junho 16, 2015

M+, um blues digital

Foi com um enorme agrado que vi, e ouvi, o primeiro teledisco da nova banda, M+, desde logo por reconhecer ambas as caras, de mestrados em que leccionei na Universidade do Minho, cursos que parecem também ter servido para se conhecerem. Do que me lembro de ambos, a Mónica Dias manifestava um gosto enérgico pelo audiovisual, numa faceta clássica e revivalista, de algum modo ligada à sua atração pela cultura musical do Blues, já o Márcio Paranhos era imbuído de um espírito mais experimentalista, com um gosto particular pela abstração e potencial do digital. Dois pontos distantes do espectro artístico, que ao juntar-se num projeto comum, teriam forçosamente de resultar em algo criativo. Claro que se assim é deve-se às suas competências, e não apenas aos seus gostos. Gostei do género musical, que parece designar-se de synthpop, e resolvi fazer-lhes algumas questões para o blog, às quais tiveram a amabilidade de responder.

M+ (Mónica Dias + Márcio Paranhos)

:: Como surgiu a dupla? Como se conheceram, e como surgiu a ideia para avançarem para um projeto musical conjunto? 

Mónica: A dupla surgiu em outubro de 2014, aquando de uma conversa de café onde o Márcio sugeriu criarmos um projeto em conjunto.

Márcio: Nós conhecemo-nos numa disciplina opcional, numa altura em que ambos estávamos a fazer mestrado. Cedo conversámos sobre alguns dos projetos que tínhamos e que andávamos a desenvolver. No meu caso estava ligado essencialmente às artes performativas com uma vertente visual e sonora experimental, por outro lado a Mónica estava ligada a um projeto musical na onda do rock e blues.

Mónica: Estes projetos pessoais acabavam sempre por não me satisfazer, não sendo os registos que gostava de poder explorar verdadeiramente. Numa conversa, o Márcio desafiou-me a misturar os nossos dois mundos e ver o que poderia nascer desta colaboração.

:: Existe aqui uma clara clivagem, com o Márcio numa componente electrónica e a Mónica com guitarra e uma voz R&B, como é que isto tudo se conjuga? 

Mónica: Por incrível que possa parecer, a conjugação foi mais fácil do que inicialmente se previa. O Márcio tem todo um sentido rítmico que aliado à minha experiência musical permitiu uma estrutura inicial bastante sólida na construção das músicas. Sempre me fascinou a possibilidade de misturar a sensualidade do blues a uma componente energética/envolvente que a música electrónica pode proporcionar.

Márcio: Ao contrário das minhas anteriores experiências na vertente musical, que passavam sempre por projetos de teor instrumental, fazia todo o sentido unir a voz da Mónica e sair da minha zona de conforto em prol de uma sonoridade mais musical. Com isto assumido, houve um cuidado em nunca sobrepor as diferentes naturezas que nos influenciam.

Mónica: Era essencial existir uma coesão do todo, no sentido do que queríamos seguir.



:: Qual é a vossa formação musical?

Márcio: A minha formação musical baseia-se essencialmente na intuição. Ouço imensa música desde muito novo, mas nunca tive nenhuma banda nem qualquer formação. No fundo sou um autodidata e um curioso.

Mónica: Eu estou no mundo da música, tendo vindo a incluir projetos musicais, há quase 10 anos. Toco guitarra desde os 13, mas sempre numa vertente autodidata.

:: O que procuram criar com esta abordagem musical, ou seja, existe algo que tinham em mente na hora de criar, ou saiu apenas naturalmente? 

Mónica: Desde o início pensámos que era importante não ter grandes restrições no que toca à criação. Não queríamos soar a nenhuma banda em especial. O nosso único objetivo, era criar e criar até chegarmos a um resultado que demonstrasse a nossa energia, e o gosto com que procuramos fazer música.

Márcio: Como pessoas de mundos tão díspares, fazia todo o sentido quebrar regras e perceber até onde conseguiríamos ir com todo o nosso entusiasmo. Tudo acaba por ser criado num sentido espontâneo e sempre em aberto.

Mónica: O fato de não nos regermos por regras ou algum registo em especial acabou por ser o nosso maior aliado e isso refletiu-se no nosso produto final.

Márcio: No fundo, por não queremos cair em nenhum estereótipo, acabámos por criar algo que soa muito a nós mesmos. Um reflexo de intenções que contém toda uma vontade de ir em frente.



:: O vídeo foi realizado pelos dois? O que procuravam passar com o mesmo? 

Mónica: Sim, o facto de termos um "low budget" acaba por nos desafiar a encontrar formas de comunicar a nossa identidade sem perdermos a essência da música criada.

Márcio: Foi realmente uma tarefa no mínimo peculiar. Duas pessoas a filmarem-se num espaço pequeno, e vazio, e sempre com uma questão em mente: como transpor estes dois mundos que são os nossos, num sentido complementar? É na resposta a esta questão que surgem as duas cores, que nos revelam e complementam.

Mónica: As duas cores representam nada mais que a nossa individualidade em constante comunicação.

Márcio: É dessa comunicação que M+ (Mplus) acontece.

"Freedom" (2015) de M+

:: Só têm esta música, ou têm mais em carteira? Vão lançar algum EP? Quando? E concertos? 

Márcio: Na realidade, já temos um EP pronto a ser lançado já este mês.

Mónica: Esta foi uma das primeiras músicas criadas e o acordo foi mútuo quando decidimos que este seria o nosso primeiro single.

Márcio: Existem ainda uns “truques na manga” que cedo serão desvendados, mas até ao momento há uma enorme vontade de levar as músicas a público e de as apresentar ao vivo.

Mónica: Está previsto para o próximo mês um conjunto de datas que assinalam os nossos primeiros passos nos palcos. Fiquem atentos às novidades, porque cedo anunciaremos datas de espetáculos.



Para mais informações sobre a banda, podem aceder à sua página facebook.

junho 15, 2015

Porque fazemos o que fazemos?

