novembro 09, 2014

O belo é constrangedor

Wayne White é um nome provavelmente estranho para muitos, mas se vos disser que criou as marionetes do programa "Pee-wee's Playhouse" (1986) talvez diga algo mais, e se disser que foi o director artístico do videoclip “Tonight, Tonight” (1995) dos Smashing Pumpkins acredito que irão reconhecer. Com estes trabalhos White arrecadou, nos anos 1990, vários Emmys, mas não é sobre isso que o filme “Beauty is Embarrassing” (2012) fala, embora também, o que aqui está em causa é verdadeiramente o artista por detrás dessas, e muitas outras criações. E se podemos admirar o seu trabalho, mais fiquei a admirar a sua pessoa, essencialmente pelos traços que a caracterizam: honestidade, frontalidade, simplicidade e tenacidade.




O documentário “Beauty is Embarrassing” (2012) dá conta do espírito subjacente à criatividade, à criação artística, às suas motivações, mas essencialmente ao modo como brota. Ver o espaço e o modo de trabalho de White é bastante elucidativo, mas não é menos compreender as suas raízes, compreender como está no mundo. Aceder à sua intimidade, vê-lo interagir com os filhos e a mulher dá conta do quão simples tudo isto é, e deve ser, das escolhas que se fazem, da educação, da orientação, motivação e investimento.



Wayne White, esposa e filhos
"Beauty is embarrassing. Now, what do I mean by that? Beauty is a many-pronged thing, you know? It has many sides to it. When we see something beautiful, truly beautiful, we're in awe, and raw emotion comes to the surface. We're also humbled by it. We're not worthy. That emotional vulnerability, that insecurity, those are both embarrassing situations.

"If only I could make something that beautiful,"
or,
"if only I was that beautiful."
So we're sort of embarrassed for ourselves when we're struck by true beauty. Artists and creative people are people who make beauty. Now, that's the bottom line. I mean, that's what we do. We make beauty. I've been trying to make beauty my whole life, and just to even say that is embarrassing, but I have.

So, ladies and gentlemen, I owe you a very big debt of gratitude, 'cause this is a rare and special time for me right now. You let me stand up here and show you all my beautiful things, and I didn't get embarrassed once.

Follow your heart and your pleasure in art. Don't do what you think is gonna be making you money or what your parents want you to do or what that beautiful girl or guy thinks you should be doing. Do what you love. It's gonna lead to where you want to go. Go out there and make the world more beautiful. I know you can.
My name is Wayne White. Thank you.
"

"Beauty Is Embarrassing" (2012) de Neil Berkeley

novembro 08, 2014

escrevendo com câmara

Nuri Bilge Ceylan confirma-me mais uma vez, com "Three Monkeys" (2008), porque é um dos meus realizadores preferidos da atualidade. O seu cinema tem um poder absolutamente literário, mais até... tanto do que se sente em frente da tela me questiona se o poderia sentir em face da palavra escrita… Cada enquadramento traz consigo um grau de humanismo tão denso, fazendo sofrer ali com os seus personagens… por breves momentos senti na pele um questionamento profundamente camusiano emergir das suas personagens…


É uma obra rara e forte, uma jóia da arte cinematográfica. É um portento por tudo o que consegue dizer sem verbalizar, sem descrever, encenando, colando na linguagem à pele dos actores tudo o que quer dizer, exponenciando tudo com uma câmara que mais parece uma caneta, por tudo aquilo que expressa, como se estivesse escrevendo directamente em cada quadro, cada movimento, cada evento...


Nada mais me apetece dizer, é um filme para se ver, para cada um sentir, as palavras cabem a cada um, dentro de si…


Nota: o título refere-se ao provérbio, "see no evil, hear no evil, speak no evil".

novembro 03, 2014

Do estado da animação nacional

A animação nacional está bem e recomenda-se, a demonstrar isto mesmo são os dois filmes vencedores do Prémio Nacional de Animação 2014 decorrido este fim-de-semana, e como se não bastasse, acaba de chegar à rede um trailer que anuncia um trabalho de estética e qualidade internacionais, criado apenas por uma dupla de irmãos nacionais.



Começando pelo premiado da categoria Profissional do PNA 2014, atribuído este fim-de-semana na Festa da Animação 2014 em Lousada, "Fuligem" (2014) de David Doutel e Vasco Sá que foi ainda agraciado com o Prémio do Público. "Fuligem" tinha já sido premiado com o Prémio do Público e a Melhor Realização no 22º Curtas Vila do Conde em Julho deste ano. E acredito que não sairá do Cinanima este mês sem prémio, veremos.

