reflexivos, apesar dos poucos minutos de que dispõem para tal (2 a 4 minutos). Em termos técnicos continuamos a poder ver do melhor que se faz no mundo académico da animação internacional. Dos 8 filmes agora publicados, seleccionei os 4 que mais me emocionaram, e que passo a apresentar.






"Que Dalle" (2015) de Caroline Cherrier, Hugo De Faucompret, Eva Lusbaronian, Arthus Pilorget, Johan Ravit

É um belíssimo trabalho de cinema que se socorre da ilustração e animação para criar um universo de realismo enfatizado, trabalhado ritmicamente para estimular em nós as distintas emoções da história que vai construindo. Os cenários são envolvidos por um imenso trabalho de luz e sombras, e a animação catapultada por meio da montagem e composição. Impressionante do ponto de vista técnico, tanto na coerência da estética da ilustração, como na criação da obra audiovisual como um todo, nomeadamente montagem e cinematografia. Vale a pena passar pelo TheCab, blog de concept art, para saber mais sobre o processo de criação de "Que Dalle".


"Made in China" (2015) de Vincent Tsui

Um trabalho que opta por uma linha de ilustração autoral, no sentido de servir o aprofundamento da mensagem, como garante de intenção expressiva. Se por vezes nos rimos, outras somos convidados à contemplação em profundidade sobre a sociedade que habitamos.


"Wildfire" (2015) de Hugues Opter, Pierre Pinon, Nicole Stafford, Valentin Stoll, Arnaud Tribout, Shang Zhang

O filme, apesar de curto procura dar um lampejo das ansiedades que trespassam a mente de uma mulher-bombeira, na sua relação com o trabalho e família. A animação segue um trabalho tradicional, com a ilustração a fugir para traços a óleo, de modo a contribuir para um extrapolar da complexidade da mente da personagem.


"Ama" (2015) de Liang Huang, Mansoureh Kamari, Julie Robert, Tony Unser

É o filme lírico da série, por meio de uma base a óleo somos levados pela mão no sonho de uma senhora num mar do Japão.


[via Short of the Week]

outubro 10, 2015

Alquimia da autoajuda

Há 20 anos que este título e o seu autor me perseguem, com, por um lado os seus defensores a louvarem as suas qualidades e efeitos transformativos, e por outro os seus detractores a qualificarem a obra e o autor como corpos estranhos ao mundo da literatura. Entre os dois grupos, por vezes extremistas, acabei por decidir não dedicar tempo ao livro, apesar de muitas vezes o ter encontrado em prateleiras de pessoas amigas, livrarias e bibliotecas. Então porque decidi lê-lo agora? Essencialmente porque encontrei uma lista de livros, dizendo respeito, com alguma ironia, aos 50 Livros que Não Devemos Ler Antes de Morrer, que fazia menção ao "O Alquimista", atacando-o por não passar de um livro de autoajuda disfarçado de romance. Nada de novo, mas talvez por ter sentido a força da crítica resolvi pegar no ebook e ler, para tentar compreender finalmente o que movia tantos ódios e paixões. Comecei, mas ao fim de 20% dei por terminada a leitura.


São várias as razões que me levaram a pousar o livro, mas analisemos um pouco daquilo que o constitui,

A escrita. Tendo lido antes outros leitores procurarem qualificar a escrita de Paulo Coelho como simples e ausente de presunções, numa tentativa de o demarcar de preocupações estéticas, tenho de discordar. Nesta obra em particular, o que temos é uma escrita pobre, que é bem diferente de ser simples. Temos um texto que apresenta um vocabulário imensamente reduzido, com estruturas gramaticais muito pouco estruturadas, formando um todo incapaz de desenvolver uma coerência em termos estilísticos, atirando o registo escrito para o nível do discurso oral e impessoal.

A narrativa. Sofre dos mesmos problemas da escrita, sendo praticamente incapaz de se deslocar da história, de assumir uma estrutura e discurso autónomos. O enredo praticamente não existe fora da linha cronológica, tal como os personagens que se limitam a servir o debitar das informações relativas a cada evento.