"Why We Do What We Do: Understanding Self-Motivation" é um bom livro mas não vai além disso. Aquando da sua leitura precisará de se levar em conta dois elementos: o primeiro, que o livro é de 1995; e o segundo que Edward Deci, conjuntamente com Richard Ryan, são duas das maiores autoridades no campo da Motivação. Porque digo isto? Porque aquilo que Deci aqui apresenta é para nós em 2015 algo já assimilado, apesar da sociedade muitas vezes o esquecer, mas se o é hoje aceite deve-se a estes dois investigadores. E sendo de 1995, o que aqui se diz era ainda recente à altura, hoje já não é. Depois, o livro acaba por sofrer de um problema clássico, sendo académico o autor e sabendo que os públicos são distintos, procurou agradar a todos, acabando por fragilizar a obra. Se a primeira parte funciona bastante bem na desconstrução teórica do modelo que suporta a “Self-Determination Theory”, a segunda parte é fraca, com Deci a entrar quase pelo caminho da autoajuda, com ideias simples e simplistas, demasiado senso comum e pouco suporte para afirmações tão largas e complexas. Assim descrevo apenas a parte do livro que realmente vale a pena enfatizar.


A teoria de motivação aqui apresentada, foi criada ao longo de décadas por Deci e Ryan, tendo sido denominada como “Self-Determination Theory” (SDT). Como o próprio nome indica, a teoria parte de uma base que diz que a intensidade da nossa motivação está directamente ligada à nossa determinação para alcançar um objectivo (ex. o ato de deixar de fumar, maioritariamente só resulta no tempo, quando parte de uma vontade do próprio). Deste modo Deci começa por elencar a distinção entre a motivação extrínseca e a intrínseca. No caso da extrínseca, somos motivados por algo exterior ao objectivo em si, ele apenas é um meio (ex. tirar boas notas na escola, para ganhar uma consola). No caso da intrínseca, refere-se a realizar algo, porque se pretende isso mesmo (ex. aprender a tocar piano porque nos dá prazer). Se à partida podemos pensar que a motivação intrínseca é a única relevante, não é o caso. O que a teoria de Deci refere, é a determinação para agir, não se ela é interna ou externa, contudo ao enfatizar a determinação do próprio, ela refere que quando se motiva, quem é motivado tem de estar consciente e determinado a seguir essa motivação.

Por exemplo, ao explicarmos a uma criança que precisa de estudar para ter um futuro melhor, estamos a colocar-lhe o objectivo exterior na frente, mas não o fazemos obrigando, antes dando a escolher, entre um futuro melhor ou pior, cabendo à criança "decidir". Isto dá conta do porque a motivação não se faz pela recompensa ou punição, mas antes pela explicação e chamada à participação dos envolvidos. No mesmo sentido, quando alguém trabalha como lixeiro, em princípio não é por se sentir movido por tal dever, mas pela recompensa financeira que daí advém, sendo que numa sociedade livre, este não é obrigado a tal, podendo sempre procurar e escolher outros trabalhos.

Deste modo, não basta dizer que pretendemos motivar intrínseca ou extrinsecamente alguém, o que temos de fazer é garantir uma motivação autodeterminada, e para o garantir Deci elenca três variáveis necessárias à sua obtenção: "Autonomia", "Competência", e "Relacionamento". Ou seja, para garantir um indivíduo motivado, precisamos de lhe conferir autonomia, oferecer-lhe liberdade de escolher o seu caminho; precisamos de garantir que o objectivo está ao alcance das suas capacidades, não sendo demasiado fácil, nem demasiado difícil; e por fim garantir a existência de uma relação entre o motivado e o motivador, ou o grupo de pessoas que suporta o objectivo da motivação. Quando estas três variáveis se cumprem o nível de motivação atinge o seu ponto mais elevado, deteriorando-se sempre que uma destas variáveis não é cumprida.

Destes três elementos, apenas um é verdadeiramente novo, a autonomia. No caso da competência, é algo que Vygotsky já tinha identificado há bastantes anos e que ficou conhecido por Zona de Desenvolvimento Proximal, e que Bruner descreveria também como processo de Scaffolding (os andaimes de ajuda à aprendizagem, e manutenção do interesse), muito utilizado nos tutoriais multimedia e de videojogos. Por esta via, conseguimos manter o sujeito interessado, desde que saibamos construir as dificuldades numa lógica progressiva. Já no caso do relacionamento, é a condição de sobrevivência da espécie mamífera, fundamental na componente de gregarismo, tendo sido evidenciada nos mais diversos estudos, desde o cérebro Triúnico à Empatia. Sem empatia, a vontade humana não se ilumina.

Assim no caso da autonomia, o que temos é um processo de garantia da participação do motivado na escolha para a motivação. Procura-se desta forma, envolver de algum modo a pessoa a ser motivada na decisão, garantindo a sua determinação para agir. A escolha e decisão pode ser menor, o que interessa é garantir ao indivíduo que este é ouvido, e que de algum modo existe uma consequência da sua vontade. Deci dedica bastante espaço à discussão da autonomia, desde logo começando por a opor ao controlo, assim como a diferenciando da independência. No caso da independência, apesar desta apelar à liberdade do indivíduo tal como a autonomia, só esta faz referência a que esta acção tenha de ser desligada dos demais, daí que Deci referencie que no caso da motivação acontece precisamente o contrário, a liberdade de escolha não pode ser desligada da vontade de estar ligado aos outros. Deci dá o exemplo dos adolescentes que se afirmam pela sua vontade de se afirmarem como diferentes dos pais (autónomos), mas ao mesmo tempo iguais aos amigos dos próprio grupo (relacionamento).