Trailer de "Fuligem" (2014) de David Doutel e Vasco Sá

"Fuligem" impressiona desde logo pela qualidade assombrosa da imagem, que em conjunto com o som, o guião e a direcção geram uma atmosfera única, autêntica e muito intensa. Ao longo de 14 minutos somos levados pelo filme, pela fuligem que se sedimenta sobre a imagem, sobre a música, sobre os personagens, e por fim sobre nós mesmos. O filme atravessa as memórias de um personagem, indo por seu meio ao âmago das alterações sociais ocorridas no nosso país nos últimos 30 anos, fazendo-o por por meio de uma metáfora simples, o comboio. Quando termina, ficamos ali parados, inquietos na mente e deliciados na emoção. É um dos melhores filmes de animação nacional que vi nos últimos anos, vale a pena ler o texto no P3 com entrevista ao David Doutel sobre o processo de produção.

Excerto de "Osmose" (2014) de David Ferreira, João Santos, Margarida Pereira, Pedro Baginha e Rui Silva. Uso este excerto por não ter encontrado um trailer.

Quanto ao premiado da categoria de Estudante, foi para um interessantíssimo projecto de fim de licenciatura da Universidade Lusófona, "Osmose" (2014) criado por David Ferreira, João Santos, Margarida Pereira, Pedro Baginha e Rui Silva. Este foi um projecto que me fez revisitar "THX 1138" (1971) de George Lucas, dada a similaridade espacial, trabalhando sobre um cenário branco sem fundo, e que mais uma vez demonstrou ser perfeito no baralhar das referências espaciais do espectador. Deste modo é um projecto que começa desde os primeiros segundos a instigar-nos, indo aos poucos, e de forma mínima, oferecendo-se à interpretação, mas sem nunca revelar o todo, obrigando o espectador a preencher os vazios, a construir sobre o branco o seu mundo, ajustando as suas referências às suas interpretações.

Por fim temos apenas um trailer mas que conseguiu ser desde já destacado no Cartoon Brew, "Poet Anderson: The Dream Walker" criado pelos irmãos Sergio e Edgar Martins e que deve estrear a 9 de Dezembro no Festival de Curtas de Toronto. O filme faz parte de uma estratégia transmedia da banda americana Angels & Airwaves, ao qual se juntará o novo album de originais da banda e um livro de banda desenhada tudo ramificado a partir do personagem central Poet Anderson, uma espécie de sonhador lúcido. O Cartoon Brew dá detalhes sobre o modo como foi lançado o projecto pelos irmãos portugueses.

Trailer de "Poet Anderson: The Dream Walker" (2014) de Sergio e Edgar Martins

Ainda que seja apenas um trailer, "Poet Anderson: The Dream Walker" impressiona desde logo pela fluidez da animação, com uma vivacidade e velocidade pouco comuns na animação nacional, o que não nos deve espantar, já que toda estética respira uma estilística globalizante de raíz americana. A componente visual é também muito conseguida nomeadamente em termos de luz, conseguindo gerar todo um universo muito próprio e consentâneo com o tema do filme. Resta-nos esperar para ver o resultado final.

outubro 29, 2014

Experiência e Pausa

Esta semana escrevi um artigo para o IGN Portugal a propósito da sociedade de abundância e velocidade, e seus efeitos na fruição de experiências, nomeadamente no que se perde em não repetir boas experiências, daí o título “Porquê Repetir Experiências?”. É um artigo que dá conta de uma visão das experiências estéticas, sustentado depois num estudo que fala sobre o que leva as pessoas a repetirem experiências, tais como: reler um livro, rever um filme ou rejogar um jogo.


Aproveito este apontamento para dar conta de algo que já começou há algum tempo neste blog, e que para quem me segue até já se terá dado conta, que é uma certa desaceleração na publicação. Esta desaceleração irá acelerar mais ainda nos próximos meses, mantendo-se ao longo do próximo ano. A razão para esta pausa prende-se com o novo livro que estou a desenvolver para uma editora nacional, e que em breve darei aqui conta.