A mensagem. Podíamos até aceitar os problemas estéticos acima enunciados, se tudo isso tivesse como propósito suportar um conteúdo válido e relevante, contudo isso não acontece. São precisas poucas páginas para compreender ao que vem Paulo Coelho, para perceber o que está a tentar fazer, tendo de suportar desde bastante cedo a sua vontade para nos guiar, e impedir de sair do seu universo. “O Alquimista” é um livro de autoajuda, o que não é propriamente novidade, o que me perturbou foi verificar que a sua base é ausente de conhecimento científico, e completamente fundamentada no esoterismo. A abordagem dada ao texto procura de certo modo mascarar esse fundamento com a ideia do romance, apelando à sua tradição ficcional para nos subjugar e assim converter, mas o misticismo subjacente é tão intenso, que só mesmo com muita boa-vontade se torna tolerável.

É verdade que os livros de autoajuda têm estado sempre debaixo de fogo, muito porque na generalidade não vão além da banha da cobra, para o qual fenómenos como “O Segredo” e este "O Alquimista" muito contribuem. Mas nos últimos anos, nomeadamente com o surgimento da Psicologia Positiva, vimos aparecer toda uma outra abordagem, fundamentada em estudos das ciências sociais e neurociências que conseguiram captar novos leitores, alguns deles bastante informados. Eu próprio tenho-me interessado bastante pelos resultados das investigações da Psicologia Positiva, dado o meu interesse no design de experiências emocionais em ambientes digitais interativos, contudo mesmo os livros de autoajuda baseados em Psicologia Positiva têm permanecido fora da minha esfera de interesses. Deste modo aproveitei a leitura do livro de Paulo Coelho para refletir e tentar compreender um pouco melhor as razões desta minha recusa.

Podemos dizer que a transformação do comportamento humano, que é a essência do que se busca num livro de autoajuda, não acontece apenas através da obtenção de informação. Ou seja, não basta saber o que tenho de fazer para ser feliz, é fundamental agir para que isso possa acontecer. Ora o problema é que deter conhecimento sobre algo que me faz bem ou algo que me faz mal, não é per se suficiente para me fazer agir. Se seguirmos uma das teorias mais estudadas nos últimos anos sobre a motivação, a Teoria da Autodeterminação de Deci e Ryan, podemos compreender melhor como se processa a transformação do comportamento humano, como o sujeito necessita de sentir autonomia, competência e possibilidade de se relacionar com os outros, três princípios que os livros de autoajuda não proporcionam, antes pelo contrário, ao funcionarem em oposição a estes, contribuem sim para a manutenção do estado inicial, não promovendo a transformação dos sujeitos.

Ou seja, os livros de autoajuda ao apontarem o caminho que deve ser seguido pelos indivíduos, descrevendo o que fazer e o que não fazer, estão a exercer um Controlo sobre a vontade dos indivíduos que os lêem, retirando-lhes de imediato a Autonomia de decisão e de desenho do seu processo pessoal de transformação. Por outro lado, a motivação só acontece quando existem competências instaladas que garantam os mínimos para avançar frente ao desconhecido. Ora os livros de autoajuda não contribuem com qualquer competência, já que se limitam a descrever abstracções que possam servir a qualquer tipo de pessoa, ficando a faltar eventos concretos, comparáveis e relevantes de serem assimilados. E é exatamente por isso que se torna tão mais relevante a leitura de romances, porque são estes que são capazes de nos colocar no lugar de situações concretas, e nos conferem ferramentas para lidar com o desconhecido. Por fim, a componente de relacionamento, que naturalmente não se pode conseguir na leitura, já que é algo que só pode advir da experiência do real, do esforço individual na construção do eu no seio da comunidade.

Dito isto, “O Alquimista” tem muito pouco a oferecer em troca do tempo que nos pede, apesar de ser um livro com pouco mais de 150 páginas.


Nota quantitativa no GoodReads.