Por fim, quero ainda frisar um tópico que toda esta teorização acaba por  levantar, e que é profundamente político, mas que nos ajuda a compreender melhor o mundo em que nos movemos. Deci dá conta do modelo motivacional americano, ou capitalista, e depois realiza algumas comparações com o modelo comunista, que este encontrou quando serviu de conselheiro na Bulgária, logo após a queda do muro de Berlim. Assim Deci vai mostrar os dois extremos do espectro da motivação, ou a amotivação, de um lado o controlo do capitalismo, do outro, a inconsistência de propósitos do comunismo.

No caso do capitalismo, temos toda uma sociedade montada para exercer controlo e obrigar o indivíduo a realizar acções que grande parte das vezes não deseja. Trabalhar para comprar um carro ou uma casa maiores do que as suas reais necessidades, uma satisfação material, que até se ser pressionado pela publicidade ou opinião dos outros, não se considerava sequer. Por outro lado, no comunismo, por força de se almejar a igualdade entre os indivíduos, não resta espaço à autonomia, o indivíduo queda-se num limbo, incapaz de compreender o que é esperado dele enquanto membro do grupo, perdendo-se e conduzindo à necessidade de impor regimes totalitaristas para fazer vingar os ideais. Assim temos que qualquer destes dois extremos contribuem inevitavelmente para a amotivação, criando não seres humanos, capazes, saudáveis, criativos e determinados, mas antes nada mais do que simples autómatos.

Para fechar, apenas concluir que a motivação está no cerne daquilo que faz de nós seres humanos, é o garante da nossa volição, da nossa liberdade, e assim do pulsar da própria vida.

junho 14, 2015

A vontade de ser (e recriar o) humano

Ex Machina é a nova jóia da coroa da ficção científica cinematográfica, apesar de trabalhar um tema — a Inteligência Artificial — já tão intensamente discutido e aprofundado sob os mais diversos ângulos: a consciência ("2001: A Space Odyssey” (1968); “Blade Runner” (1982)); as emoções ("A.I. Artificial Intelligence" (2001); "I, Robot" (2004)); a igualdade ("Metropolis" (1927); "Bicentennial Man" (1999)); o controlo ("The Matrix" (1999); "The Terminator" (1984)); a companhia ("Her" (2013); "Wall-E" (2008)); a inteligência (“Colossus: The Forbin Project” (1970); “Star Trek: Generations” (1999), etc.. Assim, apesar de não parecer, “Ex Machina” traz algo bastante novo, apresenta uma proposta para definir o momento em que a máquina se torna verdadeiramente humana (a singularidade), por um meio que vai muito para além do “Teste de Turing”, ou seja, em que esta se torna capaz de dar resposta aos três fundamentos base da vontade humana: autonomia, competência e conectividade.



Não posso entrar no detalhe da explicação das três variáveis sem desvendar o enredo, e por isso mesmo não o farei aqui, direi apenas que este método se poderia designar por “Labirinto da Vida”. Julgo que é um filme obrigatório ver, porque é um filme que não se cola ao deslumbramento tecnológico, concentrando-se antes na essência daquilo que nos torna humanos. Aliás, somos confrontados com um ser (Ava), servido de qualidades da fisionomia homínidea, mas incompleto à superfície, demonstrando a sua natureza maquínica, com o objectivo claro de nos obrigar a ver, e a sentir, além da tecnologia. Claro que esta incompletude na forma é cirurgicamente desenhada, com a cara, centro nevrálgico da comunicação humana, a permanecer intacta.

Diga-se que o trabalho preconizado por Alicia Vikander é grandemente responsável pela eficácia do filme. Vikander consegue desenvolver toda uma linguagem corporal e facial, que se encaixa claramente entre o Uncanny Valley e o Humano. Claro que ajuda o facto de ela não se apresentar vestida como nós, mas o modo pausado e rítmico como ela se move e interage é tão específico, longe do comum robô, mas também diferente do comum humano. Ao longo do filme, podemos nem ter consciência do facto, mas sentimos ali algo distinto. Não tinha conseguido perceber como tinham conseguido esta nuance, até que numa entrevista Alex Garland explica que Vikander tinha estudado Ballet enquanto jovem, conseguindo assim exercer um controlo perfeccionista dos movimentos do corpo, que ela acabaria por usar aqui para estabelecer a linguagem corporal de Ava.

Teaser de “Ex Machina” (2015)

Como um todo, temos uma obra imensamente coesa no modo como vai gerindo a informação, acompanhada por uma estética profundamente racionalizada, tudo coordenado por Alex Garland, que é  autor da ideia, do guião e da realização. De alguma forma acredito que é diferente quando um realizador parte para filmar uma ideia que é sua, desde que tenha competências para a levar a bom termo. Garland tinha visto várias das suas ideias chegarem ao cinema com “The Beach” (2000), “28 Days Later…” (2002) e “Sunshine” (2007) sempre pelas mão de Danny Boyle. Depois dedicou vários anos a adaptar ideias de terceiros, “Never Let Me Go” (2010) e “Dredd” (2012) para o cinema, e o videojogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2010). “Ex Machina” surge assim como uma espécie de súmula de todo este trabalho, da escrita original à visualização de ideias, emergindo um projecto profundamente autoral pela clara vontade de expressar uma visão.

junho 07, 2015

"Pac-man" + "Pong" = PACAPONG

Já vem com algum atraso, mas só agora consegui jogar "Pacapong", o videojogo criado por Dick Poelen (31), durante a Mini Ludum Dare 58 (Março 2015). Esta "game jam" tinha como tema de partida, o jogo "Pong" (1972). Poelen resolveu assim criar uma fusão de vários jogos partindo de uma base em "Pong", à qual juntou "Pac-Man" (1980), "Space Invaders" (1978) e "Donkey Kong" (1981).