Assim, entrarei agora em pausa, e publicarei aqui e no facebook apenas excepcionalmente. Continuarei a escrever a coluna quinzenal para o IGN Portugal, e deixarei um ou outro apontamento no Goodreads.

outubro 25, 2014

"The Last of Us" visto em bullet time

Parece uma mina infindável de material digno de análise. Já por várias vezes aqui falei de "The Last of Us", e do que trago hoje é feito por um fã do jogo, de quem já aqui falei também antes, a propósito da autonomia dos personagens. Grant Voegtle que tinha jogado quatro vezes o jogo, voltou a testar o mesmo na versão PS4, tendo descoberto a novidade incluída nesta versão, o Photo Mode, fez um vídeo através do mesmo absolutamente delicioso.



O que Voegtle fez, e que torna o seu trabalho tão interessante, foi pegar numa ferramenta que vem com o jogo, e que permite congelar momentos específicos da acção no ecrã, sem congelar a perspectiva da câmara. Ou seja, o Photo Mode pausa o motor de jogo, mas permite que a câmara continue a ser controlada pelo jogador, de modo a que este possa escolher o melhor ângulo. Ora Voegtle resolveu ir além dessa escolha e assim gravar sequências vídeo desses momentos de acção congelados, a fazer lembrar o efeito "bullet time" criado por Gaeta para "The Matrix" (1999).

"The Last of Us Remastered: 'Time' Trailer" (2014) de Grant Voegtle

Este filme, espécie de trailer, faz-me voltar a "The Last of Us" e remexer em toda a experiência que foi jogar o mesmo. Faz-me, e agora ligado ao texto que escrevi para publicar esta semana no IGN, pensar que vou voltar a jogar o mesmo muito em breve.

outubro 20, 2014

A inovação em "Half-Life"

Stuart Brown publicou ontem no YouTube um belíssimo documentário no qual dá conta da inovação estética produzida por "Half-Life" (HL) em 1998. Ao longo de cerca de 20 minutos Brown apresenta historicamente o surgimento de HL e compara os seus elementos mais marcantes com outros jogos anteriores e posteriores. O documentário acaba por resultar numa demonstração do quão marcante e relevante foi o surgimento de HL para o género First-Person Shooter.


Fiz questão de frisar que a maior relevância de HL diz respeito ao género FPS, já que apesar de este ter apresentado elementos extremamente relevantes no campo do storytelling, o facto de ter permanecido sempre colado à primeira-pessoa, impediu-o de elevar a fasquia neste domínio. Tenho-o dito várias vezes, e volto a dizer, não é possível gerar o nível de empatia requerido por uma história se o protagonista não estiver presente. Em HL2 isso foi muito atenuado com os personagens secundários, nomeadamente Alyx, mas continuou a ser insuficiente. Em termos puramente teóricos, posso até pedir ao jogador que "preencha" o espaço deixado vazio pelo protagonista, tal como o leitor faz quando falta alguma informação num livro que está a ler, mas não chega.

As personagens são elementos-chave numa história, sem elas não existe ligação ao seu âmago emocional. Podemos ver isto acontecer num dos livros mais elogiados de Italo Calvino, As Cidades Invisíveis (1972) um livro que procura obrigar o leitor a trabalhar na construção mental do personagens, já que o autor apenas fornece o esboço dos ambientes e espaços das cidades. Mas o que acontece é um distanciamento total, uma frieza, uma ausência de sentires capazes de me fazer respirar a história. A descrição é insuficiente, requer drama para se tornar narração.

"RetroAhoy: Half-Life" (2014) de Stuart Brown

Em HL, ou qualquer FPS o que temos é isso, uma tentativa de gerar história por via do ambiente, e aqui HL foi exímio, criando todo um mundo espacial altamente credível, sem quebras, sem níveis, sem cutscenes, literalmente sentimos que tínhamos entrado em Black Mesa. Mas tudo seria tão diferente se pudesse ter conhecido Gordon Freeman.

Desta vez gostei de ler os comentários no YouTube, porque se por vezes pareço estar sozinho a defender tudo isto, verifiquei que não é de todo o caso. O primeiro comentário que aí poderão ler, o mais votado, toca exactamente aqui. Muito interessante!

outubro 19, 2014

"1Q84" de Haruki Murakami

1400 páginas depois, sinto que conheço melhor Aomame e Tengo, assim como Murakami, sinto que estes se encontraram e para eles valeu a pena, mas sinto que me falta algo. "1Q84" é uma viagem longa mas que nunca nos entedia, porque progredindo sempre, ainda que a um ritmo calmo, embora dificilmente possamos dizer que nos marca, que se afunda em nós. Murakami desenha a partir do clássico motivo de enredo, “rapariga encontra rapaz”, uma viagem melancólica e indiferente, bem ao estilo daquele que considera ser o seu realizador de cinema preferido, Aki Kaurismäki.