Em essência a fusão constrói-se apenas a partir de "Pong" e "Pac-man", já que tanto "Space Invaders" como "Donkey Kong" funcionam quase como meros adereços, daí também que o título do jogo faça referência apenas aos dois primeiros. De qualquer modo não deixa de ser um interessante trabalho de apropriação e mescla de ideias, capaz de gerar novas experiências, mantendo vivos os valores de cada um dos elementos originais. Isto é algo a que nos habituámos nas últimas décadas no domínio da música, e mais recentemente com a democratização digital, no vídeo, mas os jogos têm estado algo afastados destas experiências, muito por causa das competências exigidas que começam apenas agora a baixar, com as novas ferramentas de desenvolvimento de videojogos.

Assim para além da nostalgia, "Pacapong" consegue transformar por completo "Pong", diria mesmo modernizar, em termos de complexidade e caos, ao mesmo tempo que converte "Pac-man" num jogo multiplayer competitivo. O ritmo da jogabilidade teria a ganhar com "testing", algo que é difícil de fazer durante uma game jam, porque o atravessamento de pac-man e cada partida, parecem-me ser demasiado rápidos. Funcionam muito bem para garantir o interesse nas primeiras vezes que se joga, mas à medida que vamos jogando com outra pessoa, e vamos interiorizando o potencial das regras do jogo, mais tempo poderia ser benéfico para intensificar a emocionalidade entre os dois jogadores.

Video demonstrativo da jogabilidade de "Pacapong" (2015)

O jogo está disponível gratuitamente para Windows, Linux e Mac.

junho 06, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume VII (Fim)

Murakami e Bechdel estavam errados. Murakami considerou que para ler “Em Busca do Tempo Perdido” era necessário que alguma vez nos encontrássemos presos ou fugidos durante bastante tempo (no 3º tomo de "1Q84"). Já para Bechdel, as pessoas atingiriam a meia-idade quando se dessem conta que nunca iriam ler “Em Busca do Tempo Perdido” (em “Fun Home: A Family Tragicomic”). Não sei se foi para demonstrar que não tinham razão, apenas sei que era um título que me acompanhava há décadas, e a curiosidade de saber o que nele se encerrava era tremenda. Por outro lado, como disse na resenha do primeiro volume, há 10 anos que andava a tentar ler o primeiro volume, sem sucesso. Então porque li agora os 7 volumes, as 3200 páginas, em 2 meses? Não tenho explicação, mas arrisco a dizer que talvez tenha necessitado de chegar à meia-idade para ter a calma e tranquilidade necessárias à exigência da sua leitura.


Ao iniciar a leitura deste último volume ganhava uma consciência mais clara das motivações de Proust no encetar desta colossal obra, mas ao chegar a meio do livro as minhas explicações eram não apenas confirmadas, mas aprofundadas pelo próprio Proust que resolve dedicar 20 páginas a explicar o sentido da própria obra. Surpreendeu-me, porque não deixa espaço à interpretação, é muito claro e honesto. Proust arranja uma forma muito directa de explicar o sentido do texto, o sentido da arte, e o sentido de toda a sua vida. É um momento magistral, de reconhecimento do todo, em que as páginas se convertem num espaço-tempo de realidade, deixam de ser mero papel, deixam de ser mera história contada, e passam a fazer parte da nossa vida, enquanto realidade verdadeiramente vivida, porque num tempo resgatado por três mil páginas. É o pináculo de “Em Busca do Tempo Perdido”, em que percebemos o que é o "Tempo Perdido", e com o qual nos "Reencontramos". Muito sinceramente não pensei sequer que pudesse ser explicado, que houvesse mesmo essa necessidade, ou vontade por parte de Proust, mas ali de frente àquelas palavras, tudo ganha uma dimensão nova, uma conexão de enorme pureza com o autor, e que imbuído do facto de já não se encontrar entre nós, gera uma carga de enorme melancolia.

Escrevia então eu, antes de chegar àquele momento de rasgo elucidativo, que Proust vai amiúde deixando as suas notas sobre o valor da arte, nomeadamente a pintura, mas cada vez mais a literatura, da sua relevância enquanto registo e ênfase da realidade vivida de todos os dias. Nesse sentido percebe-se que Proust almejava com esta sua obra criar uma espécie de diário literário do seu mundo, para assim se poder dedicar a “pintar” imagens do mundo em que vivia, legando-as a quem viesse depois. Mas não é um registo de autobiografia que se procura aqui, até porque se vamos sabendo muito sobre a psicologia do autor, nada se diz sobre os seus conhecimentos em concreto, o que sabemos dessa parte está apenas implícito no texto, não sendo atribuído ao narrador/personagem principal, Marcel, mas que sabemos pertencer a quem escreve, ou seja Proust.

Neste sentido quando se procura analisar a obra de Proust, em busca de chaves descodificadoras ou pólos de ênfase, podemos dizer que o principal será mesmo a relação do sujeito, do "Eu", com o mundo que o rodeia, a "Sociedade". Daí que o título da obra busque isso mesmo, a análise do tempo dessas relações, já que elas apenas existem no tempo. As memórias são assim relevantes, mas mais do que elas são o seu registo. Proust tinha receio de morrer sem terminar a obra, porque provavelmente sentiria uma necessidade de passar a registo aquilo que lhe ia no fluxo da consciência e memória, sabendo que depois de morrer, tudo se esvairia, e que a escrita era a única que poderia permitir que aquelas ideas, aquele tempo, continuassem vivos, além da própria vida.

Quando chego então ao miolo do livro, e Proust começa a dissertar sobre o que diferencia as memórias voluntárias das involuntárias, quando ele assume uma franqueza desmedida e se abre sobre o fundamento de todos aqueles tomos escritos, caio a seus pés, a minha sintonia era plena, e Proust propiciava-me ali um dos momentos mais belos de reconhecimento do devir. Acreditando ser aqui que desemboca toda a leitura, o sentido da "Busca", marco os excertos e explicações, que se seguem como potencial spoiler, a ler por quem já leu, ou tem muitas dúvidas que algum dia lerá, ou procura uma motivação para empreender a "tarefa".

------ Potencial spoiler ---------------------------
“A felicidade que acabava de experimentar era efectivamente a mesma que sentira ao comer a madalena, mas então adiara a procura das causas profundas dessa alegria. A diferença puramente material estava nas imagens evocadas; um azul profundo inebriava-me os olhos, impressões de frescura, de luz deslumbrante, giravam junto de mim e, no meu desejo de as agarrar, sem me atrever a mover-me como quando sentia o sabor da madalena tentando fazer com que viesse até mim o que ela me recordava…” p.187
Este parágrafo marca o início do climax, seguindo depois para a distinção entre a memória voluntária e involuntária,
Voluntária: “contemplara [..] do pátio ensolarado da nossa casa em Paris, ora a Praça da Igreja de Combray, ora a praia de Balbec, como se ilustrasse a luz daquele dia folheando um caderno de aguarelas que representavam os diversos lugares onde estivera [..] a minha memória afirmava sem dúvida a diferença das sensações, mas não fazia mais do que combinar entre si elementos homogéneos” (p.193)
Involuntária: “Não se passara a mesma coisa com as três recordações que acabava de ter e em que, em lugar de exprimir uma ideia lisonjeira do meu 'eu', pelo contrário, quase tinha duvidado da realidade actual desse 'eu'." (p.193)
basta um ruído ou um cheiro, já ouvido ou aspirado em tempos [‘sabor da madalena molhada’, ‘ruído metálico de colher a bater no copo’ ‘sensação debaixo do pé provocada por pedras desiguais’, ‘tinir de copos’], o sejam de novo, simultaneamente no presente [o lugar em que acontece a memória] e no passado [‘quarto da minha tia Octave’, ‘carruagem de comboio’, ‘baptistério de São Marcos’], reais mas não actuais, ideais mas não abstractos, e logo se liberta a essência permanente e habitualmente oculta das coisas, e o nosso verdadeiro “eu” (que, às vezes desde muito tempo antes, parecia morto, mas que não o estava por completo) desperta, anima-se ao receber o celestial alimento que lhe é trazido.” (p.193)
Isto de que nos fala Proust, são no fundo as suas mais belas metáforas, mas que este acaba por admitir nesta passagem que só podem acontecer por recurso à memória, ou seja à experiência de vida. Não podem ser criadas, ou mesmo recriadas, acontecem de forma involuntária, surgem-nos à consciência pela sua intensidade e essência. Sãos os momentos vividos e únicos de cada um de nós, aquilo que nos torna subjectivos, auto-motivados, e dotados de consciência.

Proust segue depois para o questionar do como fazer para fixar estas memórias, impressões, que só se podem sentir desta forma, involuntária. Proust afirma que reviver as experiências de novo, aqueles lugares - Combray, Veneza, Balbec - não lhe traziam aquele sentir, porque na sua presença não era capaz de as sentir por completo. A presença, o momento em que se experimenta, não se sente verdadeiramente, e Proust compara com o que sentia o narrador com Albertine, que quando a tinha em seu poder, perto de si, nada sentia, apenas a sentindo completamente, quando ela estava fora do seu alcance. Deste modo Proust avança então com a explicação cabal da razão de ser do título, mas também da razão de ser todo este livro:
“A única maneira de saborear melhor era tratar de conhecê-las [as memórias involuntárias] mais completamente, onde se achassem, isto é, em mim mesmo, torná-las claras até nas suas profundezas.” (p.197) “tentando fazer sair da penumbra o que sentira, convertê-lo num equivalente espiritual [..] Ora este meio, que me parecera o único, que outra coisa seria senão fazer uma obra de arte? [..] “a sua característica primacial era a de que eu não era livre para as escolher [as memórias], de que elas me eram dadas tais quais eram. E sentia que isso devia ser a marca da sua autenticidade. Não fora eu a procurar no pátio as duas pedras da calçada irregulares em que tropeçara. Mas, justamente, a forma fortuita, inevitável, como a sensação fora reencontrada atestava a verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, visto que sentimos o seu esforço para subir até à luz, visto que sentimos a alegria do real reencontrado” (p.199)
Ou seja, escrever sobre. Proust tinha dito lá atrás, noutro volume, que a arte era a única forma de recortar a experiência, já que o momento de cada experiência era demasiado abrangente e pouco profundo, e assim inexpressivo. Temos aqui a defesa da arte, mas a defesa de uma arte de essência, ou seja, uma arte que preserva, regista ou fixa em si as experiências mais pessoais que um ser humano pode sentir.
“Assim, chegara já à conclusão de que de modo algum somos livres diante da obra de arte, de que não a fazemos à nossa vontade, antes, sendo, como é, preexistente a nós, devemos descobri-la, simultaneamente por ser necessária e oculta, e como se se tratasse de uma lei da natureza [..] a nossa verdadeira vida, a realidade tal qual já a sentimos.” p.201
Assim, temos que o “sentido artístico” é “a submissão à realidade interior” p.203, que se realizava “quando estava sozinho” quando assim “mergulhava a maiores profundidades” p.204. Nestas profundidades do seu ser, Proust, fala em reencontrar os seus outros Eus, Eus de então, como por exemplo "o menino" a quem a mãe lia "François Le Champi", um romance de George Sands (esta passagem, na página 205, que não transcrevo, é magistral de sentimento). Para logo a seguir reconhecer o seu medo de perder o cristalino desses Eus, memórias que pelo revisitar das mesmas, se recalcam e transformam, perdendo-se no interior de nós mesmos p.209.
“Um determinado nome lido em tempos num livro contém entre as suas sílabas o vento rápido e o sol brilhante que fazia quando estávamos a lê-lo (..) um livro que lemos não fica apenas ligado para sempre ao que havia à nossa volta; fica ligado com a mesma fidelidade ao que nós éramos então, já não pode tornar a ser experimentado senão pela sensibilidade, pela pessoa que nós éramos então.” p.206