No ano de 1Q84, (a sonoridade da letra Q em japonês pode confundir-se com o número 9), Aomame e Tengo que não se vêem há 20 anos, estão enamorados, porque quando tinham 10 anos, numa sala da sua escola primária, deram as mãos brevemente mas de forma sentida. Este motivo vai ganhado peso com o passar das páginas, e ao aproximar-se do final do livro torna-se central, criando um momento mágico potenciado pela vastidão de páginas já lidas, geradoras de expectativa e ânsia. Um momento que me fez sair do romance e vaguear dentro de mim, tendo ido parar ao universo de “ICO” (2001), o videojogo em que o rapaz e a rapariga passam quase todo o tempo de mãos dadas fugindo de um mundo hostil.

O melhor advém das múltiplas histórias que enredam toda a linha narrativa central. Não que o livro tenha muitos personagens, aliás para a sua dimensão são poucos até, mas as histórias estendem as suas motivações muito além do esperado: desde o espiritual ao fantástico, do sexual ao familiar, do intelectual ao violento. Nem todas são boas, mas nenhuma se pode dizer que deveria ter ficado de fora. Algumas são absolutamente excelentes, fazendo o livro vibrar dentro de nós, nomeadamente a história do pai de Tengo e o encontro entre o líder espiritual e Aomame. Admito que me incomodou por vezes as descrições, ou melhor repetições um tanto obsessivas de carácter mais sexual e sensual (nomeadamente a mania com o tamanho dos seios), embora aceite que fazem parte da descrição de um universo que se quer dar a ver, mas quando enfatizadas parecem ganhar todo um outro conjunto de leituras.

Lendo Murakami facilmente se percebem as razões do seu sucesso, por um lado a escrita escorreita, muito simples, pouco dada a experimentalismos ou inovação, o que me faz sempre questionar de onde virão as constantes menções a Nobel, já que não se vislumbra como. Por outro, e talvez o mais importante, o trabalho temático que opera uma ligação promíscua e fácil entre a cultura japonesa e a cultura europeia/americana. Murakami usa o Japão como espaço geográfico, mas preenche-o de cultura ocidental, desde Chekhov a Dostoiévski, passando por Kubrick ou Orwell, ou ainda Proust, Shakespeare ou Carroll tudo isto envolvido por sinfonias e concertos de grandes mestres europeus.

Se juntarmos a este caldo cultural, as discussões existenciais com que os seus personagens amiúde se debatem, percebemos facilmente porque Murakami é tão querido junto das camadas mais jovens. Ao longo das páginas todos os personagens, sem excepção, parecem dotados de uma espécie de curiosidade intrínseca sobre o mundo, questionando continuamente o sentido do tempo, da mudança, do ser consciente e da realidade que os envolve. Se os adolescentes sentem aquelas palavras e questionamentos seus, muitos outros já não adolescentes, recolhidos sobre si, questionando-se sobre o seu lugar neste labirinto a que chamamos vida, sentem aqui também ecos do seu interior.

1Q84 apresenta provavelmente um número excessivo de páginas, não por prolongar o romance desnecessariamente, mas antes por se repetir em excesso. Não raras as vezes damos por nós a avançar linhas em diagonal porque já sabemos o que estará ali escrito. Murakami repete, não poucas vezes, as mesmas acções sem alteração, vistas por diferentes personagens. Mais, repete não raras vezes momentos chave do livro, como se tivesse necessidade de recordar o leitor, de garantir que este está alerta para o que ele quer dizer a seguir. A redundância é uma técnica necessária em seriado, mas, e ainda que o livro seja grande, não faz muito sentido a este nível. De certa forma é como se o autor menosprezasse as capacidades e o envolvimento do leitor.