---- FIM SPOILER ---------------------------

Este volume final dá conta do quão obcecado Proust se tornaria com a construção da sua obra, de como ela se tornaria no fundamento completo de toda a sua "raison d'être". Trabalhando apenas à noite, quando Paris dormia, para que não fosse incomodado, e num quarto com paredes isoladas por cortiça que impediam os ruído exteriores, para assim se imiscuir totalmente em introspecção, na pesquisa das memórias de si.
Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que outra pessoa vê deste universo que não é o mesmo que o nosso”. p.217
Era a arte que Proust almejava, não um mero registo das suas memórias, voluntárias ou involuntárias. E assim se explica que a primeira página da "Busca" (de que transcrevo o primeiro parágrafo abaixo), tenha sido encontrada pelo biógrafo Jean-Yves Tadié, reescrita 12 vezes. Tadié diria que teria ficado imensamente contente apenas com a primeira versão.
“Longtemps, je me suis couché de bonne heure. Parfois, à peine ma bougie éteinte, mes yeux se fermaient si vite que je n’avais pas le temps de me dire : « Je m’endors. » Et, une demi-heure après, la pensée qu’il était temps de chercher le sommeil m’éveillait ; je voulais poser le volume que je croyais avoir dans les mains et souffler ma lumière ; je n’avais pas cessé en dormant de faire des réflexions sur ce que je venais de lire, mais ces réflexions avaient pris un tour un peu particulier ; il me semblait que j’étais moi-même ce dont parlait l’ouvrage…” Primeira página do Volume 1, no original, 1913
Durante muito tempo fui para a cama cedo. Por vezes, mal apagava a vela, os olhos fechavam-se tão depressa que não tinha tempo de pensar: “Vou adormecer.” E, meia hora depois, era acordado pela ideia de que era tempo de conciliar o sono; queria poisar o volume que julgava ter nas mãos e soprar a chama de luz; dormira, e não parara de reflectir sobre o que acabara de ler, mas tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto especial; parecia-me que era de mim mesmo que a obra falava…” Tradução de Pedro Tamen, 2003

Tudo isto faz deste livro um artefacto único, continuando a ser um romance, senão “o romance”. Porque não se confunda o fundamento desta obra, tão pouco a sua forma, com a sua extensão, comparando-se com obras seriadas de aventuras, como os, também, 7 volumes de “Harry Potter” de JK Rowland, ou os vários volumes de “As Crónicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin.

Em Busca do Tempo Perdido” não é um livro difícil em termos de enredo, e é verdade que assusta pela sua extensão, mas torna-se verdadeiramente difícil pela escrita imensamente delineada e trabalhada, mais particularmente na forma como Proust constrói parágrafos longos, fazendo uso de todas as formas possíveis de orações subordinadas, que obrigam a memória de curto prazo do leitor a trabalhar arduamente. Mas a sua leitura, a experiência que se constrói em nós e nos transforma, supera facilmente muitas daquelas viagens que sonhámos fazer ou fizemos. A "catedral" que Proust sonhou um dia construir, emerge agora dentro de mim, com campanários que cintilam na lembrança de cada um dos seus personagens - Swann, Odette, Marcel, Gilberte, Oriane, Albertine, a Avó e a Mãe, a Sra. de Villeparisis, Vinteuil, Elstir, Berma, Bergotte, os Guermantes, os Verdurin, Charlus, Cottard, Morel, Rachel, Saint-Loup, Françoise ou Jupien.


[Marcel Proust, (1927), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VII - O Tempo Reencontrado”, Relógio D'Água, ISBN 9727088244, trad. Pedro Tamen, 2005, p. 384]


Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

Actualização 21/06/2015
Entretanto encontrei um pequeno vídeo, "Literature - Marcel Proust" (2015) de Alain de Botton, que tinha já escrito um livro de autoajuda sobre Proust, e que apresenta aqui, de forma sintética, uma possível chave para a compreensão da obra completa.

Actualização 25/06/2015
Abro este ponto apenas para deixar o link para resenha que realizei do livro "Monsieur Proust", um belíssimo memorial da sua governanta, a pessoa que mais tempo e mais próxima de Proust esteve durante os seus últimos 10 anos de vida, os mesmos que levou a escrever toda a obra.

junho 04, 2015

É o anúncio do ano

"Fallout 4" está a caminho. Não admira, "Fallout 3" é de 2008, já lá vão sete anos! Assim, e depois de anos e anos de rumores e insistências por parte dos seguidores, a rede foi ontem apanhada de surpresa com um trailer, e não um mero teaser, de 3 minutos. Ron Perelman, o ator que volta a ser o narrador em off, dizia ontem no Twitter que não ter dito nada antes, tinha sido "...um dos segredos mais difíceis que já tive de guardar...".




Não dá para extrair ainda muito em termos de história, mas a ligação ao universo conhecido do 3 está lá. A minha primeira grande impressão de distinção face ao universo vivido em 3, foi a cor, o universo é muitíssimo mais colorido, com uma palete a fazer lembrar "Bioshock: Infinite" (2013).

Em termos de detalhe gráfico impressiona, embora não o faça em termos de movimento, mas ainda bem, porque assim não haverá surpresas na data de lançamento. Mais, o que conta no universo de Fallout, não é apesar de também, o seu potencial técnico gráfico, mas a sua jogabilidade, o seu mundo-história-aberto, é isso que torna Fallout tão singular, e é isso que nos envolve, e é aí que toda a nossa expectativa está concentrada.

Trailer de "Fallout 4" (tbd)

maio 31, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI

E ao sexto volume senti a força do romance irromper por entre todo aquele manto constituído por camadas e camadas de análise e auto-análise. Proust surpreende-nos, mas se me surpreendi com a reviravolta no enredo, mais ainda me surpreendi, por só agora me ter apercebido de um traço central em toda a escrita da ‘Recherche’, a tentativa deliberada para evitar a emoção estética. Proust cita por duas vezes Descartes ao longo da obra, mas só aqui me dei conta do quão contaminado por ele estava Proust, buscando aqui claramente realizar um trabalho de análise da vida, cingindo-se apenas, e só (pelo menos assim o desejava ele), à razão.


Ou seja, seguindo a crença no dualismo cartesiano, Proust trabalha com enorme profundidade a descrição de cada ação, evento e novo facto, evitando por todos os meios contaminar as suas descrições com sentimento, acreditando que a razão é a base da consciência, do conhecimento. Isto tornou-se-me mais claro aqui, porque ao fim de todos estes volumes a reviravolta que acontece é forte, intensa, mas Proust apesar de dar conta dela, fá-lo sem se dar aos sentires do seu personagem que facilmente poderiam resvalar para uma emocionalidade excruciante. Toda a emocionalidade é analisada e descrita num detalhe tal, tornando-se em si explicação, desprovida de sensação. Claro que tudo isto é impossível, não é possível escrever de forma apenas racional, porque enquanto seres humanos, somos incapazes de racionalizar sem emoção (Damásio).

Deste modo o que acaba por acontecer em Proust, é que ele nos arrebata sim, mas pela forma brilhante como escreve e analisa, e menos, ou mesmo nada, pela forma como recria experiências emocionais. As experiências emocionais estão lá, mas ele não as recria para que nós as experiencemos, ele abre todo um acesso especial à experiência profundamente racional. Proust procurava assim a elevação discursiva, ele sabia que era fácil agarrar o leitor pela emocionalidade, pela força do enredo, pelas suas reviravoltas amorosas, mas não era isso que o movia, ele estava mais interessado em dar a conhecer o mundo nas suas essências constituintes, porque muito provavelmente acreditava estar aí o cerne da consciência, da nossa capacidade para apreender o mundo.

Entrando na questão da consciência, neste volume Proust trabalha uma nova abordagem desta, defendendo a existência de diversos 'Eu's, consoante o momento, a memória, ou a resposta necessária à realidade. Fez-me lembrar os “subselves” do recente livro “Rational Animal” de Kenrick e Griskevicius, que defendem, tal como Proust aqui defende, que somos várias pessoas diferentes, e assumimos identidades distintas em função das necessidades do real circundante. A este mesmo ponto vem agora ligar-se um outro conceito muito importante para Proust, o “hábito”, como o fundamento social que suporta, tal concha protectora, cada um dos nossos Eus. Pois em função de cada necessidade social, automaticamente reportamos ao hábito, e desse ao Eu que necessitamos para reagir.
Assim decorria na nossa sala de jantar, à luz do candeeiro que tanto as estimula, uma daquelas conversas a que a sabedoria, não a das nações, mas a das famílias, apoderando-se de um acontecimento qualquer - morte, noivado, herança, ruína - e colocando-o sob a lente de aumentar da memória, confere todo o seu relevo, um relevo que dissocia, recua e situa em perspectiva em diversos pontos do espaço do tempo aquilo que, para os que não viveram, parece amalgamado numa mesma superfície: os nomes dos falecidos, os sucessivos endereços, as origens da fortuna e as suas alterações, as mutações de propriedade. Esta sabedoria é inspirada pela Musa que convém ignorar durante tanto tempo quanto possível se quisermos conservar alguma frescura de impressões (..) a Musa que recolheu tudo o que as musas mais elevadas da Filosofia e da Arte rejeitaram, tudo o que não está assente em verdade, tudo que é apenas contigente mas igualmente revela outras leis: a História!” p. 264
Este é o volume mais pequeno, todos os outros aquando do lançamento foram editados em 2 ou 3 volumes (15), este foi o único que foi lançado num único apenas. Tem a particularidade, tal como o anterior, de ter saído depois da morte de Proust, e não ter tido a sua revisão final, o que por vezes se nota, embora se sinta mais no volume anterior. Como livro, a primeira e a última parte são novamente as mais intensas, embora pela primeira vez Proust não deixe um gancho final. Não sinto que faça falta, estamos no penúltimo volume, e o texto que encerra o livro, está claramente a apontar para o encerramento da narrativa, de modo que a ânsia por passar ao volume seguinte é mais forte que nunca, queremos saber o que ainda nos reserva um volume inteiro, uma vez que o climax parece ter já surgido aqui, e os Lados, de Guermantes e de Swann, foram completamente unidos.


[Marcel Proust, (1925), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI - A Fugitiva”, Relógio D'Água, ISBN 9727088023, trad. Pedro Tamen, 2004, p. 288]

Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

maio 29, 2015

Conhecimento Tácito e Declarativo: o caso da bicicleta

Destin Sandin criou mais um episódio memorável, “The Backwards Brain Bicycle” (2015), para a sua série YouTube “Smarter Every Day”. Neste episódio Destin  demonstra como é impossível (não é, mas requer centenas de tentativas até se conseguir) conduzir uma bicicleta com o volante em modo reverso, depois de ter aprendido a conduzir uma bicicleta normal. Destin retira duas conclusões desta sua experiência:



1 - Conhecimento ≠ Compreensão

2 - Que vemos o mundo através de um viés, uma formatação do nosso cérebro.
Concordo com ambas, mas podemos ir mais longe na explicação do que acontece aqui, e a partir deste exemplo tecer alguns comentários mais gerais nomeadamente sobre nós próprios e sobre processos Educação. Assim adicionaria aqui, dois pontos que o próprio Destin toca, mas não elabora:
3 - Que a neuroplasticidade do cérebro é realmente muito diferente entre um cérebro jovem e um adulto. Por mais que nos últimos anos nos queiram fazer crer que podemos facilmente desaprender e voltar a aprender (neste caso temos 8 meses vs. 2 semanas).

4 - Que as nossas acções físicas são fruto de algoritmos (processos) de interação entre mente e corpo, e não meramente ordenadas pela vontade um raciocínio mental (por isso ele diz que se deixar de “pensar” consegue mais facilmente conduzir).