Um último ponto, não me incomodou propriamente que Murakami deixasse muitas questões sem resposta - quem é o “povo pequeno”? quem andava a bater às portas a fazer-se passar por cobrador da NHK? que foi feito da “verdadeira” Fuka-Eri?, etc. etc. - já que o fechamento do romance entre Tengo e Aomame está tão bem conseguido que nos leva totalmente ao esquecimento desses nós narrativos. Mas a verdade é que ficam suspensos no ar, como que se mais uma vez Murakami desprezasse os seus leitores, achando-se acima dos domínios narrativos da causalidade. Podemos até tentar justificar esta opção como um motivo estético pós-moderno, mas dificilmente se enquadra no resto da estética que se serve da clássica progressão causal para envolver e manter o leitor interessado até à última página.

Posto tudo isto, não é de estranhar as análises mistas que se podem ver a "1Q84", com muitos a questionarem-se sobre o que dizer sobre tudo o que acabaram de ler. O esforço pedido por Murakami, em termo de páginas, é grande, e em certa medida parece que as pessoas querem atribuir um sentido válido a esse esforço, pelo respeito que o autor lhes merece, mas as dificuldades em fazê-lo são mais que muitas.


Versão: 3 volumes, editado pela Casa das Letras, com tradução de Maria João Lourenço e Maria João da Rocha Afonso.

outubro 12, 2014

Quando o social não chega

“Fish Tank” (2009) é uma estrela resplandecente no topo da corrente estética do realismo social britânico popularizada por Mike Leigh e Ken Loach, entre outros. Somos mais uma vez levados por entre muros de um bairro social britânico, desta vez para conhecer as filhas de uma mãe solteira e alcoólica. Com 15 anos a revolta é mais que muita, sem rede familiar, desconhecendo os significados do afecto e da amizade, todos parecem estar contra nós, tal qual répteis temos apenas a raiva para oferecer.




A realizadora Andrea Arnold tinha ganho o Oscar para melhor curta em 2003 com “Wasp”, um filme marcado pelo mesmo traço temático. “Fish Tank” é a sua longa, e é um trabalho de soberba acuidade. Uma análise mais apurada do filme permite-nos encontrar detalhes dignos de literatura. O modo como cada cenário se apresenta, decoração e composição, funciona como espelho de alma de cada um destes personagens. Cada divisão da casa poderia facilmente resvalar para várias páginas de descrição do que se vê, pelo quanto isso nos ajuda a compreender as personagens, os seus mundos, sonhos e limitações. Nomeadamente o contraste entre os ecrãs de televisão e a arrumação e colorido da casa é fundamental.

A fraca qualidade dos aparelhos, espalhados por toda a casa, continuamente sintonizados em fracos conteúdos, com mau sinal, como que alimentam espaços arrumados, aparentemente calmos e civilizados de distorções do real. Um contraste que se reforça nos personagens: limpos, arrumados e bonitos por fora mas com tão pouco mundo por dentro. Sente-se a fachada, a necessidade de criar uma imagem para garantir a manutenção dos apoios sociais. Percebe-se que existe ali espaço para muito mais, que o facto de se viver numa sociedade de primeiro-mundo, dotada de uma rede social pública, abre caminhos e oportunidades incomensuráveis.

Mas no fundo, e é aqui que o filme mais brilha, na sua sub-reptícia mensagem: não basta dinheiro, comida e um lar arrumado. Sem uma família sólida capaz de alicerçar o amor-próprio, a educação não se constrói, a formação é cortada antes de poder dar fruto, limitando o mundo, assim como o desejo.


Uma nota final sobre o realismo por detrás daquilo que nos é dado a ver. Katie Jarvis que protagoniza a adolescente Mia, foi descoberta em Essex pela realizadora. Vivia também numa casa social, e fora mãe aos 16 anos. A força do que vemos nestas imagens levou-a ganhar vários prémios em festivais internacionais em 2009, mas passados 5 anos, a sua carreira resume-se a um parco episódio de televisão, e mais alguns episódios de séries de televisão em pré-produção...

outubro 08, 2014

Fronteiras entre séries tv e cinema

A ideia de que as séries de televisão se transformaram no novo cinema não é de todo nova, tem pelo menos dez anos, mas durante todo este tempo sempre as vi ainda distantes no que toca à linguagem audiovisual. O facto de se ter de filmar, entre 10 a 60 horas, impossibilita que se invista o mesmo tempo que se investe num filme, que tem entre 1 a 2 horas, na construção de cenas e planos. Mas o que vi, no episódio 4 da primeira temporada de "True Detective", deixou-me boquiaberto, tendo assim, para mim, quebrado-se uma das últimas fronteiras que separavam as séries do cinema. Estou a falar de um plano sequência (long shots ou oners) com cerca de 6 minutos realizado por Cary Fukunaga.



A construção deste plano levou apenas 2 dias, muito pouco para cinema, imenso para televisão. Num dos dias foram feitos os vários ensaios, no outro dia foi gravada toda a cena. Encontrei alguma informação, dada por um dos técnicos envolvido na cena, no No Film School, e que aqui transcrevo.
"Stunts and actors rehearsed on a mock up of the 1st house for probably a week. The entire run through, we had two days: one to rehearse, one to shoot. It was very well coordinated so there wasn’t much room for improv as far as the course of the shot. I cant speak for actor nuances though. We shot the entire show on film: Millennium XLs, excluding this shot. We went with an Alexa just because the length of the scene was longer than a 400′ mag. We stripped the weight of the camera to a minimum so no cinetape or matte box. The focus puller did an incredible job. I believe it was a 28mm at a 2.8."
A forma como está filmada a sequência é algo que Fukunaga gosta particularmente, tendo explicado à MTV que para si estes planos sequência, "are the most first-person experience you can get in a film". Concordo, e é interessante que diga isto porque foi exactamente por esta razão que o André Valentim Almeida me deu conta deste plano sequência quando o viu. Na altura falámos sobre o facto de se notar aqui alguma influência da estética dos videojogos FPS, o que vem de encontro às intenções concretas de Fukunaga. A mescla de discursos é inevitável, uma vez que dizem respeito a artefactos provenientes do mesmo caldo cultural, fazendo com que os discursos se moldem à semelhança uns dos outros e assim evoluam mutuamente.

Coloquei a sequência completa no YouTube mas este não me permite realizar o embed por isso terão de ver directamente no YouTube (deixo link de outra versão em HD).

outubro 07, 2014

Aprender com Soderbergh e Spielberg

Steven Soderbergh resolveu dar uma masterclass brilhante sobre encenação (“staging”) no seu blog. Como ele diz, a encenação como arte de colocar em cena provém do teatro, e se no cinema também se pode assim chamar, esta representa mais do que colocar em cena. Nesse sentido temos de perceber que aquilo que Soderbergh aqui acaba por definir como encenação, é no fundo a direcção cinematográfica. Ou seja, a composição da cena, a escolha dos planos e os padrões de edição fazem tudo parte do trabalho de plastificação da ideia em imagem.




Assim a particularidade desta aula assenta nas ferramentas escolhidas por Soderbergh para explicar a encenação. Soderbergh pegou numa cópia de “Raiders of the Lost Ark” (1981), o primeiro filme da série Indiana Jones, e retirou-lhe o som e a cor, e colocou-o online. Pode parecer algo simples, básico e banal, mas longe disso. O resultado desta operação, diga-se original, é o de permitir aos interessados na arte, o focar-se sobre a sua essência. No caso do som, Soderbergh acabou por lhe adicionar uma banda sonora ambiente, mas posso dizer que das várias cenas que estive a analisar, acabei por preferir retirar o som completamente, já que por vezes me sentia a ser levado pela música. Ficam as instruções para visionamento, muito simples e claras:
“So I want you to watch this movie and think only about staging, how the shots are built and laid out, what the rules of movement are, what the cutting patterns are. See if you can reproduce the thought process that resulted in these choices by asking yourself: why was each shot—whether short or long—held for that exact length of time and placed in that order?
Claro que se Soderbergh escolheu este filme, não foi ao acaso. Spielberg não é um mero realizador de Hollywood, foi durante muitos anos considerado um mago de hollywood, e a razão para tal não se prende com a capacidade para fazer dinheiro, embora também, mas essencialmente com a sua capacidade para plasmar na perfeição, ideias na tela. Como refere Soderbergh, o trabalho de encenação de Spielberg neste filme é "matemática visual de alto-nível". Contudo não deixa de referir que Spielberg, com o tempo, foi perdendo parte destas capacidades.

Um outro apontamento muito relevante deste exercício acaba por surgir mais por acaso, do efeito de retirada da cor, que nos permite assim ganhar uma noção muito mais cristalina da qualidade da fotografia de Douglas Slocombe.

O filme completo só pode ser visto na página do Soderbergh, o seu embebimento noutros sites está bloqueado por razões de copyright.