"The Backwards Brain Bicycle", (2015), Smarter Every Day 133

Mas nada disto é novo, e era aqui que queria chegar. O que é muito bom, é a demonstração audiovisual e empírica destes quatro pontos, porque em teoria sabemos disto há muito tempo, embora muitas vezes parece que não nos lembramos, ou queremos acreditar que não é assim, como aliás se pode ver nas reacções das pessoas que vão guiar a bicicleta. Ou seja, o que temos presente neste exemplo é um caso de Conhecimento Tácito, que pode ser designado também de Implícito ou Experimental. É um tipo de conhecimento que só pode ser construído pela experiência, e no tempo. O caso clássico deste tipo de conhecimento é exactamente o de andar de bicicleta, mas pode ser aplicado a muitas outras acções humanas, tal como qualquer desporto ou qualquer arte.

Mas este não é o único tipo de conhecimento que podemos construir, existe um outro, normalmente dado em oposição ao tácito, e que chamamos de Conhecimento Declarativo, ou explícito. Este é aquele em que mais se fundamenta a escola tradicional. Ou seja, estamos a falar de todo o conhecimento que pode ser descrito, sendo suficiente a descrição para que o possamos apreender. Acontece com a Biologia, a Geografia, a História, etc.

Este tem sido um domínio que me tem interessado imenso nos últimos anos por causa do Design de Interação, e que à medida que fui investigando sobre os modos como agimos sobre a realidade, fui-me apercebendo da relevância da Experiência. Daí que tenha começado a defender o ensino técnico-profissional, uma vez que o ensino tradicional sem base de experiência é manifestamente insuficiente para formar pessoas.

Isto explica porque ensinar Arte nas nossas escolas é tão complicado, porque uma coisa é ensinar Teoria e Crítica de Arte, outra bem diferente é ensinar a criar arte, isso só pode acontecer com a experiência. E aqui incluo naturalmente o Português, que não é mais do que o ensino da arte da língua. Não faz muito sentido passar anos e anos a ensinar conceitos e regras de uma língua, quando a verdadeira aprendizagem da mesma, só se pode efetuar através da repetição de Leitura e Escrita, como ainda aqui dizia a propósito de Proust ou Afonso Cabral.

Aliás, o caso do Português acaba por não ser distinto do da Matemática, já que ambos requerem a experiência, mas por o fazerem num domínio somente mental, porque laboram sobre abstrações do real, julga-se erradamente que o que é importante é a aprendizagem da componente declarativa, quando esta na maior parte das vezes só perturba a aprendizagem, que só se consegue efetuar verdadeiramente pela repetição da experiência. Neste caso, conhecer não chega, é preciso chegar à compreensão.

maio 26, 2015

Edição alucinante de memórias

Danny Madden (do coletivo Ornana) voltou a surpreender com uma nova curta que mistura animação com imagens reais de dezenas de filmes. Depois de no ano passado ter criado o brilhante “Confusion Through Sand” (2014), financiado no Kickstarter, traz-nos agora "All Your Favorite Shows" (2015) com financiamento da The Knight Foundation e do Borscht Film Festival. Este novo filme acaba demonstrando mais uma vez a sua enorme mestria da linguagem audiovisual.




"All Your Favorite Shows" é um filme impactante pela grande expressividade e velocidade que imprime no contar da sua história. Os personagens animados 'gritam' graficamente, através de grandes planos faciais e de rápidas transformações de expressão, apelando à nossa atenção, por sua vez toda a montagem (Mari Walker) se sucede num ritmo tão frenético que nos impossibilita virar os olhos por um segundo que seja. São apenas 5 minutos, mas tão intensos como um dos nossos preferidos bombons num momento de ansiedade, porque não se limita a bater-nos com a plástica, as imagens reais retiradas de dezenas de filmes e facilmente reconhecíveis, garantem o acender de um rastilho de memórias que nos conduzem ao escapismo imediato.

E são estas imagens que também impressionam, porque Madden conseguiu, com a ajuda de Walker, reunir blocos inteiros de tropos cinematográficos, ou padrões fílmicos (corridas de carro, corridas a pé, quedas, saltos, etc.), que depois mistura de forma ágil com trechos de animação, por meio de brilhantes raccords, criando um todo extremamente coerente e que nos conta uma história. Foi muito interessante ler numa entrevista Madden descrever como procederam para reunir os excertos de filmes:
"I called Mari because along with one of the walls of her apartment being filled floor to ceiling with DVDs, she’s got a remarkable (and sometimes frightening) ability to recall shots from almost any genre of film from almost any time period.
I would say something like, “Ya know how the hero will turn around and look over his shoulder all badass-like?” Then Mari would close her eyes for a minute, almost trancelike, and draft up a mental list of films and scenes where that sort of thing happens."

"All Your Favorite Shows" (2015) de Ornana

maio 25, 2015

Outros Lugares (virtuais)

Depois de Duncan Harris ter lançado a moda da Fotografia de mundos virtuais de videojogos, com o seu Dead End Thrills, agora Andy Kelly apresenta uma nova ideia, criar Video a partir desses mundos, com o seu Other Places. Assim, além das imagens estáticas de Harris temos agora também movimento e música a contribuírem para o aspeto narrativo dos excertos. É interessante como estes vídeos nos vêm permitir fazer algo para o qual, enquanto jogamos, nos parece nunca haver tempo, que é contemplar o espaço, o mundo que nos circunda, que apesar de virtual o sentimos tão real.




Confesso que fiquei um pouco desiludido com os trabalhos finais, esperava mais dos enquadramentos, montagem e até do som, principalmente quando comparamos com o magnífico trabalho fotográfico de Harris. Ainda assim são filmes que nos permitem reviver momentos, memórias, e até criar novas, com novos significados. Deixo abaixo um filme que resume o primeiro ano de trabalho de Kelly, ao longo de 2014.

"Other Places: Year One" (2014) de Andy Kelly